1. Introdução
Empresas matam. Os crimes cometidos a razão das atividades de pessoas jurídicas têm feito muitas vítimas, dolosamente ou culposamente. Apesar de não ser um tema novo, o homicídio corporativo ocupa pouco espaço na literatura jurídica, em comparação com outras áreas da criminologia (Barak, 2016) e recebe um enquadramento muito tímido na mídia (Barak, 2015; Cavender & Miller, 2013).
O termo tragédia-crime é um neologismo incorporado ao português brasileiro, para denominar sinistro criminoso que envolve grande número de vítimas ou danos, com ampla repercussão midiática e grande comoção popular. As tragédias-crime decorrentes do rompimento de barragens de mineração das empresas Samarco e Vale S.A., no estado de Minas Gerais, Brasil, resultaram, juntas, em 291 vítimas fatais, além de um imensurável passivo ambiental. São flagrantes de uma atividade empresarial que sopesou o ganho financeiro sobre vidas humanas (Ministério Público do Estado de Minas Gerais, 2022). Ambas foram qualificadas como homicídio pelas entidades judiciais, mas os processos enfrentam reviravoltas e até hoje ninguém foi julgado.
Um dos grandes problemas desses crimes é a neutralização, por meio da invisibilidade e justificação perante a opinião pública (Almond & Colover, 2010; Barak, 2015; Ruggiero, 2015). A mídia é parcialmente responsável por isso. Embora existam muitas formas de se saber o que ocorre no mundo, a maioria das pessoas só têm conhecimento de certos eventos por meio dos veículos de comunicação, por exemplo, catástrofes, guerras, espetáculos e fóruns políticos, dentre outros. Isso tem implicações sobre o cotidiano, o pensamento e a identidade das pessoas. Portanto, a mídia interfere na construção simbólica da realidade e, nesse processo, as classes dominantes conseguem influenciar o que é veiculado, de acordo com seus interesses. Talvez por isso, os veículos de comunicação ainda devotam pouco esforço à cobertura dos crimes de poderosos, reduzindo o espaço dado a esse tema e controlando a forma como é noticiado (Machin & Mayr, 2012).
As mídias digitais trouxeram a expectativa de democratização da comunicação, pois as barreiras de acesso aos meios de produção eram uma das causas da assimetria de classes nesse setor. Realmente, o número de produtores de conteúdo aumentou no espaço cibernético e as ferramentas de interação tornaram a comunicação em via de mão dupla uma possibilidade. Porém, emergiram outros problemas, como a crise de credibilidade, a cooptação dessas novas plataformas pelas grandes empresas e o foco no imediatismo (Castells, 1996/2016).
Uma modalidade propiciada pelas novas tecnologias foi o jornalismo digital. Mas, desde o início, o espaço foi dominado pelos barões da comunicação e atualmente é campo disputado tanto pela mídia mainstream quanto por pessoas que não têm a mínima formação na área (Ferrari, 2014). No Brasil, o meio online é fonte de informação para 83% da população, contra 61% da televisão e 12% da mídia impressa (Carro, 2021). Portanto, esta pesquisa visa estudar como o homicídio corporativo vem sendo tratado nesses novos veículos, tanto os pertencentes ao campo alternativo-independente, quanto a mídia mainstream. Tomou-se como objeto de estudo as tragédias-crime da Samarco e da Vale, para responder à seguinte questão: como os sites de notícias brasileiros abordaram o conceito de homicídio corporativo nas tragédias-crime da Samarco e da Vale?
Para responder a essa questão, o estudo focou nos seguintes objetivos específicos: (a) analisar a frequência de noticiação desses eventos nos veículos estudados, desde a sua ocorrência; (b) estudar a ênfase e a visibilidade de categorias relacionadas ao crime corporativo numa amostra das matérias publicadas; e (c) classificar o enquadramento noticioso (newsframing) dessas matérias. O estudo adotou uma abordagem predominantemente qualitativa, sob o delineamento de análise de conteúdo (Mayring, 2000).
2. Referencial Teórico
Homicídio corporativo é a morte, no âmbito laboral ou comunitário, decorrente das atividades de uma organização, seja por inépcia, negligência, assunção do risco ou dolo (Barak, 2015). Difere do homicídio de autoria individual ou em coautoria, quando o criminoso age isoladamente ou conjuntamente, de forma eventual, visando ao interesse restrito em nível particular.
O crime corporativo é mais do que a soma de crimes individuais cometidos no seio da organização, pois ocorre quando toda a instituição se articula para o seu cometimento, doloso ou não. Trata-se uma arquitetura institucional que legitima ilicitudes e coopta os seus integrantes a praticá-las, ou serem coniventes com elas, sob pena de sofrerem sanções. Nesses casos, o nível de legitimação pode chegar ao ponto de a sociedade aceitar esse ato como parte da realidade dada, ou pior, sequer os perceber como crimes (Ruggiero, 2015). Essas ações se institucionalizam e se perpetuam na organização, mesmo havendo sucessões no corpo diretivo. Um dos fatores que contribuem para a sua ocorrência é quando a estratégia organizacional prioriza o lucro e a consecução de objetivos operacionais que colocam em risco a segurança e a vida de empregados e membros da comunidade (Ruggiero, 2015). Tais práticas vão desde a utilização de insumos de qualidade inferior ao extermínio doloso de indivíduos e povos em favor dos interesses do capital (Banerjee, 2008).
A principal dificuldade de se caracterizar o homicídio corporativo é a determinação da autoria, pois pode ser resultado da falha de agências difusas, sendo muitas vezes impossível indiciar responsáveis (Almond & Colover, 2010). Ou então, mesmo identificando-se pessoas a quem imputar a culpa, cabe provar que o crime é resultado de uma arquitetura institucional e não da agência individual, de tramas exógenas à organização (por exemplo, a sabotagem), ou ainda, de agentes externos.
Na corporação moderna, a “pessoa” é uma entidade legal que se distingue do indivíduo; ela pode estabelecer contratos, captar recursos e processar entes individuais ou organizacionais - mas a imputabilidade por suas próprias ofensas continua problemática (Barak, 2015). Por outro lado, essa distinção entre a pessoa física e a jurídica permite que uma organização seja até processada, mas seus altos executivos e acionistas, que auferiram bônus e lucros decorrentes dos delitos, não sejam sequer expostos (Barak, 2015). Ou o contrário, caso haja forte comoção da opinião pública cobrando a punição, pessoas podem ser responsabilizadas por atos que, em princípio, eram inerentes às práticas institucionalizadas da organização e essas condenações não evitarão a ocorrência futura de crimes daquela corporação (Almond & Colover, 2010).
As grandes multinacionais adotam uma estrutura piramidal de propriedade (Morck, 2010), em que a estrutura acionária é muito diluída, impossibilitando determinar quem é “o dono”. Cada investidor quer maximizar o seu retorno, seja um bilionário, outra grande corporação, um fundo de pensões ou um investidor comum da bolsa de valores. Isso pressiona os administradores a gerar mais lucros e aumentar o valor acionário da empresa. Não raro, recorre-se ao exercício da gestão temerária e práticas contábeis discricionárias para inflar o desempenho (Theiss et al., 2019). Essa financeirização é um traço do capitalismo rentista. Esse modelo, contudo, possui uma contradição interna, pois pode provocar uma orientação para o curto prazo, favorecendo práticas administrativas arriscadas ou fraudulentas, para inflar o valor das ações (Cavender & Miller, 2013). O elevado turnover nesses cargos impossibilita rastrear as responsabilidades nesse intrincado sistema de interesses e exposição ao risco, pois quando o sinistro ocorre, seus autores já estão ausentes.
Esse sistema criou um terreno fértil para o surgimento do necrocapitalismo, que se desenvolveu no bojo do colonialismo e do imperialismo, desembocando nas formas atuais de simbiose estado-mercado, em que a soberania dos territórios é ressignificada a partir dos interesses dos grandes conglomerados empresariais (Banerjee, 2008).
Segundo Zaitch e Gutiérrez-Gómez (2015), as reformas neoliberais dos anos 1980 visavam resolver o problema de excesso de estoque de capital, buscando novos negócios para evitar uma crise de sobreacumulação. Uma das premissas era a abertura de mercados, portanto países ricos em recursos minerais foram pressionados a implementar políticas e regulamentos que acomodassem e dessem segurança jurídica a novos empreendimentos e oferecessem vantagens tributárias. Isso provocou uma interação promíscua entre o estado e o capital globalizado, resultando em externalidades negativas, como a expropriação de territórios, prejuízos fiscais, reprimarização da economia, corrupção, depredação do meio ambiente, danos à saúde pública e mortes decorrentes da atividade minerária. Há evidências de que as mineradoras seguem o ciclo da lucratividade, em detrimento da segurança e do interesse público (Davies & Martin, 2009).
Leighton (2013) adverte que a concentração de riqueza pelo setor privado foi acompanhada por distorções na distribuição do poder político, refletindo na teoria criminológica, para a qual essas corporações são praticamente invisíveis. Tillman (2013) atenta que esse desequilíbrio reproduz o entendimento geral de que essas empresas são não apenas too big to fail (grandes demais para falir), mas também too big to jail (grandes demais para ir para a cadeia).
Ruggiero (2015) observa que os crimes dos poderosos são como “experimentos”, isto é, introduzem maneiras mais lucrativas de operar as suas atividades, sacrificando o bem-estar geral e espoliando os recursos naturais. Se a sociedade não reage, os empresários são encorajados a introduzir novas éticas, regras e arranjos sócio-políticos para justificar essas práticas. A capacidade de se redefinir o que é justificável é proporcional ao poder exercido pelos atores, num sistema social cada vez mais enviesado, concentrado e polarizado.
Essa complexa rede reforça a relação contraditória entre a obrigação histórica de controle e criminalização de atos ilícitos, por um lado, e a necessidade de reprodução do capital, por outro (Barak, 2016). Isso ajuda a explicar por que a sociedade ao mesmo tempo em que cobra e endossa a punição dos crimes individuais, sobretudo aqueles em torno dos quais houve grande comoção e cobertura midiática, legitima a impunidade às grandes corporações, pois a criminalização destas causaria prejuízos a vários investidores, inclusive o pequeno acionista.
Segundo Cavender e Miller (2013) a condenação pública aos crimes corporativos não é tão severa quanto para os crimes “de rua”. Despertam indignação inicial, mas dificilmente levam à mobilização social. Só quando resultam em mortes e danos materiais em grandes proporções é que são percebidos com mais gravidade (Borges et al., 2015). Contudo, a noção de criminalidade associada aos homicídios corporativos é complexa e a opinião pública é relutante quanto à imputação de culpa nesses casos, mais do que nos crimes individuais (Almond & Colover, 2010).
Em muitos países, é possível punir crimes corporativos, mas geralmente os sistemas não são muito precisos no caso de homicídios. O Reino Unido é um dos poucos lugares que possui uma lei específica para o homicídio corporativo, que facilita a imputação da culpa, por considerar que qualquer morte, laboral ou comunitária, ocorre devido a uma “falha gerencial” dos gestores, que são responsáveis, em última instância, pelo controle das atividades (Almond & Colover, 2010). Essa lei entrou em vigor em 2008, mas estudos mostram que os resultados têm sido frustrantes, revelando uma assimetria nas punições, que recaem mais sobre pequenas empresas (Hébert et al., 2019).
Onde não há lei específica, a qualificação do crime corporativo depende da interpretação dos agentes do sistema jurídico. No Brasil, o crime ambiental existe e empresas podem ser indiciadas (Lei nº 9.605, 1998, Artigo 3.º). Já o homicídio corporativo, como já dito, não existe explicitamente no âmbito penal, vigorando a interpretação de que as pessoas jurídicas não têm vontade própria. Os diretores e empregados sim, pois nesse caso é possível provar o nexo causal, portanto é possível indiciá-los criminalmente por atos que resultem em morte, mas a empresa não (Silva et al., 2019).
Segundo Barak (2016) a morosidade e a dificuldade com que o estado julga e pune crimes cometidos por grandes corporações, em comparação com crimes cometidos por organizações menos poderosas, bem como crimes individuais, revelam uma economia política do crime. Barak (2015) também ressalta que os crimes individuais são catalogados nas estatísticas da maioria dos países, mas quando envolvem elites políticas e econômicas, grandes organizações, governos e estados não são computados oficialmente nem reportados pela mídia como tal. Segundo o autor (2015), se esses delitos fossem contabilizados, as pessoas perceberiam que estão mais propensas a se tornarem vítimas da elite do que dos mais pobres.
Segundo Ruggiero (2015), a elite consegue articular recursos de ordem econômica, política e simbólica para construir a ideia de que estão acima do bem e do mal, assim usam esse poder hegemônico para escapar de toda sorte de julgamento. De acordo com o autor, esses crimes são mais propensos de ocorrer em contextos sociais de transformação, desigualdade e mudança, portanto essas transgressões são percebidas como um mal necessário para se alcançar o desenvolvimento, não como crimes. Para Barak (2015), em muitos casos, as leis existentes bastariam para punir esses crimes. Porém, os poderosos escapam da condenação e da estigmatização por meio de alianças, negociações e justificações que neutralizam a moralização de suas ofensas. Boa parte da racionalização da impunidade do crime corporativo se origina nas relações espúrias entre empresas e governos. O autor (2015) afirma também que essa adjudicação da impunidade se dá sob o argumento de que a punição no nível corporativo traria efeitos ainda mais negativos para a sociedade do que o próprio crime, como extinção de postos de trabalho e perda de receitas tributárias.
Budó (2016) reforça que a articulação entre estado e mercado tem causado danos à humanidade e ao meio ambiente que permanecem fora da categoria jurídica de crime. Segundo a autora, existe uma discrepância entre o discurso-jurídico penal e sua prática, pois enquanto se prega igualdade e justiça, na realidade a aplicação da lei é assimétrica. Historicamente, prossegue, há uma ideologia de inferiorização de grupos sociais que, sob o discurso da ordem, legitima a perseguição e a punição de segmentos mais frágeis da população. Porém, esse mesmo sistema é limitado para julgar e punir as transgressões dos poderosos.
Essa ideologia da criminalização ajuda a criar no pobre a imagem transgressora; ele passa a ser o outro da razão, justificando o exercício do poder dominador em prol de um projeto de desenvolvimento (Quijano, 1998). Nessa lógica, a elite utiliza processos como aporofobia, racismo, supremacismo cultural, sexismo e moralismo para inferiorizar, criminalizar e ridicularizar povos e segmentos sociais desfavorecidos. A partir do momento em que a sociedade aceita e normaliza tais condições, abre-se caminho para legitimar e legalizar a dominação e a agressão sobre o outro. Portanto, os grupos discriminados podem ser enquadrados como transgressores, mas o executivo branco não, pois ele estaria agindo em favor de um sistema legitimado, necessário ao desenvolvimento.
Na criminologia cultural, segundo Cavender e Miller (2013), o crime corporativo pode ser entendido em dois níveis: da micropolítica, em que o problema é reconhecido como transgressão e são tomadas as medidas para remediar os danos; e da macropolítica, quando as forças econômicas, sociais e políticas moldam arcabouços de referência para identificar e remediar os danos. As ideologias e discursos dominantes nas macropolíticas interferem no nível micropolítico, na visão sobre as causas e as soluções para o problema.
Faz-se necessário também abordar o conceito de seletividade penal, em suas duas dimensões. Na criminalização primária, define-se o que é considerado delito. A seletividade penal começa aí, pois a representação legislativa é desigual, composta em sua maioria pelas classes dominantes (Martini, 2007). Isso explica, em parte, por que o homicídio corporativo ainda não foi enquadrado pela legislação brasileira. Já a criminalização secundária é a concretização da aplicação da norma penal sobre os culpados. Segundo Baratta (2002), atitudes emotivas e valorativas dos juízes em relação à classe social dos réus interferem em seus julgamentos, razão pela qual crimes cometidos pela elite são menos propensos de serem punidos, pois os autores não se enquadram no estereótipo social de criminoso.
2.1. O Papel da Mídia na Divulgação de Homicídios Corporativos
A opinião pública contribui para a representação social do homicídio corporativo, embora a posição final seja ambígua (Almond & Colover, 2010; Borges et al., 2015). No contexto estadunidense, Michel et al. (2015) reportaram que pessoas com perfil sociodemográfico avantajado (brancos, maior nível de escolaridade e maior acesso a tecnologias digitais de informação, sem afiliação religiosa, dentre outras variáveis) tendem a perceber as transgressões da elite como crime. Todavia, pessoas com atitude mais conservadora e pró-capitalista tendem a perceber os crimes corporativos como menos sérios e a justificar as ações das empresas.
Nessa disputa pela significação dos delitos, o poder do grande capital se manifesta intensamente, usando seus recursos econômicos e políticos para apagar da memória social os seus crimes ou justificá-los, elaborando narrativas que desviam a atenção ou deturpam sentidos. Altos dirigentes possuem um capital social ímpar, pois pertencem ao mesmo campo daqueles que elaboram a agenda pública, inclusive a mídia. Segundo Ruggiero, (2015), “os crimes dos poderosos, seguindo essa linha de análise, podem ser vistos como o resultado da proximidade entre os atores, confiança mútua, imitação e o desejo de perpetuar laços, valores e interesses de grupos” (p. 63).
Um dos laços sociais e econômicos que a elite capitalista mais preza é com a mídia. Segundo McQuail (2010), a mídia é uma instituição fundamental nos tempos atuais, pois promove a mediação do contato dos indivíduos com a realidade; muitas vezes é a única forma de experiência do mundo, aproximando as pessoas dos fatos distantes no tempo e no espaço; e influencia na construção de identidades, já que provê um mapa de onde as pessoas estão, quem são e em que direção devem ir. A mídia não tem o poder de determinar a opinião pública, mas pode influenciá-la, fornecendo uma estrutura interpretativa, por meio da forma como enquadram as matérias (Cavender & Miller, 2013). A cobertura jornalística de crimes de colarinho branco envolvendo fraudes e corrupções é frequente, mas quando envolve homicídio corporativo, a atenção da mídia ainda é relutante e inversamente variável ao porte das organizações acusadas (Slingerland et al., 2006). Embora a cobertura de crimes corporativos tenha crescido, a mídia ainda foca na responsabilização individual de executivos e no comportamento transgressor de agentes públicos, não nos aspectos institucionais que levaram ao delito (Cavender & Miller, 2013). No caso de homicídios, nota-se uma relutância da mídia em noticiar esses eventos como tal, reportando-os mais como tragédias ou desastres naturais (Katiambo, 2021).
A produção da notícia é um fenômeno social e político em que concorrem outras variáveis - culturais, comportamentais, tecnológicas e econômicas, dentre outras. Para entender esse processo, é necessário recorrer a um conjunto de teorias, que podem, grosso modo, ser agrupadas numa mesma corrente, focadas no emissor e devotadas a entender o que e como é agendado pelos meios de comunicação e em que condições sociopolíticas e econômicas isso ocorre. Nesse arcabouço, cada teoria tem a sua especificidade, mas no seu conjunto propõem uma sociologia política da produção de conteúdo. Uma das primeiras teorias dessa corrente, o gatekeeping, se debruçou sobre a escolha da pauta pelo editor. Postula que esse ator, de forma intencional e segundo seu julgamento, determina o conteúdo da mídia e, assim, interfere no rol de elementos da realidade cotidiana a que suas audiências terão acesso (Shoemaker & Vos, 2009). Como muitas informações necessárias para a manutenção da sociedade democrática chegam ao cidadão por intermédio dos veículos de comunicação, esse processo de gatekeeping é crucial para a definição da agenda pública, pois a percepção do cidadão sobre os assuntos mais relevantes é a sua presença nos veículos de comunicação (McCombs & Reynolds, 2002). A teoria da agenda-setting estuda como e por que ocorre esse agendamento, chamado de primeiro nível (McCombs, 2004). Na mesma linha, Noelle-Neumann (1974) desenvolve a teoria da espiral do silêncio. Partindo da premissa de que as pessoas avaliam a relevância de um tema com base na sua saliência na mídia, segundo a autora aquilo que é omitido da pauta é percebido como irrelevante e, portanto, haverá menos predisposição a debater tais temas. Consequentemente, esses assuntos cairão no esquecimento e dificilmente serão catapultados para as arenas de discussão e deliberação. Diante disso, grupos poderosos tentarão interferir na agenda, suprimindo os conteúdos que não são do seu interesse e destacando aqueles que ajudam a construir o seu projeto de poder.
As questões relativas ao conteúdo da mídia, todavia, vão além da presença, ausência ou destaque de um tema na agenda. Incluem também a forma como aquele tema é apresentado, ou seja, o enquadramento (framing), mencionado por McCombs (2004) como o agendamento em segundo nível. O processo de enquadramento é o meio pelo qual o veículo de comunicação estrutura o seu conteúdo para ser distribuído como um produto às suas audiências e, por isso, influencia na interpretação das pessoas sobre os elementos da realidade (Linström & Marais, 2012). As fontes ouvidas, os detalhes escolhidos para figurar na notícia, os dados e informações, o material ilustrativo, dentre outros, compõem o enquadramento da notícia e, portanto, são aquilo que vai dar o significado.
Esse processo de construção da notícia se inicia com a disputa pelo espaço e perpassa também a construção do significado. Segundo Retegui (2017), a teoria do news-making procura lançar luz sobre essa problemática, focando nas relações microssociais, ou seja, na rotina das salas de redação. Porém, a autora ressalta que essas rotinas não se referem a normas padronizadas em um manual. Como os jornalistas estão envolvidos num universo simbólico dominado pelo grande capital, é previsível que reproduzam esse discurso. Caso tentem entoar algo divergente, sofrerão sanções, pois toda cadeia de produção da notícia está vinculada a esse sistema.
Os meios de comunicação são um campo onde o aspecto econômico pesa muito, pois trata-se de organizações com fins lucrativos, que possuem uma dupla relação com o mercado. Por um lado, precisam gerar faturamento por meio da venda de conteúdo à audiência (informação, entretenimento e serviços de informação). Por outro, servem de canal de comunicação mercadológica para que outras empresas divulguem a sua produção (anúncios). Nessa lógica, segundo McManus (1994) a eficiência produtiva é perseguida ao extremo, às vezes sacrificando a qualidade do conteúdo. O autor pontua que, no jornalismo orientado para o mercado, o valor-notícia, indicador do potencial jornalístico dos eventos, é medido em relação ao volume de vendas, não pela importância do fato para a sociedade.
Segundo Oliveira (2014), nas grandes corporações midiáticas adota-se o padrão de produção em grande escala, fazendo com que os veículos sejam muito parecidos, pois é mais viável economicamente comprar conteúdo do que manter uma produção própria. A questão é que as principais agências de notícias brasileiras pertencem a conglomerados privados de mídia, que também seguem essa lógica econômica. A notícia é produzida para o veículo principal do grupo, que decide para quais outros veículos vão distribuir e quais serão exclusivas de leitores assinantes (Oliveira, 2014). Esse gatekeeping se dá por razões comerciais, mas também econômicas e políticas, se atingir interesses de anunciantes e aliados.
Essas teorias são anteriores à internet, porém continuam válidas para o jornalismo digital. Se antes os sites vinham a reboque dos meios tradicionais e atuando como mídia complementar, hoje já não existe mais essa hierarquia. Ndzinisa et al. (2022) ressaltam que a mídia mainstream cada vez mais utiliza as redes sociais como fontes de informação e se apropria desses espaços para interagir com seus públicos.
Mas, a qualidade da informação que circula na rede é um problema. Tem sido muito comum a prática de pilhagem jornalística (Ferrari, 2014), quando captura-se matérias de outros veículos, inclusive da mídia mainstream, “costura-se” esses trechos e publica--se com aparência de conteúdo próprio. Um dos problemas das mídias independentes sempre foi seu caráter amadorístico, irregular e de qualidade jornalística questionável, contudo, à medida que o público em geral vai sendo incluído no universo digital, aprende a buscar informação mais confiável (Michel et al., 2015).
Uma evolução inquestionável trazida pelas mídias digitais é a agilidade, mas isso acabou criando o fenômeno denominado news flashpoints. Segundo Waisbord e Russel (2020), são períodos curtos em que um assunto ganha muito espaço na mídia, gerando fervor e mobilização. A tradução literal seria notícias em ponto de combustão, mas no Brasil, poderia ser traduzido pela gíria “bombar”. Os autores ressaltam que isso é uma característica do jornalismo online, intensificado pelas redes sociais, embaçando ainda mais a linha que separa o jornalismo profissional de novas formas de informação. Assim, os flashpoints não envolvem apenas as matérias jornalísticas, mas também várias narrativas sobre um evento, através das mais diversas plataformas. Acrescentam que é um processo caótico, na medida em que as maneiras de difusão de informações se entrelaçam e se retroalimentam. Há muitas vozes, mas elas constituem mais “barulho” do que a expressão de uma diversidade, pois não há compromisso com a qualidade ou com a verdade.
Waisbord e Russel (2020) destacam vários fatores que fazem uma notícia bombar. O primeiro é o valor-notícia. O questionamento a essa métrica é que considera o quanto o fato pode gerar audiência, não a sua relevância para a sociedade. Desse modo, um problema social relevante, mas que não seja interpretado pela mídia como noticiável, não receberá cobertura jornalística. O segundo fator é o ciclo da notícia, que difere do ciclo dos problemas sociais. Geralmente, o interesse do público por um evento caduca antes da solução daquele problema. Com a internet, esse ciclo está girando cada vez mais rápido. O terceiro fator é que o espaço que a mídia devota a determinado assunto depende da linha editorial do veículo, que por sua vez é determinada pela sua posição política. O último fator é o fenômeno do jornalismo orientado pelo mercado, que privilegia notícias leves e sensacionalistas (McManus, 1994).
3. Método
O estudo foi realizado sob a abordagem qualitativa, do tipo exploratório-descritiva, seguindo o desenho de análise de conteúdo. Conforme define Mayring (2000), trata-se de um processo controlado para se estudar tanto o conteúdo manifesto no material analisado, como também os aspectos formais e o significado latente, numa abordagem hermenêutica. O foco dessa técnica não se restringe à contagem de frequência de quantas vezes uma categoria aparece, mas também na compreensão do significado.
O corpus de análise consistiu de 318 matérias publicadas online, sendo 137 sobre a tragédia-crime da Samarco e 180 da Vale, escolhidas de um total de 3.121 matérias publicadas em sites de notícias, sendo 1.512 sobre o caso Samarco e 1.619 sobre o da Vale. No caso da Samarco, o período compreende desde o dia 5 de novembro de 2015, quando ocorreu a tragédia-crime, até o dia 7 de dezembro de 2016, após a Justiça Federal ter acatado a denúncia do Ministério Público Federal (MPF). No caso da Vale, o período vai do dia 25 de janeiro de 2019, dia da tragédia-crime, até 5 de fevereiro de 2022, pouco após o Ministério Público do Estado de Minas Gerais recorrer da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que transferiu o processo para a esfera federal, retornando-o à “estaca zero”.
O material foi coletado de sete sites brasileiros, sendo cinco autodefinidos como alternativos-independentes indicados por um expert em jornalismo digital brasileiro (Brasil 247, CartaCapital, Conversa Afiada, Nexo e Tijolaço) e dois dos maiores veículos do país, representando a mídia mainstream (Globo.com e UOL/Folha de S. Paulo). Para identificar as matérias, foram usados os próprios sistemas de busca dos sites, por meio dos termos “Samarco”, “Mariana” e “barragem” (combinados e separados) e “Vale”, “Brumadinho” e “barragem” (também combinados e separados). A escolha das matérias se deu por amostragem aleatória simples. As 3.121 matérias geradas pela busca foram numeradas e dessas foram sorteadas 375, com nível de confiança de 90% e margem de erro de 4%. Foram consideradas apenas matérias que tinham os crimes como assunto principal. Descartou-se matérias com texto idêntico, denotando serem cópias do conteúdo de agências de notícias, ainda que veiculadas em sites distintos, totalizando 318 textos.
A Tabela 1 exibe o número de matérias analisadas, de acordo com o veículo e a sua classificação (alternativa-independente ou mainstream).
Primeiramente, cada matéria foi dividida em unidades analíticas de conteúdo, (Mayring, 2000). As unidades usadas foram: título da matéria; material ilustrativo (fotos, desenhos, gráficos, etc.; legendas do material ilustrativo; chamadas e leads; e restante da matéria.
Em seguida, definiu-se as categorias de estudo, que constituem os aspectos centrais de interpretação e classificação, usando-se o procedimento de categorias dedutivas, que são previamente formuladas, geralmente com base no marco teórico da pesquisa (Mayring, 2000). Portanto, para este trabalho, as categorias foram a menção explícita (ou palavras relacionadas) a: homicídio corporativo; óbitos humanos; nomes das empresas envolvidas; externalidades negativas da mineração.
Para classificar o enquadramento, foram consideradas as expressões predominantes em cada unidade analítica, as informações utilizadas para compor o texto, as fontes ouvidas e as imagens dos materiais ilustrativos. Para conferir validade, outra pesquisadora foi chamada a classificar e, em seguida, comparou-se a sua classificação com a da autoria desta pesquisa. Houve divergências em cerca de 8% dos casos, que foram ajustados mediante argumentações de ambas as partes. Aqueles em que o enquadramento se manteve inconclusivo foram descartados da análise.
4. Análise dos Dados
A Samarco é uma empresa de capital fechado, pertencente à australiana BHP e à brasileira Vale, duas gigantes mundiais na produção de commodities minerais, indústria siderúrgica e logística. Em 2015, a empresa era a segunda maior produtora de minério de ferro do país (Departamento Nacional de Produção Mineral, 2016).
De acordo com o MPF (Ministério Público Federal, s.d.), o rompimento da barragem do Fundão, próximo à cidade histórica de Mariana, foi o maior do mundo envolvendo rejeitos de mineração. Matou 19 pessoas e contaminou toda a bacia do Rio Doce, alcançando o Oceano Atlântico. Em janeiro de 2016, a Polícia Federal indiciou criminalmente a Samarco, a Vale e a Vogbr (empresa responsável pela vistoria da barragem). Em outubro do mesmo ano, o MPF denunciou 21 pessoas por homicídios dolosos e crimes ambientais e as empresas Samarco, Vale e BHP por crimes ambientais. No mês seguinte, a Justiça Federal acatou a denúncia e instaurou ação penal. Até hoje ninguém foi julgado - dos 22 denunciados pelo MPF, apenas sete continuam como réus.
Já a Vale é a maior produtora de minério de ferro do mundo, operando em cerca de 30 países (Vale, s.d.). É uma organização com estrutura de propriedade piramidal (Morck, 2010), não tendo um dono majoritariamente representativo, ao ponto de se associar a imagem da empresa a essa pessoa ou entidade. Atualmente, apenas seis acionistas possuem mais de 5% das ações, sendo que a maior acionista possui cerca de 8%.
Em 25 de janeiro de 2019, ocorreu o rompimento da barragem de rejeitos da Mina do Feijão, município de Brumadinho, atingindo instalações da própria Vale e propriedades rurais, matando 272 pessoas. Foram responsabilizadas a própria companhia e a empresa alemã Tüv Süd, que emitiu o laudo de segurança da barragem. O crime passou a ser investigado pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (2022), que em 21 de janeiro de 2020 ajuizou denúncia contra 16 pessoas. No mês seguinte, a Justiça Estadual acatou a acusação e instaurou ação penal. Porém, em outubro de 2021 o Superior Tribunal de Justiça anulou o processo, que corria em âmbito estadual, por julgar que a esfera correta seria a federal. O Ministério Público do Estado de Minas Gerais recorreu dessa decisão no início de 2022 e, em junho do mesmo ano o Supremo Tribunal Federal acatou o recurso e o processo voltou a tramitar. Em novembro de 2021 a Vale S/A, a Tüv Süd e 19 executivos tinham sido indiciados pela Polícia Federal, reforçando a provável autoria e materialidade da ação criminosa.
Os dois fatos resultaram em grande comoção social e intensa cobertura midiática. A análise de conteúdo ora apresentada se estruturou em três eixos, conforme os objetivos específicos elencados na introdução deste artigo: frequência de noticiação, visibilidade das categorias de estudo e enquadramento (newsframing).
4.1. Frequência de Noticiação
A frequência foi calculada considerando-se o número de matérias por semana publicadas nos sites. Os gráficos (Figura 1 e Figura 2) mostram, respectivamente, a frequência de noticiação dos casos da Samarco e da Vale.
Estes dados podem divergir da frequência real, dependendo dos termos de busca utilizados e critérios de indexação dos repositórios dos portais estudados. Todavia, nota-se uma concentração da cobertura nos dias dos eventos e semanas imediatamente posteriores, observando-se depois uma queda brusca, revelando o fenômeno de news flash-points (Waisbord & Russel, 2020). Notam-se picos secundários. No caso da Samarco, são verificados entre meados de janeiro e meados de fevereiro de 2016, que coincidem com o indiciamento dos responsáveis pela Polícia Federal e com a denúncia do MPF e ulterior aceitação desta pela Justiça Federal, entre meados de outubro e meados de novembro de 2016. No caso da Vale, esses picos não se relacionam com o ciclo do processo, mas sim com os aniversários anuais da tragédia-crime, quando alguns veículos divulgaram notícias com teor sensacionalista.
Isso reforça a teoria de que o ciclo temporal da notícia é diferente dos ciclos judiciário e empresarial (Waisbord & Russel, 2020). O fato jornalístico requer impacto, novidade e um ritmo que nem a rotina dos tribunais, nem as decisões empresariais podem imprimir. Intencionalmente ou não, essa característica pode favorecer o fenômeno da espiral do silêncio na cobertura desses crimes (Noelle-Neumann, 1974).
4.2. Ênfase e Visibilidade do Crime Corporativo
Para a consecução deste objetivo, primeiramente as matérias foram tabuladas cruzando as unidades de conteúdo com as categorias de estudo. Os resultados dessa tabulação encontram-se nas Tabelas 2 e 3. Os números representam a frequência com que cada categoria de estudo (linhas) aparece em cada unidade analítica (colunas). O número fora dos parênteses significa o subtotal em cada unidade. Quanto aos números entre parênteses, o primeiro refere-se à mídia alternativa-independente e o segundo à mídia mainstream. Por exemplo, na primeira linha e primeira coluna da Tabela 2, o número 4 indica que a categoria homicídio foi citada quatro vezes em títulos de matérias, sendo três vezes por veículos alternativos-independentes e uma vez por veículo mainstream.
Em ambos os casos, percebe-se uma frequência significativamente menor das categorias “homicídio”, “óbitos” e “externalidades da mineração”. Mesmo os episódios tendo sido classificados como homicídios pelos órgãos de justiça, a expressão aparece de forma bem discreta. Cumpre salientar, porém, que a mídia alternativa-independente mostrou-se mais propensa a reportar o fato como homicídio, como pode-se verificar pela frequência. O número de vítimas fatais é a segunda categoria mais citada, mas observa-se que aparece mais na parte menos visível (o restante das matérias), ao passo que os nomes das empresas têm boa exposição em todas as unidades de análise. Intencional ou não, isso sugere uma neutralização do crime e seus resultados (Almond & Colover, 2010; Barak, 2015; Ruggiero, 2015).
A categoria “externalidades da mineração” é a grande ausente, corroborando com a tese de que os problemas estruturais ou não têm valor-notícia ou não interessam ao campo do grande capital (Waisbord & Russel, 2020). Todavia, cumpre registrar que essa categoria é mais citada pela mídia alternativa-independente, reforçando a importância de se ter um sistema midiático com diversidade de vozes.
Na unidade analítica “material ilustrativo”, é compreensível a ausência de imagens que remetem a homicídio ou a vítimas fatais, dado se tratar de conteúdo sensível. Porém, observa-se que os nomes das empresas aparecem nessa unidade com muita frequência. Na observação qualitativa, notou-se que, em geral, nas matérias em que o nome da empresa aparece na ilustração não são mencionadas as categorias “homicídio”, nem “óbitos”, o que dificulta associar as marcas ao feito criminoso.
Aliás, na maioria das matérias em que os nomes das empresas aparecem, a ênfase é em ações reparadoras, valor de mercado e impactos nas economias locais. Nas unidades analíticas mais visíveis, como o “título”, os nomes das empresas são dissociados das tragédias-crime, por meio de vários artifícios redacionais. Por exemplo, ao reportar a aceitação da denúncia do MPF pela Justiça Federal, o UOL/Folha de S. Paulo, de 18 de novembro 2016, atribuiu o seguinte título: “Justiça Acata Denúncia Contra 22 pessoas por Desastre em Mariana”.
O nome da empresa não é citado no título nem no lead, duas unidades com bastante visualização. Aparece apenas no restante da matéria. Chama a atenção o material ilustrativo - um infográfico que tem como destaque o título: “Mariana no Tribunal [ênfase adicionada]”, como se a “cidade” estivesse sendo julgada, não a empresa causadora da tragédia-crime.
Outros exemplos parecidos com esse foram: “Lama de Mariana (MG) Avança e Provoca Matança de Peixes [ênfase adcionada]” (UOL/Folha de S. Paulo, 16 de novembro de 2015); “Lama de Brumadinho Deve Alcançar Bacia do São Francisco em 15 Dias [ênfase adicionada]” (Brasil 247, 30 de janeiro de 2019).
Nos casos, pode-se interpretar que a “lama” é das cidades, não consequência dos crimes das empresas.
Outro aspecto a ser mencionado são as fontes ouvidas. Cerca de 59% são vozes das empresas e 22% dos atingidos. As falas destes, na sua quase totalidade, se referem a perdas pessoais e inconvenientes trazidos pelos rompimentos das barragens. Em apenas uma matéria, do site alternativo-independente Brasil 247, é retratado o Movimento dos Atingidos por Barragens, coletivo que milita pela solução dos problemas estruturais da mineração.
4.3. Enquadramento Noticioso: Newsframing e Newsmaking
Quanto ao gênero jornalístico, predominou a notícia curta (média de 294 palavras e 1,7 fontes mencionadas), totalizando 267 ocorrências nos dois casos combinados. O gênero opinião apareceu 29 vezes, sendo 22 na mídia alternativa-independente. A nota curta apareceu 18 vezes. Gêneros mais trabalhosos quase não apareceram, como a entrevista (três vezes) e a reportagem (uma vez). Interessante notar que essa ocorrência foi maior na mídia alternativa-independente. A título de exemplo, somente o site Brasil 247, no caso Vale/Brumadinho, de 38 matérias, 16 eram compradas de agências. Verificou-se também que muitos sites, inclusive da mídia mainstream, capturam materiais publicados em outros veículos, citando-os como fontes, “costuram” esses trechos e publicam com aparência de conteúdo próprio, configurando “pilhagem jornalística” (Ferrari, 2014). Isso denota um jornalismo muito mais focado no imediatismo do que no compromisso com a qualidade.
Quanto ao enquadramento, a contagem das frequências encontra-se nas Tabelas 4 e 5.
Percebe-se que o enquadramento predominante é como acidente. Nesses casos, mesmo mencionando-se a ocorrência de vítimas fatais e mencionando culpados, não é feita alusão explícita a homicídio. Isso suscita algumas considerações. Diferentemente do crime individual, principalmente o homicídio, em que o fato é noticiado como tal mesmo antes da identificação do suspeito, nos crimes corporativos há uma prudência e relutância em se noticiar dessa forma (Slingerland et al., 2006). São mais usados os termos acidente, tragédia ou desastre (Machin & Mayr, 2012). Não aparecem as palavras acusado, nem culpado, nem suspeito. Nos dois casos estudados, nem depois de o Ministério Público oferecer a denúncia e a Justiça acatar, os veículos usam essas expressões. Quando ocorre homicídio individual, essa classificação é praticamente automática. Observou-se que os veículos estudados, nas poucas vezes que mencionam crime ou homicídio, o fazem na voz de terceiros: “Colocar Refeitório na Rota da Lama Mostra Falta de Gestão de Risco, Diz Ex-ministra do Ambiente [ênfase adicionada]” (UOL/Folha de S. Paulo, 28 de janeiro de 2019); “Lula Sobre Crime da Vale: ‘Quando as Pessoas Só Pensam em Lucro, Elas Permitem Genocídios Como o que Ocorreu em Brumadinho’[ênfase adicionada]” (Brasil 247, 25 de janeiro de 2020).
É importante mencionar também o enquadramento como tragédia, sem fazer alusão explícita a homicídio corporativo. Foram 65 ocorrências nos dois casos. O destaque cabe ao site UOL/Folha de S. Paulo que, das 76 matérias sobre o caso Vale/Brumadinho, em 24 delas o veículo adota o estilo de storytelling, narrando dramas individuais de personagens atingidos, sem citar suspeição de crime corporativo ou abordar as externalidades negativas da mineração.
Por fim, verificou-se que muitos veículos enquadram as matérias dando voz às empresas, principalmente em partes mais visíveis, como o título e o lead. Na amostra analisada, foram identificadas 49 ocorrências desse tipo, sendo 48 da mídia mainstream, por exemplo: “BHP Billiton Lamenta ‘Tragédias’ em Encontro Anual da Empresa” (Globo.com, 19 de novembro de 2015); “Vale Tem que Ser Preservada, Diz Diretor da Companhia” (UOL/Folha de S. Paulo, 28 de janeiro 2019).
Essas ocorrências denotam a proximidade da mídia com as grandes empresas e o quanto a questão da imparcialidade precisa ser discutida.
5. Considerações Finais
Esta pesquisa teve como objetivo analisar como os sites de notícias brasileiros abordaram o conceito de homicídio corporativo nas tragédias-crime da Samarco e da Vale. No geral, os resultados revelam que os veículos adotaram uma abordagem que facilitou a neutralização e a ressignificação dos crimes, favorecendo as empresas. Não se verificou nenhum esforço consistente para mobilizar a opinião pública e cobrar dos órgãos de justiça a punição aos responsáveis. Pode-se dizer que o enquadramento, em geral, variou do neutro para o ângulo das acusadas, que ainda não foram julgadas e sequer cumpriram a determinação de remediar os danos causados.
Os atingidos pelas tragédias criminosas das barragens praticamente não tiveram voz na mídia. São em sua maioria camponeses pobres e povos tradicionais, cuja imagem é normalmente associada ao atraso, um estorvo ao desenvolvimento econômico. Isso reforça o que afirmam Quijano (1998) e Cavender e Miller (2013), sobre uma criminologia mais cultural, focada na vítima. A sociedade e a mídia, ao se omitirem de criminalizar as corporações responsáveis pelas tragédias-crime, praticamente transferem a culpa às próprias vítimas, como se coubesse exclusivamente a elas a responsabilidade pela sua condição, e não um modelo econômico escolhido pelo estado, que por sua vez acha-se sob o jugo do mercado.
Como observam Machin e Mayr (2012), o criminoso, na sociedade, é visto como o outro transgressor e essa imagem não se encaixa na representação do executivo, que incorpora os valores do capitalismo, tampouco da grande empresa, cuja função é produzir lucro para o acionista e girar a roda da economia. Portanto, a mídia é relutante em reportar as transgressões das empresas e alertar para os efeitos de uma economia que coloca os interesses do capital acima do bem comum.
O papel da mídia, nesse contexto, pode ser entendido nas palavras de Ruggiero (2015). Segundo o autor, na Grécia antiga, o termo “idiotes” se referia à pessoa que optava por viver em total privacidade, abstendo-se de tomar parte das atividades da esfera pública. Hoje, o termo se refere àqueles que auferem ganhos privados de qualquer atividade - lícita ou ilícita - achando que isso se reverte em benefícios para todos. A evolução da esfera política, infelizmente, tem levado cada vez mais ao surgimento de atores políticos que se enquadram nessa nova definição. “Idiotes, nesse caso, proliferarão e com eles as justificações para os crimes dos poderosos” (Ruggiero, 2015, p. 71).