1. Introdução: Jornalismo Literário Português no Panorama Nacional e Internacional
O estudo do jornalismo literário internacional tem vindo a crescer consideravelmente nas últimas décadas, em particular graças aos esforços de grupos de investigação como a Associação Internacional de Estudos de Jornalismo Literário fundada em 2006 e à revista bianual Literary Journalism Studies publicada desde 2009. Alguns dos seus membros de renome, como John Hartsock, John Bak e Bill Reynolds, têm editado importantes obras que procuram dar uma visão global sobre esta temática, como por exemplo com a obra Literary Journalism Across the Globe (Jornalismo Literário Pelo Mundo; Bak & Reynolds, 2011) e o livro Routledge Companion to World Literary Journalism (Livro Complementar da Routledge do Jornalismo Literário Mundial; Bak & Reynolds, 2023). Importa clarificar que por “jornalismo literário” entende-se jornalismo de investigação escrito, tipicamente de maiores dimensões e de teor literário, produzido através de uma reportagem factual, incisiva e rigorosa. Ora, sendo o jornalismo literário por vezes difícil de definir até pela escolástica dedicada a este tema1, talvez a melhor forma de abordar o conceito seja então através de exemplos práticos.
Neste sentido, tome-se como ponto de partida os fogos que afligiram Portugal em 2017 na zona de Castanheira de Pera. Foram vários os artigos escritos sobre este momento trágico da história recente e o jornalismo português acompanhou de perto este acontecimento esforçando-se para informar. Enquanto algumas redações procuraram uma abordagem mais sensacionalista (como foi o caso do canal TVI, alvo de críticas da Entidade Reguladora da Comunicação e do Sindicato de Jornalistas), outros procuraram reportar o trágico episódio através de histórias próximas das pessoas no local, das vidas perdidas e do cenário desolador. Um exemplo disso mesmo pode ser encontrado na reportagem de Ricardo Marques (2017) para o Expresso, intitulada “A Estrada Mais Triste de Portugal”. Esta reportagem não informa necessariamente mais do que um direto na televisão ou uma estatística elucidativa, ou até um dos vários artigos publicados na altura. Contudo, a intenção deste trabalho não é esse tipo de informação, mas antes um esforço de contar uma história real que possa de alguma forma sensibilizar o leitor. Refira-se também outro exemplo de jornalismo literário sobre o tema com o livro de Patrícia Carvalho (2018), Ainda Aqui Estou. Ambos os exemplos encaixam numa procura de proximidade ao evento e aos seus protagonistas, algo que define o jornalismo literário, sendo o resultado:
histórias que ficam connosco e ( … ) pode ser que até se leiam melhor com o passar do tempo. Neste sentido a melhor caracterização do jornalismo literário será em última estância aquela que foi proferida por Ezra Pound quando se referia à literatura: “notícias que continuam a ser notícias”. (Kerrane, 1998, p. 20)
Desta forma podemos dizer que há um tipo de jornalismo que segue a linha da pirâmide invertida e que é direto na transmissão da informação, sendo essencial para o conhecimento do dia a dia. Já uma investigação de maiores dimensões, uma reportagem necessariamente escrita que procure contar uma história de um acontecimento ou possibilitar a partilha de uma perspetiva, e cuja escrita seja descritiva e investigativa por natureza, será mais próxima do que definimos como “jornalismo literário”. Ilustrativo disto é por exemplo a peça Hiroshima, de John Hersey (1946), ou Fractured Lands (Terras Fracturadas), de Scott Anderson (2017). Ambas as obras retratam dois acontecimentos complexos e tratam-nos de uma forma próxima e humana, distante daquilo que encontramos no jornalismo dito convencional. No primeiro caso, temos uma reportagem sobre o antes e o depois da bomba atómica em Hiroshima e, no segundo caso, um trabalho sobre o desenvolvimento da Primavera Árabe e suas consequências até à crise migratória. Existem milhares de artigos jornalísticos sobre ambos os temas. Ainda assim, John Hersey (1946) e Scott Anderson (2017) destacam-se na cobertura de ambos os acontecimentos, sendo que as suas investigações jornalísticas podem ainda hoje ser encontradas em formato livro. Por outro lado, os vários artigos publicados em jornais da época sobre Hiroshima ou sobre o médio oriente tornam-se de difícil acesso à medida que o tempo vai passando.
O que torna estes dois exemplos em obras intemporais é o seu foco no lado humano da história e a forma como estas ficam connosco, independentemente da descoberta de novos factos ou dados que complementam o acontecimento em foco. A reportagem de Hersey (1946), adaptada do seu trabalho para o The New Yorker, e a de Anderson (2017), adaptada do original para o New York Times são, como já se mencionou antes, “notícias que continuam notícias” (Kerrane, 1998, p. 20). De certa forma, o jornalismo literário destes dois autores reflete aquilo que se entende como bons exemplos do que representa este género: um jornalismo que permanece e deixa algo com o leitor através da sua técnica e estilo literário, pertinência e relevância na investigação.
Dito isto, e estando nós mais próximos de uma definição de jornalismo literário, procurará esta abordagem agora contribuir para o estudo desta realidade no campo nacional. Ainda que o jornalismo literário de língua portuguesa tenha sido foco de estudos recentes2, o contexto nacional e a sua longa história ainda carecem de um estudo mais detalhado que possa contribuir para uma visão mais integrada e contextual, para além do foco num autor apenas ou num período específico. Para tal, iremos considerar diferentes momentos da história nacional de forma a conseguirmos destacar alguns dos mais importantes jornalistas literários portugueses, tendo em conta não só as suas reportagens, mas também os investigadores que já se debruçaram sobre este tema em estudos prévios.
2. O Jornalismo Literário Português e as Suas Origens
Estudar o jornalismo literário português permite, neste sentido, reconhecer e dar valor à capacidade literária e investigativa dos jornalistas portugueses, sendo de destacar a importância deste tipo de reportagem para a história do jornalismo nacional.
Assim, e de forma a possibilitar uma breve análise cronológica sobre os primórdios do jornalismo literário português, considere-se agora as últimas décadas do século XIX e os primeiros passos do jornalismo literário nacional durante este período3. Importa notar que, a nível económico-social, Portugal sofreu nesta época claras transformações que permitiram avanços únicos na evolução da comunicação das notícias e do jornalismo no campo nacional graças, em parte, ao desenvolvimento das linhas férreas, ao crescimento das ruas pavimentadas e à implementação do telégrafo. Ao mesmo tempo e em termos económicos ocorreram grandes desenvolvimentos por todo o país de tal forma profundos que Ramalho Ortigão (1887) viria a professar:
dir-se-ia que os nossos pais morreram para nós muito mais completamente do que morreram para eles os seus avós e os seus bisavôs, levando consigo, ao desaparecerem, tudo quanto os rodeava na vida: a casa, o jardim, a rua que habitavam. (p. 160)
Ainda assim, Portugal não conseguia competir com o resto da Europa, chegando ao fim do século XIX numa clara crise económico-social. Curiosamente foi neste período que Portugal conheceu uma geração intelectual nunca antes vista, sendo hoje conhecida como a “Geração de 70”. Isabel Soares (2011) destaca desta geração quatro autores - Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Jaime Batalha Reis - cujas narrativas, na sua perspetiva, se enquadram numa possível origem do jornalismo literário português e merecem por isso destaque. Influenciados pela mais rica nação da Europa na época - Inglaterra -, estes autores foram inspirados não só pela literatura ficcional, mas também pela não-ficção e pelo jornalismo inglês. Ainda que seja inegável a influência que Inglaterra teve para estes autores, importa salientar que cada um tinha uma visão distinta deste país:
Ramalho Ortigão e Oliveira Martins descreveram-nos a Grã-Bretanha e os que nela viviam como viajantes que, de passagem, apreciam os fenómenos sociais ( … ). Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis não só nos relataram a experiência de quem estacionou, por largo tempo, nessas paragens, como nos propuseram, também, a análise da política internacional. (Marinho, 1988, p. 11)
Parte desse fascínio pela Inglaterra começou com a influência da revista Pall Mall Gazette, uma publicação cuja linguagem irreverente e sensacionalista chocou com a imprensa da época, em parte graças à escolha de temas normalmente fora da esfera pública (como, por exemplo, a questão da prostituição nas ruas de Londres), tendo esta revista sido descrita na época como new journalism (novo jornalismo; Kerrane, 1998, p. 17)4. Atravessando fronteiras e influenciando leitores, a Pall Mall Gazette acabaria por ter um impacto em vários membros da “geração de 70”. Os quatro autores enunciados anteriormente são maioritariamente conhecidos pelo seu contributo para a literatura nacional (com a exceção de Oliveira Martins). Contudo, são as suas contribuições jornalísticas que serão aqui tidas em conta, em particular através da influência do jornalismo praticado no Reino Unido e da relação que estes autores tiveram com esta realidade.
Segundo a perspetiva de Soares (2011), as seguintes narrativas de cada autor encaixam no que definimos como “jornalismo literário”: de Eça de Queirós (2000), destaca-se o livro Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, um conjunto de narrativas provenientes da colaboração para o jornal A Actualidade em 1877/1878 (“Cartas de Inglaterra”) e para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro na década de 1880 (“Crónicas de Londres”); de Ramalho Ortigão (1943), destaca-se John Bull: O Processo Gordon Cumming, Lord Salisbury e Correlativos Desgostos; de Jaime Batalha Reis (1988), temos os seus artigos escritos em 1888 e entre 1893 e 1896 para a Revista Inglesa: Crónicas; e, por fim, de Oliveira Martins (1951), os artigos sobre a sua viagem a Inglaterra em 1892, publicados em A Inglaterra de Hoje: Cartas de um Viajante.
De notar que o jornalismo literário, na sua génese, é profundamente influenciado pelo jornalismo de viagem e, por norma, o seu resultado provém de uma produção mediática menos afetada por constrangimentos de tempo e número de palavras, possibilitando assim a criação de uma reportagem de maiores dimensões. Ainda assim, neste campo, tal como argumenta Soares (2011, pp. 118-133), cada um destes autores possui nos seus escritos jornalísticos uma ligação ténue com os factos e na sua abordagem jornalística uma natureza intervencionista e provocatória. Refira-se, neste ponto, que a narrativa jornalística destes autores é um produto dos seus tempos e o código ético de factualidade, imparcialidade e justiça que tendemos a associar ao jornalismo de qualidade de hoje em dia estava longe da mente e prática dos jornalistas e das redações do fim do século XIX. Neste sentido, ainda que seja importante mencionar estes quatro autores e o seu contributo para o desenvolvimento do jornalismo literário português, é ainda assim essencial reconhecer a ténue relação das suas obras jornalísticas com os factos e a realidade dos acontecimentos relatados. O conceito de jornalismo literário é algo moderno. Por isso, é importante assinalar que este estudo tem em conta os contributos jornalísticos e literários destes autores (e outros)5, apesar de, numa visão mais recente de precisão e rigor, as suas obras não encaixarem necessariamente na noção de jornalismo. Ora, segundo Siegel (2016), o jornalismo literário prevalece em tempos de crise sociopolítica e a verdade é que este argumento assenta também na realidade portuguesa. De facto, com o fim da monarquia e os tempos conturbados da Primeira República, começamos a encontrar mais exemplos de jornalismo literário, estando estes mais em linha com a definição moderna do género. Um exemplo disso pode ser encontrado nas reportagens de Hermano Neves para o jornal O Mundo durante a revolução de outubro de 1910. Importa dizer que Hermano Neves era um assumido republicano e que antes da revolução já manifestava tal afiliação. Como aponta António Ventura (1910) sobre Hermano Neves:
em 1904 decidiu ir para a Alemanha ( … ) [onde] trabalhou e estudou Medicina ( … ). Já nessa época abraçara o ideal republicano. Quando o embaixador de Portugal na capital germânica ( … ) [informou] que lhe tinha sido concedida uma bolsa pelo rei D. Carlos, Hermano recusou-a dizendo: “Peço-lhe que agradeça a Sua Majestade a amável lembrança que teve, mas não posso aceitar a pensão porque sou republicano”. (p. IV)
Ora é importante que se distinga que tal afiliação não parece constituir um problema que comprometa a veracidade do seu trabalho e os factos do acontecimento narrado. Contudo, o seu republicanismo está presente em alguns momentos e parece por vezes falar mais alto, resultando num entusiasmo claro ao longo da sua cobertura.
Construído como uma grande reportagem, o trabalho de Hermano Neves (1910) narra os acontecimentos da revolução enquanto enquadra o leitor sobre os seus antecedentes e os diferentes grupos republicanos que levaram àquele momento. Mas é talvez a inclusão constante de diálogos e entrevistas que torna a obra de Neves tão apelativa e marcante, já que por várias vezes dá voz aos militares e oficiais que fizeram a revolução, dando a sensação de uma desorganização que estranhamente funciona. Estas reportagens que viriam a ser compiladas no mesmo ano no livro Como Triumphou a Republica (H. Neves, 1910) representam apenas parte do contributo de Hermano Neves para o jornalismo literário português e a verdade é que o mesmo continuaria a fazer história ao longo da sua carreira. Um exemplo do seu contributo pode ser visto também nos primeiros anos do novo regime e no que seria um dos conflitos internacionais mais trágicos para Portugal e para a Primeira República: a participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial. Mais uma vez o contributo de Hermano Neves pode ser visto no seu trabalho para o jornal A Capital, tendo esta redação tomado a decisão histórica de enviar um repórter português para cobrir especialmente o conflito (algo que ainda não tinha acontecido até à data). Seguem-se outras redações portuguesas que tomaram semelhante decisão e cujo resultado representa, em larga parte, uma cobertura que deve ser considerada de jornalismo literário6.
Igualmente ligado a um acontecimento que marcou a história de Portugal está outro jornalista literário: Reinaldo Ferreira, ou, como se fez conhecido para o público na época, o Repórter X. Importa notar que ainda hoje este jornalista é alvo de escrutínio e análise dada a ténue ligação dos seus textos com os factos. Contudo, o seu contributo para a reportagem em Portugal é alvo de elogios (Godinho, 2009, p. 135), ainda que a sua deontologia duvidosa e invenção em algumas das suas peças denunciem inevitavelmente a ficção no seu trabalho (Sucena, 1996, pp. 34-35). Neste campo é importante referir o seu artigo de 15 de dezembro de 1918 para O Século (Reinaldo, 1918), onde retrata os últimos momentos de vida de Sidónio Pais e a comoção que se gerou após o tiro que lhe tirou a vida. Por entre o medo e terror, Reinaldo ouviu aquelas que seriam as últimas palavras do militar que se tornara o presidente da república portuguesa: “morro, mas morro bem! Salvem a Pátria…”. Reinaldo Ferreira (1918) terá sido a única pessoa a ouvir estas palavras, ou pelo menos o único repórter a ter o exclusivo, mas, dada a sua fama para inventar momentos e acrescentar cenas às suas reportagens, sabemos hoje que este artigo, tal como tantos outros, não pode ser levado a sério (Ferreira, 1974, pp. 99-100). É inegável que o Repórter X contribuiu para o jornalismo literário português e a reportagem escrita, mas a maneira como tratava os factos compromete a necessária factualidade que marca o género.
Ainda neste período importa realçar o impacto do regime de Sidónio Pais e como o seu fim coincide com os conturbados primeiros 8 anos da Primeira República portuguesa: “só uma palavra define a situação portuguesa depois da guerra-crise” (Aniceto, 2007, p. 102). Politicamente, Portugal atravessava na altura uma instabilidade inegável (Page, 2002/2008, p. 253) que viria a culminar a 19 de outubro de 1921, quando um grupo de guardas-republicanos, marinheiros e civis armados se revolta contra o regime republicano e, tomando as armas, espalha terror e sangue pelas ruas de Lisboa. Sem força para enfrentar esta insurreição, António Granjo, então presidente do ministério, entrega a sua carta de demissão e abandona a chefia do governo. O que acontece de seguida ficou conhecido como a “noite sangrenta”, onde o grupo rebelde pelas suas próprias mãos prendeu várias figuras proeminentes da Primeira República, acabando por cometer vários assassinatos. Entre as vítimas conta-se Machado Santos, José Carlos da Maia, o Comandante Freitas da Silva, o Coronel Botelho Vascos e António Granjo. No dia seguinte, Lisboa acordou com as consequências deste evento cruel e violento da história portuguesa e, imediatamente, foram vários os jornalistas que procuraram registar este momento.
Das reportagens da época há que destacar o trabalho de Consiglieri Sá Pereira (1924), que começa com o contexto que levou à “noite sangrenta”, seguindo-se a história de António Granjo e como o mesmo procurou refúgio. Tendo-se escondido na casa de Francisco Cunha Leal, ex-militar e político português, António Granjo é eventualmente encontrado e, após promessas de amnistia pelos rebeldes, Leal e Granjo são levados para as docas onde o ex-chefe do governo é assassinado. Francisco Cunha Leal é uma das fontes primordiais desta obra e é no encadeamento dos diferentes momentos do dia de António Granjo e na inclusão de longos diálogos que temos na Noite Sangrenta, de Consiglieri Sá Pereira (1924), um exemplo singular do jornalismo literário português. Curiosamente este trabalho, tal como a obra referida de Hermano Neves (1910) sobre a revolução que viria a dar lugar à Primeira República, foi também publicado em livro, um formato habitualmente não reservado para investigações jornalísticas, mas que tem vindo a ser até hoje um meio de subsistência para os jornalistas literários. Este facto não escapou a Sá Pereira (1924) que acrescenta no início da obra Noite Sangrenta a seguinte nota:
aqui tens, leitor ( ... ) o mundo da minha consciência. Aqui tens os sentimentos de vária ordem que me impeliram à confecção não de um Livro, a designação seria imprópria ( ... ) mas de uma resenha de acontecimentos que, por obra do acaso, tive interferência profissional. Perdoa-lhes os erros. Louva-lhes a vontade de acertar. (p. 7)
3. A Ditadura, a Censura e o Jornalismo Literário no Novo Regime Político
A “noite sangrenta” seria de certa forma um prenúncio para o golpe de estado de 28 de maio de 1926 e da ditadura que se seguiria. E é na vertigem desta mudança que temos mais um exemplo a destacar do jornalismo literário português com a obra Viagem à Volta das Ditaduras (Ferro, 1927), onde se encontra a coletânea de reportagens de António Ferro realizadas em três países - Espanha, Itália e Turquia -, tendo sido originalmente publicadas no Diário de Notícias antes do golpe de maio de 1926. É inegável o impacto que Ferro teve para as seguintes décadas da ditadura portuguesa, dado seu papel no Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo. Contudo, através da sua obra jornalística temos uma outra perspetiva, desta feita no contexto do panorama internacional e no fascínio com a figura do ditador. Através de uma análise a três regimes ditatoriais e respetivas figuras políticas, a narrativa de António Ferro (1927) oferece um curioso contexto para cada momento, sendo especialmente nas entrevistas neste livro que descobrimos não só as personalidades entrevistadas, mas também o próprio repórter. Em vários momentos, por exemplo, quando Ferro (1927) assiste às celebrações em Roma em 1923 por ocasião do primeiro aniversário da marcha que levou Mussolini ao poder, é possível discernir nas suas palavras um claro fascínio pessoal:
são nove horas da manhã. Para os lados da Piazza del Popolo vai um rumor de Aleluia e um resmungar de tambores ( … ). Começa a aquecer. O Sol, festivo e alegre, içou mais umas tantas bandeiras de luz ( … ). Oiço cantar o céu. ( ... ) Aproxima-se o cortejo. O fascismo vai passar ( ... ). Il Duce toma o seu lugar à frente do cortejo. (pp. 60-61)
É difícil desassociar o jornalista do momento reportado e do seu claro deslumbramento com Mussolini e o fascismo que este representa, algo que fica claro ao longo das três entrevistas que Ferro (1927) realizou com o ditador. A verdade é que esta narrativa é um produto do seu tempo, tendo sido elogiado na altura por Manuel Bueno, jornalista e intelectual espanhol pertencente ao grupo de escritores, ensaístas e poetas conhecido por “Geração de 98”. Bueno (traduzido em Acciaiuoli, 2013)7 identifica a reportagem de Ferro como uma “reportagem literária”:
reportagem literária [é] ( ... ) um género que toca, pelas suas tangentes fronteiras, a novela, a história e a crítica. Requer um poder de observação ( ... ) uma cultura ( ... ) e um sentido muito claro para apreciar o valor de um facto e medir as suas consequências. ( ... ) [Ferro é] um literato que faz reportagem [e que] confere ao género uma nobreza que a eleva de categoria. (p. 45)
António Ferro (1933) viria a continuar as suas entrevistas, desta feita com Salazar para o Diário de Notícias, sendo publicadas depois no livro Salazar, o Homem e a Obra (Ferro, 1933), mais uma vez uma obra que reflete o fascínio deste autor para com o ditador e um exemplo a considerar quando falamos de jornalismo literário em linha com a ideologia do Estado Novo.
Neste ponto, um dos exemplos mais representativos do impacto das políticas do Estado Novo na produção mediática pode ser encontrado numa reportagem de 1936 escrita por Mário Neves (1985), curiosamente o filho do jornalista Hermano Neves, já aqui mencionado como um dos primeiros jornalistas literários portugueses. Em 1936, Portugal estava já há 1 década sobre um novo regime político ditatorial que havia sido consolidado em 1933 com a aprovação da nova constituição. Espanha, por outro lado, via-se agora a enfrentar um conflito entre os republicanos e os nacionalistas, estes liderados por aquele que viria a ser o futuro ditador espanhol. Quando a guerra civil espanhola começa, em julho de 1936, o interesse de Portugal é imediato e em pouco tempo as redações portuguesas começam a enviar jornalistas além-fronteiras. O jornalista Mário Neves, na altura ainda jovem na profissão, é enviado em agosto desse ano para cobrir o conflito armado na cidade de Badajoz, um dos mais importantes bastiões das forças republicanas espanholas e de largo interesse e preocupação para Portugal dada à sua proximidade territorial.
Inicialmente na fronteira portuguesa, o jovem jornalista assiste de longe aos conflitos na cidade espanhola e ao movimento das tropas nacionalistas que se aproximam (Neves, 1985). Através da análise aos vários artigos de Mário Neves (1985) sobre Badajoz, é possível ver um desenvolvimento na sua escrita, vendo-se artigo após artigo como a sua abordagem jornalística se vai desenvolvendo com a experiência de campo: primeiro com alguma timidez a descrever o número de refugiados que se aproximam da fronteira, depois os raids aéreos e o pânico dos que fogem para Portugal, depois com entrevistas e momentos tensos com as tropas na fronteira. Curiosamente são dois aspetos que tornam esta reportagem um peculiar exemplo de jornalismo literário português: por um lado, a clara inocência do jornalista que se transforma em incerteza e mais tarde em choque e determinação, algo que faz com que o leitor viva e perceba esta viagem de sensações ao lado do autor; e, por outro lado, a história da sua publicação. Os artigos de Neves publicados durante os dias de 11 a 17 de agosto culminam com a sua entrada em Badajoz após o combate final entre as forças republicanas e as nacionalistas. A partir da peça de 15 de agosto, as descrições de Neves tomam um tom mais sóbrio, algo que se vai desenvolvendo e culminando com a sua última reportagem, a 17 de agosto, onde o mesmo promete não mais voltar a Badajoz, depois de observar o resultado da chacina e o monte de corpos a arder numa pira improvisada, a solução arranjada para lidar com a impossibilidade de enterrar todas as vítimas do conflito, muitas delas já em fases avançadas de decomposição.
O que torna a história da publicação desta reportagem tão importante para compreender a história do jornalismo literário português durante a ditadura portuguesa é que, na verdade, esta última peça nunca chegou a ser publicada no Diário de Notícias, tendo sido cortada pela censura. Esta reportagem, como tantas outras da época, é apenas um dos exemplos da influência do Estado Novo na liberdade de expressão nacional e na história do jornalismo literário desta época, mas é também um exemplo de como a censura nem sempre agia de forma coordenada (Ramos, 2009, pp. 652-654). Neste ponto é curioso notar que só o artigo de 17 de agosto é que é cortado e não os outros, algo que Iva Delgado (1985, p. 70) argumenta dever-se talvez ao facto de a censura nacional estar em 1936 ainda numa fase embrionária. Sabemos hoje em dia que Portugal estava ativamente a apoiar a vitória de Francisco Franco (Ramos, 2009, p. 70), pelo que não havia interesse em dar foco às descrições da violência da parte das forças nacionalistas. Neste sentido, a reportagem de Mário Neves em 1936 é um dos vários exemplos de censura nos anos da Guerra Civil espanhola e nas décadas que se seguiram durante as ditaduras da Península Ibérica. De notar que todas estas reportagens de Mário Neves em Badajoz, incluindo a reportagem censurada, acabariam por ser publicadas apenas depois do fim da ditadura no livro A Chacina de Badajoz (M. Neves, 1985), que inclui também análises históricas deste acontecimento.
De certa forma, esta obra de Neves (1985) e o contexto em que foi escrita e recebida reflete um fator curioso do jornalismo literário e explica a razão para que este género jornalístico tenha sobrevivido até aos dias de hoje. Sobre a guerra de Badajoz e a Guerra Civil espanhola como um todo, por exemplo, é de notar que inúmeras reportagens se focaram nesta temática em vários jornais por todo o mundo. Contudo, como vimos anteriormente, certas reportagens são ainda hoje celebradas e reimpressas, não necessariamente pela quantidade de informação nelas contida, mas antes pela forma como investigam o acontecimento em causa e expõem a história de diferentes indivíduos e momentos passados. O impacto e a relevância da peça de Mário Neves estão assentes neste mesmo princípio: a exposição de informação de uma forma afetada e que tenta fazer justiça para com os acontecimentos observados e o impacto que os mesmos tiveram para os presentes. Quando Mário Neves (1985), nesta peça sobre Badajoz, nos presenteia o último momento do artigo que viria a ser cortado pela censura, é impossível não sentir o terror reportado:
as autoridades são as primeiras a divulgar ( ... ) que as execuções são em número muito elevado. Que fazem então dos corpos? ( ... ) Os mortos são tantos que não é possível dar-lhes sepultura imediata. Só a incineração em massa conseguirá evitar que os corpos, acumulados, se putrefaçam ( ... ). Há dez horas que a fogueira arde. Um cheiro horrível penetra-nos pelas narinas, a tal ponto que quase nos revolve o estômago. Ouve-se de vez em quando uma espécie de crepitar sinistro da madeira. Nenhum artista, por mais genial que fosse, seria capaz de reproduzir esta impressionante visão dantesca. (pp. 47-48)
Esta descrição não define nem deve definir o jornalismo literário em geral ou como praticá-lo, mas é importante que a sinceridade e humanismo desta e outras reportagens tenham espaço para existir no jornalismo de forma a melhor transcrever a verdade e complexidade da realidade observada. Talvez a melhor forma de descrever a importância desta reportagem de Mário Neves (1985), a sua voz e escolhas jornalísticas, seja através do jornalista Michael Herr (1977), que proferiu sobre o jornalismo em conflitos armados, no seu caso sobre a guerra do Vietname, o seguinte: “o jornalismo convencional não poderia relatar esta guerra como o poder do armamento convencional não poderia vencê-la” (p. 218).
Não é coincidência que se tenha ligado até este momento diferentes obras de jornalismo literário com conflitos armados. A verdade é que, como foi referido anteriormente, momentos de crise sociopolítica beneficiam o desenvolvimento e escrita deste género e Portugal, neste ponto, não é exceção. Neste sentido, se a censura e a neutralidade de Portugal na Segunda Guerra Mundial podem servir para explicar a dificuldade em encontrar exemplos de jornalismo literário português sobre este acontecimento, a verdade é que o mesmo não acontece durante a guerra colonial portuguesa, onde se encontram vários exemplos de jornalismo literário. Considere-se, por exemplo, a obra de Artur Maciel (1963) intitulada Angola Heróica. Na altura a trabalhar para o Diário de Notícias, Maciel (1963) apresenta neste livro um trabalho jornalístico que o próprio tem problemas em definir, como refere na introdução:
hesitei em reunir em livro as crónicas que preenchem as páginas deste volume. Escritas para serem publicadas em jornal - como o foram, no Diário de Notícias - acusam, sob vários aspetos, as características peculiares a uma reportagem. O que pode constituir prejuízo dentro das exigências normais para um livro. (p. 15)
Artur Maciel (1963) reconhece que este livro é jornalismo em formato livro, algo que já se referiu ser algo comum para o jornalismo literário, mas que o jornalista português considera ser estranho. A sua justificação para esta estranheza deve-se à ideia de que a reportagem é algo que encontramos em jornais e que, se lermos em livros de reportagem, pode talvez o leitor se perder dada a longa investigação. Na sua explicação, Maciel (1963) atenta:
haverá nelas, possivelmente, matéria de informação e comentário que ultrapasse a efemeridade inerente ao artigo jornalístico ( … ). Quando uma reportagem se alonga, quer pelo tamanho de cada crónica, quer pelo espaço de tempo que medeia entre a sua publicação, muitos são os leitores que se limitam, contra propósitos e desejos, a uma leitura apenas parcial. (pp. 15-16)
E, de facto, esta longa reportagem de Artur Maciel (1963), produzida após 120 dias a seguir o exército português, oferece-nos uma faceta da guerra colonial que, para todos os efeitos, é um retrato da sua época e da linguagem permitida ao jornalismo português durante o conflito colonial. Por exemplo, é de notar que, ao longo do livro, Maciel se refere à luta portuguesa como uma guerra contra o terrorismo e os rebeldes em Angola, uma linguagem da altura. A importância desta obra, como outras da época, centra-se em parte na necessidade de considerar esta narrativa como o que era possível para o seu tempo.
Isto é, se convivemos com a literatura de diferentes mentalidades e períodos, ainda que os seus temas sejam estranhos ou incómodos a posteriori, devemos ainda assim analisar os mesmos como produtos de um diferente período. Este ponto de vista pode e deve ser considerado também com o jornalismo literário de forma a perceber o seu potencial e importância como reportagem no momento em que é concebido e nas gerações seguintes que o revisitem.
Dito isto, há que atentar que, na década de 60, o jornalismo em Portugal começa a evoluir e a transformar-se com a lenta introdução da mulher nos quadros jornalísticos8 e o mesmo acontece com o jornalismo literário português. Um exemplo destas novas e necessárias vozes do jornalismo literário português pode ser encontrado, por exemplo, na escrita de Edite Soeiro (1968a, 1968b, 1968c), histórica figura do jornalismo nacional. Considere-se especialmente, neste ponto, a sua cobertura dos Jogos Olímpicos do México de 1968 para o Jornal Notícia, tendo sido Edite Soeiro (1968a, 1968b, 1968c) com este trabalho a primeira mulher em Portugal a ser enviada especial para cobrir este evento (igualmente a primeira jornalista portuguesa a escrever sobre desporto em Portugal). Edite Soeiro, como outras repórteres, viriam a contribuir para o desenvolvimento do jornalismo literário nacional, sendo o verdadeiro momento de mudança a revolução que aí viria em 1974.
4. O Fim da Ditadura e o Jornalismo Literário Português Pós-Revolução
Com a revolução de 1974, muda não só o panorama nacional por definitivo, mas muda também o jornalismo como um todo e, claro, o jornalismo literário que viria a ser praticado nesta nova liberdade. É inegável que o jornalismo português reage de forma profunda a estas mudanças, ainda que esta transformação não tenha acontecido naturalmente. Alguns jornalistas, numa primeira fase, admitiram mesmo dificuldade em adaptarem-se aos novos tempos (Baptista & Correia, 2007, p. 330). Neste ponto considere-se, por exemplo, a visão da jornalista Alice Vieira, uma das figuras mais marcantes do jornalismo nacional, que admitiu numa entrevista a Isabel Ventura (2007) que fazer jornalismo sem censura na pós-revolução:
foi difícil. Poder escrever, normalmente, sobre tudo, custou-me muito. Estávamos tão habituados aquilo - de repente podíamos escrever o nome de pessoas que antes eram totalmente proibidas, podíamos falar de tudo. ( … ) Ainda hoje, um telefonema às tantas da manhã me faz acordar sobressaltada e já passaram 30 anos. (p. 56)
Ainda sobre os novos tempos da pós-Revolução dos Cravos e os desafios para os jornalistas portugueses, atente-se à visão de Adriano Rodrigues (1980) sobre o fim da década de 1970, quando este se refere à promessa de mudança: “depois de uma época de euforia, logo após o 25 de Abril de 1974, os meios de comunicação social estão agora confrontados com uma crise profunda, em Portugal. Para essa crise não se vislumbram aliás soluções unívocas e indiscutíveis” (p. 7).
Após décadas de um país fechado em si mesmo e com limitações a novas ideias e influências, Portugal vê-se no pós-25 de Abril confrontado com uma progressiva liberdade e subsequente necessidade de discutir temas na esfera pública que antes eram proibidos ou tratados como tabu e escândalo social. Perante este novo mercado surgiram diferentes publicações que davam primazia a longas reportagens e diferentes formatos, algo que permitiu ao jornalismo literário português crescer substancialmente.
Um exemplo deste tipo de publicações pode ser encontrado nos Cadernos de Reportagem, uma publicação dedicada a jornalismo investigativo. Sobre a direção de Fernando Dacosta, esta publicação definia-se no primeiro número como sendo algo “entre o jornal e o livro, conciliando a acessibilidade do primeiro e a profundidade do segundo”, focando-se em “temas nacionais que, pela sua ousadia, marginalidade, perturbação e desafio não são tratados na nossa imprensa” (Melo, 1983, p. 62). De facto, cada número centrava-se numa longa reportagem sobre a realidade portuguesa e sempre com temas por norma complexos e à margem da época: no primeiro número, temos uma reportagem sobre a homossexualidade em Portugal escrito por Guilherme de Melo; no segundo, um perfil de Zeca Afonso por Viriato Teles; no terceiro, uma peça sobre casos nacionais de aborto escrito por Maria Antónia Fiadeiro; no quarto, o tema do esoterismo por João Aguiar; no quinto número, temos um perfil de um criminoso escrito por Jorge Trabulo Marques; e, por fim, o último número sobre os retornados das ex-colónias escrito por Fernando Dacosta. Tendo começado em junho de 1983 e terminado em outubro de 1984, a construção desta publicação lembra em parte números especiais da revista New Yorker ou a Esquire, isto é, publicações internacionais contemporâneas com foco em longas reportagens e que tornaram o jornalismo literário célebre nas suas respetivas realidades.
Dos seis números dos Cadernos de Reportagem destacam-se os artigos de Guilherme de Melo (1983) e Maria Antónia Fiadeiro (1983), sendo estes dois exemplos fundamentais do jornalismo literário português e focando-se em temas complicados e com necessidade de serem aprofundados. Ainda que os Cadernos de Reportagem não tenham tido seguimento, podemos ver que este tipo de publicação de revistas especializadas focadas em longas reportagens escritas acabou por encontrar espaço na imprensa portuguesa, particularmente na década seguinte. De facto, neste campo importa destacar o aparecimento de três revistas em particular no panorama português: a Grande Reportagem, especialmente a partir do seu relançamento em 1989; o Público, desde o seu lançamento em 1990, em especial com o suplemento já extinto de nome Revista 2; e a Visão, a partir de 1993. Estas três revistas, entre outras, deram espaço para a publicação de longas reportagens, dando igualmente lugar a uma nova geração de repórteres que viria a singrar no panorama nacional e mudar o jornalismo literário português da década de 1990 e século XXI.
5. Conclusão: Jornalismo Literário Português no Século XXI
Ora, se referimos o jornal Público, importa destacar de entre os vários jornalistas literários dois que devem ser mencionados: Alexandra Lucas Coelho e Paulo Moura (tendo ambos terminado o contrato com esta publicação em 2017). Ambos os jornalistas tiveram uma forte ligação com o Público, tendo ambos publicado algumas das suas reportagens mais marcantes já em formato livro, mais uma vez reforçando a ideia da importância deste formato para a sobrevivência do jornalismo literário contemporâneo. Considere-se Alexandra Lucas Coelho primeiro, uma jornalista cujo estilo de escrita muda de forma considerável de livro para livro. Veja-se o seu livro Tahrir! (Coelho, 2011), por exemplo, onde captura os primeiros momentos da revolução egípcia em fevereiro de 2011. Escrito no local e sem apoio da sua redação em Lisboa, este livro resulta de uma vontade da jornalista de capturar a história a acontecer com a perspetiva e rigor da sua profissão. Considere-se também outro dos seus livros, Vai, Brasil (Coelho, 2013), onde estão compiladas algumas das suas crónicas. Poder-se-ia dizer que esta obra não é jornalismo literário e, de facto, encontramos neste livro vários textos mais em linha com artigos de opinião e crónicas por vezes de tom humorístico. Ainda assim, existem também nesta obra momentos de reportagem, como quando Alexandra Lucas Coelho (2013) entra na floresta da Amazónia de barco e descreve o cenário e as pessoas com quem interage. Nas palavras da jornalista, esta mudança de estilo será algo propositado, sendo que a mesma identifica a sua escrita como uma constante mutação, algo que está em contínuo movimento:
o que eu sinto e espero que isso continue a acontecer, é que é uma coisa em “movimento”. E espero que continue assim, espero que sim. ( ... ) A certa altura é que eu comecei ( ... ) a tentar justamente não me estabelecer, não me instalar numa fórmula. Isto é muito importante para mim, as fórmulas não me interessam nada. As fórmulas são interessantes para experimentar uma vez e nós seguimos adiante. (Coutinho, 2018, p. 531)
Paulo Moura (2013) procura uma perspetiva similar no seu trabalho, deixando que a história influencie a sua forma de escrever e não o oposto. Um exemplo disso pode ser encontrado no seu livro Longe do Mar (Moura, 2013) onde está compilada uma série de reportagens que Moura escreveu em diferentes momentos da sua carreira, sempre com o intuito de seguir histórias pelo interior de Portugal - um formato que o jornalista viria a repetir em Extremo Ocidental (Moura, 2016), desta vez pelo litoral português. Em Longe do Mar (Moura, 2013), as diferentes reportagens seguem por vezes estruturas distantes: em “Iria”, o texto surge como uma reportagem escrita durante um longo período de tempo em que o autor admite uma quase fixação por uma história que não consegue terminar; em “A Menina que Amou Demais”, o texto surge mais como se fosse um conto, tratando-se na verdade de uma reportagem sobre a trágica história de Joana Fulgêncio; já no texto “Por Amor, em Forros de Arrão”, o autor segue uma linha invulgar para o jornalismo e cria uma reportagem numa estrutura mais próxima do teatro, mais uma vez demonstrando a extensão da sua escrita. Esta quase imprevisibilidade no estilo torna cada uma destas histórias, e tantas outras de Paulo Moura, em algo cativante que captura a atenção do leitor como se de um romance se tratasse, nunca deixando de lado a minuciosidade e rigor que definem a reportagem e a investigação que encontramos no jornalismo literário.
De forma a concluir este estudo sobre a história do jornalismo literário português, importa reconhecer, e mais uma vez reiterar, a sua longa evolução ao longo do tempo e a sua importância para o panorama nacional até aos dias de hoje. Ao mesmo tempo, importa notar que um estudo sobre jornalismo literário é igualmente um estudo sobre a história do jornalismo e a forma como diferentes jornalistas escolheram contar histórias com uma narrativa minuciosa, humanista e descritiva; um género que o jornalista Pedro Rosa Mendes (como citado nas notas introdutórias do livro de Bak & Reynolds, 2011) viria a definir assim: “a reportagem literária é um compromisso com a realidade a partir do olhar de um romancista, mas com a disciplina de um jornalista” (p. VII).