1. Introdução
Em 25 de maio de 2020, a brutalidade da ação policial que levou à morte do estadunidense George Perry Floyd Jr. na cidade de Minneapolis chocou o mundo. Floyd, um homem negro, foi assassinado por um policial branco que se ajoelhou sobre seu pescoço, sufocando-o. A morte de Floyd provocou centenas de protestos ao redor do país, em que a população começou a demandar reformas na instituição policial estadunidense, como a campanha Defund the Police (numa tradução mais livre, não financiar a polícia), que propõe a redução dos fundos direcionados à instituição (Andrew, 2020). A reação de choque da sociedade ao vídeo que capturou a morte de Floyd foi problematizada em matérias jornalísticas (Grady, 2020; Zeitchik, 2020), que questionaram o papel da mídia em geral e da televisão em particular ao glorificar a ação policial, por exemplo, o reality show COPS (Polícias; Langley & Barbour, 1989-presente). Já as séries de ficção, por sua vez, foram questionadas por apresentarem os policiais como heróis da sociedade e representarem o ponto de vista desses profissionais sobre a lei, o crime e a justiça. O incidente colocou sob os holofotes a ficcionalização da instituição policial nas séries televisivas (Siegel, 2020; Thorne, 2020).
Aqui, é necessário destacarmos a popularidade das séries policiais na televisão estadunidense. Brooks e Marsh (2007) identificaram aproximadamente 300 produções exibidas desde 1949. Até hoje essas séries estão entre as mais assistidas nos Estados Unidos. Na temporada de 2020-2021, a Nielsen listou cinco séries institucionais policiais no top 10 das produções mais assistidas (Schneider, 2021): NCIS (Serviço de Investigação Criminal Naval; Bellisario et al., 2003-presente), FBI (Departamento Federal de Investigação; Wolf et al., 2018-presente), Blue Bloods (Sangues Azuis; Goldberg et al., 2010-presente), 9-1-1 (Murphy et al., 2018-presente), Chicago P.D. (Departamento de Polícia de Chicago; Wolf et al., 2014-presente). Embora apresentem variações entre si, as séries policiais reproduzem a mesma fórmula em que um mundo ordenado é perturbado pelo crime e os policiais e detetives se esforçam para restabelecer a ordem (Meimaridis, 2021; Sparks, 1992; Turnbull, 2014), um status quo imposto pela instituição.
Ao mesmo tempo, essas produções tendem a reproduzir narrativas centradas no binarismo de “bem” versus “mal”. Em outras palavras, apresentam histórias onde a polícia se esforça para salvaguardar a sociedade enquanto os criminosos cumprem o papel de ameaça a ser impedida pelos policiais.
Neste trabalho, iremos partir das discussões propostas por Meimaridis (2021) sobre o significativo papel que a ficção televisiva cumpre na mediação e construção de sentido sobre as instituições sociais. A pesquisadora propõe o termo “série institucional” para se referir às produções ficcionais “centradas no funcionamento diário de instituições sociais. As séries policiais, jurídicas e médicas são seus principais modelos” (p. 15). No que diz respeito à ficcionalização da instituição policial, defenderemos neste artigo que as séries institucionais policiais, ao construírem histórias em torno de mitos e enquadrarem o uso de força excessiva pela polícia como justificável, normalizam a brutalidade da ação policial como os meios de obtenção de justiça ao mesmo tempo em que reforçam o papel de autoridade da instituição na manutenção da ordem na sociedade. Problematizamos, então, os processos de ficcionalização da instituição policial nas séries estadunidenses. Considerando que estes produtos televisivos são de grande exportação para o resto do mundo (Moran & Malbon, 2006), essa mediação de sentido não se limita apenas ao público local, mas sim viaja em meio aos fluxos televisivos transnacionais criando sentidos que podem se refletir em diferentes perspectivas culturais, influenciando entendimentos sobre a autoridade e credibilidade da instituição policial estadunidense a nível global.
Iniciamos o artigo apresentando brevemente um panorama das séries institucionais policiais estadunidenses como forma de contextualizar essas produções. Em seguida, abordamos como a instituição policial é ficcionalizada nas séries televisivas e quais elementos marcam esse processo. Por fim, focamos em duas construções significativas dessas produções: (a) reforço da autoridade da instituição policial, e (b) normalização da brutalidade policial. Entendemos que, diante da crise que a instituição atualmente enfrenta nos Estados Unidos (Cobbina-Dungy & Jones-Brown, 2021; Hudácskó, 2017), as séries institucionais policiais se concretizam como objetos atraentes e poderosos na legitimação da instituição policial do mundo real, principalmente ao permitirem à instituição regular os discursos produzidos pela ficção sobre si. As séries policiais são, então, parte do problema, uma vez que legitimam e glorificam ações policiais.
2. Panorama das Séries Policiais Estadunidenses
A primeira série estadunidense a representar o universo policial é de 1949, intitulada Stand By For Crime (A Postos Para o Crime; Garrison, 1949). O drama apresentava o ponto de vista do assassino enquanto um detetive investigava o crime. Antes do término do episódio, o público era convidado a ligar e adivinhar a identidade do assassino (Dowler, 2016). Entre 1949 e 1951 outras séries policiais surgiram, dentre elas a mais importante foi Dragnet (Rede de Arrasto; Webb, 1951-1959). Centrada no trabalho do sargento Joe Friday (Jack Webb), a produção focava na resolução semanal de crimes.
Para realizar a produção, Jack Webb se aproximou de William H. Parker, o controverso chefe do Departamento de Polícia de Los Angeles (LAPD) no início da década de 1950, e trocou o controle criativo da série por acesso aos recursos do departamento (carros de polícia, distintivos, etc.). Essa proximidade com a instituição real possibilitou que Dragnet se tornasse um poderoso instrumento de propaganda a favor da instituição (Sharrett, 2012). No decorrer de seus 276 episódios, a série reproduziu uma fórmula simples em que todo caso era resolvido ao término do episódio. Para Mittell (2004):
a ideologia conservadora que Dragnet articulou com o gênero policial não é uma visão idealizada da sociedade apresentada em idílicas comédias, mas a crença autenticada e inabalável no sistema de disciplinar continuamente os infratores e proteger os inocentes, reagindo às ameaças e manifestações de crime sempre presentes. Dragnet tranquiliza o público que o sistema policial funciona de maneira eficiente, posicionando os espectadores como aliados da polícia, observadores invisíveis de procedimentos autênticos à medida que ocorrem. (p. 139)
Assim, a despeito da ação criminosa que movimentava os episódios a cada semana, a polícia em Dragnet era apresentada como uma instituição que cumpria seu dever na sociedade.
Entre 1960 e 1970, uma nova leva de produções policiais bem-sucedidas surgiu e dominou as grades televisivas do horário nobre, como Starsky and Hutch (Starsky e Hutch; Spelling & Goldberg, 1975-1979). Alternativamente, surgiram séries que acompanhavam outras instituições policiais, como os agentes do Departamento Federal de Investigação (FBI) em The F.B.I. (Martin & Saltzman, 1965-1974). Já as séries policiais da década de 1970 foram influenciadas por dois processos distintos. Por um lado, começaram a atender as demandas por mais representatividade racial e de gênero1. Por outro, começaram a apresentar o sistema judiciário mais burocrático e, em muitos dos casos, ineficaz (Dowler, 2016). Nesse cenário, seria necessário um policial mais violento e sedento em sua busca por justiça para combater os criminosos (Stark, 1987). O protagonista do drama Kojak (Mann et al., 1973-1978) era justamente esse “novo” tipo de policial, mais durão, violento e que combatia tanto a criminalidade quanto a ineficiência burocrática da instituição.
Foi na década de 1980 que as séries institucionais policiais começaram a complexificar mais as construções da instituição policial. As produções da década marcaram um significativo processo de construção da criminalidade como um problema nacional (Donziger, 1996; Males, 1999) e a televisão foi responsável por enquadrá-la como um problema que atingia a todos. O drama policial mais importante da época foi Hill Street Blues (A Balada de Hill Street; Bochco et al., 1981-1987). A série apresentava a rotina caótica de uma delegacia em um grande centro urbano e introduzia policiais e detetives problemáticos que quebravam regras e normas institucionais em favor de obter justiça. Após o grande sucesso de Hill Street Blues, a década de 1990 viu a proliferação de novos dramas policiais. Enquanto NYPD Blue (A Balada de Nova Iorque; Bochco et al., 1993-2005) continuou apresentando policiais com falhas morais e de conduta, Law & Order (Lei e Ordem; Wolf et al., 1990-2010) refletiu sobre as dimensões mais punitivas do sistema judiciário de Nova Iorque. A série apresentava os promotores e detetives como heróis que combatiam o mal, representado na figura dos criminosos e dos advogados que os defendiam. Outra produção significativa da década foi Homicide: Life on the Streets (Homícidio: Vida nas Ruas; Finnerty et al., 1993-1999), que endossava uma visão mais realista do trabalho dos detetives da divisão de homicídios de Baltimore e dessensibilizava a morte ao apresentá-la como uma parte rotineira da profissão. Diferente das resoluções claras de Law & Order, muitos episódios de Homicide acabavam com casos não sendo resolvidos.
No início dos anos 2000, outras séries policiais começaram a conquistar ainda mais espaço na televisão aberta, muitas introduzindo elementos da ciência forense e de técnicas de criação de perfis na apreensão dos criminosos, como CSI (Crime Sob Investigação; Zuiker et al., 2000-2015), NCIS, e Criminal Minds (Mentes Criminosas; Gordon et al., 2005-2020). Essas produções se tornaram algumas das séries mais duradouras da televisão estadunidense e reproduzem o modelo procedural em que a maioria dos episódios termina com os policiais sendo bem-sucedidos na apreensão dos criminosos e o retorno do status quo. Ao mesmo tempo, a televisão a cabo também começou a ficcionalizar a instituição policial, como em The Shield (O Escudo; Ryan et al., 2002-2008) e The Wire (A Escuta; Simon et al., 2002-2008). Enquanto as produções da televisão aberta frequentemente destacavam o papel central das instituições policiais na manutenção da ordem, as séries oriundas da televisão por cabo construíam uma visão mais imperfeita da instituição com profissionais moralmente ambíguos e, em alguns casos, com uma instituição fragilizada pela ineficiência burocrática. A natureza serializada das séries da televisão por cabo era essencial para enredos onde os policiais dessa vez enfrentariam alguma consequência por suas ações.
As produções contemporâneas continuam a reproduzir fórmulas consagradas do gênero com pequenas variações, muitas apresentando o formato procedural. As séries institucionais policiais exibidas após 2010, como Chicago P.D., Blue Bloods e The Rookie (O Novato; Hawley et al., 2018-presente), apresentam transgressões por parte dos policiais e detetives como sendo rotineiras e muitas vezes como ações inofensivas e justificadas. Essas séries geralmente enquadram quebras de conduta como os meios para que determinados fins sejam alcançados, notadamente a apreensão do criminoso e a obtenção de justiça. Mas não se trata necessariamente de obter justiça legal, a instituição policial ficcional apresenta profissionais que buscam justiça moral (Meimaridis, 2021). Isso ocorre porque a instituição policial, ao ser ficcionalizada, tradicionalmente se aproxima do espectro ideológico do conservadorismo, ilustrando uma visão de mundo da perspectiva do status quo. Para entendermos esse processo precisamos compreender o papel dessa instituição na sociedade estadunidense e examinar seu processo de ficcionalização pela ficção seriada televisiva.
3. A Instituição Policial e Sua Ficcionalização nas Séries Estadunidenses
Os primeiros departamentos de polícia dos Estados Unidos surgiram no século XIX, muitos por pressão da classe burguesa que, ao ascender economicamente, buscava uma força para impor e proteger a “ordem” e a “propriedade privada” (Mitrani, 2013). Inspirados no modelo londrino da polícia metropolitana, os departamentos de polícia em grandes centros urbanos, como Nova Iorque e Chicago, reproduziam uma estrutura de comando militarizada. Inicialmente, o trabalho policial era mais centrado na regulação do comportamento das classes trabalhadoras e em manter a ordem em diversas esferas, tanto moral quanto social, do que prender criminosos. Contudo, com o desenvolvimento das cidades, o aumento da desigualdade social e a intensificação da violência, a polícia tornou-se um símbolo do combate à criminalidade.
Recorrentemente, o trabalho dos membros da instituição policial relaciona-se à concepção de “dirty work” ou serviço sujo em português (Ashforth & Kreiner, 1999; Cummins & King, 2015; Dick, 2005). O conceito, proposto por Everett Hughes (1950), aborda ocupações que são percebidas socialmente como degradantes ou repugnantes. São, portanto, profissões que envolvem algum tipo de contaminação “moral, física ou social” (Hughes, 1958, p. 122). Para Ashforth e Kreiner (1999), a contaminação moral se refere às ocupações de moral pecaminosa ou duvidosa (e.g., gerente de casino). Já a contaminação física se refere às profissões associadas à sujeira ou morte (e.g., bombeiro), e a contaminação social às ocupações que lidam com indivíduos estigmatizados (e.g., defensor público) ou que têm certa relação de servidão (e.g., faxineiro).
Policiais apresentam uma combinação dos três tipos de contaminação. Eles trabalham em condições nocivas se arriscando diariamente (contaminação física). Também se utilizam de métodos questionáveis (policiais infiltrados) para exercerem a profissão (contaminação moral). Ao mesmo tempo, lidam diretamente com pessoas “contaminadas”, como prostitutas, moradores de rua e, principalmente, criminosos (contaminação social). Essa combinação, em última análise, ameaça o status moral do profissional. Para Waddington (1999), os membros da instituição policial desempenham um serviço sujo visto que a polícia age de maneiras que de outra forma “seriam excepcionais, repreensíveis ou ilegais” (p. 299). Ressaltamos, no entanto, que a autoridade da instituição policial foi dada pela sociedade. Ou seja, “instituir uma força policial implica que a população em geral conceda licença a um grupo ocupacional específico para exercer autoridade sobre eles - para invadir sua privacidade, interferir em sua conduta e, por fim, usar a força contra eles” (Waddington, 1999, p. 298). Para lidarem com o estigma da profissão, os membros da instituição policial reproduzem uma forte identidade de grupo pautada na lógica “nós” (policiais) contra “eles” (criminosos; Cummins & King, 2015). Nesse processo, os policiais cultivam uma “autoimagem ocupacional de combatente do crime” (Cummins & King, 2015, pp. 2-3), esta é intimamente relacionada com a construção do policial como herói.
Ao ser ficcionalizada, a dimensão do trabalho sujo dos policiais aparece nas séries institucionais policiais principalmente por meio da figura do policial atormentado por sua atuação cotidiana. Por lidar com o “pior” do ser humano, o profissional é contaminado e recorrentemente busca refúgio no bar, como em Chicago P.D., NYPD Blue e Hill Street Blues. Em alternativa, o trabalho sujo também se faz presente nos riscos que os policiais e detetives correm diariamente no exercício da profissão. As séries ficcionais, então, se prestam bem ao reforço da imagem do policial herói. Para Sparks (1992), essas produções televisivas são como contos de moralidade que a sociedade reproduz como uma forma de se tranquilizar. Elas atendem a um desejo de ver a punição sendo imposta a um determinado grupo da sociedade. Para isso, elas tendem a vilanizar o criminoso que “merece” ser punido (Marc, 1984). Dessa maneira, essas produções são centradas em uma ação criminosa e em uma resposta da instituição (como, por exemplo, a punição; Raney & Bryant, 2002). Para Marc (1984), a atração dessa fórmula reside em “sua afirmação ritual da potência da lei e da ordem” (p. 69). É justamente a oposição de binarismos, como “bem” versus “mal”, “lei” versus “crime”, “ação” versus “punição” e “ordem” versus “caos”, que possibilitam as séries institucionais policias reforçarem a imagem do policial como combatente do crime e alimentarem mitos nacionais específicos (Mittell, 2004).
Ao apresentar o policial como herói e posicionar o cidadão como potencial adversário, as séries institucionais policiais se alinham ideologicamente a princípios conservadores. Essas produções representam tanto a dimensão moral quanto legal da atuação da instituição policial. A narrativa é enquadrada em torno de um embate entre adversários, de um lado os policiais e do outro os criminosos que são definidos a priori como malignos. Nesse processo, a capacidade de reforçar o discurso conservador se torna distinta, visto que a ação policial exercida contra os criminosos é justificada (Meimaridis, 2021). Contudo, muitas séries policiais reduzem o crime e a pobreza à esfera moral, ao invés de atribuí-los às questões sociológicas e estruturais da sociedade estadunidense (Buxton, 1990). Ou seja, falhas sistêmicas ou desigualdades econômicas, causas reais da criminalidade no mundo real, raramente são exploradas. O fator racial também é frequentemente ignorado. Nesse sentido, ocorre o esvaziamento da dimensão social e econômica da criminalidade. De fato, pouquíssimas séries exploram as condições sociais que contribuem para a criminalidade, como Hill Street Blues, Homicide: Life on the Streets e The Wire. Nessas produções, a autoridade policial está cedendo à anomia. Todavia, reiteramos que estas produções são exemplos pontuais e, em alguns casos, reiteram um alinhamento ideológico ambíguo, ora conservador, ora progressista, como em Hill Street Blues.
Meimaridis (2021) identificou que o conservadorismo das séries institucionais policiais pode ser dividido em duas dimensões distintas diretamente relacionadas à regulação institucional. A primeira se apresenta em produções centradas em policiais que cumprem seu dever na sociedade e em que há forte regulação institucional, como em Dragnet. Já a segunda dimensão envolve policiais infringindo a lei e atuando na sociedade como agentes da “justiça moral”. Ao reiterarem uma lógica utilitarista, a ficção seriada policial reforça a ideia de que policiais podem usar força excessiva para impedir um criminoso. Nesse processo, esses profissionais acabam por abusar de sua autoridade e promovem a mentalidade conservadora do “nós versus eles”. Defendemos que este enquadramento das violações éticas e de direitos humanos como atos necessários e heroicos contribui para normalizar os aspectos mais sujos da profissão.
Isto posto, a seguir destacaremos dois papéis significativos que as séries institucionais policiais estadunidenses cumprem na legitimação da instituição policial do mundo real: (a) o reforço da autoridade, e (b) a normalização da brutalidade policial.
4. Reforço da Autoridade
O aviso “a história que você está prestes a ver é verdadeira. Apenas os nomes foram alterados para proteger os inocentes” exibido ao início de cada episódio de Dragnet, é emblemático ao assumir que a verdade reside no ponto de vista do policial, cujo espectador vai acompanhar durante todo o episódio. Em linhas gerais, as séries policiais estadunidenses contemporâneas continuam a reproduzir a fórmula consagrada em Dragnet, com o policial herói se dedicando a solucionar o “caso da semana” e prender o criminoso, que é vilanizado. Após restaurar a normalidade, a produção está pronta para repetir uma variação da fórmula na semana seguinte. Em última análise, o movimento narrativo em direção à resolução solidifica a vitória moral do policial. Dessa maneira, as séries institucionais policiais tendem a priorizar as vitórias e os esforços dos policiais. Essas produções, assim, concretizam a autoridade da instituição e de seus membros na manutenção da ordem na sociedade.
O que torna a capacidade das séries institucionais policiais de reforçarem a autoridade policial ainda mais explícita é o fato de que algumas instituições do mundo real já participam de seus processos de ficcionalização (Jenkins, 2016; Sharrett, 2012). Com certa frequência elas justificam essa interferência como forma de garantir que as representações sejam mais “precisas” (Jenkins, 2016). Entretanto, essa justificativa serve apenas para camuflar o real interesse da instituição: a demanda por representações favoráveis de policiais nas séries de televisão.
Consideremos, por exemplo, as taxas de sucesso - solução do crime e apreensão do criminoso - das séries policiais estadunidenses. Embora essas produções apresentem homicídios em maior proporção em comparação com a realidade dos grandes centros urbanos do país (Brown, 2001; Deutsch & Cavender, 2008; Donovan & Klahm IV, 2005), os profissionais, por meio de sua expertise, regularmente são bem-sucedidos. Eschholz et al. (2004) observaram que a taxa de sucesso dos profissionais em dramas policiais era muito mais elevada do que a realidade. Os autores examinaram episódios de Law & Order e NYPD Blue exibidos entre 1999 e 2000 e identificaram que a taxa de condenações na primeira série era de 61% e a de prisões na segunda era 78%. Porém, a taxa de sucesso do departamento de polícia da cidade de Nova Iorque para crimes violentos era de 29% no mesmo período. Outros estudos já reforçaram esses dados, como Britto et al. (2007). Naturalmente, a ficcionalização favorável da instituição policial é objeto de controvérsias. Um dos casos mais emblemáticos se refere ao “CSI effect” (efeito CSI; Cole & Dioso-Villa, 2007). O fenômeno, definido como sendo “a crença de que assistir a programas de televisão como o CSI pode, na verdade, fazer com que o espectador eleve as expectativas do que a ciência pode fazer” (Harvey & Derksen, 2009, p. 5), já foi abordado tanto pela literatura acadêmica quanto pela mídia. Apesar de diversos trabalhos indicarem a inexistência de tal fenômeno (Maeder & Corbett, 2015; Podlas, 2006; Schweitzer & Saks, 2007), Brewer e Ley (2010) verificaram que espectadores regulares de CSI tinham uma tendência a acreditar mais na confiabilidade da ciência forense do que indivíduos que não consumiam este drama televisivo. Assim, acreditamos que o foco da discussão em torno do efeito CSI tem deslocado a atenção do simples fato de que séries como CSI dramatizam uma realidade técnica da instituição policial que não é acessível à maior parte dos sujeitos. Dessa maneira, essas produções são capazes de atribuir valor de legitimidade e autoridade para a instituição policial do mundo real e para a ciência forense (Deutsch & Cavender, 2008).
Mas não é apenas CSI e a ciência forense, as séries policiais como um todo giram em torno de sistemas de competência especializada (Meimaridis, 2021), como as agências de inteligência federais (FBI, Agência Central de Inteligência [CIA], Agência de Segurança Nacional [NSA]), as forças policiais e de investigações criminais (Departamento de Polícia da Cidade de Nova Iorque, LAPD), os esquadrões especializados (Armas e Táticas Especiais, SWAT), entre outros. Todos estes sistemas dependem do conhecimento dos peritos (policiais, detetives, cientistas forenses, analistas, agentes de campo, etc.). A ciência, deste modo, é usada como forma de ação simbólica para encontrar e construir a verdade, aproximando o trabalho policial a uma racionalidade que satisfaça critérios de aceitabilidade (Ericson & Shearing, 1986). Assim, entendemos a polícia como um importante sistema perito (Giddens, 1991) que é dependente da confiança dos sujeitos. Por confiarem no sistema perito, pessoas comuns não precisam entender todos os aspectos da instituição policial, sua organização nem o conhecimento técnico atrelado a este sistema. Ao construir visões favoráveis da atuação da força policial na sociedade estadunidense muitas séries institucionais televisivas apresentam profissionais capacitados que rotineiramente cumprem seus deveres com base no conhecimento especializado que possuem. Nesse processo, essas produções reforçam a atuação da instituição policial no cotidiano dos sujeitos.
Ao considerarmos que instituições policiais do mundo real participam e/ou interferem nos processos de ficcionalização das mesmas, defendemos que instituições como LAPD e FBI se utilizam das séries televisivas para regular os discursos produzidos pela ficção sobre si. Nesse processo, o elemento primordial será o reforço da autoridade policial e da confiança nesse sistema perito. Aqui, defendemos que a aproximação dessas instituições da ficção seriada reveste de legitimidade essas narrativas. Por outro lado, as séries policiais, quando constroem visões da instituição policial como sendo “forte” e “ordenada” - como em FBI e Law & Order - contribuem para o reforço da confiança nos peritos. Isso só é possível pois a confiança no sistema perito se estabelece por meio da vivência dos indivíduos em uma sociedade que constantemente os lembra de que esses sistemas funcionam por meio de diversos mecanismos (Giddens, 1991). Argumentamos, assim, que as séries ficcionais policiais podem se configurar como um desses mecanismos ao contribuir na construção social da confiança em diversas instituições policiais do mundo real.
5. Normalização da Brutalidade Policial
A frase “quebre as regras, não a lei” é a tagline do drama institucional Chicago P.D. centrado na atuação de policiais uniformizados e de detetives da unidade de inteligência do 21.° distrito do departamento de polícia de Chicago. Naturalmente, a expressão é meramente um sofismo, visto que os profissionais violam diversos direitos humanos, não apenas as “regras” de conduta impostas pela instituição, para solucionar os casos da semana. Ao enquadrar métodos de brutalidade policial - tortura, sequestro, ameaças físicas - como os meios para a obtenção de informações relevantes, como em “Wrong Side of the Bars” (Lado Errado das Barras; Brandt, Haas, & Chapelle, 2014, Temporada 1, Episódio 2) e “Don’t Bury This Case” (Não Enterre Este Caso; Brandt, Haas, & Nowlan, 2017, Temporada 4, Episódio 9), e apreender criminosos, como em “8:30 P.M.” (Brandt, Haas, & Tinker, 2014; Temporada 1, Episódio 12) e “Emotional Proximity” (Proximidade Emocional; Brandt, Haas, & Tabrizi, 2017; Temporada 4, Episódio 16), a série apresenta condutas ilegais por parte dos policiais como sendo rotineiras e até mesmo uma parte essencial da profissão. Embora questionáveis, as ações abusivas e violações empregadas pelos profissionais em Chicago P.D. são frequentemente retratadas como eficazes, o que minimiza a questão da brutalidade policial e promove equívocos sobre o real papel da instituição policial. Aqui entendemos a brutalidade policial como o exercício ilegal de força excessiva (Skolnick & Fyfe, 1994), porém os limites jurídicos entre agressão policial autorizada e exagerada são tradicionalmente difíceis de traçar. Controlar a violência é o grande dilema humanitário da profissão, e os limites profissionais não são bem esclarecidos nas leis estadunidenses (Chevigny, 1995).
O drama Chicago P.D. não deve ser entendido como uma exceção dentre as séries institucionais policiais estadunidenses, mas sim como parte de um modelo de ficcionalização da instituição policial que tende a normalizar a brutalidade policial. Em janeiro de 2020, a organização sem fins lucrativos Color of Change fez um extenso estudo sobre as representações de crime, raça e justiça nas séries policiais estadunidenses (Color of Change, s.d.). A organização analisou 26 produções exibidas entre 2017 e 2018. Os resultados apontaram que, no mundo ficcional, ações como o abuso de força, semelhante ao do assassino de Floyd, são não apenas normalizadas, mas retratadas como eficientes e até necessárias. Na análise, de 353 ações ilegais cometidas por policiais, apenas 13 (3,7%) foram investigadas. Desses 353 episódios, apenas seis discutiram alguma reforma no sistema policial. O excesso de força, quando este apareceu, era enquadrado como raro e não usual. O relatório concluiu que as séries institucionais policiais estadunidenses glorificam, justificam e, em última análise, normalizam a violência sistemática cometida pela polícia, especialmente contra minorias.
A polícia é apresentada como a força normativa, autorizada a usar força excessiva para restaurar a ordem e a harmonia na sociedade. Se posicionam, assim, como o braço armado do estado. Estabelecida como o “bem”, a polícia funciona em posição ao “outro”, os criminosos, cuja perspectiva só será mostrada quando suas ações criminais são investigadas. Ações essas que são frutos de falhas individuais dos criminosos. Nas séries institucionais policiais, o criminoso é tipicamente um indivíduo com desvios morais, os males infligidos à sociedade resultam de sua desonestidade, desdém pelas normas ou até mesmo sadismo. O criminoso é apresentado como perigoso, capaz de repetir seus atos ilícitos caso continue em liberdade. Ação urgente é necessária, e esta chega através da polícia, cuja violência é permitida como um ato essencial em nome da segurança dos cidadãos comuns. Os criminosos, pelos seus desvios, são desumanizados e apresentados como indivíduos que merecidamente perderam seus direitos civis graças aos atos imorais.
Como forma de normalizar a violência policial, as séries institucionais policiais começaram, na década de 1980, a construir um imaginário de que a burocracia se tornou um obstáculo para a realização do trabalho dos profissionais. Limitações constitucionais, direitos humanos e civis, legislação e cadeia de comando são apresentadas como empecilhos; sua função como medidas institucionais que garantem a ordem e o estado de direito sendo frequentemente menosprezada. A ordem em si chega através do individualismo de policiais que estão dispostos a driblar a lei para prender criminosos. Novamente, reiteramos que esta construção é de viés conservador e glorifica a figura do policial como um antissistema que desrespeita direitos civis e passa por cima de instituições para fazer o “bem”, neste caso salvar uma vida ou salvaguardar uma localidade. Tomemos, por exemplo, o episódio piloto de The Shield (Ryan & Johnson, 2002, Temporada 1, Episódio 1). A narrativa acompanha os atos questionáveis de um grupo de policiais no LAPD. No episódio, uma divisão do LAPD falha em extrair informações de um pedófilo sobre o paradeiro de uma vítima. O criminoso está amparado legalmente por advogados e consegue resistir às acusações. O processo burocrático é mostrado como um empecilho em uma situação de urgência e os policias recorrem a ajuda de Vic Mackey (Michael Chiklis) para desmascarar o pedófilo: ele desliga as câmeras da sala de investigação, ignora pedidos do criminoso por seu advogado e o tortura fisicamente, fazendo-o revelar a localização da criança, que é salva. Este é apenas um exemplo de casos de brutalidade apresentados em The Shield como os meios para quem determinados fins sejam alcançados.
Apesar das séries institucionais policiais às vezes problematizarem o abuso de força, o seu retrato é mais frequentemente apresentado como positivo e eficiente (Bandes, 2021). Policiais corruptos e violentos que não conseguem ser bem-sucedidos em investigações são raramente apresentados na ficção seriada televisiva estadunidense. A brutalidade, então, é quase sempre recompensada. O excesso de força também é mostrado como característica individual de alguns policiais, um retrato em contraste com sua natureza sistêmica no mundo real. A série Justified (Justificado; Leonard et al., 2010-2015) é um bom exemplo a este respeito. A produção exemplifica as questões já no seu título: “justificado”, condição que o protagonista Raylan Givens (Tymothy Olyphant) busca se inserir para defender a execução de criminosos. Pistoleiro estilo filmes western, o policial começa a série repreendido pela execução de um criminoso e transferido de uma prestigiada unidade policial em Miami para sua pequena cidade natal. Lá, Givens continua seguindo seu código: induzir o criminoso a sacar a arma primeiro, lhe garantindo a legítima defesa. Divisões internas da polícia, interessadas em investigar os comportamentos inadequados do policial, também são mostradas como empecilhos (Yost & Werner, 2012). Além disso, Givens aceita extorsão, negocia alianças com criminosos e recorre a tortura física para obter informações.
Apagar o fator racial é outro processo realizado para normalizar a violência policial. Como mostram os casos famosos estadunidenses de Rodney King (1992) a George Floyd (2020), raça é um dos principais fatores por trás da brutalidade da polícia no mundo real (Graham et al., 2020; Holmes & Smith, 2008). Séries policiais estadunidenses tendem a representar crimes cometidos por caucasianos de forma exagerada, buscando fugir de polêmicas raciais que possam afastar suas audiências. No ano de 1995, por exemplo, 79% dos criminosos condenados em Law & Order eram caucasianos, quando na vida real apenas 9% dos presos na cidade de Nova Iorque eram brancos (Selepak & Cain, 2015). Já afro-americanos (9% na série, 55% no mundo real) e hispânicos (12% na série, 30% na vida real) eram sub-representados (Selepak & Cain, 2015).
O método de aumento de exposição a criminosos caucasianos já foi defendido academicamente como válido para enfrentar o racismo (Dixon, 2006), mas, na prática, a “ação afirmativa” criminal contribui para apagar ainda mais a discussão racial dessas produções. Ao efetivamente remover o debate sobre raça, essas séries ignoraram problemas sistêmicos e enquadraram a criminalidade como um problema moral e individual. O racismo não é combatido, mas ignorado na ficção seriada institucional policial. Se, por um lado, os noticiários representam um retrato mais realista da criminalidade, embora não critiquem os problemas sistêmicos que contribuem para isso, por outro, as séries ficcionais, buscando evitar controvérsias, fazem um whitewashing (embranquecimento) da criminalidade que contribui para desconectar as ações do mundo real dificultando, assim, qualquer discussão crítica (Doyle, 2003).
Dentre as diversas produções que normalizam a brutalidade policial, 24 (Surnow et al., 2001-2010) é a mais emblemática, com seu retrato da tortura tão problemático que seus produtores receberam visitas repreendedoras de militares e agentes do FBI (Mayer, 2007). Embora sua primeira temporada tenha ido ao ar antes dos atentados de 11 de setembro, a série se tornou símbolo do período da guerra ao terror, onde a paranoia com o terrorismo tornou a vigilância doméstica, o sadismo e a tortura temas frequentes na televisão, sendo o conteúdo ficcional ou não (Hall, 2013). A série, a exemplo do seu título e do seu formato narrativo em tempo real, colocava seus personagens no dilema do ticking bomb scenario, ou cenário da bomba relógio em português, uma situação hipotética em que, devido a urgência para encontrar uma bomba que mataria milhões, métodos cruéis de tortura física seriam eticamente justificados. A produção girava em torno do agente de antiterrorismo Jack Bauer (Kiefer Sutherland), integrante de uma fictícia divisão governamental chamada Unidade de Contra-Terrorismo (CTU). Visto que os métodos da CTU eram muitas vezes enquadrados como ineficientes, cabia a Bauer passar por cima de seus supervisores (e da lei) para evitar tragédias, o que muitas vezes envolveu o uso da tortura2 e outras formas de brutalidade.
A violência em 24 é mostrada como lamentável, mas necessária para defender o status quo ameaçado pelo inimigo demoníaco do terrorismo, que também evoca o “nós” versus “eles”, no mundo real representado pela fala do então presidente George Bush: “ou você fica conosco, ou fica com os terroristas”. A tortura é diretamente mostrada como legítima, apesar de ser uma “última opção”. Bauer age assim e é enquadrado como eficiente (Kearns & Young, 2017), em um mundo onde a legitimidade policial é insuficiente para alcançar resultados. “Se não fizermos isso, milhões e milhões de Americanos vão morrer”, repetem frequentemente os personagens da série. A brutalidade não era apenas relacionada com um policial “vigilante”, mas também acontecia de forma institucionalizada, com o CTU dispondo de um profissional (o personagem Rick Burke [Martin Papazian]) e uma sala dedicada a métodos sofisticados de tortura. É importante ressaltarmos que a narrativa apresentava métodos convencionais de investigação e interrogação pacíficas como ineficazes (Kearns & Young, 2017).
Atualmente, as crises enfrentadas pela instituição policial, principalmente no que se refere à brutalidade policial, também têm ganhado espaço nas séries institucionais policiais. Todavia, são raras as críticas direcionadas à instituição. Como mencionamos anteriormente, algumas produções reforçam a retórica da excepcionalidade e o policial desvirtuado sofre consequências por seus atos. Todavia, em outras produções, a vítima da brutalidade policial é desmascarada por ter mentido ou cometido algum delito que justificasse a ação policial, eximindo, dessa maneira, a culpa do profissional, como no episódio “Excessive Force” (Força Excessiva; Burns & Zakrzewski, 2014, Temporada 5, Episódio 4) de Blue Bloods e no episódio “Justice” (Justiça; Brandt et al., 2016, Temporada 3, Episódio 21) de Chicago P.D. Consideramos problemática essa representação, de caráter pró-establishment, em que a brutalidade da ação policial, principalmente direcionadas às minorias, é justificada e a injustiça normalizada por meio da descredibilização das vítimas.
6. Conclusões
Neste artigo, buscamos contribuir com as discussões sobre a ficcionalização da justiça e do crime pelas séries institucionais policiais estadunidenses. Ilustramos como se dá a construção de um imaginário onde a figura policial é majoritariamente representada de forma heroica e incontestável. Ao mesmo tempo, essas produções justificam o abuso de autoridade desses profissionais e enquadram as violações de conduta e a brutalidade policial como o mal “necessário” para evitar algo ainda “pior”, a ação do criminoso. A impressão de que o excesso de força é uma técnica justificada e eficaz contrasta diretamente com a crise vivida pela instituição no mundo real, em que escândalos de violência policial, como o de George Floyd e Breonna Taylor, se apresentam com uma frequência alarmante. Ao reconhecer que estes retratos e enquadramentos da polícia e dos criminosos fomentam expectativas e imaginários sobre a violência do mundo real, defendemos que essas produções têm falhado em educar a população adequadamente sobre a complexidade da criminalidade e, mais importantemente, das atribuições das instituições policiais. Um excesso de imagens descontextualizadas afasta uma perspectiva mais realista e com nuances do trabalho policial, com essas produções sendo perigosamente a representação mais próxima desta realidade que grande parte das pessoas tem acesso (Mclaughlin & Murji, 1999).
Desse modo, as séries policiais ao legitimarem as violências das instituições do mundo real, diante da sociedade estadunidense, compactuam com essas entidades cumprindo um papel de subserviência a elas. Em alternativa, essas produções, ao retornarem regularmente ao status quo, atendem uma demanda básica da audiência: a sede por ver a justiça sendo feita rapidamente em um mundo cada vez mais complexo, burocrático e com instituições desgastadas. Trata-se, portanto, de uma fantasiosa proteção institucional em favor da população que é fincada no conservadorismo e no embate esvaziado de “bem” versus “mal”. Essa sede é evidenciada pela popularidade e longevidade dessas produções que permanecem décadas sendo exibidas e reexibidas na televisão, integrando, dessa maneira, parte significativa do cotidiano dos sujeitos. A televisão, em geral, e sua ficção seriada, em particular, protegem essas instituições errôneas e até mesmo falidas numa espécie de quid pro quo em troca da legitimação de seus produtos. Elas fazem isso ao romantizar o dia a dia desses profissionais, renegando em grande parte dilemas internos e enraizados que especialmente a polícia tem junto de uma cartilha da violência direcionada às minorias. Reiteramos, então, que ao blindar a audiência das falhas da instituição, as séries ficcionais televisivas contribuem para a crise institucional enfrentada pela polícia, que simplesmente não consegue sustentar a fantasia no cotidiano. Torna-se, assim, imprescindível questionarmos não só a ficcionalização da polícia pela mídia, mas o uso das séries de televisão pelas instituições do mundo real para regular os discursos produzidos pela ficção sobre si.