1. Introdução
Atualmente presenciamos os maiores avanços tecnológicos já vistos, enquanto milhões de pessoas sofrem sem ter o que comer e a pobreza assola a população mundial. E se a pobreza é o pior aspecto das desigualdades (Therborn, 2001), a fome é o pior aspecto da pobreza. Tanto que a Organização das Nações Unidas criou em 2000 os objetivos de desenvolvimento do milênio, cuja Meta 1 é a erradicação da pobreza e a Meta 2 “acabar com a fome”; mas só no item 10 aparece “reduzir a desigualdade” (Roma, 2019, p. 39). Desde que a Organização Mundial de Saúde decretou em 2020 uma pandemia devido ao novo coronavírus, esse contexto ganhou novos contornos e proporções. Muitas pessoas ciganas têm encontrado dificuldades para garantir a segurança alimentar, uma situação denunciada por ativistas e pesquisadores brasileiros e espanhóis em notas públicas (Aluízio, 2020; Khetane, 2020).
Diz Santos (2010) que o mundo é dividido por linhas abissais: do lado de lá, estão os oprimidos pela modernidade e suas três formas principais - o capitalismo, o heteropatriarcado e o colonialismo; do lado de cá, uma minoria, que usufrui da inclusão pelo consumo, em sua maioria europeus brancos ou seus descendentes. Aos que estão do lado de lá, como os romani1, Santos (2010) denomina-os “comunidades do sul”. O “sul” não significa apenas os países do sul. Norte dominante e sul excluído se manifestam em qualquer país. Trata-se de uma geopolítica do conhecimento (Dussel, 2005) que naturalizou opressões contra outros povos e a globalização como um novo padrão de poder mundial, cuja classificação da população ocorre com a ideia de raça (Mignolo, 2005). Por meio da colonização do ser (Maldonado-Torres, 2008), o homem-europeu-hetero-cristão-burguês foi construído como o ápice da evolução, a partir do qual se define quem é ou não humano.
Seguindo Bourdieu (1989), a desigualdade pode ser medida a partir da distribuição de capitais econômicos ou culturais entre os grupos. Barata (2009) pondera que “quando falamos em desigualdade social geralmente estamos nos referindo a situações que implicam algum grau de injustiça” (p. 12). São problemas que podem ser superados, mas não são por escolha política. Estão atrelados à organização social e refletem a iniquidade presente nas sociedades. Assim, a desigualdade é um fator importante para compreender a situação das populações ciganas.
Neste contexto em que os povos ciganos já se encontravam impactados por múltiplas formas de desigualdades sociais, educacionais, econômicas e culturais (Silva Júnior, 2018), com a pandemia da COVID-19 aprofundando-as, buscamos compreender de que forma a mídia retrata o impacto da pandemia entre estes grupos e como colabora para a construção discursiva destas realidades. Para fazer esta análise, nos apropriamos de uma discussão teórica sobre os processos históricos de construção da desigualdade étnico-racial das comunidades ciganas e sobre o papel dos estereótipos para analisar reportagens que abordam a temática cigana no contexto da pandemia em dois jornais, um brasileiro e outro espanhol.
2. Desigualdades Étnico-Raciais: O Caso das Comunidades Ciganas
Na Europa, as populações ciganas foram obrigadas a adaptar sua cultura às sanções que sofriam (Sierra, 2017). Sua mobilidade era condenada, enquanto sua permanência em determinados territórios era negada. Quando as nações europeias se ocupavam dos romani, os tratavam ou como escravos ou como um problema, proibindo as manifestações de sua cultura (Fienbork et al., 1992/1998). Ao mesmo tempo que se forçava o trabalho escravo nos continentes africano e americano, implementava-se na Europa medidas contra ciganos, como sua expulsão de Portugal, Inglaterra, Países Baixos, Veneza e Milão; ou a implementação de formas de escravidão na Espanha, Inglaterra e Moldova (Matache, 2014). Foram
acusados de praticar magia negra, de trazer epidemias, falsificar moedas, atiçar fogos, ter um aspecto diferente, mas sobretudo de serem estranhos. E, hoje ainda, os roma são bodes expiatórios quando, em tempos de crises econômicas e sociais, é preciso encontrar culpados. (Fienbork et al., 1992/1998, pp. 14-15)
Como consequência das perseguições, os povos ciganos chegaram às colônias europeias (Río, 2017). Em Espanha, o desterro se mostrou ineficaz: acreditava-se que poderiam alterar a constituição e segurança da América (Gómez, 2017). No Brasil, a trajetória cigana está ligada à política colonialista de Portugal. Inúmeras políticas anti-ciganas buscaram o genocídio, sua expulsão ou sedentarização (Borges, 2007). O país lusófono aplicou três tipos de degredo: o colonial, o interno e nas galés (Menini, 2014). Tal prática ocorreu durante todo o período colonial.
Junto com a expulsão, as autoridades portuguesas implementavam normativas persecutórias na colônia (Costa, 2012). Entre elas, os episódios das “correrias ciganas”, quando a polícia invadia acampamentos e matava muitas pessoas (Teixeira, 2008). A perseguição ocorreu em todos os estados. As correrias amenizaram depois de 1950, mas nunca cessaram. A partir dos anos 1960, o êxodo rural que impactou a população brasileira afetou as comunidades ciganas, cuja maioria abandonou o nomadismo no campo, para fixar residência nas periferias das cidades (Silva Júnior, 2009).
Este conjunto de discriminações contra as populações ciganas é chamado “anti-ciganismo” ou “ciganofobia” (Bastos, 2012), que inclui o projeto de construção da imagem cigana como o eterno estrangeiro e de desqualificação por meio de estereótipos, com suas identidades associadas à marginalização e pobreza. Tal imagem é reforçada, em grande medida, com a produção de acadêmicos e especialistas que concentram suas análises em suas limitações enquanto coletivo, as quais seriam consequências de aspectos culturais do grupo (Mirga-Kruszelnicka, 2015).
Os meios de produção de conteúdos simbólicos, como as artes, a ciência, a literatura, a mídia tradicional, o senso comum e o imaginário ocidental, incluindo os de Espanha e do Brasil, na maioria reforçaram estereótipos (Silva Júnior, 2018). Estereótipos sobre a população cigana fortalecem a generalização a todo o grupo de experiências negativas individuais. Condutas desviadas são atribuídas pela sociedade majoritária ao coletivo cigano (Fazito, 2006). Quando elas são encontradas nos não ciganos, se responsabiliza o indivíduo e não um coletivo (Garriga, 2000). Já “as vivências positivas com ciganos se classificam como anedotas, fatos excepcionais ou atípicos” (Oleaque, 2014, pp. 67-68). É por meio da atribuição de uma identidade ao outro, e da aceitação/rejeição/ manejo estratégico dessa identidade que se processa boa parte das relações de poder (Araújo, 2002). “Quem tem o poder de representar, tem o poder de definir/classificar e determinar a identidade” (Silva et al., 2000, p. 91). Ao abordarmos a relação das comunidades ciganas e instituições estatais, veículos de comunicação ou outras instituições, estamos tratando de uma luta pelo poder simbólico (Bourdieu, 1989). Assim, percebemos que a violência simbólica produzida pelos estereótipos foi utilizada para justificar as desigualdades sociais e também os processos de exclusão dos romani.
2.1. O Lugar da Comunicação e da Mídia na Construção do Genérico “Ciganos”
Os meios de comunicação têm um papel fundamental na construção dos debates públicos, contribuindo para a consolidação de narrativas sobre grupos sociais influenciando a construção de suas identidades e relações da sociedade majoritária com as minorias. No entanto, frequentemente, ao invés de questionar os estereótipos sobre as minorias2, os meios de comunicação hegemônicos geram mensagens negativas dominantes sobre elas. Uma das consequências deste processo é a interiorização por parte das próprias minorias dessas imagens estigmatizadas, assumindo estereótipos ou apresentando uma baixa autoestima (Ross, 2001; Willem, 2010). Segundo Willem (2010), os estereótipos difundidos na mídia têm mais força que aqueles que surgem do cotidiano, pois as mensagens são produzidas de maneira profissional e sofisticada.
Estas mensagens ajudam a construir o que Bonomo et al. (2017) chamam de “contato indireto” do grupo majoritário com as minorias. Neste estudo sobre as populações ciganas no estado do Espírito Santo, no Brasil, por exemplo, o nível de contato e de conhecimento dos participantes em relação a essa minoria étnica é muito baixo, dando-se especialmente por meio de filmes e/ou novelas, ou seja, indiretamente. O que reforça a centralidade dos meios de comunicação hegemônicos neste processo.
No geral, os resultados dos trabalhos que analisam a representação das populações ciganas nos meios de comunicação podem ser resumidos em duas ideias: a recorrente presença de estereótipos baseados no folclore e uma relação direta deste coletivo com situações de conflito (Silva Júnior, 2020). Oleaque (2014) identifica, em sua pesquisa realizada sobre a imprensa espanhola, que os indivíduos retratados são sempre lidos a partir de uma coletivização acompanhada de uma despersonalização. A palavra que mais aparece relacionada com ciganos é “famílias”; seguida de referências a “clã”, “etnia” e “raça”. Boa parte do material analisado está relacionado com situações de conflito. Quando se trata de conquistas ou talentos, destaca-se o indivíduo, como exceção ou numa perspectiva folclorizada. Nas matérias ligadas a “problemas”, apresentadas como pretextos para questionar ações políticas, os sujeitos ciganos costumam ter um papel passivo. Em alguns casos, aparecem como responsáveis dos “problemas” que afetam a sociedade majoritária. Nota-se que há pouco espaço para as pessoas ciganas e quando são entrevistadas, geralmente, aparecem com referências que as ridicularizam ou reforçam experiências marginalizadas (Oleaque, 2014).
Num trabalho que analisou os jornais espanhóis El País e El Mundo entre 2017 e 2019, Figueira-Cardoso et al. (2021) confirmam a presença de estereótipos aproximando “os ciganos do mundo artístico”, em que “os produtos artístico-culturais associados à ciganidade” (p. 224) são enaltecidos enquanto o próprio sujeito é invisibilizado e excluído, por vezes, associando-o à criminalidade (p. 225). Os autores identificaram também “a presença de conteúdos que denunciam as condições desiguais de acesso a bens e serviços por parte de membros de grupos ciganos, bem como as práticas discriminatórias das quais frequentemente são alvo” (Figueira-Cardoso et al., 2021, p. 225). Nestes casos, há maior presença das “narrativas de ciganos sobre suas próprias experiências” (Figueira-Cardoso et al., 2021, p. 225) mostrando alguns avanços em relação a períodos anteriores, como no trabalho de Oleaque (2014). O material analisado coincidiu com a eleição de quatro deputados/as ciganos/as ao congresso de Espanha (Gonçalves, 2019).
No Brasil, Miranda (2017) identificou uma “escassez de notícias relacionadas à etnia e recorrência das temáticas pertinentes a crimes supostamente cometidos por indivíduos de origem cigana, raramente identificados por nomes próprios” (p. 140) em notícias analisadas entre 2014 e 2015. Todas veiculadas em sites ou portais de abrangência local, mostrando a ausência dessa minoria nos veículos noticiosos de alcance nacional. Para a autora,
a utilização do termo genérico “cigano” nomeia tanto o indivíduo, quanto a etnia, encorajando a percepção de que todos os indivíduos de origem cigana seriam iguais e reforça o estereótipo do cigano marginal ou de etnia propensa à marginalidade, enquanto demarcador identitário e por consequência culpado antes mesmo de ser julgado. (Miranda, 2017, p. 145)
Vemos, assim, maior presença dos povos ciganos na imprensa espanhola, se compararmos com a realidade brasileira, ao mesmo tempo em que há confluência em ambos países na associação à criminalidade. A maior variedade de temas abordados na Espanha, cedendo espaço a questões políticas, poderia influenciar uma cobertura diferenciada sobre o modo como a pandemia da COVID-19 afetou as comunidades ciganas. No entanto, como debatido anteriormente, ao se tratar de uma crise sanitária mundial, as minorias facilmente podem ser colocadas no lugar de bode expiatório, reforçando estereótipos e piorando condições sociais desiguais em que já se encontram.
3. Reflexões Teóricas Para uma Metodologia Crítica
As relações discursivas não são simétricas. Há negociações e conflitos para que um ponto de vista se torne hegemônico (Araújo, 2002). O direito de falar e de ser ouvido é uma disputa e o que está em jogo é o poder simbólico (Bourdieu, 1989). Devido a uma série de mediações, alguns interlocutores detêm maior parcela deste poder e se tornam vozes hegemônicas. Outros, desprovidos de capital simbólico ou econômico, ficam à margem discursiva, tendo suas vozes desqualificadas ou silenciadas (Araújo, 2002).
De modo estruturante, este direito se relaciona com as políticas públicas, que só se constituem quando são circuladas e apropriadas (Araújo & Cardoso, 2007). Ou seja, o direito à comunicação não se dissocia do direito à saúde e da noção de cidadania. Existe uma forte relação entre a comunicação e a desigualdade, que se expressa pela invisibilidade e silenciamento (Silva Júnior, 2018). Sem visibilidade não há políticas públicas, recursos financeiros, serviços adequados (Araújo, 2002).
Assim, a comunicação tanto pode auxiliar em favor da justiça, quanto na manutenção das desigualdades. Este mercado simbólico é um fluxo infinito e contínuo, composto por três elementos: a produção de bens simbólicos, sua circulação e a sua apropriação (Araújo, 2002). Ele opera em qualquer ato comunicativo, incluindo aqueles produzidos pelas mídias, as políticas públicas, e as lutas sociais. Levar em conta esse processo é fundamental para construirmos uma análise crítica sobre a relação entre a COVID-19 e as comunidades ciganas.
Neste cenário, propomos o estudo de dois casos relacionados com a cobertura feita por jornais impressos em torno da pandemia nas comunidades ciganas, no Brasil e em Espanha, em 2020. A escolha dos dois países se deve primeiramente à experiência prévia de trabalho de campo dos autores nestas localidades. Tal experiência amplia e aprofunda as possibilidades de análise do material selecionado devido a um maior conhecimento histórico, social e cultural dos países escolhidos. Além disso, a escolha evidencia dois contextos diferentes na relação entre estado, povos ciganos e colonização. Enquanto o Brasil representa as políticas de desterro praticadas por Portugal, expulsando a população cigana para as terras de suas colônias (Río, 2017), Espanha assumiu uma postura diferente ao acreditar que a população cigana poderia alterar a constituição da América e sua segurança (Gómez, 2017).
Refletimos sobre se estas diferentes posturas em relação aos povos ciganos nos dois continentes alterariam a forma como estas comunidades são tratadas na sociedade e retratadas na mídia. Buscamos entender o lugar discursivo ocupado por estes veículos e aquele reivindicado às comunidades romani em um contexto de crise sanitária. Para este debate, trazemos a ideia de que a comunicação se configura como constituinte das práticas decorrentes das políticas de saúde. E mais: visamos nos textos analisados compreender como os dois jornais selecionados abordam as comunidades ciganas no contexto da pandemia da COVID-19, que espaço lhes foi dado e em que medida os processos de construção desse “outro cigano” são rompidos ou reproduzidos.
Para o caso da Espanha, escolhemos um exemplo que teve muita repercussão entre associações e ativistas ciganos. O material analisado traz texto principal e uma matéria correlata distribuídos em duas páginas da edição. Pelo menos, 13 páginas de redes sociais de ativistas e associações romani em Espanha denunciaram a abordagem do jornal ABC, que tem mais de 100 anos e representa a perspectiva conservadora do país. Do Brasil trazemos um caso que ocorreu na cidade de Trindade, estado de Goiás, que teve repercussão na mídia estadual. Optamos por este caso, pois nos grandes veículos da mídia nacional a pauta “ciganos e pandemia” está ausente, sendo O Popular o único jornal impresso que dedicou espaço relevante para abordar os povos ciganos durante a pandemia da COVID-19 em 2020. O tema veio à tona após articulação entre militantes ciganos e pesquisadores deste universo junto da redação do jornal (Longo, 2020). Após isso, o assunto foi destaque no portal G1 Goiás (Oliveira, 2020) e no telejornal local da Globo.
4. As Reportagens dos Jornais ABC, em Espanha, e O Popular, no Brasil
Em Espanha, a pandemia do coronavírus veio acompanhada de atos racistas e com a população cigana não foi diferente. Os casos de culpabilização das comunidades ciganas pela difusão do vírus se espalharam pelo WhatsApp e meios de comunicação. Ativistas e entidades romani se viram diante de dois desafios: mobilização para garantir alimentação e ingressos mínimos para aqueles que tiveram suas rendas afetadas pelo distanciamento social, especialmente os que trabalham com comércio; e combater desinformação e discursos de ódio relacionados com o coronavírus.
A mobilização resultou na produção de artigos e matérias denunciando as abordagens, com reflexões sobre o racismo e a pandemia. Alguns exemplos: a matéria da página de verificação de fatos Newtral, intitulada “La Guardia Civil Niega que un Grupo de Vecinos ‘Gitanos de Haro’ Hayan Rechazado ‘Seguir los Protocolos de Sanidad’” (A Polícia Civil Nega que um Grupo de Vizinhos “Ciganos de Hara” Se Negaram a “Seguir os Protocolos de Saúde”; Maroñas, 2020); a matéria de El Cierre Digital, com o título “Santoña: Acusan Injustamente a los Gitanos de la Localidad de Transmitir el Coronavirus” (Santoña: Acusam Injustamente os Ciganos do Local de Transmitir o Coronavírus; J. M. Fernández, 2020); ou a matéria de El Confidencial, “No Te Creas Estos Audios de WhatsApp que Siembran el Pánico Sobre el Coronavirus” (Não Acredite nos Áudios de WhatsApp que Semeiam o Pânico Sobre o Coronavírus; Méndez, 2020). Já associações ciganas produziram artigos para denunciar os episódios racistas, como a Fakali que teve uma de suas notas repercutidas em La Vanguardia (EFE, 2020) e Europa Press (Asociaciones de Mujeres Gitana Alerta de Episodios “Racistas y Antigitanos” Durante la Crisis del COVID-19, 2020).
O caso que teve maior repercussão foi a matéria de capa do jornal ABC Sevilla (“El Confinamiento Para Frenar el Coronavirus Fracasa en los Barrios Marginales de Sevilla”, 20 de março de 2020), comunidade autônoma espanhola com a maior população cigana do país. Na foto, que ocupa toda a capa, aparece um policial de costas, em primeiro plano desfocado e, ao fundo, quatro mulheres na janela de um apartamento com as mãos levantadas para fora e expressões que podem ser interpretadas como riso ou protesto. A legenda diz: “vizinhos do bairro Tres Mil repreendem os agentes que os obrigavam a permanecer em seus domicílios”. Já no título consta: “o difícil confinamento da Sevilha marginal - os bairros mais conflitivos desobedecem à ordem de não sair. O comissário das Tres Mil pede a presença do exército em suas ruas”.
Las Tres Mil Viviendas é um conhecido bairro de Sevilha, construído durante a ditadura franquista dentro das políticas urbanísticas desenvolvidas nos anos 1960 e 1970, para combater o aumento de pessoas que viviam em barracas (chabolismo), atingindo as já excluídas famílias ciganas (Gonçalves, 2019). Estes bairros se degradaram rapidamente, pela alta concentração de famílias, localizações afastadas e infraestrutura deficiente. Neste contexto se encontra a matéria de capa do jornal ABC. Apesar de não serem mencionadas palavras como “cigano” e “cigana” na reportagem principal, é amplamente conhecido, em Espanha, que o bairro Las Tres Mil Viviendas é um dos maiores bairros guetos ciganos do país3. A reportagem “El Confinamiento Para Frenar el Coronavirus Fracasa en los Barrios Marginales de Sevilla” (O Confinamento Para Frear o Vírus Fracassa nos Bairros Marginais; 20 de março de 2020), de Silvia Tubio, começa fazendo a oposição entre um “nós” e um “eles”. De um lado, a “Sevilha confinada em suas casas”, que faz um esforço para frear o contágio do vírus e, de outro, “os bairros conflitivos”, que descumprem as ordens (p. 22).
O texto dá alguns exemplos de “atitudes não cívicas” em outros bairros periféricos, como a detenção de cinco pessoas na região chamada “Los Pajaritos”, outro bairro com concentração de população cigana, após um conflito com a polícia. A repórter usa o termo “clã” para identificar os envolvidos. A reportagem traz ainda as declarações do comissionado Jaime Bretón, responsável pelo Polígono Sur, zona onde se encontra o bairro Las Tres Mil Viviendas, referindo-se a clãs4 familiares para responsabilizar aquelas pessoas que não se ajustam às recomendações das autoridades.
O texto jornalístico finaliza relacionando o não cumprimento do confinamento com a exclusão social. No entanto, a responsabilização recai apenas em um determinado grupo de moradores do bairro. A única fala de moradores citada não é nomeada. Ela é identificada como uma vizinha que aparece em um contexto de infantilização ao narrar sua atitude de fazer piadas e bater palmas, enquanto retorna às ruas logo que a polícia deixa o local. A cena se opõe à gravidade da frase dita por ela: “se não temos para comer, senhor agente. Teremos de sair” (p. 22).
Na matéria correlata, com o título “La Iglesia Evangélica Mantiene los Cultos” (A Igreja Evangélica Mantém os Cultos; 20 de março de 2020), é feita a única menção à “etnia cigana”. Nesse texto, a repórter mistura informações relacionadas com celebrações religiosas durante o confinamento e um caso de contágio em um velório quando a quarentena nacional ainda não havia sido determinada pelo governo. A situação ganhou repercussão nos meios de comunicação por haver sido um dos primeiros grandes focos de contágio em Espanha. No entanto, gerou muita informação falsa e discurso de ódio contra as populações ciganas devido a dois áudios circulados no WhatsApp alegando que as famílias ciganas contaminadas se recusaram a seguir os protocolos de saúde.
No Brasil, apesar de a pandemia estar imensamente presente em todos os veículos de comunicação da grande mídia, as populações ciganas estão ausentes deste cenário. A publicação de conteúdos nacionais acerca do tema ocorreu por meio de reportagens ligadas a entidades científicas, veículos alternativos e dos movimentos ciganos (Silva Júnior & Gonçalves, 2021). Por isso, optamos por focar em um caso que ganhou destaque na grande mídia local referente a uma comunidade da etnia calon da cidade de Trindade, Goiás, circulando no jornal O Popular, no portal de notícias G1 Goiás e na TV Anhanguera, afiliada da Rede Globo. Participamos no processo de articulação para sua exposição na mídia, por meio do contato com O Popular.
A comunidade cigana de Trindade vive há mais de 100 anos no município, concentrada nos bairros Vila Pai Eterno e Samara, composta por aproximadamente 1.200 pessoas. O caso chegou ao nosso conhecimento pelo grupo de WhastApp “Estudos Ciganos”, do qual participamos, que reúne pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades.
Nosso diálogo se deu com duas lideranças da comunidade, o casal Simone e Erli, fazendo uma intermediação com a jornalista d’O Popular, que conversou com o autor do artigo ao telefone por mais de 1 hora e recebeu documentos sobre o tema, incluindo a Nota Pública: Pesquisadores e Ativistas Alertam Para Racismo Contra Grupos Ciganos Durante a Pandemia e Cobram Plano Emergencial (Aluízio, 2020). Tal nota não foi citada na reportagem, cujo título é “Uma Comunidade em Pânico”, publicada em 22 de julho de 2020. Entre as fontes utilizadas para a reportagem, há um maior destaque para as chamadas fontes oficiais, representadas aqui pela prefeitura de Trindade, que aparece já no primeiro parágrafo e no subtítulo “prefeitura de Trindade diz que tem dado apoio”. Representantes desse órgão de administração detalham como realizam um atendimento de qualidade às pessoas romani que vivem no município e que a responsabilidade das contaminações é da própria comunidade, ao fazerem festa aglomerando pessoas. Por outro lado, as falas de Aluízio Azevedo e de lideranças da comunidade estão menos presentes no texto, em posição inferior, pois os primeiros parágrafos são os mais apreciados de um texto jornalístico impresso.
A matéria começa com um título objetivo e uma contextualização sobre o pânico que as pessoas estão vivendo na comunidade. Entretanto, no subtítulo, aparece a primeira referência a um estereótipo, o que seria, segundo a reportagem, um traço identitário do grupo: “mais de 50 pessoas de um grupo de ciganos de Trindade, que tem nas reuniões festivas uma de suas características culturais, se contaminaram com o coronavírus. Um homem morreu” (p. 11). A repórter relata a angústia da comunidade, tenta contextualizar o quão grande ela é e, sem citar a fonte, diz que lideranças da comunidade denunciaram não ter acesso ao atendimento devido ao preconceito nos serviços de saúde.
No entanto, a palavra final é dada à prefeitura, que contesta a informação, afirmando que tem prestado atendimento necessário e culpabiliza as próprias pessoas da comunidade, reafirmando o estereótipo de “povo festivo”: “a secretaria municipal de saúde diz que desde o início da pandemia tem prestado assistência aos ciganos e ampliou a atenção após uma festa ocorrida em junho, que teria contribuído para a disseminação do coronavírus (SAR-Cov-2) na comunidade” (p. 11).
No texto aparecem as vozes de três lideranças da comunidade cigana de Trindade: Erli Gomes da Silva, Simone Soares da Costa e Júlio César. Todas são utilizadas para confirmar a versão do estereótipo da festa. No terceiro parágrafo, por exemplo, Erli e Simone têm suas falas construídas de modo a reforçar o aspecto da coletividade cigana como responsável pelo contágio. Já no quinto parágrafo, a voz que atravessa com destaque é a de um pastor da igreja presbiteriana. A ligação de uma instituição religiosa evangélica atuando nas comunidades ciganas é uma realidade bem forte no Brasil e em Espanha, como vimos também na análise anterior do jornal ABC.
Outra voz citada no sexto parágrafo é a da secretária nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Sandra Terena, que, segundo a reportagem, teria sido mobilizada por ativistas e pesquisadores da cultura cigana a vistoriar o ocorrido. Neste parágrafo, para denunciar a omissão do governo federal e da prefeitura, aparece também uma fala de Aluízio de Azevedo, uma das fontes utilizadas para representar a voz das comunidades ciganas.
Um trecho deste parágrafo traz a fala de Aluízio Azevedo, nos seguintes termos:
pelo que eu soube até agora nada aconteceu, a prefeitura de Trindade continua muito omissa, assim como o governo federal e a comunidade está apavorada. E o pior é que, aqueles com melhores condições estão saindo da cidade podendo contaminar outras pessoas em locais diferentes, diz Aluízio de Azevedo, o cigano Kalon. (p. 11)
Essa fala foi deslocada de contexto e distorcida, de forma a culpabilizar as vítimas ciganas. A falta de referência à nota pública, por exemplo, dificulta a contextualização da situação das comunidades ciganas, já que seu deslocamento é vital inclusive para a sua sobrevivência, considerando que as vendas de casa em casa são a principal fonte de renda da maioria das pessoas dessas etnias. Logo, viajar é uma questão de renda.
Ao contrário do que diz a reportagem, Aluízio de Azevedo não participou e não acompanhou a reunião ou a visita de Terena a Trindade, mas sim participou no mês de abril, em conjunto com ativistas ciganos de todo o país, de uma reunião virtual com a secretária, quando ela afirmou que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disponibilizaria cestas básicas e kits de higiene para comunidades ciganas, mas não atenderia a toda a demanda, pois não havia recursos suficientes.
Percebemos, portanto, que tanto a abordagem do jornal ABC de Espanha quanto do jornal O Popular do Brasil acabam por reproduzir imagens negativas sobre as pessoas ciganas quando o tema é sua relação com a pandemia, reforçando inclusive estereótipos já antigos do imaginário social de ambos os países.
5. Estratégias Para Invisibilidade e Silenciamento: Algumas Palavras Finais
A maioria dos sistemas de representação simbólicos, como as artes plásticas, o cinema, a literatura, o teatro, os veículos da grande mídia e mesmo a ciência hegemônica ou o senso comum, reproduz estereótipos e racismos de um imaginário coletivo negativo e devastador para as comunidades ciganas. Tais representações justificam e ampliam a exclusão social, a pobreza ou o extermínio/genocídio. Processos históricos de exclusão a que as populações ciganas são submetidas há mais de 5 séculos seguem vigentes, em outros suportes e plataformas.
As duas reportagens analisadas confirmam que os meios de comunicação de massa têm um papel importante para manter o silenciamento das vozes ciganas. Não há personagens ciganas ou narrativas sobre os modos de vida, costumes e tradições. E quando há, são estereotipados ou têm suas vozes diminuídas ou deslocadas em importância sobre um tema que deveria ter centralidade.
As políticas de expulsão, que conformaram o nomadismo milenar das comunidades ciganas a ponto de tornar-se um elemento cultural, fazem parte da colonização do poder (Mignolo, 2007). As políticas persecutórias e violências físicas contra as pessoas ciganas, bem como o racismo estrutural no âmbito dos serviços cidadãos, incluindo a saúde e a comunicação, entre outros, são alguns de seus reflexos, excluindo as pessoas ciganas da cidadania.
Do ponto de vista da colonização do saber (Lander, 2005), a invisibilidade romani se manifesta na ciência, estando ausentes das pesquisas ou, quando presentes, têm as vozes silenciadas na história oficial, omitindo a contribuição para a construção da identidade e da cultura brasileira ou, no caso da Espanha, sendo usadas da maneira que convém aos objetivos da nação. Esta colonização se concretiza, por exemplo, no apagamento de narrativas romani, que não são referidas nos livros e nos currículos escolares e não são levados em conta pelo paradigma hegemônico, uma situação que ocorre no Brasil (Silva Júnior, 2009).
Do ponto de vista da colonização do ser (Maldonado-Torres, 2008), a invisibilidade aparece nos processos de estereotipação, silenciamento e inferiorização racial. Essas táticas são utilizadas em todos os bens simbólicos produzidos pela grande mídia, como nas duas abordagens jornalísticas analisadas. Tais processos afetam o imaginário social de diferentes sociedades, alimentando preconceitos e o racismo das políticas dos profissionais e serviços públicos.
Nas reportagens, a culpa pelo contágio da COVID-19 é jogada para as próprias vítimas. Enquanto o poder público é isentado de suas responsabilidades, como a exclusão, durante séculos, das comunidades ciganas, inclusive do atendimento em saúde. Constatamos que gestores dos sistemas de saúde aparecem com prioridade, averbando o direito à fala e prerrogativa à verdade, definindo narrativas dominantes. Entretanto, como Silva Júnior (2018), compreendemos que as pessoas romani “lutam pela inclusão, colocando em (enunci)ação táticas de resistência para se manterem na disputa pelo poder simbólico e conquistar o direito à saúde, à comunicação e à cidadania” (p. 19).