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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.42  Braga dez. 2022  Epub 25-Fev-2023

https://doi.org/10.17231/comsoc.42(2022).4011 

Artigos Temáticos

Aparições Políticas de Sujeitos Figurantes em Imagens Fotojornalísticas de Chacinas em Duas Favelas do Rio de Janeiro

Ângela Cristina Salgueiro Marquesi  , Curadoria dos dados, metodologia, análise formal, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-2253-0374

Angie Biondiii  , Curadoria dos dados, metodologia, análise formal, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-0486-1081

Ana Paula da Rosaiii  , Curadoria dos dados, metodologia, análise formal, redação do rascunho original, redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-7461-2278

iPrograma de Pós-Graduação em Comunicação Social, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

ii Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens, Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, Brasil

iiiPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Brasil


Resumo

A partir de argumentos teórico-críticos advindos do campo da comunicação e da experiência estética, este texto privilegia a análise de um conjunto de fotografias jornalísticas sobre duas operações policiais realizadas no Rio de Janeiro: uma, no Complexo da Maré, em 2014, e a outra, no Jacarezinho, em 2021. Em todas as imagens notamos que os moradores aparecem como figurantes que atravessam o campo de ação dos agentes de segurança em operações, em geral, midiatizadas. O exercício de análise observa que as aparições dos figurantes acabam por desestabilizar os enquadramentos biopolíticos do fotojornalismo que tentam impedir a percepção e apreensão de sujeitos e formas de vida desconsideradas por condições de reconhecimento hierarquizantes e assimétricas. Assim, refletimos como as condições de visibilidade do contexto jornalístico podem ser alteradas pela presença e pelas aparições de pessoas comuns na imagem fotográfica, advindas pela própria presença dos corpos e das pessoas em seus afazeres cotidianos, pelos gestos e olhares, pelas reações não previstas e que, uma vez registradas, interferem no regime enunciativo das imagens. O texto revela, por fim, como a potência política e estética das aparições nas figurações pode ressaltar as nuances entre o visível e legível, permitindo a abertura de uma fratura nos dispositivos acionados para ler uma determinada situação, corporeidades e gestualidades nas imagens.

Palavras-chave: fotojornalismo; figurantes; aparição política; operação policial; favelas brasileiras

Abstract

Based on theoretical-critical arguments from the field of communication and aesthetic experience, this text analyzes a set of journalistic photographs about two police operations in Rio de Janeiro, one at Complexo da Maré in 2014 and the other at Jacarezinho in 2021. In all the images, we noted that the residents appear as extras in the field of action of security agents in operations generally mediatized. The analysis exercise observed that apparitions of the extra end up destabilizing the biopolitical frameworks of photojournalism, which try to prevent the perception and apprehension of subjects and ways of life disregarded by hierarchical and asymmetric recognition conditions. Thus, we reflect on how the visibility conditions of the journalistic context can be altered by the presence and apparitions of ordinary people in photographic images, coming from the presence of bodies and people in their daily chores, through gestures and glances, and unpredicted reactions which, once registered, interfere in the images’ enunciative regime. Finally, the text reveals how the political and aesthetic power of the appearances in the figurations can highlight the nuances between the visible and the readable, allowing the opening of a fracture in the devices activated to read a certain situation, corporealities, and gestures in the images.

Keywords: photojournalism; extra actors; political appearance; police operation; Brazilian favelas

1. Introdução

Neste texto, nos dedicamos a pensar a condição de visibilidade e de figuração das vidas vulneráveis em imagens fotojornalísticas que registram operações policiais em comunidades brasileiras, especificamente, aquelas seguidas de mortes de civis, descritas como chacinas, as quais entendemos como parte de conflitos midiatizados com envolvimento policial, ocorridas em territórios urbanos periféricos. Para tanto, observamos as imagens fotojornalísticas produzidas em operações policiais realizadas em duas favelas do Rio de Janeiro, nos anos de 2014 e 2021.

A figuração das vidas vulneráveis nessas imagens nos remete para a compreensão de que o cerne do debate não está na exibição da imagem em si, mas na midiatização dos conflitos a que se reporta (Hjarvard & Mortensen, 2015). Isto porque a midiatização põe em curso novas dinâmicas que se fundam e se reatualizam, inclusive as que dizem respeito à fabulação humana. As tecnologias e os aparatos atravessam e interferem nestas processualidades e na possibilidade de exclusão de uma narrativa feita. Por outro lado, há mais vozes, mais espaço para contradiscursos, para subversões e para tentativas (Rosa, 2020).

Neste texto, as operações policiais realizadas em comunidades do Rio de Janeiro foram atravessadas por imagens e instituídas por processos midiatizados tendo sua dinâmica constituída por operações de natureza paradoxal de dar a ver/apagar, valorizar/excluir, pôr a circular/repetir, fixar/restringir, e, assim, não mais restrita ao plano das ações práticas, mas ao plano da midiatização de um imaginário que se tece entre a vida que não merece viver e a vida que não merece ser vista. Argumentamos, ainda, que as condições de visibilidade também podem ser alteradas pela presença e pelas aparições de pessoas comuns na imagem fotográfica. De modo que tais condições são modificadas pela própria presença dos corpos e das pessoas em seus afazeres cotidianos, pelos gestos e olhares, pelas reações não previstas e que, uma vez registradas, interferem no regime enunciativo das imagens.

A nosso ver, a aparição dos figurantes nas imagens de operações policiais pode atuar como forma de contra-agenciamento, de criação de intervalos e fraturas no discurso necropolítico1 para a emergência de maneiras mais reflexivas de olhar, mais lentas e questionadoras. Enquanto sujeitos espectadores deste tipo de imagens somos instados a levantar perguntas: quem são essas pessoas? Não têm medo dessa exposição à violência? Como sobrevivem nessas condições? Isso porque observamos que os figurantes têm uma presença concreta nas imagens constituindo uma cena propriamente dita: oscilam entre a roteirização que conduz sua ação e a captação de um momento qualquer de sua rotina atravessada pela brutalidade impositiva da polícia. Assim, a escolha das aparições com potência política merece ser destacada em um trabalho de análise que põe essas fotografias em primeiro plano.

Nas imagens, “ver” os figurantes em cena envolve captar os relances gestuais, corporais e de olhar que se configuram em fração de segundos e que são registrados nas fotos, muitas vezes, não intencionalmente. Partimos do pressuposto de que tais aparições (mises en scène) permitem um atravessamento entre as diferentes realidades (vividas e fotografadas), bem como rompem com certos enquadramentos do fotojornalismo, muitas vezes, de teor biopolítico, que tentam impedir a percepção e apreensão de sujeitos e formas de vida desconsideradas por condições de reconhecimento hierarquizantes e assimétricas. Tais aparições, enfim, “colocam em xeque esquemas normativos e contestam hegemonias” (Butler, 2009/2015, p. 167).

A potência política/estética dos figurantes está em suas diferentes formas de aparição e na potência das figurações - e desfigurações -, que são produzidas pelos enquadramentos jornalísticos tradicionais e seus sentidos pré-estabelecidos. A potência política e estética das aparições nas figurações pode ressaltar as nuances entre o visível e legível, sendo a legibilidade vinculada aos dispositivos que são acionados para ler uma determinada situação, corpos e gestualidades nas imagens.

A partir de argumentos teórico-críticos advindos do campo da comunicação e da experiência estética, o texto privilegia a análise de um conjunto de fotografias jornalísticas sobre duas operações policiais no Rio de Janeiro: uma na qual policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil atuam ostensivamente no Complexo da Maré, no momento de instalação das Unidades de Polícia Pacificadora no local, em 2014. E, a outra, ocorrida na comunidade de Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em maio de 2021. As fotografias foram produzidas tanto por profissionais de grandes agências de notícias internacionais como Reuters e Agence France-Presse, quanto por fotógrafos independentes, como o brasileiro Leonardo Wen.

2. A Figuração e os Figurantes: Formas de Resistência nas Imagens

No campo das imagens há uma vasta literatura que discute acerca da representação fotográfica e o modo como, em geral, ela oferece, por meio de seu enquadramento e de esquemas classificatórios, uma instrução fornecida pelas obras para que o espectador possa experimentar a indignação, o assombro, a contestação da injustiça, o compadecimento ou mesmo o horror (Picado, 2020; Schaeffer, 1987/1996; Tagg, 1988). Mesmo tributária de certa convenção moderna acerca do valor de verdade ou verossimilhança da prática fotográfica que restituiria a um contexto, como o jornalístico, certo status documental ou informativo, é a própria imagem que, muitas vezes, apresenta elementos que parecem romper com as normas contextuais regulamentadas culturalmente. Ainda que certas regras normativas regidas por estratégias comunicacionais e midiatizadas tentem delimitar os campos da recepção de imagens fotográficas, muitas vezes, são as próprias fotos, em sua instância material e concreta, que interrogam e atravessam os contextos nos quais são colocadas dirigindo-se ao ver como experiência potencializada.

As ordens de experiência que obtemos da percepção de fotografias (informativas, afetivas, plásticas, narrativas, dentre tantas) não são conferidas pelo mero acontecimento físico da impressão do mundo luminoso sobre uma superfície sensível: sem a mediação das estruturas conceituais e intencionais que instanciam essas mesmas qualidades perceptivas na experiência, não haverá nenhum sentido humano, lógico ou estético a partir do qual possamos dizer que “vemos-através” de fotografias aquilo que elas contêm. Para quem ainda não entendeu até aqui, a indexicalidade fotográfica é, mui simplesmente, um fenômeno de significação e não um acontecimento “natural”. (Picado, 2020, p. 184)

Segundo Rancière (2003/2012), há imagens que permitem outro modo de apreensão da realidade e, portanto, de interpelação do olhar. Para ele, trata-se de uma operação de figuração, e que pode ser tematizada quando a imagem se torna capaz de interromper o mecanismo explicativo da representação que tende a uma consensualidade. Enquanto a representação tende a imobilizar e fixar os sujeitos retratados em categorias que os definem e os submetem, a figuração revela o quão difícil (e mesmo impossível) é reter os sujeitos e a complexidade de suas experiências em uma imagem ou obra.

Na figuração, o sujeito tem que escapar à nossa tentativa incessante de tudo categorizar, avaliar, julgar e submeter ao já familiar: ele deve permanecer estranho, infamiliar e, por isso mesmo, inquietante. A figuração escapa ao pressuposto de que há uma relação necessária de causa-efeito entre o que a obra mostra e a recepção do espectador, ou ainda, que a intenção do artista vai provocar uma mudança repentina e profunda nos quadros de sentido que orientam a percepção de mundo do espectador (Rancière, 2003/2012).

A figuração permite entrever as operações que influenciam na interpretação daquilo que vemos, enquanto a representação escamoteia os mecanismos que tornam possível sua aproximação de um real. Certa continuidade imediata entre o conteúdo vinculado pela obra e a interpretação, previamente determinada do receptor, é rompida pela figuração, pois ela perturba a crença em uma extensão direta entre os conteúdos de determinada imagem e as formas do pensamento sensível que se estabelecem na recepção como se houvesse um roteiro previamente estabelecido de leitura, interpretação e posicionamento diante das imagens ao qual nos acostumamos seguir como a um modelo.

Esse tratamento sequencial e linear de ver, ler e interpretar imagens, de certa maneira, replica um padrão que reforça certa sensibilidade moderna ainda coligada ao tratamento das imagens na cultura ocidentalizada, como advertido por Susan Sontag (2003/2003). Ela afirma que a profusão e a circulação de fotografias que retratam certos sujeitos capturados, feridos, mutilados, baleados ou mortos compõem uma

praxe jornalística, que é herdeira do costume secular de exibir seres humanos exóticos - ou seja, colonizados: africanos e habitantes de remotos países da Ásia foram mostrados como animais de zoológico, em exposições etnológicas montadas em Londres, Paris e outras capitais europeias, desde o século XVI até o início do XX. (Sontag, 2003/2003, p. 62)

O que está em jogo na figuração é, contrariamente, a ruptura com este quadro contextualizado; é a promoção de outra forma de estruturação do “pensável”, envolvendo a alteração de um regime de percepção, leitura e escuta por meio do qual elementos diversos se justapõem e se atritam de modo a permitir um deslocamento de posição em relação ao modo como apreendemos, percebemos e respondemos às demandas do outro e aos eventos do mundo.

Deste modo, a figuração não se confunde com uma cópia ou reprodução do real, mas apresenta um modo de compreensão da imagem, do sujeito e do texto que escapa ao pressuposto de que há uma relação necessária de causa-efeito entre o que a imagem mostra e a recepção do espectador, ou que a intenção do artista vai provocar uma mudança repentina e profunda nos quadros de sentido que orientam a percepção de mundo do espectador (Rancière, 2008). De modo amplo, parece que Rancière (2019) está interessado em como as imagens podem fazer pensar acerca de um reposicionamento dos corpos, de um deslocamento de avaliações muito apressadas e de julgamentos fundados em preconceitos: como produzir deslocamentos, rachaduras e fissuras nos modos naturalizados de apreensão e explicação dos eventos? Essa é uma questão que também interessa a essa pesquisa; haveria uma forma de analisar imagens que pudesse ir além de uma apreensão rápida e pautada pelo já dado, pelo comumente aceito como válido? “Qual tipo de operação vai mudar a distribuição do visível e do pensável?” (Rancière, 2019, p. 50).

Para desmontar a máquina de explicação do visível e do pensável é preciso desacelerar e deslocar o olhar, segundo Rancière (2018). E isso pode ocorrer quando fabulamos junto com as imagens e a partir delas. A fabulação pode ser entendida como a produção de novos enunciados a partir da ativação de outro imaginário que desafia e interpela um imaginário hegemônico, evidenciando incoerências, excessos e injustiças das representações hierarquizantes. A fabulação precisa da ficção para alterar o modo como temporalidades distintas são articuladas reverberando nas formas como são apreendidas e reconhecidas. Um dos gestos principais da fabulação é interpelar as imagens de maneira mais demorada, desconfiando do modo como as representações tendem a apresentar, ao mesmo tempo, os conflitos e as soluções pacificadas.

A figuração tem centralidade na reflexão de Rancière (2018) acerca da desmontagem das explicações previsíveis do mundo. Segundo ele, a invenção que a arte promove pelo deslocamento das maneiras habituais de ler e entender o mundo é semente da criação de um outro imaginário, de outras chaves de leitura e compreensão ativadas pela recusa da hierarquia e das desigualdades entre tempos, espaços e existências. Há uma narrativa ficcional posta pelas imagens que, ao se desenvolver não como encadeamento de tempos, mas como relação e coexistência entre lugares e suas múltiplas possibilidades de realização, produz um trabalho dissensual que marca a criação de cenas de ruptura.

A fabulação ficcional produz figurações a partir da dialetização da visualidade de imagens marcadas por uma condução interpretativa em direção a julgamentos morais e à reafirmação de valores legitimados. No trabalho recente de Rancière (2018, 2019), as operações que constituem as imagens se dedicam a explorar uma tensão entre a realidade e as “aparências”: lembrando que aparência não se restringe à superfície, mas abrange os modos de tornar legível e inteligível. É na exploração desse processo que conseguimos distinguir brechas e intervalos que permitem as reconfigurações e deslocamentos necessários ao olhar e à interpretação.

Assim, essa operação intervalar das imagens cria figurações que desafiam o modo hierárquico de apresentação da realidade deslocando o olhar e rearranjando a legibilidade do enunciado das imagens. A tensão entre imagens representativas e imagens estéticas não é uma relação polarizada, em que uma deve “eliminar” a outra. Não se trata de eliminar a representação como operação de trabalho que dá forma ao visível, mas de produzir e manter uma distância da compreensão dos acontecimentos como matéria inerte, à espera de algo externo que os organizem.

Uma imagem é um composto de vários elementos heterogêneos que, articulados, alcançam uma ressonância de modo a configurar outros sentidos do possível (Calderón, 2020). Ao deslocarmos o olhar do sentido denotativo da imagem é possível olhar para a imagem e perceber a figuração dos sujeitos; sua existência como seres humanos submetidos à dor. Sofrimento e precariedade já pressupõe o estabelecimento de possibilidades imaginativas, também alcançada (apesar de não só) pela cor e pela presença da figura humana nas fotos.

Na abordagem estética que Didi-Huberman (2012) faz dos povos expostos e de sua relação com a figuração, ele traz um questionamento acerca das opacidades criadas pela constante localização desses povos no jogo entre a aparição e a desaparição. Sua reflexão busca evidenciar como a figuração se conecta com a emergência do povo como um sujeito político nas imagens.

Em um sentido complementar à discussão empenhada por Rancière (2018) acerca do aparecimento dos povos associamos as considerações que Didi-Huberman (2016a) faz acerca do entendimento do figurante como sujeito político digno, revelando que o figurante não é somente aquele que oscila entre a sobre-exposição e a subexposição (luz ofuscante e ausência de luz), nem tampouco aquele que merece visibilidade e voz. O figurante como sujeito político tem o poder de recriar a cena sensível na qual se inventam modos de ser, ver e dizer, promovendo novas formas de enunciação coletiva. Ele modifica o regime enunciativo da imagem porque aparece por meio de outro léxico, outra linguagem: a linguagem própria do eu, do vivido, e da própria experiência.

Assim, o figurante que emerge na figuração promove uma ambiguidade, uma abertura na imagem. Ao mesmo tempo que é relegado ou desvalorizado pela narrativa, o figurante se impõe como presença plástica, performativa, expondo uma corporeidade reveladora de determinado contexto e experiência situada, dotado, portanto, de uma potência capaz de desestabilizar a significação interna que certo enquadramento procurou elaborar previamente.

Um figurante emerge em uma figuração que permite aparições resistentes e potências críticas no confronto com estereótipos e a identificação/exposição das singularidades e histórias dos “povos fadados a desaparecer” (Didi-Huberman, 2012, p. 206). Ele traz, pois, outro léxico dos corpos, rostos, gestos, trejeitos, presenças intimidadoras (vultos, sombras, corpos adoecidos, marcados, fantasmáticos), alterando linguajares e enunciados.

Na primeira fotografia (Operação Policial que Matou 28 no Rio de Janeiro Desrespeitou Decisões do STF, Consultor Jurídico, 7 de maio de 2021)2 notamos que a aparição do figurante promove desvios: sua presença subverte o estatuto atribuído a um povo, desvia a ênfase narrativa, promove outra experiência do ver. A singularidade do figurante e de sua agência está muito ligada ao corpo, ao rosto e à marca única da experiência dos sujeitos que fazem figuração. A apreensão sensível do figurante proposta por Didi-Huberman (2016a) considera não só a dialética entre o aparecer/desaparecer, mas procura ver o figurante em sua corporeidade, em sua presença plástica e performativa, articulando a singularidade de sua forma na imagem com a potência política de seu devir.

O figurante e seu agenciamento estético e político interfere fortemente no regime expressivo da imagem e em seu dispositivo de poder, porque mesmo não sendo protagonista, ele também produz agenciamentos. É possível dizer que quando pessoas comuns aparecem como figurantes, escapam, frequentemente, à roteirização da cena: por mais que esteja atado aos códigos cenográficos instaurados pela ação que se desenvolve situacionalmente, ele tem uma margem de escape, de projeção de sua individualidade (Veras, 2017). Observamos que quando a legenda confere ênfase à ação dos policiais são eles mesmos os supostos protagonistas, porque executam a ação, põem em movimento o acontecimento central enfatizado pelo contexto informativo, ainda que, na imagem, sejam retratados em posturas e expressões mais estáticas. Contrariamente, são os civis-figurantes (com seus corpos e expressões) que movimentam a cena suscitando certa comoção e deslocando legibilidades e possíveis interpretações dos episódios (“A Operação Policial no Rio de Janeiro e o Contexto do Tráfico de Drogas”, The Eagle View, 8 de maio de 2021)3.

Ao pensar os figurantes a partir do modo como seus rostos e corpos se singularizam em cena, seja de modo individualizado, como na segunda fotografia (“A Operação Policial no Rio de Janeiro e o Contexto do Tráfico de Drogas”, The Eagle View, 8 de maio de 2021), ou coletivo, como na primeira fotografia (Operação Policial que Matou 28 no Rio de Janeiro Desrespeitou Decisões do STF, Consultor Jurídico, 7 de maio de 2021) percebemos que o figurante pode ser apreendido como o aparecimento de um corpo com potência política disruptiva que precisa ser revelada e analisada a partir de outros enquadramentos. Contudo, não se pode apreender a singularidade da aparição dos figurantes sem perder de vista que as imagens são inseridas em uma estrutura narrativa, em um dispositivo distinto de produção e circulação. Não se pode desconsiderar a economia interna dos procedimentos de elaboração das imagens, seu projeto político, estético, ético e sua engrenagem. Nesse sentido, cada imagem e cada veículo vai promover aparições distintas dos sujeitos figurantes e isso impacta em como sua noção vai ser construída. Assim, a aparição também obedece a critérios que pautam a realização e modos de endereçamento das imagens.

Neste contexto, é importante frisar o quanto é relevante pensar no desencaixe entre o figurante e o lugar que a imagem prepara para ele. É preciso evidenciar as modalidades de inserção do figurante na ficção. Esse desencaixe não compromete a potência política da imagem, pois o real se apresenta diante de nós sempre desajustadamente, em descompasso com aquilo que os enquadramentos escolhem mostrar.

3. Desviar o Olhar, Torná-lo Sensível

Argumentamos, com Didi-Huberman (2012), que a imagem pode tornar sensível, ou seja, pode tornar acessível uma dimensão das formas de vida precárias que geralmente não são dadas a ver na superfície das imagens representativas. Essa proposta de “dialetizar o visível”, como ele nomeia, visa olhar as imagens “outramente, introduzir a divisão e o movimento a elas associados, a emoção e o pensamento conjugados. Esfregar os olhos, em suma: esfregar, friccionar a representação com o afeto, o ideal com o reprimido, o sublimado com o sintomático” (Didi-Huberman, 2016a, p. 405). Aqui nos interessa essa operação de dialetizar e deslocar a representação, lançando perguntas às imagens, demorando-nos em sua contemplação e produzindo, nesse gesto, novos enquadramentos e possibilidades interpretativas.

O gesto de “dialetizar o visível” destaca a “potência de legibilidade dos acontecimentos sensíveis” (Didi-Huberman, 2016b, p. 67) através das imagens; a potência de tornar legível a dialética de uma falha, de algo que foi reprimido, de uma vida que foi desumanizada e silenciada. Tal dialética se configura porque as imagens podem “tornar sensíveis e legíveis as falhas, os lugares e os momentos por meios dos quais os povos, ao declararem sua impotência, afirmam, ao mesmo tempo, o que lhes falta e o que desejam” (Didi-Huberman, 2016a, p. 422).

O autor articula e combina dois gestos estético-políticos importantes: dialetizar o visível e tornar sensível. Este último significa tornar acessível aquilo que os sentidos e inteligências nem sempre conseguem “ler” ou conferir sentido, permanecendo como indício ou resto, algo que é geralmente desconsiderado pelo olhar. Mas tornar sensível também significa passar a considerar algo que escapava, sobretudo algo que não era “legível” acerca da vida dos povos e de sua história.

Assim, Rancière (2019) e Didi-Huberman (2016b, 2004/2020) possuem o interesse comum em evidenciar como as imagens, dialeticamente, tornam sensíveis - acessíveis, legíveis e dignas de consideração - a vida e a sobrevivência dos povos, ao mesmo tempo em que elas declaram a impotência dos oprimidos em situações que os expõem à violência, silenciamento e, por isso, demandam formas de acolhimento, consideração e hospitalidade.

Tornar sensível e dialetizar o visível são trabalhos que a imagem pode realizar de maneira complementar. No lugar de discursos de causalidade e apagamento das sutilezas e texturas das experiências, essas operações auxiliam a encontrar os elementos da imagem que permitem produzir figuração através de uma aproximação, um avizinhamento mais demorado entre espectador e alteridade. Imagens de avizinhamento (interpelação pelo olhar direto para a objetiva, por exemplo) despertam, no espectador, novos modos de percepção da imagem, dos corpos e das múltiplas espacialidades e temporalidades da cena a partir da qual figuram e se erguem, dialeticamente e dissensualmente, os rostos que nos interpelam.

Sob esse aspecto, tornar sensível é também desarmar o olhar e fazer trabalhar o saber imaginativo, potencializando a imaginação diante da “maquinaria de desimaginação” (Didi-Huberman, 2004/2020, p. 34). A dialetização do visível é, portanto, um processo que exige a interpelação constante do espectador, que requer imaginação, olhar contemplativo, posicionado contra o apagamento.

Segundo Rancière (2003/2012, 2019), a imagem como operação faz trabalhar um saber que escapa ao prescritivo e ao representativo até alcançar uma dimensão imaginativa que redefine visibilidades e legibilidades. A fabulação das imagens está ligada à ficção e ao tipo de experiência emancipada que emerge na narrativa ficcional que mistura temporalidades e espacialidades de maneira desierarquizada.

Como vimos, “aparecer” é uma ação que possui, para Rancière (2018, 2019) e Didi-Huberman (2016a, 2016b), o sentido de um momento de dissenso, assimetria, deslocamento que produz intervalos e, a partir disso, podemos perceber as disparidades, tensões e fraturas que permaneciam ocultas sob o manto do registro representativo, causal e hierárquico. Se no regime representativo a eficácia era identificada com uma continuidade, uma narrativa causalmente articulada (e onde a imagem estava destinada a intensificar a potência dessa ação), no regime estético, o trabalho da imagem se associa à produção de intervalos, de descontinuidades que impossibilitam uma roteirização da experiência de contato com as obras (Rancière, 2003/2012). A indeterminação, a impossibilidade de fixar seu destino e sua significação, impede que as imagens sejam a mera expressão de uma situação ou de um acontecimento determinado (“A Ocupação da Maré”, El País, 30 de março de 2014)4.

Tornar sensível a existência de povos vulneráveis é, a nosso ver, figurar sua existência, indo além da representação de modo a conferir dignidade e hospitalidade. A figuração faz emergir os sujeitos figurantes em seu embate com a morte: torna-os sensíveis (visíveis, apreensíveis e legíveis) ao mesmo tempo que nos torna sensíveis a eles, deslocando-nos da compaixão para a comoção. Didi-Huberman (2016a) nos convida a cultivar percepções dialéticas acerca da história e da maneira como povos são representados em narrativas documentais. Para ele, a própria ausência de poder de um povo pode ser tornada sensível, ou seja, pode ser pensada criticamente através dos afetos que mobiliza.

4. O Aparecer do Rosto Como Escuta ao Apelo Pela Vida

O olhar do figurante, seu corpo, seu rosto e sua presença nos tornam sensíveis, nos afetam e, portanto, nos tornam “responsáveis” por eles, no sentido de prover uma resposta a essa interpelação. Podemos mencionar a noção de rosto (clamor ético, apelo, voz) em Lévinas (1999) e Butler (2004, 2009/2015, 2015/2018). Em Lévinas (1999), o rosto não se confunde com a face humana e não se reduz a ela. Não se trata tampouco de um diálogo verbal explícito, mas de um dizer que nos vincula à alteridade. Para ele, o rosto que dá acesso ao mundo do outro não é passível de ser escrutinizado e resiste aos esforços de aproximação e apropriação. Esse autor revela o rosto como potência de contato com a alteridade. O rosto marca, nessa perspectiva, uma relação de abertura, uma forma de diálogo em que um não possui o outro, nem tampouco se reconhece nele. Os textos de Lévinas (1999) aproximam o rosto do gesto de acolhimento, enfatizando a proximidade e abertura ética à interpelação endereçada pelo outro.

Segundo a leitura que Didi-Huberman (2016a) faz de Lévinas, a abertura incondicional ao outro define o rosto como encontro que expõe a diferença, a impossibilidade de reduzir o outro ao mesmo, de submetê-lo ao desejo de significá-lo e nomeá-lo. Citando Lévinas, Didi-Huberman (2016a) afirma que a figuração de sujeitos e povos confere-lhes dignidade e respeito “a partir da dialética entre a experiência ética (sempre singular) que preserva o rosto; e a experiência normativa, da lei, que apaga o apelo que o rosto faz à responsabilidade moral de todos” (p. 440).

Lévinas (1999) não percebe o rosto como imagem representativa do sujeito, mas deseja mostrar sua “aparição”, por isso, afirma que o rosto possui uma visibilidade que só é apreendida pelo olhar, na qual o outro que me olha é aquele que me revela. O olhar é parte integrante da manifestação e aparição de outrem. Nesse sentido, a emergência do rosto como imagem fixa nas fotografias nos convida a perscrutar, a olhar o rosto e o corpo do outro, revelando a imagem como importante suporte de acesso ao outro e à sua aparência, seu aparecer.

A emergência do rosto na imagem desloca o espectador de uma posição geral, do seu lugar inscrito, para ser o sujeito singular deste olhar. O olhar interpela e, ao mesmo tempo, se oferece em uma sensibilidade diferenciada das fotografias protocolares, tão bem inscritas na tradição do fotojornalismo, para se pôr como uma pequena variação da percepção diante do que se mostra estranho ou intolerável (Marques & Souza, 2018). Respondemos à convocação deste olhar, participamos, ainda que desconfortáveis, do movimento que ele provoca. Coabitamos, mesmo por um breve momento, do padecimento que parece afligir os sujeitos capturados pela imagem. Por este olhar, coexistimos o entretempo em que uma vida individual enfrenta a precariedade universal. O aparecer do rosto na imagem rompe com certa estrutura que conforma uma espécie de “expectativa do ver” coligada a um repertório visual a que se recorre para apresentar sofredores e seus tormentos.

Tornar sensível não se restringe à visibilidade, mas implica modificar formas de sensibilidade que envolvem atenção, classificação e percepção das diferenças envolvidas nas relações intersubjetivas. A aparição dos povos envolve a constante negociação em torno de um imaginário coletivo, a produção de um comum, de uma semântica que permita nomear injustiças e criar outros desenhos para a ação. Para Didi-Huberman (2016b), um povo se define por sua agência, pelos sentidos que atribuímos a ela, de modo a perceber uma coletividade dotada de valor, de valência normativa, ética e estética (“A Ocupação da Maré”, El País, 30 de março de 2014)5.

Um sujeito político aparece através de um processo de dialetização, de problematização e agência que envolve interferir nos imaginários políticos definidores de um comum. A aparição de figurantes revela os sintomas, torna visíveis os lampejos benjaminianos que interrompem o continuum da história protagonizada pelas forças do estado. O lampejo produzido pela presença dos figurantes nas imagens mostra que o sofrimento está sendo apagado em prol das estratégias e dispositivos de gestão e controle dos corpos, atuando contra esse apagamento, trazendo outra luminosidade para sensibilizar o olhar para a dor da alteridade. Mas os lampejos também mostram resistências e respostas à violência da imagem.

Muitas vezes, os civis-figurantes aparecem desfocados, espectralizados, fluidos. Essa operação pode tanto mostrar o apagamento das vidas fantasmáticas e desvalorizadas pela política de morte, como pode trazer a reafirmação da impossibilidade de captura das formas de vida: de tais figurantes serem nomeados, aprisionados em fórmulas prontas de fabricação de formas de vida disciplinadas pela governamentalidade institucional. A aparição dos espectros e sua presença constante na ação política de povos precários dificulta o esquecimento, ajudando a combater a imobilização no espetáculo do terror, da interdição e da morte. Assim, a espectralidade pode ser uma forma de consideração (“A Ocupação da Maré”, El País, 30 de março de 2014)6.

As pessoas que habitam na comunidade, ainda que tenham suas casas e territórios constantemente ocupados e/ou invadidos pelas forças policiais, demonstram que não se restringem à passividade e aceitação. Na fotografia presente na notícia ONU Se Diz ‘Perturbada’ com Chacina no Jacarezinho (Ansa Brasil, 7 de maio de 2021)7, em protesto, uma mulher se volta à câmera, contrária à direção da caminhada, e levanta o dedo médio, registrado na fotografia. Enquanto um grupo de moradores acompanha a marcha dos policiais armados, a mulher se volta ao olhar do fotógrafo e, consciente do flagra, exibe sua insatisfação à cena da operação em andamento.

Aqui, poderíamos pensar na possibilidade de as pessoas fotografadas retomarem a agência confiscada por um registro do sofrimento que, segundo Susan Sontag (2003/2003), tende a neutralizar sua revolta e sua ira ao nos olhar de volta:

a exibição, em fotos, de crueldades infligidas a pessoas de pele mais escura, em países exóticos, continua a promover o mesmo espetáculo, esquecida das ponderações que impedem essa exposição quando se trata de nossas próprias vítimas da violência, pois o outro, mesmo quando não se trata de um inimigo, só é visto como alguém para ser visto, e não como alguém (como nós) que também vê. (Sontag, 2003/2003, p. 63)

O trabalho da imagem é, como diz Didi-Huberman (2012, 2016a), fazer figurar o que está reprimido nas representações tradicionais e que não se relaciona apenas com a invisibilidade, mas com o apagamento do sintoma, a tentativa de reprimir os lampejos que têm como reconfigurar o espaço e o tempo, interferindo naquilo que pode ser visto, nomeado, sentido. Segundo Butler (2009/2015), “a fotografia não é simplesmente uma imagem visual à espera de interpretação; ela mesma está interpretando ativamente” (p. 110). A presença dos figurantes e de seus gestos não roteirizados ou não previstos interrompe a repetição de enquadramentos que confiscam os enunciados e as enunciações àqueles que sofrem (ONU Se Diz ‘Perturbada’ com Chacina no Jacarezinho, Ansa Brasil, 7 de maio de 2021). A fabulação permitida por esse desvio produz intervalos a partir dos quais o contexto de registro e o processo de circulação nos interpelam acerca do jogo aberto pelos diferentes regimes de visibilidade colocados em tensão pela fotografia.

5. Lampejos que Figuram Vidas e que Flertam com a Morte nas Imagens

O lampejo do sujeito figurante retira seu dizer do décor da paisagem: por mais que o corpo esteja retido sob o choque do controle, a corporeidade faz ecoar o gesto e o som das vidas que precisam resistir contra a violência, a barbárie e o esquecimento por meio da construção precária de uma memória ética corporificada. A figuração e a aparição do figurante bagunçam dados probabilísticos e expectativas, como um inesperado não-narrativo: elas podem trazer de volta o lampejo ou mesmo produzi-lo. Um figurante pode ser “arrancado” da causalidade histórica, entre o silenciamento da desfiguração e a voz do rosto.

Essa operação que consiste em arrancar o figurante da representação causal do acontecimento possui uma performatividade que atua sobre imaginários normativos e interfere em sua reconfiguração. O poder dos sujeitos figurantes faz algo sobre o mundo legitimamente percebido como comum, e interfere na matriz de significações que torna algumas práticas legíveis e aceitas.

Fazer figurar o sujeito figurante e não apagar o sintoma é o que permite que o lampejo atue sobre a definição da inteligibilidade da história, das aparências e aparições dos povos que declaram suas vulnerabilidades, ao mesmo tempo que produzem a exposição sensível de suas vidas, das falhas, intervalos e brechas onde cultivam sobrevivências e emancipações possíveis. Por isso, mesmo no fluxo interminável de apagamento das vidas por enquadramentos estigmatizantes, é possível ter alguns momentos de lampejo nos quais as vidas precárias nos alcançam, afetam, comovem de modo a escutarmos seu rosto, rompendo a narrativa midiática de apagamento e desfiguração.

Mostrar como as mecânicas da legibilidade podem ser descontinuadas e interrompidas é o trabalho do devir minoritário: a invenção de enunciados que perfuram a narrativa desfiguradora, e de imagens que trazem de volta os corpos dos escombros do esquecimento. Quando consideramos a dimensão política da aparição do figurante, pensamos em como a singularidade de sua presença física, carnal constitui-se como vetor de dissonância. O figurante é, acima de tudo, um corpo minoritário, ele aciona um devir menor. A sintaxe da produção de imagens jornalísticas imposta sobre o corpo do figurante é rompida por seu agenciamento minoritário: um olhar, um gesto, um tropeço, uma piscadela, um sorriso, uma fala inesperada que perturbe a ordem de uma cena.

Na fotografia da notícia “Forças Iniciam Ocupação do Complexo da Maré no Domingo” (Estado de Minas, 28 de março de 2014)8, os dois civis posam para a câmera. Uma mulher sorri e põe a mão no queixo, em postura típica às selfies de celebridades, na qual enfatiza seu rosto em close. O homem também olha diretamente para a câmera e sorri. Ambos, em galhofa, contrastam com a expressão de seriedade e combatividade dos agentes que, fardados e armados, marcham em fila rumo ao cumprimento da sua função demandada. O gesto de posar para a câmera nos permite pensar como a aparição do rosto na imagem se relaciona a uma interpelação que convoca o espectador a assumir um olhar à escuta.

Na imagem, o rosto pode justamente aparecer através do desfocamento e do vestígio que destoa da cena: ele seria a expressão da “precariedade que atravessa a plasticidade da imagem a ponto de revelar que antes mesmo de qualquer decisão ou condição dos arranjos que permitem inserir o outro na imagem, o rosto já desmonta a cena e distorce a imagem” (Ribeiro, 2019, p. 58).

A imagem é justamente o evento liminar que atualiza o jogo, o contato ético entre aquele que cria, aquele que figura na imagem, e o espectador. A pose inesperada do figurante, escapando ao enquadramento imaginado pelo fotógrafo, produz presenças fabuladas de corpos negros no espaço militarizado das favelas, revelando uma figuração que retira as pessoas da violência opressora do enquadre policial e punitivo, produzindo desvios que orientam uma elaboração ideológica que constrói e reconstrói os sentidos das imagens permanentemente (Biondi & Marques, 2015).

Podemos estabelecer uma relação entre o figurante como corpo-menor - em aproximação à noção de literatura menor de Deleuze e Guattari (1975/2014). Um figurante como corpo minoritário pode ser definido como uma sintaxe incorreta (Deleuze & Guattari, 1975/2014, p. 40), desterritorializada: uma sintaxe para gritar e também para dar ao grito uma sintaxe. Talvez, uma sintaxe que, ao mesmo tempo conecta e desconecta o figurante da história principal, que opera em plena luz, mostrando o que pode ser dito ou não. Uma sintaxe que revela o valor coletivo da enunciação que une figurante a povo (forjar os meios de colocar em prática uma sensibilidade solidária e revolucionária). Ao mesmo tempo, a sintaxe minoritária pode ser elaborada a partir do silêncio, da imobilidade (que não significa inatividade) e do ocultamento. A desterritorialização promovida pela arte menor teria como função devolver a sonoridade ao silenciamento do cotidiano e oferecer o silêncio à gama de sons que percorrem nossa rotina.

Sob esse aspecto, a singularidade do grito, do olhar, do sorrido ou do silêncio dos figurantes é uma importante performance de luta contra os constantes apagamentos, emudecimentos e estereotipagens dos povos (Veras, 2017). Tal singularidade atua contrapondo-se à sintaxe roteirizada da produção das imagens (ela acrescenta uma engrenagem menor ao lado da engrenagem maior do dispositivo de produção das imagens).

Na fotografia da notícia “Efeitos da Violência de Estado” (IstoÉ, 9 de novembro de 2018)9, enquanto os corpos negros dos moradores da comunidade são colocados contra a parede, ao longo da rua, em revista pelos agentes da tropa militar, um outro morador, anda em sentido contrário e de frente para a câmera. Em sua camisa é possível ler, em letras grandes, as palavras “peace, love, surf” (paz, amor, surf), cuja expressão é comumente ligada a um estilo de vida tranquilo e harmônico, remetendo, assim, ao inverso da palavra de ordem policial. A disposição e direção dos corpos dos moradores abordados em contraste com os dos agentes militares promovem um adensamento na oposição radical entre os sujeitos e seus campos; militar versus civil, agente versus habitante, função versus sujeito, arma versus palavra, ordem versus vida.

O figurante colabora para a criação de um devir-menor, apresentando um uso menor da língua, pois ele traz para a imagem a potência da experiência, transformando, metamorfoseando a narrativa. O devir minoritário do figurante tem a ver com a resistência aos modelos majoritários de tradução e acomodação da experiência, da multiplicidade em ato. Seu devir também revela como sobreviver à necropolítica é uma luta constante contra as armas de fogo

dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar mundos de morte: formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de mortosvivos. (Mbembe, 2018, p. 71)

A singularidade do figurante e de seus gestos se aproxima das condições de minoridade, do processo de criar passagens entre o molar e o molecular, estabelecendo condições para a transformação e experimentação das relações de poder que os constituem10. Assim, outra característica da dimensão política que define o figurante é a sua produção de agenciamentos moleculares da multiplicidade e da singularidade. Um figurante pode produzir um agenciamento, uma engrenagem que atua, tanto por meio do indivíduo quanto por meio de um grupo, que se revelam como articulações e tensionamentos (de dupla direção) no âmbito do dispositivo, entre elementos estabelecidos: códigos, padrões, práticas incorporadas (habitus) - regras; e elementos tentativos: invenção, ensaio-e-erro, inferências, práticas tentativas (experimentação) - estratégias. Constroi-se, como dissemos antes, nova engrenagem ao lado da precedente, mas ela, ao se inserir na engrenagem maior, podem promover rasgos, rupturas, intervalos (“A Ocupação da Maré”, El País, 30 de março de 2014)11.

Sabemos, por Deleuze e Guattari (1975/2014), que os agenciamentos se relacionam à produção de novos enunciados: transformam a natureza da enunciação, alteram a função dos enunciados existentes, produzindo curto-circuitos nas engrenagens majoritárias. A produção de novos enunciados envolve sujeitos que correm o risco não só de expressar o que realmente pensam e sentem, mas de permanecerem onde não deveriam estar, de fazerem-se ver quando deveriam ocultar-se. Sua presença e sua ação conectam-se ao enunciado e à enunciação de modo a produzir efeitos sobre os outros, e a afetar o objeto da enunciação produzindo uma centelha, uma fulguração na imagem (como insinua Didi-Huberman, 2016a, a partir da dialética de Benjamin).

A aparição do figurante pode, sob esse aspecto, gerar biopotência: há que se ressaltar seu caráter inventivo e fabulador, gerando uma experiência que não o prende ao clichê - ele ganha existência na imagem sem ficar preso ao documento do sofrimento, da mazela, da vitimização que o reduziria à vida nua. Assim, o figurante também é uma “vida capital”, no sentido descrito por Peter Pál Pelbart (2003, p. 56). Para ele, as vidas precárias e extremas podem ser convertidas em “um capital biopolítico de que cada vez mais cada um dispõe, para modelar a forma de vida singular que lhe pertence de acordo com o que lhe é dado inventar” (Pelbart, 2003, p. 56).

É como se o figurante também usasse sua vida e seu corpo (de forma consciente ou não) para autovalorizar o que viveu, o que vive. Um figurante que aparece na imagem, torna sensíveis “suas histórias de vida escabrosas, seu estilo, sua singularidade, sua percepção, revolta, causticidade, modo de se vestir, de habitar, de gesticular, protestar e se rebelar, enfim sua vida” (Pelbart, 2002, p. 29). Seu capital sendo sua vida, permite reinventar as coordenadas de enunciação e fazer variar suas formas. Assim, ele produz agenciamentos, reage à vida nua, e interpela o espectador da imagem.

Quando o figurante olha para a câmera, ele não só quebra a quarta parede como também atinge em cheio o espectador. Seu olhar, como diz Picado (2011)12, atravessa a tela como vetor de implicação que demanda outro tipo de atenção do espectador.

6. Considerações Finais

Aparecer em imagens fotográficas e por meio dessas imagens envolve uma delicada operação de questionar o quadro hierárquico e consensual, de questioná-lo em busca de intervalos que indiquem que o quadro não pode determinar com precisão o que se vê, pensa, reconhece e apreende. Vimos que a figuração de pessoas vulneráveis se dá no encontro entre o gesto do fotógrafo, a cena enquadrada na imagem (em constante operação), a circulação e a implicação do espectador na imagem. Tal processo envolve o gesto de tornar sensível uma aproximação entre os espectadores e a alteridade presente na imagem que não se reduza ao julgamento moralizante. A operação sensível das imagens desperta no espectador novas formas de perceber os corpos e as múltiplas espacialidades e temporalidades da cena em que aparecem e emergem - dialeticamente e dissensualmente - os rostos que nos desafiam. As imagens podem, assim, fazer aparecer o inesperado, o que antes não era percebido, percebido, sentido: elas produzem e são produzidas por operações que desorganizam, perturbam e rearranjam o que é dado definindo outras possibilidades, ou seja, outras formas de fazer os tempos, espaços, objetos, corpos e experiências legíveis e inteligíveis. As imagens podem dar origem a cenas singulares e fabuladoras ao desempenhar o papel de “pequenas máquinas que recusam a explicação já dada” (Rancière, 2019, p. 57).

Butler (2009/2015) afirma, em diálogo com Didi-Huberman (2016b), seu argumento acerca da superexposição dos povos, cujo excesso de luz midiática usado na construção de representações estereotipadas não nos permite acolher o rosto outro, sua demanda, seu apelo. Para ela, em grande parte das representações midiáticas “não podemos escutar o rosto através do rosto, pois ele mascara os sons do sofrimento humano e a proximidade que poderíamos ter com a precariedade da vida” (Butler, 2009/2015, p. 27). Ela fala da possibilidade de o rosto lévinasiano operar e ser representado enquanto face, a partir do momento em que tal representação possa vocalizar ou ser entendida como resultado de uma voz que expressa um lamento, um sinal da precariedade da vida. Entendemos que a perda do rosto de que nos fala Butler (2004) se configura pelo processo de enquadramento institucional e midiático que dificulta a escuta do clamor do outro e, por extensão, compromete a produção da responsabilidade ética sobre esse outro fragilizado e vulnerável. A nosso ver, a aparição do figurante, do modo como observado nas imagens trazidas, nos permite encontrar parcelas de humanidade que nos colocam diante do rosto.

Através dessas imagens, o rosto pôde aparecer através da (de)formação, do desfocamento e do vestígio: ele seria a expressão da precariedade que atravessa a plasticidade da imagem a ponto de desmontar a cena e distorcer a imagem. Certamente, uma imagem não é elaborada sem o corpo, nem sua significação se dá fora da corporeidade do mundo. Contudo, entendemos que a imagem é o evento liminar que atualiza o jogo, o contato sensível e o contrato ético entre aquele que cria, aquele que figura na imagem e o espectador.

Assim, notamos que o trabalho maior, nessas imagens, foi abrir planos de conexões e desconexões, aproximações e distinções, fraturas e recomposições que não realizam expectativas de legibilidade, trazendo ao olhar do espectador uma indecidibilidade que o torna sensível a aspectos que antes não seriam objeto de contemplação ou consideração. Tal qual vimos em Rancière (2019), a imagem produz “um tipo de operação que vai alterar a distribuição do visível e do pensável” (p. 50), pois, a potência política está tanto nas imagens, em sua materialidade sígnica, quanto nas relações e operações que as definem.

Agradecimentos

A realização deste trabalho contou com o apoio do CNPq e da FAPEMIG.

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1Entendemos como “discurso necropolítico” aquele que revela um lugar pequeno destinado à vida em oposição à morte; aquele que confere um lugar de controle ao corpo humano, especialmente o corpo violentado, ferido, massacrado e vigiado. Como assinala Achille Mbembe (2018, p. 11), a relação entre política e morte revela modos de destruição da vida humana, mas também as várias mortes que uma vida humana pode viver. A vida, ao existir no confronto com a morte, é construída no discurso necropolítico a partir desse enfrentamento: da seleção entre os que devem viver e os que podem e devem morrer.

2Ver em https://www.conjur.com.br/2021-mai-07/operacao-policial-matou-25-rio-desrespeitou-decisoes-stf.

3Ver em https://www.theeagleview.com.br/2021/05/a-operacao-policial-no-rio-de-janeiro-e.html.

4Ver em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_10.

5Ver em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_15.

6Ver em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_16.

7Ver em https://ansabrasil.com.br/brasil/noticias/americalatina/brasil/2021/05/07/onu-se-diz-perturbada-com-chacina-no-jacarezinho_849c5d83-3206-4b80-a06f-992b62094ab0.html.

8Ver em https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/03/28/interna_nacional,512976/forcas-iniciam-ocupacao-do--complexo-da-mare-no-domingo.shtml.

9Ver em https://istoe.com.br/efeitos-da-violencia-de-estado/.

10Para Deleuze (1981/2007), “a transformação, o devir, a mutação se faz quando instalamos a mudança no ‘entre’: entre o molar e o molecular, traçando uma linha que impede o molar de se fechar em modelos majoritários, e fazendo do molecular a fonte de processos de criação e de subjetivação. As lutas atravessam os diferentes planos, mas a partir da construção de uma tensão entre o macro e o micro, o molar e o molecular que, ao convocá-los, aos construí-los como problema, criam as condições da transformação e da experimentação das relações de poder que os constituem” (p. 211).

11Ver em https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_7.

12O rosto, segundo o autor, apresenta uma “genuína pragmática da significação visual” (Picado, 2011, p. 63). O rosto, para existir, depende de experiências afetivas e interacionais - o olhar da face fotografada “se dirige para fora da imagem (e, mais agudamente, para este outro olhar que a rende)” (Picado, 2011, p. 63).

13We understand “necropolitical discourse” as that which reveals a small place intended for life as opposed to death; that which ascribes a place of control to the human body, especially the violated, wounded, massacred and guarded body. As Achille Mbembe (2018, p. 11) pointed out, the relationship between politics and death reveals modes of destroying human life and the many deaths one human life can experience. Life, as opposed to death, builds on the necropolitical discourse from this opposition: from selecting those who must live and those who can and must die.

14See in https://www.conjur.com.br/2021-mai-07/operacao-policial-matou-25-rio-desrespeitou-decisoes-stf.

15See in https://www.theeagleview.com.br/2021/05/a-operacao-policial-no-rio-de-janeiro-e.html.

16See in https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_10.

17See in https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_15.6.

18See in https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_16.7.

19See in https://ansabrasil.com.br/brasil/noticias/americalatina/brasil/2021/05/07/onu-se-diz-perturbada-com-chacina-no-jacarezinho_849c5d83-3206-4b80-a06f-992b62094ab0.html.

20See in https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2014/03/28/interna_nacional,512976/forcas-iniciam-ocupacao-do-complexo-da-mare-no-domingo.shtml.

21See in https://istoe.com.br/efeitos-da-violencia-de-estado/.

22For Deleuze (1981/2007), “the transformation, the becoming, the mutation is made when we install the change in the ‘between’: between the molar and the molecular, drawing a line that prevents the molar from closing in majority models, and making the molecular the source of processes of creation and subjectification. The struggles underlie the different dimensions, but from the construction of a tension between the macro and the micro, the molar and the molecular that, by calling on them, by constructing them as a problem, create the conditions for the transformation and experimentation of the power relations that constitute them” (p. 211).

23See in https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/30/album/1396205399_006677.html#foto_gal_7.

2424. The face, according to the author, presents a “genuine pragmatics of visual significance” (Picado, 2011, p. 63). The face, in order to exist, depends on affective and interactional experiences - the gaze of the photographed face “is directed out of the image (and, more acutely, toward this other gaze that holds it)” (Picado, 2011, p. 63).

Recebido: 31 de Março de 2022; Aceito: 04 de Junho de 2022

Ângela Cristina Salgueiro Marques é doutora em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais, professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da mesma universidade, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Comunicação Social. É ainda bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Email: angelasalgueiro@gmail.com Morada: Av. Antônio Carlos, 6627, Pampulha. CEP 31270-901. Belo Horizonte - MG, Brasil

Angie Gomes Biondi é professora do programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. É doutora em comunicação social pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Fez um pós-doutoramento em artes pela Faculdade de Letras, Université du Québec à Montréal, Canadá. É também coordenadora do grupo de pesquisa Corpo, Imagem e Sociabilidade (Universidade Tuiuti do Paraná/Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Brasil. Email: angiebiondina@gmail.com Morada: Rua Sydnei Rangel Santos, 238. Santo Inácio. CEP.82.010-330. Curitiba - Paraná, Brasil

Ana Paula da Rosa é doutora em ciências da comunicação, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atualmente é professora e pesquisadora na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, na linha de pesquisa Midiatização e Processos Sociais, além dos cursos de graduação em Publicidade e Propaganda, Jornalismo e Relações Públicas. Email: aninharosa884@gmail.com Morada: Av. Unisinos, 950. Cristo Rei. CEP.93022-750. São Leopoldo - RS, Brasil

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