1. Introdução
A formação dos Estados modernos tem passado por processos complexos, cuja tendência foi a centralização burocrático-administrativa e a exaltação dos elementos comuns entre os vários povos que iam compondo a nova entidade política. Mesmo no caso da Europa, tal processo se configurou como a confluência de territórios diversos, com leis diversas, hábitos diversos e, por vezes, até idiomas diversos (Gustafsson, 1998). Foi, portanto, a partir deste mosaico que o Estado europeu moderno se formou, segundo um longo percurso iniciado desde a dissolução das duas principais instituições medievais, o feudalismo e o(s) império(s). A guerra foi uma das armas utilizadas para que o Estado europeu chegasse a uma definição, mesmo do ponto de vista da formação de um ideário nacional, necessário para compactar ideologicamente as jovens nações. Foi assim que, de forma muito simplificada, foi “inventada” a nação moderna (Hobsbawm & Ranger, 1983).
No contexto africano, o processo de formação dos Estados nacionais foi ao mesmo tempo mais demorado, mais rápido e diversificado. Foi mais demorado porque apenas depois do fim da Segunda Guerra Mundial a maioria dos territórios africanos sob o jugo colonial conseguiu as suas independências. Foi mais rápido porque, num curto lapso de tempo, tais territórios se tornaram independentes, geralmente sem a necessidade de pegar em armas. As principais exceções foram as antigas colónias portuguesas, que tiveram de travar sangrentas lutas de libertação para conseguir as suas independências de Lisboa. E foi diversificado devido à postura das antigas metrópoles. A França, por exemplo, em alguns casos (como a Argélia), obrigou os nacionalistas africanos a pegar em armas para conseguir a sua independência, ao passo que, noutras circunstâncias (quase todas as outras), escolheu a via negocial.
Logo depois da obtenção das independências iniciou-se o processo de construção da nação, “inventando” tradições históricas mergulhadas em tempos antigos, com a finalidade de justificar uma unidade obtida sem derramamento de sangue. É o caso do Gana, por exemplo: o estudo seminal de Kimble (1963) revela que tendências nacionalistas ou protonacionalistas se manifestaram já em 1852, aquando dos primeiros movimentos supra-tribalistas no território da Costa de Ouro. É igualmente o caso da Nigéria, segundo estudos clássicos sobre esta nação da África Ocidental (Coleman, 1958). O nacionalismo e a sua narração serviram, por exemplo, no caso de uma das nações-símbolos da resistência africana contra os europeus, a Etiópia, para compactar populações diversas do ponto de vista linguístico e cultural contra ameaças, quer externas, quer internas (Gebrewold, 2009).
Os países africanos colonizados por Portugal tiveram de pegar em armas para conseguir as suas independências políticas. Neste sentido, tais países dispunham “naturalmente” de quanto necessário para construir um imaginário nacional, que outros países africanos não puderam ter. Mesmo assim, as suas narrativas histórico-nacionalistas procuraram estabelecer laços entre alguma forma de resistência desenvolvida entre os finais do século XIX e o início do XX (Campos, 2016; Gonçalves, 1999; Monteiro, 2011) e as lutas mais recentes contra o colono português. Entretanto, foi com a constituição dos movimentos de libertação nesses três países, respetivamente 1956 para o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde e Movimento Popular de Libertação de Angola, e 1962 para a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), segundo a historiografia oficial, que se concentrou a narração histórica das novas nações independentes. A partir do “ato fundacional” iniciou-se a construção de uma narrativa feita de epopeias, heróis, vítimas do colonialismo luso-fascista, traidores internos, momentos e datas marcantes. Tratou-se de um exercício relativamente simples, que levou à construção de uma historiografia oficial que se mantém, nesses países, inalterada até hoje, com tentativas críticas que dificilmente conseguem entrar no espaço público dessas nações, como demonstra o caso aqui abordado, o de Moçambique (Bussotti & Jacquinet, 2021; Khan, 2016).
O artigo aqui apresentado assenta num pressuposto essencial: como qualquer processo de edificação de uma nação nova, no caso moçambicano também a tendência - como se verá melhor no ponto a seguir - foi a de enaltecer os pressupostos da unidade nacional, a partir do cimento simbólico que a luta de libertação trouxe para povos tão diversos como os que vivem no espaço geográfico de Moçambique (Dambile, 2014). Tal opção foi protagonizada por uma aliança de dois grupos étnicos: os machangana e os maronga do sul, que dominaram o processo de formação da Frelimo, liderado por Eduardo Mondlane até a data da sua morte, em 1969; domínio que continuou com a liderança de Samora Moisés Machel. Foi na eleição do novo presidente que as clivagens étnicas sobressaíram de forma evidente (Ncomo, 2003); o segundo grupo foi formado pelos guerrilheiros maconde, de Cabo Delgado. Eles assumiram um papel tão relevante que foi impossível não lhes reconhecer um lugar privilegiado dentro da Frelimo. Entretanto, a palavra de ordem dos “libertadores” foi de que nenhuma alusão devia ser feita às componentes étnicas que estavam a formar a nova nação moçambicana, privilegiando a identidade nacional, a “moçambicanidade”, ainda por ser inventada. Tal operação passou o espaço temporal da luta de libertação, permeou a experiência socialista de Samora Machel, e continuou, com as devidas diferenciações, a manifestar-se até hoje, depois da abertura democrática dos anos 1990.
Moçambique foi tomado, em várias circunstâncias e por parte de atores internacionais diferentes, como um modelo, primeiro de experiência afro-socialista, depois de pacificação e democratização. Em época socialista, como bem recorda Macagno (2009), o ideal do “homem novo” correspondia perfeitamente ao que muitos exilados sul-americanos em Moçambique, assim como investigadores europeus, principalmente italianos, tinham em mente como modelo de resgate para os povos do sul do mundo, difundindo tal imagem nos seus países. Tais intelectuais olhavam com extrema desconfiança para questões étnicas, tanto que, analisando a revista mais prestigiada daquela época, Estudos Moçambicanos, produzida pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, de assuntos étnicos nunca se falou, privilegiando perspetivas de classe ou históricas (Bussotti, 2006). Com a abertura democrática, a partir da década de 1990, a desilusão dos intelectuais e dos movimentos esquerdistas foi contrabalançada por parte de “novos amigos”, os liberais da comunidade financeira internacional, que também espalharam a nível mundial a ideia de um Moçambique como caso de sucesso no continente africano. Um entre os muitos exemplos desta tendência pode ser encontrado num importante texto que compara o processo de paz e reconciliação de Namíbia com o de Moçambique (Paris, 2004). Neste caso, defende-se a ideia de que a paz moçambicana poderá ser estável e definitiva graças ao facto de a guerra civil terminada em 1992 ter sido fruto de um quadro internacional que a determinou, descurando por completo os motivos internos que também concorreram para o dito conflito. As políticas liberais e de abertura democrática, depois, terão contribuído também consideravelmente para a estabilização do país.
As ideologias mudaram, mas o cenário interno manteve-se praticamente inalterado. Mais uma vez, os doadores (desta vez ocidentais e liberais) financiaram aquela “indústria do desenvolvimento” feita de grandes investimentos privados associados ao financiamento de organizações não governamentais locais segundo agendas geralmente definidas pelos mesmos doadores (Macamo, 2006), valorizando aquelas manifestações culturais e artísticas indicadas pela Frelimo como prioritárias e bem circunscritas geograficamente e etnicamente. Particularmente Sofala (com presença de ndau e sena), Nampula (com presença quase que exclusiva dos amakhuwa) e Zambézia (com amakhuwa e machuabo), os territórios hostis à Frelimo, foram penalizados neste processo de valorização das culturas locais, com medidas apenas cosméticas, como a declaração da primeira capital de Moçambique, a Ilha de Moçambique, como património da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
É nesta perspetiva de “esquecimento étnico” que a pesquisa aqui apresentada vai focar primeiro sobre os mecanismos que levaram à exclusão da agenda étnica em Moçambique, demonstrando depois como as etnias fora da aliança machangana-maconde, acima de tudo o grupo numericamente maioritário, os amakhuwa (quase 30% da população do país), ficaram marginalizadas, inclusivamente nas suas produções artísticas, graças também ao beneplácito da comunidade internacional.
2. A Questão Étnica Esquecida. Um Breve Enquadramento Teórico
Em 1975, quando Moçambique conseguiu a sua independência, não existia uma nação moçambicana, mas apenas um território muito vasto, deixado como legado do colonialismo português e que devia ser completamente “inventado” do ponto de vista não apenas material, mas também e sobretudo ideológico e espiritual. Existe, aqui, um debate bastante antigo e conhecido que fez “correr muita tinta” por parte de ilustres estudiosos de Moçambique, com ideias diferentes. Com efeito, se Cahen (1994) defende que Moçambique era (e provavelmente continua a ser) um “Estado sem nação”, Elísio Macamo (1996) contesta alguns dos supostos indicadores utilizados por Cahen para chegar a tal conclusão. Entretanto, os dois autores encontram um (único) ponto de convergência: a Frelimo, “no seu fervor unificador” (Macamo, 1996, p. 356) negligenciou a “questão étnica”. Faltando um cimento comum aos povos de Moçambique, vários autores defendem que a identidade moçambicana surgiu, pelo menos numa primeira fase, devido à oposição ao colonialismo português (Landgraf, 2014), às suas violências cada vez piores e à sua política segregacionista (Cabaço, 2007). Uma identidade, portanto, desenvolvida por contrariedade, como em muitas circunstâncias similares aconteceu.
A edificação nacional consta, no geral, de três grandes momentos. O primeiro assenta na consolidação da identidade unitária e do património comum. É a fase que Anderson (1983) chamou de “comunidade imaginada”, feita de mitos, heróis, lugares simbólicos. A seguir, o Estado inicia um processo de valorização das identidades locais e étnicas, a partir das várias línguas e culturas presentes no território nacional, até as expressões artísticas e musicais. Finalmente, na terceira fase, o estado passa a difundir as produções culturais nacionais e locais, segundo uma postura de “democracia cultural”, finalizada a envolver o maior número possível de pessoas e grupos pertencentes ao Estado-nação (Landgraf, 2014).
Estas três fases não são tão lineares, e dependem muito quer da abordagem que as instituições adotam para com os seus cidadãos, quer de como os cidadãos se identificam com tais propostas.
Se aplicadas à realidade africana, e à moçambicana ainda mais, as três supramencionadas fases precisam de uma revisão radical: acima de tudo, em Moçambique nunca se chegou à fase “democrática” de difusão da cultura, pois trata-se de um país considerado, hoje, como não democrático, ou seja, autoritário, inclusivamente no que toca à expressão de opiniões, das quais as artísticas fazem parte (Statista, s.d.). E, em segundo lugar, o esquecimento da questão étnica levou a uma cristalização das relações de poder, inclusive das manifestações culturais, que continua até hoje. O país, portanto, não saiu da primeira das três fases acima recordadas, com “incursões” na segunda e terceira, derivantes das adaptações à abertura democrática da década de 1990. Foi neste sentido que, como recorda Macamo (1996) no artigo já citado, desde a época socialista, o Estado organizou festivais musicais e de dança mostrando a riqueza étnica, linguística e cultural do mosaico moçambicano, sem, porém, considerar que isso não era feito de forma espontânea, nem democrática, mas sim antepondo os interesses políticos e ideológicos à expressão artística. Sobretudo no centro e no norte, “as políticas se mostraram extremamente insensíveis aos ritos, valores e temporalidades constituintes das identidades daqueles povos” (Landgraf, 2014, p. 15).
3. O Esquecimento em Ato: Notas Sobre a Questão Étnica na Política Moçambicana
O “esquecimento” (querendo utilizar a benevolente expressão de Macamo, 1996) da questão étnica por parte do estado moçambicano não foi apenas um assunto institucional, limitado à ação do governo. Pelo contrário, foi pervasivo e atravessou, com poucas exceções, os vários âmbitos da vida política, social, cultural do país.
Em termos políticos, as bases do processo de construção da nação pós-colonial encontram-se na ideologia socialista samoriana, baseada num conceito-chave: um “homem novo” livre da exploração quer do colonialismo, quer do capitalismo moderno, mas solidário, anti-tribalista, antirregionalista e antirreligioso (Cabaço, 2007). A cruzada contra as “tradições” começou muito cedo, sob o lema “matar a tribo para fazer nascer a nação”. Era necessário eliminar qualquer tipo de diferença cultural e linguística para que uma nova nação surgisse das cinzas do colonialismo explorador (Macagno, 2009; Nhantumbo, 2020).
A tribo mata-se, acima de tudo, eliminando a sua mais visível manifestação, a língua. Ora, a escolha do português como língua oficial parece ter sido óbvia e necessária, apesar de críticas posteriores não historicamente fundamentadas (Mariani, 2011). Entretanto, o jovem Estado moçambicano foi mais além: na prática, este quis “incentivar o combate ao uso da língua materna nos setores de vida e de trabalho coletivos” em ambientes diversificados, desde os profissionais de tipo mais prático até às escolas e atividades desportivas e culturais (Cossa, 2007, p. 71). No recinto escolar, por exemplo, era terminantemente proibido os alunos comunicarem com línguas materna, no caso, emakhuwa. Por vezes, chegava-se até a convocar o encarregado de educação do aluno encontrado a falar a sua língua materna, como aconteceu pessoalmente a uma das autoras deste artigo na cidade de Nampula. Este tipo de aluno era rotulado de indisciplinado e possivelmente punido. Foi este o aspecto mais revelador das intenções centralizadoras e culturicidas do Estado socialista moçambicano, segundo uma postura que “reproduzirá ( … ) a mesma gramática assimilacionista e intolerante face aos particularismos culturais” do estado colonial (Macagno, 2009, p. 21). Embora com um grau maior de tolerância, e com a abertura de alguns cursos de linguística bantu em poucas universidades públicas do país, principalmente a Eduardo Mondlane, o cenário não sofreu grandes alterações mesmo depois da viragem democrática da década de 1990.
A segunda dimensão de construção da nação e eliminação da tribo é a escola. O sistema nacional de ensino foi instituído com a Lei n.º 4/1983 (1983), visando combater línguas e práticas locais, tais como os matrimónios tradicionais. Isso foi feito, a nível linguístico, mediante o ensino em português, veiculando os princípios do marxismo-leninismo. O “homem novo” devia arraigar as suas raízes neste projeto modernizador e “iluminista”, que o professor devia transmitir aos seus alunos, com um currículo de formação dos docentes “prescritivo, previamente desenhado e articulado”: em suma, uma imposição a que era impossível se opor (Nhantumbo, 2020, p. 611). Com a abertura democrática, a visão dos primeiros 15 anos de independência sofreu algumas mudanças: o sistema nacional de ensino foi atualizado, mediante a Lei n.º 6/92 (1992), mas, quanto à aceitação e promoção do ensino nas línguas locais, os passos feitos têm sido limitados: se é verdade que, em Gaza e Tete, foram lançadas experiências-piloto para um ensino bilíngue português-línguas locais, é preciso observar que - até hoje - se trata de projetos-pilotos que assim se mantiveram, sem uma institucionalização a nível nacional de tais políticas (Nhantumbo, 2020). Mesmo na terceira lei que regulamenta o ensino em Moçambique, a Lei n.º 18/2018 (2018), a dimensão das culturas e línguas locais não registou grandes avanços, deixando a questão étnica ainda no esquecimento. Em paralelo, o livro escolar foi moldado segundo as narrativas históricas de que a revolução socialista precisava, constituindo um dos meios privilegiados de construção do “homem novo” (Borges & Mindoso, 2018). Até hoje, os manuais, principalmente de história nacional, quase que não foram alterados, enaltecendo a epopeia da libertação e os heróis que tornaram Moçambique independente.
A terceira e última dimensão política relevante para os efeitos deste estudo diz respeito à política cultural no sentido próprio. Aqui também o processo de centralização e de esquecimento da questão étnica foi evidente. Acima de tudo foram criados os centros de estudos culturais e as casas da cultura, em 1977, ambos sob a égide do Ministério da Cultura. Sobretudo as casas da cultura tinham o objetivo de difundir a cultura nacional, portanto, o ideal do “homem novo” e da moderna nação moçambicana (Borges, 2001). Depois de 1983, com a aprovação de leis contrárias ao respeito dos direitos humanos (Nhaueleque, 2020), o autoritarismo de um Estado ameaçado por uma guerra civil, cada vez mais agressiva, traduziu-se, em termos culturais, na extinção do Ministério da Cultura, cujo setor se tornou uma secretaria de estado, voltando a ser enquadrado como ministério só em 1987. As mudanças institucionais da cultura continuaram até hoje, sinal de incerteza, por parte do governo moçambicano, sobre como abordar esta matéria. Uma mudança de uma certa importância registou-se em 1997, com a aprovação da Resolução n.º 12/97 (1997), a primeira que visava definir a estratégia cultural do país. Apesar de reconhecer a diversidade religiosa e étnica, os financiamentos para meter em prática tais diretrizes foram modestos. O próprio plano 2006-2010/2011 (Bussotti & Gundane, 2019) tencionava promover e valorizar a cultura moçambicana, mas ainda no singular, e dentro do espírito de uma consciência patriótica. Foi neste período que o então presidente Guebuza, num discurso pronunciado no “Festival Nacional da Cultura”, voltou a sublinhar a relevância da cultura (no singular) como forma de alcançar a unidade nacional (Bussotti & Gundane, 2019), portanto, num papel “ancilar”. Em boa verdade, o processo de politização e esvaziamento das manifestações culturais locais continuou, embora com modalidades ligeiramente diferentes, mesmo depois da abertura democrática. Um exemplo deste esvaziamento remonta a 1978. Na altura do primeiro “Festival Nacional da Dança Popular” (2 a 3 de julho de 1978, Maputo), os grupos que abordavam questões sociais ficaram penalizados em comparação com os que tratavam de assuntos políticos e patrióticos (Chibanga, 2019). Hoje, grupos de canto e dança tradicionais são muitas vezes utilizados para presenciar cerimónias oficiais, nas quais perdem qualquer referência às suas epistemologias, valores e tradições, tornando-se objetos de mero folclore para satisfazer as exigências do poder político do dia.
4. O Esquecimento em Ato e a Sua Superação: A Questão Étnica nos Estudos Sociais Contemporâneos
Se a questão étnica foi excluída da agenda política no período socialista, inclusive das pesquisas dos cientistas sociais mais próximos ao governo, o cenário é em parte diferente quando se considera a literatura relativa às ciências sociais depois da abertura democrática. Neste caso, as práticas tradicionais começam a ser objeto de estudo científico, como demonstram as investigações em volta do lobolo, ritos de iniciação, religiões e medicinas tradicionais.
A questão étnica entra com força nas ciências sociais moçambicanas, procurando descobrir quanto, desde a independência, tinha ficado escondido. Os trabalhos dos cientistas sociais, porém, parecem seguir uma orientação clara: por um lado, há uma série de estudiosos que se debruçam sobre práticas tradicionais no sul; por outro, despertam atenção ritos tradicionais do norte, em particular da cultura makhuwa e, em parte, maconde. O espaço aqui disponível não permite uma análise tão profunda quanto este assunto mereceria, pois cruza-se com dinâmicas de poder, nacional e internacional, relevantes no Moçambique pós-socialista, e que ajudam a legitimar, mais uma vez, o monopólio político da Frelimo, em conexão direta com a acima recordada “indústria do desenvolvimento”.
Esta indústria traz a Moçambique algumas abordagens centrais para o estudo das questões étnicas. Questões pelas quais a Frelimo não nutre muita simpatia, mas que acabam, paradoxalmente, legitimando a aliança fundacional maronga/machangana-maconde.
A primeira perspetiva utilizada no estudo das práticas tradicionais diz respeito aos direitos humanos. Esta perspetiva - já patente na nova constituição de 1990 - fortaleceu-se na sociedade civil moçambicana a partir da fundação da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, em 1995, cuja figura central foi, durante muito tempo, Alice Mabote.
A esta abordagem generalista sobre os direitos humanos associou-se uma, mais específica, sobre os direitos das mulheres, numa perspetiva, portanto, de género, feminista e ocidental. Quem a promoveu foram sobretudo os países nórdicos e suas organizações (por exemplo, Oxfam ou IBIS), que encontraram já um terreno relativamente fértil, principalmente em Maputo. Com efeito, a Frelimo historicamente tinha atribuído importância ao papel da mulher, a partir de figuras que foram mitificadas ao longo da luta armada, acima de tudo Josina Machel, a primeira esposa de Samora Machel, falecida durante a luta armada em Dar es Salaam em 1971. Tal importância refletiu-se na fundação da Organização da Mulher Moçambicana, em 1973, o principal braço operacional de recrutamento e enquadramento das mulheres no seio da Frelimo. A Organização da Mulher Moçambicana sempre foi uma organização tipicamente urbana, frequentada por várias intelectuais moçambicanas, uma parte das quais resolveu fundar outra organização, com fortes laços com a Frelimo (principalmente nos primeiros anos), mas formalmente autónoma: o Fórum Mulher, surgido em 1993 (Nipassa, 2020), e cujas fundadoras foram individualidades de renome em Moçambique, como Isabel Casimiro, Teresa Cruz e Silva, Ximena Andrade e outras. Na mesma linha do feminismo, mas com abordagem mais investigativa, encontra-se o Women and Law in Southern Africa (WSLA) Moçambique, criado em 1989, provavelmente a referência central para os estudos sobre género em Moçambique, principalmente no âmbito dos direitos sexuais e reprodutivos e na violência de género.
Era este o clima que se respirava no início da viragem democrática em Moçambique. Uma das grandes vantagens era que a tradição dos estudos sócio-antropológicos sobre questões étnicas era, no início dos anos de 90, quase que inexistente. Como acima referido, a Frelimo socialista não tinha tal assunto na sua agenda, de tal modo que as referências principais continuavam sendo ligadas a duas escolas, que de frequente se entrecruzavam e que as pesquisadoras de inspiração feminista da década de 1990 pretendiam combater e superar: por um lado, a escola colonial e, por outro, a missionária (Junod, 1898; Martinez, 1989; Nhaueleque, 2020; Thomaz, 2012). A ênfase nos direitos humanos e sobretudo das mulheres, com um olhar feminista, eurocêntrico e com o fim de criar mudanças que se esperava desejáveis, representava, portanto, uma poderosa arma teórica com que interpretar as práticas tradicionais.
A instituição de pesquisa mais ativa neste âmbito foi a WSLA Moçambique, que conta com vários livros publicados e um boletim, Outras Vozes, em que as temáticas da organização são abordadas de forma mais sintética, com estilo jornalístico e de divulgação. É possível realçar que existem três campos de interesse investigativo por parte da WSLA: acima de tudo, o papel da mulher nos pleitos eleitorais; em segundo lugar, a violência doméstica; e, finalmente, outras publicações sobre assuntos da mulher em contextos específicos, principalmente no norte do país, tais como uma publicação sobre discriminação e direitos humanos das mulheres em Pemba e sobre os ritos de iniciação (Osório & Cruz e Silva, 2018; Osório & Macuácua, 2013).
É inegável o mérito de este grupo de investigadoras no despertar da atenção sobre a violência que as mulheres diariamente costumam sofrer na realidade moçambicana, da mesma forma que outros movimentos de ativistas, acima citados, impulsionaram a aprovação de leis e políticas públicas em favor da mulher. Entretanto, a sua ótica na consideração de práticas tradicionais no norte do país, acima de tudo os ritos de iniciação, visava comprovar teses preconcebidas, mais do que compreender o significado daqueles ritos para as mulheres envolvidas e a sociedade no seu todo.
A tese preconcebida que se quis demonstrar é a de que os ritos teriam uma relação direta com o abandono escolar, pois, uma vez iniciadas, as meninas preferem deixar de estudar para casar, geralmente com homens mais velhos. Trata-se de uma tese que já tinha sido desmentida por pesquisas anteriores, por acaso levadas a cabo também por parte de investigadoras cuja adesão ao feminismo não está em discussão.
Signe Arnfred (2015), por exemplo, tinha demonstrado que, durante o socialismo, os ritos de iniciação no norte foram considerados tão atrasados que várias campanhas trouxeram o lema “abaixo os ritos de iniciação” (p. 186). E a reação das mulheres amakhuwa foi clara, segundo as entrevistas que a pesquisadora realizou: frustração devido ao impedimento imposto pela Frelimo e perda daquelas relações comunitárias que constituíam um dos elementos centrais dos ritos.
Estudos mais recentes demonstram como não é possível estabelecer uma relação direta entre abandono escolar, casamentos prematuros, gravidezes indesejadas e ritos de iniciação. Tal facto foi confirmado através de investigações que a coautora deste artigo realizou em Nampula (Nhaueleque, 2020), assim como pela recente publicação do Instituto Nacional de Estatística em relação às razões do abandono escolar. Se é verdade que o abandono escolar seria tendencialmente maior em todas as províncias do norte do que nas outras, os motivos que as pessoas alegam remetem a elementos diferentes dos ritos de iniciação. Segundo a maioria dos entrevistados que deixaram de estudar, a escola “não serve para nada”, “é muito cara” ou “é muito distante” (Instituto Nacional de Estatística, 2021). Ainda neste inquérito, os abandonos escolares que mais se relacionam com questões de gravidez precoce são mais frequentes no sul, nomeadamente em Gaza, do que no norte.
Outros estudos realizados por organizações internacionais também consideraram tais práticas como nocivas. Por exemplo, o estudo levado a cabo por parte de uma organização não governamental holandesa, Yes I do, as práticas tradicionais contribuiriam ao elevado número de casamentos prematuros em Nampula, desconsiderando que podem existir fatores económicos que impõem às famílias, como única saída da pobreza, o casamento das meninas, diminuindo assim as bocas para alimentar (Pires & Baatsen, 2018). Da mesma forma, os ritos de iniciação são considerados como entre os primeiros fatores para explicar a elevada taxa de casamentos em adolescentes no país:
perigosas práticas costumeiras como os ritos de iniciação têm afetado negativamente a saúde sexual e reprodutiva e os direitos das raparigas no país. Sob o disfarce dos ritos de iniciação, estas jovens meninas são achadas estarem prontas para se tornarem boas esposas. (Coligação para a Eliminação dos Casamentos Prematuros, 2020, p. 5)
Tais abordagens superficiais, que fazem dos ritos de iniciação um passe-partout para explicar qualquer tipo de comportamento social e cultural entre os amakhuwa, têm condicionado fortemente a representação que desta cultura tem sido feito quer dentro quer fora de Moçambique, evitando, mais uma vez, procurar compreender a sua especificidade e a sua complexidade.
Diante deste cenário, que resulta no empobrecimento epistemológico da cultura e da língua prevalecentes em Moçambique (emakhuwa), no sul a abordagem foi diferente. A “análise situacional” é a postura que geralmente foi adotada para os estudos das práticas tradicionais do sul. Quer o lobolo, quer cultos sincréticos como os da igreja zione receberam olhares de autêntico interesse gnosiológico, procurando extrair os saberes, as epistemologias, as práticas que tais manifestações contêm (Bagnol, 2008; Fernandes, 2018; Granjo, 2004; Honwana, 2002). Em algumas circunstâncias, o lobolo foi até considerado a expressão da resistência das sociedades locais diante quer do colonialismo, quer da repressão do estado socialista moçambicano (Furquim, 2016).
Se tais estudos trouxeram conhecimento novo num âmbito que também não era muito pesquisado até a década de 1990, foram poucas as pesquisas dedicadas a outras práticas, certamente menos pacíficas e mais violentas, no sul do país. Por exemplo, o kutchinga, não foi objeto de muitos estudos, assim como o foi o lobolo. Trata-se de uma forma de levirato, que consiste na necessidade de a viúva dormir (ou seja, manter relações sexuais) com um dos irmãos (de preferência, em alternativa um parente qualquer) do marido recém-defunto. Feito este cerimonial, segundo os curandeiros locais necessário em termos de purificação, geralmente os dois vão casar, independentemente do facto de o homem já estar casado ou não: a poligamia, principalmente em Gaza, por sinal a província onde a Frelimo sempre conseguiu mais votos em todo o país, é prática usual, portanto a questão não representa nenhum problema por parte daquela sociedade. O kutchinga só foi formalmente proibido em 2012 (mas até hoje continua a ser parcialmente praticado), não em razão das evidentes violações e traumas que deixava nas mulheres submetidas (Amadeu, 2021) - que, caso não concordassem, eram expulsas da casa do marido, perdendo todas as posses familiares -, mas sim por causa da sua contribuição na difusão do vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida (HIV/SIDA; Ritual que Propaga a SIDA Interditado em Moçambique, 2012). Em suma, a razão que levou à proibição formal do kutchinga está relacionada com a saúde pública, não com os direitos de livre escolha da mulher viúva, e foi abordada com muito cuidado por parte do governo, assim como dos cientistas sociais e dos doadores, nacionais e estrangeiros. No centro de Moçambique práticas parecidas ao kutchinga (tais como o pita-kufa) também foram pouco estudadas, e geralmente relacionadas com questões de saúde reprodutiva (luta ao HIV/SIDA) mais do que à violação dos direitos das mulheres (Colher, 2017).
5. O Esquecimento e as Suas Consequências na Cultura Makhuwa
Os ritos de iniciação representam apenas o elemento mais visível de como a cultura makhuwa tem sido abordada por parte de pesquisadores e pesquisadoras que procuravam, como seu objetivo central, demonstrar teses preconcebidas sobre assuntos de género, sem terem uma visão holística daquela mesma cultura. O mesmo tem-se verificado em relação à produção cultural e artística.
Neste caso, os interesses da Frelimo e da indústria cultural encontraram uma confluência, por assim dizer, “natural”, sem grandes contradições. Devido ao escasso conhecimento do mosaico cultural moçambicano por parte das instituições estrangeiras, foram as instituições locais a orientarem a agenda das investigações; isso levou, mais uma vez, a privilegiar as produções culturais do sul do país.
Existem factos que parecem pouco relevantes, e até desprovidos do cabedal suficiente para que apareçam num texto que se pretende científico. Trata-se de curiosidades, derivantes do senso comum e bem presentes para quem vive diariamente a realidade de Moçambique. Por um lado, existem expressões típicas que mesmo alguns estrangeiros já aprenderam: o xingondo para designar quem vive a norte do Rio Save, como de alguém inferior e que deve subordinar-se à civilização superior dos maronga e machangana do sul; o khanimambo, “obrigado” em língua changana, foi como que tornado nacional, sem considerar que este termo no centro e norte de Moçambique nem existe; finalmente, toda a construção em volta da mulher mmakhuwa, ao mesmo tempo linda, misteriosa e perigosa, usando mussiro e conhecendo os segredos ancestrais da feitiçaria (Araújo, 2019).
Tal visão folclórica da cultura e da mulher mmakhuwa revela um aspeto central em termos de construção da identidade nacional moçambicana: o desconhecimento quase que completo desta cultura e das suas tradições e crenças.
Os dois grandes investimentos que o governo moçambicano fez para valorizar as suas expressões artísticas, mesmo fora do país, concentraram-se, no sul, na marrabenta e na timbila. A timbila é um instrumento de percussão, da família dos xilofones, originário de Zavala, província de Inhambane, da etnia chope, onde, até hoje, existe uma produção significativa deste instrumento.
Zavala e, no geral, Inhambane, tinham uma fama não muito boa diante dos outros moçambicano, pois o boato sempre foi de que os “manhambanes” teriam colaborado demasiadamente com o regime colonial, justamente por causa da história da timbila. Com efeito, vários grupos de timbila foram levados a Lisboa, entre a década de 1950 e 1960, ao passo que em Moçambique as orquestras baseadas neste instrumento foram frequentemente utilizadas para homenagear figuras institucionais importantes, como os governadores gerais. A caraterização dos chopes como timbileiros sempre disponíveis a tocar para o regime não conseguiu fazer com que eles adquirissem um estatuto diferente dos outros negros (“indígenas”), mas “passaram a receber uma reputação especial” (Morais, 2020, p. 270). Com a fama internacional adquirida durante a época colonial, o conhecimento que o grupo dirigente da Frelimo tinha da timbila foi suficiente para que o Estado socialista a enaltecesse a património nacional. Foi por isso que, no “Primeiro Festival Nacional da Canção e Música Tradicional” (realizado em 1980), a timbila ficou na dianteira. Expurgada das suas relações com a administração colonial portuguesa, a timbila tornou-se o primeiro símbolo da unidade cultural do povo moçambicano. Este instrumento adquiriu tanta importância que na primeira nota de meticais, em substituição do escudo português, ficou a sua imagem (Morais, 2020). Não foi difícil, portanto, imaginar as razões da escolha do governo moçambicano quando, em 2004, teve de lançar a candidatura de uma das suas produções artísticas para ser avaliada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A aprovação deste instrumento como património intangível da humanidade chegou em 2005. Até hoje, a timbila representa um dos símbolos culturais de unidade do país: um símbolo, porém, do sul, que as populações do norte dificilmente conhecem e reconhecem como próprio.
O outro elemento da cultura do sul do país que assumiu valor nacional foi a marrabenta. Apesar de nunca ter adquirido o status da timbila nas políticas nacionais, a marrabenta passou, mais recentemente, por um processo de revalorização dos seus ritmos e dos seus dois principais expoentes, Fany Mpfumo e Dilon Djindji. Neste caso, também a transição desta dança e música de local (Maputo) para uma dimensão nacional foi relativamente simples. No período socialista, o maior obstáculo foi a mistura que a marrabenta fazia dos ritmos tradicionais do sul de Moçambique com outros ocidentais, o que acabava por incomodar a elite socialista daquela época. Entretanto, a mesma elite investiu na marrabenta como música nacional, inclusive com investigações levadas a cabo por parte de alunos e docentes do único curso superior de música do país, que começou a funcionar na Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane em finais da década de 2000. Começou-se a recordar que a marrabenta era o ritmo dos intelectuais “periurbanos” e nacionalistas, tais como José Craveirinha, Noémia de Souza, Bertina Lopes e Luís Bernardo Honwana, todos de Maputo (Laranjeira, 2010), como o próprio Cabaço (2007) sublinha. Este processo relativamente tardio de nacionalização da marrabenta é eficazmente representado pelo moçambicano Rui Guerra Laranjeira (2010): “é o principal ritmo musical de Moçambique” (para. 7). Os depoimentos que o brasileiro Conceição (2021) recolheu em Maputo de artistas que vivenciaram a evolução da marrabenta confirmam quanto dito acima. Os músicos, como Wazimbo, por exemplo, apesar de reconhecerem a existência de outros ritmos musicais em vários cantos do país, defendem que a marrabenta foi o único com a força suficiente “para se tornar um ritmo moçambicano com identidade nacional” (Conceição, 2021, p. 17). Uma força, é preciso sublinhar, dada em razão de uma precisa escolha política, além dos méritos artísticos desta música.
No norte, as produções artísticas mais valorizadas foram as de origem maconde que, convém lembrar, representam uma minoria mesmo dentro da única província moçambicana em que vivem de forma estável: trata-se de cerca de 250.000 indivíduos vivendo no Planalto de Cabo Delgado, província que conta com cerca de 1.500.000 habitantes, na sua larga maioria amakhuwa, seguidos por kimwane e swahili. O mapiko é provavelmente a mais famosa manifestação deste grupo étnico. Trata-se de uma dança que segue percussões musicais, em que homens de máscaras muito elaboradas pretendem estabelecer um laço entre vivos e mortos, material e espiritual, evocando os antepassados e expressando as suas visões em volta do ser no mundo. Devido à construção de uma narração nacionalista em que os maconde protagonizaram grande parte da luta armada pela independência, o mapiko - com as transformações que teve desde a época colonial (Lopes, 2019) - foi de imediato assumido por parte do regime socialista. Em contrapartida, o mapiko “socialistizou-se”, com máscaras que reproduziam heróis militares maconde ou outras personagens alegóricas representando as virtudes cívicas daquela época (Lopes, 2019). As mulheres maconde, que também desempenharam uma função importante na luta armada, foram admitidas a participar nesta dança. Foi a partir deste impulso que o mapiko nunca deixou de constituir uma referência à unidade nacional moçambicana. Foi, portanto, estudado por parte de pesquisadores estrangeiros que, de forma consciente ou não, valorizaram uma opção, é verdade, de grande valor artístico e antropológico, mas também politicamente orientada por parte do governo de Maputo. O mesmo vale a respeito da escultura maconde, valorizada a nível internacional.
As opções de política cultural apenas recordadas são uma das expressões principais de marginalização indireta da produção artística de outras etnias diferentes da machangana e maronga e da maconde. A etnia makhuwa sempre se sentiu excluída do processo de unificação nacional, e a situação não melhorou logo depois da independência. Por exemplo, na província de Nampula os quadros nomeados vinham, na sua larga maioria, do sul: Francisco Munguambe, de etnia chope, foi mandado administrar Malema; Alberto Vasco Matavele, changana, foi designado para coordenar os Serviços Provinciais da Agricultura em Nampula, Vicente Lourenço Matavel, changana, foi dirigir a Empresa de Algodão de Nampula. Como alguém tem realçado, não se tratava de quadros particularmente qualificados, mas sim de indivíduos que tinham, no máximo, a 6.ª classe, mas que eram fiéis ao regime socialista e, sobretudo, de etnia maronga (Lavieque, 2020).
Na Zambézia, em 1978, ocorreu o mesmo esquema, com as populações locais a queixarem-se de que os administradores nomeados eram todos do sul (Chichava, 2008). O cenário não muda depois da viragem de 1990, quando entre Zambézia e Nampula se formam pequenos partidos políticos de inspiração abertamente federalista, que tentam recolocar a questão étnica nos moldes da nova democracia. Mas sem sucesso. Para o fracasso contribuiu também a astúcia política da Frelimo, que atuou uma cuidadosa política de cooptação. Quanto ocorreu com Rosário Mualeia em Nampula, é exemplificativo. De secretário geral da Associação para o Desenvolvimento de Nampula foi nomeado governador daquela província e, depois de ter desempenhado as funções de vice-ministro do turismo, passou a presidir os Portos e Caminhos de Ferro de Moçambique.
A anulação das vozes incómodas mediante cooptação, porém, não resolveu a questão étnica. A etnia makhuwa continuou a perceber um profundo sentido de exclusão da vida pública moçambicana, como os resultados eleitorais em favor da Resistência Nacional Moçambicana demonstram, assim como a adesão de muitos jovens amakhuwa à insurgência de Cabo Delgado.
A marginalização da sua produção cultural é um reflexo direto da edificação de um Estado-nação baseado na aliança entre maronga e maconde. Os estudos sobre a produção artística makhuwa são muito limitados. Trata-se de um facto curioso e pouco explicável do ponto de vista científico, pois esta cultura expressou, ao longo do tempo, cantos e danças tão relevantes quanto a marrabenta: tufo, de influência árabe-swahili, n’sope, nakhula, nsiripwiti, rumba, entre outros, ritmos de cunho mais bantu, interessaram tão pouco os estudiosos ocidentais quanto o governo de Maputo, salvo uma publicação que visava conhecer o tufo para melhor enquadrá-lo dentro da ideologia socialista da altura (Ministério da Educação e Cultura, 1980). Provavelmente, quer os primeiros, quer o segundo, eram demasiado distantes da miscigenação cultural makhuwa para compreender sua epistemologia complexa, que tinha (e continua a ter), nessas expressões artísticas, assim como nos ritos de iniciação, nas práticas da medicina tradicional e no papel da mulher, uma referência fundamental de uma “outra” visão do mundo.
6. Conclusões
O epistemicídio de que Boaventura de Sousa Santos fala frequentemente (Santos & Meneses, 2009) em mérito ao relacionamento norte-sul é um facto incontestável; porém, pelo menos no caso de Moçambique, este culturicídio assumiu o semblante de um conflito étnico nunca explicitado (a não ser na atual revolta em Cabo Delgado) no seio da formação do Estado nacional moçambicano. O estudo aqui apresentado constitui apenas uma primeira aproximação ao problema, e procura trazer evidências políticas, culturais e artísticas de como o “esquecimento étnico” tem de ser lido como uma construção consciente, por parte das duas etnias dominantes no país, maronga/machangana e maconde, em detrimento de todas as outras, principalmente as que não se adequaram ao monopólio político da Frelimo, nas diferentes épocas históricas da pós-independência. O resultado foi o de larga parte da produção artística e cultural, assim como das epistemologias de tais etnias, ficar marginalizada, devido ao fogo cruzado composto pela ignorância generalizada em relação ao tema, pelas perspetivas de estudo preconcebidas e pelos interesses políticos internos do partido no poder.
O elemento positivo que este estudo traz é que, nos anos mais recentes, uma literatura ainda incipiente, mas pelo menos existente, aqui em parte citada, está a começar a ver a questão étnica moçambicana como um dos aspetos centrais na formação da identidade nacional deste país, sendo necessária a recuperação das epistemologias esquecidas e negligenciadas até hoje. Um longo trabalho está, portanto, à espera os jovens investigadores que queiram ressuscitar a riqueza cultural e artística de um mosaico moçambicano demasiadamente reduzido à expressão das etnias dominantes.