Corinna McLeod (2009), num instigante artigo, analisa o papel do museu, neste caso do British Empire & Commonwealth Museum, como um lugar de “identidade contestada” (p. 157). Segundo McLeod, o museu é o exemplo ideal onde uma nação pode ser vista a negociar ativamente a sua identidade historicizada. Referindo-se à sociedade britânica e à sua relação pós-colonial com o passado imperial, o museu aparece não apenas como o repositório de fragmentos do império (McLeod, 2009, p. 157), mas como o local onde se preserva e, ao mesmo tempo, se reconstrói o passado. Deste modo, o museu torna-se “um local de memória e memorialização”, onde ambos os conceitos representam “empreendimentos construtivistas e são propícios à formação de uma identidade nacional pública” (McLeod, 2009, p. 158). Gostaria de tomar esta ideia à volta do conceito de museu como espaço, e das suas contradições e ambiguidades ao lidar com a história do império, no qual a nação negoceia a sua identidade historicizada, fazendo uma analogia com aquele que também é um espaço de memória, embora de diferente natureza, isto é, o espaço do livro. Tal como um museu, o livro é igualmente um lugar de memória e de memorialização, de preservação e de reconstrução do passado, onde identidades podem ser contestadas, afirmadas, ou negadas, contribuindo para a formação da identidade nacional ao retirar dos escombros vozes silenciadas ou apagadas. Espaço de memória que, não devemos esquecer, é sempre fragmentada, um fragmento desse passado, que pode acrescentar, mas não totalizar.
Regressando brevemente a McLeod (2009), esta coloca a pertinente questão centrada no dilema da celebração de um império, o britânico, cujo sucesso dependeu da exploração de corpos e de recursos naturais: “no entanto, um dilema central permanece sem solução. O império foi concebido em torno da exclusão; como se pode então celebrar a glória do império e ao mesmo tempo reconhecer que o seu sucesso foi baseado na exploração bem-sucedida de povos e recursos” (p. 163)? A conclusão é que o museu por si analisado será um teste à capacidade britânica de aceitar “uma identidade nacional recém-configurada e abraçar memórias históricas alternativas” (McLeod, 2009, p. 164). Daqui podemos inferir que as “grandes narrativas” são sistematicamente criadas para “diminuir” ou silenciar as vozes dos “outros”, e que tanto museus como livros podem servir como ferramentas ideológicas para aqueles que se encontram no poder. A escrita de um livro e a visão ideológica que por este perpassa, no entanto, é uma escolha pessoal menos limitada das amarras do poder governamental.
Tendo em conta algumas ideias deste preâmbulo, é meu objetivo aqui analisar o mais recente livro de Teolinda Gersão 1, O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021), à luz do conceito de psicologia negra desenvolvido por Wade W. Nobles. Pretendo, assim, complexificar uma das questões centrais do romance, proferida por Sigmund Freud, o pai da psicanálise, tornado por Gersão (2021) em personagem-narrador fictícia: “será possível que sejamos incapazes de progredir no plano ético, do mesmo modo que, afinal, parecemos incapazes de amor e compaixão?” (p. 14), e ao mesmo tempo desconstruir o que o romance nos aponta como os erros de dois dos mais significativos agentes da história, tanto no campo científico como no literário. Esta pergunta aparece no primeiro capítulo, intitulado “Freud Pensando em Thomas Mann em Dezembro de 1938”, que, aliás, pode ser lido como a primeira de três novelas independentes, embora se encontrem relacionadas entre si. A pergunta, de natureza filosófica, colocada por Freud num monólogo interior, já perto do fim da vida numa situação de exílio em Londres, é lançada a Thomas Mann, sobre a vida psíquica na qual incide a reflexão, mas também ao leitor do livro, ou seja, Freud pensa em Mann, e Gersão pensa, através de Freud, no público leitor. Não se pode descurar o facto de este romance funcionar como um jogo, psicológico, de espelhos que refletem e nos quais são refletidos os três narradores centrais - Sigmund Freud, Thomas e Júlia Mann -, assim como autor e leitor, num círculo fechado pela condição humana.
Outro aspeto a ser tido em conta é o facto de, como refere Tercio Redondo (2012), “no campo das ciências que surgiram nos primórdios do século XX nenhuma [outra ter] estabelec[ido] com a literatura vínculos tão estreitos quanto o fez a Psicanálise” (p. i). Obviamente que o crítico se refere apenas à literatura produzida no ocidente, pois o peso da psicanálise é rarefeito nas literaturas latino-americanas, asiáticas ou africanas nesse mesmo período. Deste modo, Redondo (2012) afirma ainda,
desde os primeiros estudos sobre a histeria, o campo da investigação freudiana interagiu com as artes em geral e a literatura em particular. Segundo o médico vienense, o texto literário corroborava as descobertas da clínica; além disso, oferecia à pesquisa modelos que se ajustavam a construções teóricas complexas, como se deu na formulação do chamado conflito edipiano. Por outro lado, a fatura literária passou ela mesma a ser alvo da investigação psicanalítica, sendo inúmeros os exemplos dessa atividade exegética, que vão do comentário ligeiro à discussão exaustiva de textos de prosa ficcional, como a que Freud realizou em torno do conto O homem de areia, de E.T.A. Hoffmann. (p. i)
Desde sempre, as tentativas de se realizar uma “psicanálise do texto” têm sido alvo de críticas, tanto por parte de escritores como de críticos literários incomodados com a preocupação excessivamente conteudística de Freud, em detrimento da análise da forma, que seria irredutível a seu método, embora essa análise continue a vingar (Allen, 2020; Brooks, 1994; Ellmann, 2014; entre outros). O fascínio gerado pela família Mann é disso exemplo e parece não se assustar com tais críticas. De acordo com Richard Miskolci (2003), o interesse por Júlia Mann e pela sua descendência brasileira foi “estudado como influência na obra de seus descendentes, de forma a-histórica através de abordagens psicanalíticas” (p. 159). Desses títulos fazem parte um estudo biográfico-familiar da socióloga alemã Marianne Krüll, Na Rede dos Magos (1997), e um romance inspirado em sua biografia, de João Silvério Trevisan, Ana em Veneza (1998), entre outros. O romance de Gersão situa-se, deste modo, numa tradição literária à volta da figura de Júlia Mann, a progenitora do Nobel da Literatura, Thomas Mann, e do não menos famoso escritor, Heinrich Mann.
1. O Erro de Freud
Freud, narrador-personagem no livro de Gersão (2021), declara, questionando a disciplina por si criada como forma de redenção do ser humano:
sempre tendi a ser céptico sobre a nossa espécie, o ser humano é um barro impuro. Acreditei que era possível aperfeiçoá-lo e libertá-lo - mas poderá de facto a Psicanálise levar-nos ao domínio das pulsões negativas e à construção de uma sociedade civilizada? (p. 14)
Décadas antes, afirma o personagem, “eu próprio pensara, ( … ), que a Psicanálise tinha todas as respostas, e iria mudar o mundo” (Gersão, 2021, p. 11). A desilusão, no final da vida, é óbvia: “dediquei a vida a procurar a verdade sobre o ser humano. Acreditei que, se soubermos quem somos, veremos com mais clareza e faremos as escolhas certas” (Gersão, 2021, p. 8).
No romance, os eventos reais da vida de Freud entrelaçam-se nitidamente com o narrador fictício do monólogo de 1938. A escolha da data não é acidental. O ano de 1938 foi o ano em que as tropas alemãs ocuparam a Áustria, em cuja capital se estima vivia uma população de 200.000 judeus. Freud, filho de judeus, exilou-se nesse mesmo ano no Reino Unido de forma a fugir à perseguição nazi, acabando por falecer no ano seguinte. O preço pago por se ser judeu na altura foi a morte em massa, o exílio, a perda da vida como era conhecida, para além da perda material e simbólica do trabalho, como afirma Freud:
os livros que escrevi, como os de tantos outros, foram declarados subversivos e degenerados, e lançados na fogueira ao som de injúrias e gritos, ou de um silêncio tão pesado que só se ouvia o crepitar das chamas. Quase todas as grandes obras acabaram em cinzas, e à morte do espírito irá seguir-se o extermínio de milhares, ou milhões, de vidas. (Gersão, 2021, p. 9)
A Segunda Guerra Mundial afetaria não apenas a vida de Freud e de milhões de judeus, mas veio associar-se ainda ao ato igualmente avassalador da condição humana de exploração de corpos humanos e de recursos naturais em África. Portugal, um dos seus maiores responsáveis, acabava de promulgar, 8 anos antes, o Ato Colonial que enfatizava a conceção do império como um todo, além da ideia implícita de que o domínio físico, psicológico, intelectual, económico e militar sobre os povos africanos estava apenas no seu começo. Como é afirmado no Bulletin of International News,
as viagens do Presidente [Óscar Carmona] a Angola em 1938 e a Moçambique em 1939, proclamando a “indestrutível e eterna unidade de Portugal no país e no estrangeiro” sublinharam ainda, com a missão militar a ambos os países em 1938, a real importância do seu Império a Portugal e a sua aposta vital na manutenção da unidade da sua Commonwealth. (Royal Institute of International Affairs, 1942, p. 930)
A mesma forma de domínio sobre o “outro” - racial, étnica e religiosamente diferente - continuava em outros impérios europeus até se chegar ao fim da Segunda Grande Guerra que é hoje encarada como um dos marcos do nível mais deplorável a que o ser humano pode chegar. Os questionamentos de Freud sobre a incivilidade do ser humano, da sua capacidade para progredir no plano ético, do amor e da compaixão, ao que acrescentaria, da solidariedade, não são descabidas tendo em conta o contexto histórico do romance e o próprio contexto da contemporaneidade em que foi escrito e publicado. Afinal, as questões de Freud são tão válidas em 1938 como em 2021.
Se tivermos em conta o trabalho de Wade W. Nobles na área da psicologia negra, veremos que o erro de Freud foi, a partir de um pensamento eurocêntrico, não ter em conta que a psicanálise por si desenvolvida não permitia que todos os seres humanos se encaixassem nos mesmos moldes. No fim do seu monólogo sobre Mann, ele próprio duvida da utilidade da sua própria obra: “tento acreditar que a minha obra poderá, apesar de tudo, ter alguma utilidade, mas não estou seguro de que seja assim” (Gersão, 2021, p. 38). Apesar de judeu, Freud estava inserido na Academia Europeia e, como tal, foi produtor de uma narrativa alienadora. Nobles (2013), em 1978, introduz o conceito de “encarceramento conceptual” com a intenção de “acautelar sobre a adoção acrítica de ideias europeias e americanas para examinar a realidade africana e afro-americana” (p. 233), ou seja, colocar conceções e fórmulas europeias e americanas como um padrão universal, que pode encarcerar conceptualmente o exame de povos que não são nem europeus nem americanos, como os africanos. Deste modo, a psicologia negra veio não apenas expor a hegemonia eurocêntrica, mas também apresentar teorias psicológicas tradicionais, para além de começar diretamente a concentrar a sua pesquisa na criação de novos paradigmas e metodologias que têm como origem uma base epistemológica e ontológica orgânica e autenticamente africana (Nobles, 2013, p. 233), o que não exclui a noção de permeabilidade através do contacto a que estes povos foram historicamente sujeitos. Por psicologia negra entende-se, de acordo com Nobles (2013),
mais do que a psicologia dos chamados povos desprivilegiados, mais do que a experiência de viver em guetos ou ter sido forçado a uma condição desumanizante de escravidão ou colonização. É mais do que a “dimensão mais escura” da psicologia geral. O seu estatuto único deriva não dos aspectos negativos de ser um povo “negro” no continente ou em qualquer lugar da diáspora, mas sim das características positivas da filosofia africana básica que dita os valores, costumes, atitudes e comportamentos dos africanos na África e o novo mundo. (p. 233)
Nobles (2013) afirma igualmente que o efeito psicológico que a ideologia da supremacia branca e do imperialismo europeu, na forma de escravatura e colonialismo, teve em África e nos seus povos nunca foi totalmente endereçado e percebido. Tal se deve porventura a uma tentativa de apagamento e silenciamento de uma parte da história que não favorecia, e não favorece, os grandes ex-impérios coloniais. A psicologia negra, no entanto, “obrigou todo o campo da psicologia a reconhecer que não existe uma realidade psiquiátrica universal e que, em termos de conhecimento e prática psicológica, a única perspectiva válida é aquela que reflete a cultura das pessoas que serve” (Nobles, 2013, p. 233).
Outros campos de estudo têm, entretanto, vindo progressivamente a chamar a atenção para a questão da reparação histórica (Hall, 2018). Lisa Lowe (2005a), por exemplo, estuda os paradoxos que tal reparação pode encapsular, para além de demonstrar que a pesquisa centrada na reparação mobiliza as diferentes valorizações do termo: por um lado, temos o sentido da recuperação das evidências arquivísticas e a restauração da presença histórica e, por outro, o sentido ontológico e político da reparação, ou seja, a possibilidade de recuperação, ou a reintegração da posse de uma humanidade plena e de liberdade, após o seu roubo ou obliteração final (p. 85). Durante os séculos XVII até ao XIX, afirma Lowe (2005a), “os discursos coloniais liberais improvisaram termos raciais para os povos não europeus que os colonos, comerciantes e administradores coloniais encontraram” (p. 92). Deste modo, podemos ligar a emergência de liberdades definidas nos termos abstratos de cidadania, direitos, trabalho assalariado, livre comércio e soberania com a atribuição de diferença racial para aqueles sujeitos, regiões e populações que a doutrina liberal descreve como impróprios para a liberdade ou incapazes de civilização, colocados nas margens da humanidade liberal:
os colonos representavam os povos indígenas como ameaças violentas a serem eliminadas de forma a racionalizar as colónias brancas e a escravidão africana; eles consideravam os nativos incivilizados ou não cristãos, confundiam os habitantes com a terra e a natureza, imaginavam-nos como removíveis ou extinguíveis, ou consideravam-nos como existindo apenas no passado. Administradores e comerciantes coloniais consideravam os africanos cativos como bens desumanos, como propriedade escravizável. (Lowe, 2005a, p. 92)
Ao humanizar, no romance, Freud que, no final da vida, reconhece que foi tão imperfeito como qualquer outro, um personagem desiludido, mas ao mesmo tempo lúcido, acerca da inviabilidade daquilo em que tinha acreditado, Gersão (2021) começa a alertar-nos para a complexidade da história e seus agentes:
tal como o senhor, não sou, nem nunca fui, um homem de acção, fui um homem de pensamento, e isso parecia bastar-me. Acreditei até que podia manter-me politicamente neutro, e que a Psicanálise se poderia praticar em qualquer regime ou país. (p. 36)
O erro de Freud, nos termos em que o personagem o coloca, foi um erro de ação versus passividade, mas a passividade pode aqui ser lida como passividade intelectual, pois a neutralidade política implica ainda uma cegueira em relação ao “outro” e à sua história de escravidão, colonização e subjugação. Por outras palavras, Freud não soube reconhecer que “não existe uma realidade psiquiátrica universal” (Nobles, 2013, p. 233), ou seja, “seja moderno (profissional) ou tradicional (popular), cada aspecto do conhecimento e prática psicológica é um reflexo do mundo construído de um determinado povo” (p. 234). Ao mesmo tempo contribuiu, para usarmos as palavras de Walter D. Mignolo (2007), para a construção da modernidade, embora esta não seja apenas europeia, ou seja, para uma “retórica da modernidade [que] tem sido predominantemente apresentada por homens de letras europeus, filósofos, intelectuais, oficiais de Estado” (p. 469). O pensamento da modernidade envolvia uma pretensão europeia de benevolência e irmandade que se traduziu na desumanização, defraudação e exploração de corpos racializados. O alheamento e a incapacidade de ver a realidade do outro, isto é, a incapacidade de empatia2 justificam as palavras de Freud no romance:
também eu de algum modo me tentara alhear da mentalidade doente que nos cercava, e me centrara demasiado no mundo interior do espírito. A Psicanálise bastava-se a si própria, acreditei, e agarrei-me ao meu projecto como se ele pudesse, ou fosse a tempo de consertar o mundo. Ele [Thomas Mann] agarrara-se com igual força ao seu projecto: acreditou que a arte se bastava a si própria, e estava tão errado como eu. Ambos vivíamos a obsessão de passar à escrita uma obra que valeria por si mesma, e atravessaria o tempo. (Gersão, 2021, p. 16)
Tanto Freud, como Mann na citação acima, participaram da história da modernidade e contribuíram para a formação de um conhecimento interdisciplinar moderno que, segundo Lisa Lowe e Kris Manjapra (2019), é uma história “das formas europeias modernas que monopolizam a definição do humano e colocam outras variações à distância do humano” (p. 24). Tal implica a presunção do sujeito como o agente central da história, da sociedade e da estética, sedimentando, deste modo, uma “colonialidade do conhecimento” histórica e contínua que acompanha e naturaliza os projetos coloniais e imperiais dos colonos nas Américas, África, Ásia e em todo o Pacífico (Quijano & Wallerstein, 1992). Nem o facto de ter sido “recebido com escândalo e repúdio” (Gersão, 2021, p. 16) lhe permitiu verificar que escrevia “para uma classe privilegiada, e que não queria saber da miséria porque não a conhecia, e vivia centrada nos seus próprios problemas” (p. 37). Esta “miséria” vivia-se no continente africano, subjugado pelo imperialismo europeu e americano, para onde milhões de corpos foram levados à força como mercadoria para realizar o “sonho civilizacional” da cobiça europeia. Nobles (2013) refere que um imperativo constante na psicologia negra é o reconhecimento do impacto prejudicial do colonialismo e da escravidão na mente e na consciência africanas. Este reconhecimento está associado a uma compreensão profunda de que o significado de ser africano, para os africanos continentais e diaspóricos, é prescrito nos reinos visíveis e invisíveis da realidade (Nobles, 2013, p. 234). Contudo, o nosso entendimento do que é ser africano depende “apenas de concepções da realidade material europeia fundamentadas no pensamento greco-romano, judaico-cristão” (Nobles, 2013, p. 234), como as conceções criadas por Freud e Mann nos seus livros e ensaios.
O erro de Freud, no entanto, vai mais além e confirma o argumento psicológico desenvolvido por Nobles décadas mais tarde. Nos anos de 1870 e 1880, Freud juntou-se ao grupo de anatomistas e fisiólogos que procuraram estabelecer um contínuo de todos os organismos vivos, que proporcionariam evidência para a evolução em geral e, em particular, para um esquema linear haeckeliano de desenvolvimento filogenético. Ernst Haeckel, como sabemos, foi responsável, como outros antes dele, pela propagação de uma teoria (ou crença) baseada numa ordem hierárquica das raças humanas, a qual se integra no racismo generalizado apoiado pelo cientificismo e teoria evolucionária dos séculos XVIII e XIX. Freud, na sua teoria psicoanalítica, desenvolveu a sua própria versão da teoria da memória orgânica que sustentava que toda a matéria orgânica contém memória. De acordo com o crítico L. Otis (1991), um dos problemas da adoção das teorias fisiológicas da época por parte de Freud foi este ter concluído que todas as pessoas, tanto do tempo antigo como do moderno, tinham as mesmas experiências (p. 193). Esta premissa, tal como a lei biogenética, nunca foi questionada por Freud, talvez porque sem a suposição de um legado filogenético universal, ele nunca poderia usar a psicanálise para examinar fenómenos sociais (Otis, 1991, p. 193). O erro consistiu, deste modo, em estender o desenvolvimento individual ao cultural, sendo, por isso, também ele responsável, embora judeu, por uma narrativa castradora do ser humano. Além do mais, e, mesmo pertencendo a um grupo estigmatizado como inferior e alvo de perseguição e eliminação, não entendeu que as distintas, no entanto, interligadas, lógicas raciais coloniais “surgiram como parte do que foi no século XIX um emergente imaginário imperial dos colonos anglo-americanos” (Lowe, 2015b, p. 92). A consequência nefasta é, pois, que o mesmo tipo de lógica continua ainda hoje a ser elaborada, “fundindo povos diferenciados em todo o mundo em relação às ideias liberais de personalidade civilizada e liberdade humana” (Lowe, 2015b, p. 92).
2. O Erro de Thomas Mann
A segunda parte do romance, intitulada “Thomas Mann Pensando em Freud em Dezembro de 1930”, pode ser analisada como uma resposta anacrónica de Mann ao monólogo de Freud de 1938. Através do estudo crítico da obra de Mann sabemos da sua contribuição para o campo da neurologia (Caputi et al., 2018) e da sua relação com Freud - embora os encontros tenham sido escassos - e a sua obra3 (Hummel, 2006). Do estudo do diário de Mann, sabe-se que este visitou Freud e que durante a visita releu em ambiente privado a palestra “Freud e o Futuro”, proferida a 8 de maio de 1936, num evento festivo em homenagem ao psicanalista, 2 dias após seu 80.º aniversário, no salão lotado do Wiener Konzertverein (Hummel, 2006, p. 76). Na opinião de Hummel (2006), este foi um dos encontros mais fascinantes do século XX, em cujo florescimento cultural na área de língua alemã ambos desempenharam um papel fundamental - até que foram forçados a deixar sua terra natal quando a sua cultura afundou no pântano da barbárie nazista. É verdade que a relação pessoal entre os dois homens era possivelmente mais complexa e complicada do que indicam os diários, mas o certo é que aquela tarde impressionou profundamente os presentes. Testemunho disso é uma carta que Martha Freud enviou a Thomas Mann em 1945 em seu 70.º aniversário (Eigler, 2005, p. 114).
Os estudiosos de Mann e da sua obra especulam que embora nos seus diários de 1918 a 1921 a psicanálise não desempenhe nenhum papel, ele devia saber mais sobre esta do que o que se discutia nos salões literários de Munique na época. No entanto, a palestra em homenagem a Freud em 1936 é prova mais do que indiscutível do papel da psicanálise na obra do escritor. Na mesma, Mann (1936) afirma logo de início, “quando me comecei a ocupar com a literatura da psicanálise, reconheci, arrumando as ideias e a linguagem da exatidão científica, de que havia muito que me era familiar através de minhas experiências mentais juvenis” (p. 115). Na realidade, neste texto de homenagem, Mann (1936) detém-se muito mais sobre si mesmo e na análise do seu livro Joseph and His Brethren (José e os Seus Irmãos) - “talvez meus leitores sejam indulgentes se eu falar um pouco sobre meu próprio trabalho” (p. 118) - do quem em Freud, aspeto desconstruído por Gersão (2021) nos pensamentos de Freud em relação ao escritor:
era uma das contradições em que caía. Enfatizava a razão, mas a emoção arrastava-o, inconscientemente. Pretendia falar do meu percurso, mas, como aliás reconhecia, era a si próprio, à sua experiência pessoal e aos seus livros, que voltava sempre. Na sua perspectiva, isso abonava em meu favor. Não pude impedir-me, interiormente, de sorrir. Sim, pensei olhando-o, trata-se do triunfo da consciência sobre o inconsciente, mas como se pode atingi-lo, até que ponto, e de que modo? Que armadilhas, retrocessos, recaídas, nos levam ( … ) a avançar? (p. 13)
No final do seu discurso, Mann (1936) alude à revelação analítica como uma força revolucionária afirmando que com ela um cepticismo alegre veio ao mundo, uma desconfiança que desmascarou todos os esquemas e subterfúgios de nossas próprias almas. Uma vez despertos e em estado de alerta, não podem ser colocados para dormir novamente (pp. 122-123). Termina o seu discurso antevendo um futuro em que reina a esperança - “podemos esperar que este seja o temperamento fundamental daquele mundo mais alegremente objetivo e pacífico que a ciência do inconsciente pode ser chamada a introduzir?” (Mann, 1936, p. 123) -, que Freud personagem questiona: “e que futuro heróico é esse, pelo qual ele anseia? Que mundo de paz e sem ódio antevê, a partir da realidade conturbada deste ano de 1936, e dos anos de angústia e descalabro que o antecederam?” (Gersão, 2021, p. 13).
Gersão (2021) coloca o diálogo mudo de Mann com Freud 1 ano depois do primeiro ter recebido o Prémio Nobel da Literatura e 3 anos antes deste se ter mudado para a Suiça, pouco depois da subida ao poder dos nazis em 1933. Em 1936, Mann foi formalmente expatriado e obteve a cidadania checoslovaca. Em 1938, mudou-se para os Estados Unidos da América onde, em 1944, lhe foi concedida a cidadania americana. Em 1952, retorna à Suiça. Mann-personagem desconstrói Freud e as insuficiências da psicanálise, deixando entrever também ele o erro do psicanalista seu contemporâneo:
sim, eu compreendo-o, e sinto compaixão por si: Judeu, pobre, intelectual contra a corrente, defrontando uma sociedade que não quer ser desmacarada nem mudar, e que o senhor reduz a migalhas, sem ilusões nem complacência. ( … ) Mas não é estimulante, nem sequer consolador, o que o senhor tem a revelhar-lhe nem a oferecer-lhe: Uma sociedade cruel, baseada em rivalidade, incesto e parrícidio, um mundo estilhaçado por uma guerra sem fim, onde a civilização causa mal-estar e a felicidade arrebatadora da fusão é ilusória, ou mesmo proibida. Cada um é único e diferente, e estará sempre sozinho. (Gersão, 2021, p. 51)
Mas Mann não é igualmente imune ao seu tempo, como nos revela o seu retrato ficcional oferecido por Gersão (2021). Embora os dois monólogos - ou diálogos com um interlocutor ausente - possam ser lidos como uma luta de forças entre duas das maiores figuras do pensamento ocidental de final do século XIX e início do século XX, que tentam justificar-se a si mesmas e uma à outra, relatando as suas incoerências, desejos falhados, ambiguidades e contradições, no fundo, na sua fragilidade humana e a do seu pensamento, com rigor, é nessa condição humana inescapável que elas se assemelham. Em várias passagens, Mann refere essa proximidade entre os dois. “Falamos a mesma língua, Dr. Freud”, afirma o escritor, não se referindo apenas à língua alemã, mas “a outras, à linguagem do intelecto, do espírito, que nos conduz a revelações e iluminações que desabam sobre nós e nos incendeiam. A língua das descobertas, a divina língua das epifanias” (Gersão, 2021, p. 52). Igualmente no campo das ideias políticas, Mann e Freud se aproximam:
também aí me encontro consigo: o senhor defendeu que a Psicanálise deveria ser neutra e praticada em todos os regimes políticos, porque ela não tem especificamente uma “visão do mundo”. Mas não é verdade, caro doutor, é inegável que o senhor tem uma visão do mundo, patriarcal e conservadora. Aceita a ideia de democracia, mas não gosta, por exemplo, do modelo republicano francês, e sempre se opôs a ideias comunistas ou socialmente revolucionárias. Também eu me oponho a elas. (Gersão, 2021, p. 76)
Embora Mann revele uma tendência, no seu monólogo, para ver a sua arte como superior - “o meu mundo da criação artística é uma procura do absoluto, para além das palavras, uma espécie de perda de identidade, onde todos os antagonismos se equilibram, e o bem e o mal se confundem” (Gersão, 2021, p. 76) -, dois aspetos contribuíram para o seu erro. O primeiro, tal como Freud, consistiu no seu fascínio pela hereditariedade, ou melhor, “o seu fascínio pela forma como o indivíduo continha, representava e transmitia seu passado” (Otis, 1991, p. 126) que permeia toda a sua criação artística. No seu ensaio Freud and the Future (Freud e o Futuro) estão bem patentes as influências de Haeckel (1914) e Lamarck (1809), não tendo problema em justapor psicologia social e individual. Gersão (2021) desconstrói o seu racismo pulsante, e em consonância com as teorias científicas que o seduziam, na seguinte passagem em que o escritor fala sobre o seu casamento com Katia, filha de judeus: “para além disso, o casamento era, em tudo o mais, conveniente: Os Pringsteins eram judeus, por conseguinte, etnicamente inferiores a mim. Mesmo que tentassem enganar-me ou humilhar-me, eu estava numa posição mais forte. O casamento acrescentava-me algum prestígio social” (Gersão, 2021, p. 59).
O segundo erro foi, até dado momento, não ter valorizado a sua descendência brasileira por parte da mãe, Júlia. Mann, no monólogo em que pensa em Freud, fala sobre as suas relações complexas com a esposa, o irmão, os filhos, mas nunca sobre a mãe, o que revela uma estratégia narrativa aqui importante. Silenciar Júlia no pensamento do filho implica uma dupla exclusão da figura do feminino, tanto na vida real, como na ficção, que Gersão (2021) irá recuperar na última parte do livro proporcionando-lhe não só uma voz, mas também o dobro do espaço narrativo. De acordo com Sibele Paulino e Paulo Soethe (2009), Thomas Mann revelou em vida uma ambivalência em relação à sua origem sul-americana:
indiferença, distanciamento e mesmo negação, em especial no início da vida pública, irão alternar-se com declarações de valorização desse componente de diversidade étnica e cultural em sua pessoa e com manifestações de interesse pelo país exótico em que havia nascido e crescido sua mãe. (p. 33)
O escritor teve contactos com livros produzidos no Brasil e “teve também encontros pessoais com intelectuais brasileiros como Sérgio Buarque de Holanda e Erico Verissimo” (Paulino & Soethe, 2009, p. 36). No entanto, nunca realizou uma viagem ao Brasil, o que lhe teria proporcionado um encontro com Gilberto Freyre, o único intelectual brasileiro que, na verdade, é mencionado pelo escritor alemão numa carta (Paulino & Soethe, 2009, p. 36).
Sabe-se que Freyre sentia uma extrema admiração por Mann, a quem designava como “a maior personalidade da literatura alemã moderna”, o que o leva a exortar, mais do que uma vez, a Academia Brasileira de Letras a convidá-lo para uma viagem ao Brasil, a fim de honrar o maior “filho de uma brasileira” (Paulino & Soethe, 2009, p. 45). Embora os esforços de Freyre tenham saído logrados, é possível que, tal como o intelectual brasileiro estivesse a par da obra do Nobel da Literatura, também este fosse conhecedor das teorias freyrianas. Talvez até estas tenham contribuído para que na década de 1940, Mann se reconciliasse com a sua origem brasileira. Segundo Paulino e Soethe (2009), numa carta de 1943 a Lustig-Prean, “lê-se a declaração mais contundente de Thomas Mann sobre a importância da própria origem brasileira em sua formação como pessoa e artista” (p. 42). A ligação, “o conhecimento destes intelectuais entre si através das suas obras não é, por demais, absurda, se tivermos também em conta que nas edições em língua inglesa de Casa Grande & Senzala, Freyre se compare a Picasso e Freud” (Dávila, 2019, p. 51). Freyre, tal como Freud e Mann, integrava-se igualmente numa tradição de pensamento racial e cultural baseado em diferenças humanas. Influenciados e influenciadores intelectualmente, as grandes figuras da história literária, científica e do pensamento presentes no livro de Gersão (2021) foram alvo do mesmo lapso: o não questionamento crítico de um mundo apoiado na hegemonia branca, em que a diferença e a dignidade do “outro” foram rasuradas. De facto, tanto Mann como Freud acreditavam num conceito de valor, perpetuado pela ciência, que distinguia os seres humanos e os colocava em caixas organizadas quando sabemos hoje através da ciência cognitiva que valor “é apenas uma abstração; ele não existe. Portanto, na verdade, não existe valor humano” (Burns, 2000, p. 341).
3. A Epifania de Júlia Mann
O terceiro texto que forma o livro de Gersão (2021), e que dá título ao livro, centra-se em Júlia Mann, completando um círculo de vidas e vivências que se entrecruzaram nesse turbilhão mental que foi o início do século XX. Como refere Sara Figueiredo Costa (2021),
são três personagens a muitos níveis extraordinários - ainda que Júlia Mann, por ser mulher e pouco conforme aos códigos comportamentais da sua época, nunca tenha tido o merecido reconhecimento - e com intervenção directa, mesmo que de modos diferentes, em todas estas mudanças que inauguraram o século passado, mas é o cruzamento das suas histórias, sobretudo a um nível profundo e também inconsciente, que faz erguer um romance que está longe de ser um mero exercício biográfico. (2021, para. 9)
A narrativa sobre Júlia Mann, nascida no Brasil e aos 7 anos “deslocada para a vida burguesa de Lübeck, na Alemanha, entretanto casada com um comerciante com quem viria a ter vários filhos e claramente perdida entre aquilo que pensava e sentia e aquilo que os outros esperavam de si” (Costa, 2021, para. 6), abre com a viagem de barco de regresso à sua terra de infância, funcionado esse espaço como hino à sua liberdade: “nenhuma casa tornaria a prendê-la, e por isso ria das suas portas e janelas, jardins, escadas, paredes e balcões, tectos de estuque e soalhos brilhantes, que de repente já não estavam lá” (Gersão, 2021, p. 80). É neste texto, que oscila entre a infância de Júlia Mann e o final da sua vida, que os erros do pensamento do final do século XIX e início do século XX culminam abertamente: o racismo inerente às teorias hierárquicas do ser humano que levaram à inferiorização e domínio dos povos africanos e dos indígenas sul-americanos, colocando igualmente a mulher numa escala de inferiorização e subalternidade em relação ao homem; o lusotropicalismo desenvolvido nos trópicos por Gilberto Freyre que permitiu a justificação do colonialismo português no Brasil e em África, além do racismo naturalizado no Brasil; a ideia que advém destas teorias, supostamente científicas, de que os povos ocidentais são dotados de um nível de civilização mais avançado e, daí, predestinados a trazer outros para o mesmo nível de cultura e civilização legitimando-se, deste modo, atos de barbárie.
Apesar de ter passado 63 anos da sua vida na Alemanha, Júlia nunca foi vista como alemã, pois como refere Richard Miskolci (2003),
naquela época a identidade nacional se dava nos extremos excludentes de uma ou outra nacionalidade (subentendida como “raça”). Em termos políticos, a nacionalidade entendida como cidadania permanecia um privilégio masculino com restrições de classe e de posses como no caso do direito ao voto. Ser cidadão alemão - como ser cidadão de todos os países da época - pressupunha ser homem e burguês. Assim, Júlia compartilhava com as outras mulheres alemãs uma posição subalterna em sua sociedade, mas em seu caso pessoal, lhe cabia uma posição ainda mais problemática. (p. 173)
E tal se devia à sua origem brasileira - objeto de conflito interior em Thomas Mann, como foi mencionado -, distinguindo-a das alemãs “normais”, o que a tornava uma estranha no meio burguês no qual nascera: “daí as repetidas alusões de seus contemporâneos às suas aptidões artísticas, sua alegria festiva e riso escandaloso” (Miskolci, 2003, p. 173). Nas reflexões de Júlia, essa ideia “aparentemente racional” de ser mais alemã ao fim da vida do que brasileira, “não parecia na verdade convencer ninguém”, deste modo, “todos a viam como exótica ( … ). Havia assim em Júlia algo de aberrante para a sociedade alemã, patriarcal, puritana e burguesa, onde a sexualidade feminina devia ser escondida” (Gersão, 2021, p. 112).
Júlia-personagem reflete sobre estes aspetos quando já tem consciência para se aperceber da sua castração não só enquanto mulher, mas mulher nascida num país “exótico” de uma mãe com sangue também indígena: “a língua da mãe, de Ana, do seu país e da infância fora proibida, rasurada. Assassinada. Em nenhuma língua podia agora dizer a solidão, a ausência e a perda” (Gersão, 2021, p. 98). Numa Europa em crise, encarada por vários pensadores alemães como uma crise do centro da Europa, centro este que, para eles, se encontrava na Alemanha e no povo alemão, “só a afirmação das raízes da terra poderia resistir à força do niilismo e do cosmopolitismo desenraizado do Iluminismo francês” (Maldonado-Torres, 2008, p. 76). O apagamento do “outro” e da sua cultura, o racismo sistémico, por vezes sob a forma de esquecimento da condenação (Maldonado-Torres, 2008, p. 109), disseminava-se, como nos demonstra a voz de Júlia. Para além do apagamento da língua,
não se podia correr, saltar, falar alto, fazer barulho, perturbar a tranquilidade dos adultos. O tio Theodor zangava-se com o ruído das brincadeiras no jardim quando ela ia com os irmãos, duas vezes por mês, a casa da avó, via-os como pequenos selvagens, que era preciso civilizar. (Gersão, 2021, p. 99)
Através de Júlia e do seu mundo interior, Gersão (2021) desconstrói e põe a nu os erros desse pensamento oitocentista, pilares da modernidade ocidental, cujos resquícios ainda se espelham na sociedade contemporânea do século XXI. Como afirma Maria Paula Meneses (2021), “uma das características da modernidade nortecêntrica consiste na criação e reforço permanente de uma hierarquia intelectual, na qual as tradições culturais e intelectuais do Norte global são impostas como o cânone, autodefinidas como superiores porque mais desenvolvidas” (p. 1069; ver também Khan, 2021a, 2021c; Khan et al., 2021). Também a personagem se refere aos estudos médicos da sua época responsáveis pelo olhar do “outro” como ser menor:
ela era portanto perigosa para a ordem social e as famílias: A qualquer momento podia resvalar para excessos, boémia ou devassidão. Como os estudos médicos salientavam, os nativos do Sul, em especial as mulheres, tendiam para a insanidade moral e mental, sobretudo se eram miscigenadas, de sangue impuro. (Gersão, 2021, p. 113)
Para além do mais, “nos países tropicais grassavam miasmas e doenças mortais ou incapacitantes, e o próprio temperamento indolente dos nativos, avessos ao trabalho e ao progresso, era uma degenerência característica de povos biológica e intelectualmente inferiores” (Gersão, 2021, p. 112).
Gersão (2021) faz ainda uso de Júlia, embora anacronicamente, para desmistificar, desconstruir e, subtilmente, reparar os erros, os lapsos, e as certezas dos trâmites do luso-tropicalismo4 e de outras narrativas imperialistas de excecionalismo. Júlia reconhece que o seu pai alemão não era mais do que um colonizador, “treinado para explorar dinheiro rápido, como, aliás, todos: Portugueses, italianos, alemães, holandeses, franceses, ingleses eram farinha do mesmo saco e queriam o maior lucro, e o mais depressa possível” (Gersão, 2021, p. 123). Como afirma Cristiana Bastos (1998), tal teoria desenvolvida por Freyre viria a influenciar
sobretudo a crença numa ausência de racismo, ou num brando tratar das diferenças por parte daqueles que se exprimem em português, radicada numa hipotética capacidade de entrosamento dos colonizadores portugueses com os meios e povos tropicais; tal crença angaria cumplicidades. (p. 415)
Estas encontram-se visíveis ainda hoje, com repercussões para além das fronteiras do Brasil, incluindo alguns países africanos (Khan et al., 2020).
Com Júlia, regressamos igualmente ao problema da escravatura - a base da teoria Freyriana em Casa Grande & Senzala - durante a sua viagem de regresso a Paraty:
mas muito mais doloroso era ser transportado nos navios negreiros, que durante séculos tinham levado cargas de escravos de África para a Europa e a América. A escravatura ainda era mais cruel do que suspeitara, quando procurara saber mais. Havia escravos no Brasil, ela via-os na infância, sem entender nada, ainda não conhecia o lado negro do mundo e da vida. (Gersão, 2021, pp. 134-135)
Voltando a Nobles (2013) e ao conceito por si classificado de “dano espiritual” ou “sofrimento de espírito”, este enfatiza que uma das marcas psicológicas mais profundas e persistentes da escravatura e do colonialismo para os africanos tem sido uma sensação de alienação humana “resultante de se ser infectado ou agredido por estruturas de informação sensorial permanentes e contínuas que representam escravização e colonização de bens pessoais, ou seja, a coisificação e desumanização do povo africano” (pp. 238-239). Daí que seja necessário implementar uma nova psicologia que seja capaz de “revelar ou expor a verdade da realidade africana” (Nobles, 2013, p. 239).
O Regresso de Júlia Mann a Paraty (Gersão, 2021) revela-nos alguns dos erros dos grandes pensadores de finais do século XIX e início do século XX, através da recuperação da vida de Sigmund Freud e Thomas Mann, em que o papel da memória assume figura central. Atrever-me-ia, inclusive, a considerar a memória como a personagem principal do romance. Teolinda Gersão expõe uma das grandes verdades pós-Segunda Guerra Mundial: que o tempo não é algo linear nem a memória pode ser apenas o repositório das coisas que deixámos no passado. O Regresso de Júlia Mann a Paraty funciona como um espaço de memória, tal como um museu, que nos permite olhar para o passado e sobre ele refletir. Este espaço que embarca os erros de alguns dos agentes da história, e a inclusão de Júlia, personagem fictícia, não por de menos excluída, leva-nos a pensar e envisionar um futuro em cujas memórias históricas alternativas também se possam tornar histórias principais.
Regressando à pergunta colocada na boca de Freud: “será possível que sejamos incapazes de progredir no plano ético, do mesmo modo que, afinal, parecemos incapazes de amor e compaixão?” (Gersão, 2021, p. 14); a resposta será, porventura, melancólica. Embora o final da narrativa de Júlia e o seu regresso à cidade de origem possa ser lido como contendo alguma esperança, uma vez que há uma união com o espaço de liberdade infantil, parece-me que é a algumas páginas do fim que se encontra a resposta. Júlia, também excluída, declara, em tom ansioso em que impera certo desalento:
oh, Deus, como a vida podia ser insuportável para os mais fracos, nunca mais deveria haver escravos, sofrimento ou maus tratos, era urgente pôr fim a preconceitos de cor de pele, costumes ou cultura, de ser do Norte ou do Sul, abandonar essas ideias doidas de sangue impuro, misturado e mestiço. O mundo estava doente, era preciso salvá-lo da loucura - tudo estava errado e distorcido, as pessoas eram monstros, os países destruíam-se em guerras infindáveis. Não era possível viver num lugar assim. (Gersão, 2021, p. 136)
A epifania de Júlia é, no entanto, lugar-comum no século XXI: o mundo continua tão doente agora como no seu tempo. Os erros do pensamento oitocentista e novecentista continuam a impôr-se na contemporaneidade. Como afirma Lisa Lowe (2015b) em The Intimacies of Four Continents (As Intimidades de Quatro Continentes), as formas liberais de economia política, cultura, governo e história propõem uma narrativa de liberdade que oblitera a escravidão. Assim sendo, “as desigualdades sociais do nosso tempo são um legado desses processos através dos quais ‘o humano’ é ‘libertado’ por formas liberais enquanto outros sujeitos, práticas e geografias são colocados à distância do ‘humano’” (Lowe, 2015b, p. 3). Enquanto o ser humano não for capaz de empatia nem de solidariedade, enquanto houver insuficiente educação sobre “os outros mundos” no universo escolar, enquanto não houver uma superação de visões racistas e discriminatórias, essa progressão a nível ético assim como emocional, a que Freud ficcional se referia, parece condenada a permanecer uma visão utópica. Catherine Hall (2018), indagando sobre o processo da escrita da história como reparatório, afirma que “ainda há muito trabalho de reparação a ser feito” (p. 19). E, se “a escrita da história pode ser uma forma de o fazer” (Hall, 2018, p. 19), a arte pode ser um outro meio, assumindo um papel fundamental nesse processo. Como afirma Sheila Khan (2012b),
a arte, na amplitude de seu alcance, permite-nos entrar em lugares que de outra maneira o estatuto do real não permite, entre várias das suas dimensões densas e complexas, como a retórica do multiculturalismo, que, por vezes, assume uma máscara que tende a esconder, manipular e obscurecer realidades humanas em constante desassossego, insegurança social, desterro e solidão. (p. 128)
No mesmo sentido nos levam as palavras de Margarida Calafate Ribeiro (2020),
estamos portanto a lidar com o poder transformativo da memória pela arte, com o seu poder de nos dizer quem somos, como pessoas e como comunidade, com o seu poder de nos inquietar, de nos interpelar, mas também de nos fazer sonhar. (p. 18)
Tal nos demonstra O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021), ao efetuar um diálogo crítico e reparador com o passado que se espelha no presente.