Um mapa do mundo que não inclua a Utopia não vale a pena sequer ser olhado, pois deixa de fora o único país no qual a humanidade está sempre a atracar. -Oscar Wilde, The Soul of Man Under Socialism
E os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império, que tinha o tamanho do Império e coincidia pontualmente com ele. -Jorge Luis Borges, Do Rigor na Ciência
1. Introdução
No quotidiano da sociedade em rede, o recurso a mapas digitais é cada vez mais usual. Estes dispositivos destinados à compreensão sintética de realidades que são complexas por natureza tornaram-se agentes discretos do nosso quotidiano. Mediante os critérios dos seus autores e os respetivos processos de produção, os mapas revelam ou ocultam os lugares/realidades que desejam/rejeitam; categorizam e relacionam aquilo que se quer tornar visível; relevam e orientam, ou não, para o que se escolheu como relevante. E os mesmos mapas têm também o dom potencial de aguçar a imaginação e dar a conhecer outros mundos - em particular, aqueles que se desviam dos já conhecidos roteiros casa-trabalho-consumo dominados por relações mediadas pelo capital numa economia de mercado globalizada.
Na contramão dos roteiros capitalistas - e, muitas vezes, fora do radar - persistem espaços movidos por outras lógicas de relação entre as pessoas e destas com o território que habitam. Espaços comunitários, projetos “alternativos”, associações de bairro, lugares de acolhimento e gestação das “economias diversas” (Gibson-Graham, 2008) praticam - almejam - uma leitura diferente daquela oferecida pelos modelos convencionais de mercado, trabalho e empreendimento, reconhecendo, entre uma pluralidade de abordagens possíveis, simbioses não-monetarizadas de trabalho, modos alternativos de (co)produção, consumo, distribuição e troca de bens e serviços, sempre guiados por motivações que se afastam dos fins meramente lucrativos da competição mercantilista. Une-os a missão de prefigurar, e logo edificar, economias pós-capitalistas.
Existem em Portugal vários mapas de âmbito nacional, regional ou local que agregam iniciativas, que vão desde as ecoaldeias às hortas urbanas, às lojas cooperativas, aos projetos educativos autónomos, aos restaurantes comunitários, aos grupos de consumo ou projetos de permacultura - universos de práticas muitas vezes agregadas sob o rótulo institucionalizante da inovação e empreendedorismo social (Social Business School & Instituto Padre António Vieira, 2015), deixando de fora “aquelas experiências que, sendo comunitárias e informais - muitas delas com fortes raízes no passado, a exemplo da entreajuda camponesa ou do mutualismo operário -, escapam a um imaginário de crescimento económico e controle social do Estado” (Hespanha et al., 2015, p. 469), como fazem notar Hespanha et al. (2015), reforçando “a necessidade de visibilizar iniciativas e de demarcar os limites entre Economia Solidária, Economia Social e Empreendedorismo Social” (p. 469) em Portugal.
O nosso objeto de estudo reúne um conjunto de mapas revelador do universo de práticas económicas alternativas, identificadas em Portugal e na Catalunha. Embora já existam alguns estudos académicos sobre (ou a partir de) mapas de alternativas em Portugal (Balsa et al., 2016; Baumgarten, 2017; Ferreira & Almeida, 2021; Guerreiro, 2013; Hespanha et al., 2015; Mourato & Bussler, 2019; Nogueira, 2018; Soares, 2017; Valentim, 2012), não se conhecem abordagens sob a lente dos processos comunicativos. Mais do que recorrer ao mero uso dos dados georreferenciados de mapas existentes ou estudar a substância ou disparidade das alternativas concretas aqui abrangidas, visamos “meta-mapear”, ou seja, contribuir para o apuramento dos processos de mapeamento colaborativo de economias diversas.
Trata-se de estudar o potencial dos mapas como um meta-território/bem/comum, o que fizemos à luz de um modelo de análise dos comuns digitais (Fuster Morell & Espelt, 2018), indagando sobre os processos de mapeamento e a sua capacidade para cultivar continuidades quanto à governança e participação, modelo económico, tecnologia e conhecimento. Neste sentido, os mapas como produto servem aqui apenas para questionar a relação entre mapeamento colaborativo e práticas de “fazer-em-comum”.
2. Economias Diversas e Práticas de Mapear-em-Comum
As múltiplas crises do capitalismo tardio têm levado pessoas comuns em várias partes do mundo a experimentar modos alternativos de produção, consumo e troca no seu dia a dia (Castells et al., 2017; Conill et al., 2012), constituindo e alimentando “outras economias”, as quais são muitas vezes nomeadas como economia solidária, sustentável, transformadora, da partilha ou circular, entre outras denominações possíveis. Embora as nuances, no detalhe, possam reportar a diferentes éticas e formas de agir, vemos no conjunto um objetivo comum: a necessidade de criar alternativas ecologicamente mais sustentáveis e socialmente justas face ao modelo económico dominante. O termo “economias diversas”, cunhado pela dupla Gibson-Graham (2008), dedicada à geografia crítica, acolhe a heterogeneidade de experiências em curso, unidas por um maior ou menor grau de rutura com o sistema dominante.
Nestes meios (como em outros), a cartografia digital e os sistemas de informação geográfica têm sido adotados como ferramentas para promover, conectar, informar, localizar, documentar e tornar as alternativas visíveis (Borowiak, 2015; Drake, 2020; Labaeye, 2017; Safri et al., 2017), bem como “para revelar a diversidade económica, para resistir ao discurso capitalocêntrico e para ler para a diferença” (Drake, 2020, p. 496), desconstruindo e permitindo assim “desvendar a capitalonormatividade e destacar a heterogeneidade radical das identidades, relações e trajetórias económicas” (GibsonGraham, 2020, p. 481).
Com o mote “there are plenty of alternatives” (há muitas alternativas), o coletivo internacional TransforMap1 mobilizou uma tentativa alargada de mapear os mapas de alternativas. Contrariando o velho mantra neoliberal da T.I.N.A. - “there is no alternative” (não há alternativa) - propunha-se criar uma plataforma online que permitisse “visualizar a miríade de alternativas ao pensamento económico dominante num só sistema de mapeamento” (TransforMap, s.d., para. 1). O coletivo partia de um posicionamento crítico em relação à propriedade das plataformas de mapeamento e respetivos dados e defendia os “mapas como comuns”, definindo os seus princípios orientadores (Helfrich, 2016), dos quais destacamos: os mapas como recursos partilhados e os mapeamentos como práticas de fazer-em-comum; o acesso aberto garantido pela adoção de software livre não proprietário; e o envolvimento de comunidades no mapeamento.
De facto, no âmbito dos mapeamentos colaborativos, como em qualquer ação coletiva, as teorias dos comuns têm um contributo importante a dar. Desde tempos imemoriais que comunidades se organizam autonomamente na gestão comunal de terras para pasto ou cultivo, ou na partilha das águas para regadio (Ostrom, 1990). Mas não é só no mundo rural e natural que os comuns existem: podemos encontrar comuns urbanos nas cidades e também comuns na esfera digital, com o avanço nas tecnologias da informação e da comunicação e as novas possibilidades de produção e colaboração entre pares (Benkler, 2006). O que todos estes comuns têm em comum é que reúnem comunidades em torno de recursos partilhados, fora do âmbito do mercado e da alçada do Estado, definindo regras para a sua governação coletiva.
De forma a aferir as qualidades democráticas dos comuns digitais, Fuster Morell (2018) desenvolveu um modelo de análise assente em cinco dimensões: “governança”, “economia”, “conhecimento”, “tecnologia” e “responsabilidade social”, tendo mais tarde acrescentado a dimensão “impacto” (Fuster Morell & Espelt, 2019). No que diz respeito à governança, os indicadores propostos pelo modelo são o tipo de organização (pública, privada ou democrática, tais como associações ou cooperativas) e a existência ou não de mecanismos de participação pelos membros. Relativamente à estratégia económica, os indicadores são o objetivo (fins lucrativos ou não) e a transparência (se os membros têm acesso a informação económica). Em relação à base tecnológica, o modelo defende a adoção de software livre e de código aberto e arquiteturas descentralizadas. Quanto às políticas de conhecimento, o uso de licenças copyleft e a adoção de formatos de dados abertos contribuem para as qualidades pró-comum das iniciativas. A responsabilidade social diz respeito às políticas de inclusão social e ambiental do projeto. A dimensão impacto refere-se ao número de pessoas afetadas pela iniciativa. Este modelo de análise é estruturante do estudo.
3. Nota Metodológica
3.1. Seleção dos Territórios e dos Casos
A escolha dos territórios de Portugal e da Catalunha deve-se à inserção deste artigo numa investigação de doutoramento em curso, a qual coloca em relação estas regiões quanto às economias diversas. Nela, os casos portugueses são mais intensamente estudados e o caso da Catalunha é tomado como contraponto de análise.
A seleção dos mapas obedeceu a duas condições primárias: terem surgido por iniciativa de cidadãos ou organizações da sociedade civil (por oposição à academia) e terem foco nas economias alternativas e solidárias (por oposição ao empreendedorismo e inovação social). A escolha visou oferecer um retrato variado no que diz respeito às abordagens cartográficas, âmbitos territoriais, escalas, propósitos e critérios explicitados abaixo.
Do lado português, foram selecionados a Rede Convergir (“mapeamento de iniciativas sustentáveis”), o projeto Alternativas (“iniciativas locais de mudança”), o SUSY (“economia solidária e sustentável”), a Transição Portugal e o mapa da Autonomia Regional no Sul de Portugal. Da Catalunha, foi selecionado o mapa de consumo responsável Pam a Pam2 (https://pamapam.org), considerado por nós como referência no âmbito da economia solidária na região e dado, nomeadamente, o seu potencial de replicabilidade, já que o código do mapa está disponível e tem sido reutilizado por outras iniciativas noutras regiões.
3.2. Mapeamento dos Mapas
Quer a recolha, quer a análise dos objetos de estudo, concretizam uma abordagem qualitativa. Os seis mapas produzidos em Portugal e na Catalunha foram revertidos em resultados recorrendo às qualidades pró-comuns propostas por Fuster Morell (2018), enquanto estruturas de organização dos dados recolhidos. As recolhas foram obtidas quer mediante ações de etnografia dedicadas aos próprios mapas e a materiais periféricos identificados on e offline, quer mediante entrevistas semiestruturadas. Em maior detalhe:
Etnografia online: em 2019, os conteúdos das plataformas de mapeamento em análise foram extraídos e sistematizados separadamente em diagrama e em conjunto numa tabela-resumo, contendo a descrição geral de cada mapa, os seus objetivos e critérios, o ano de lançamento, o número de iniciativas mapeadas e a tecnologia adotada. As categorias dedicadas à inscrição de pontos em cada mapa foram também levantadas e organizadas.
Entrevistas: foram realizadas por videoconferência, entre setembro e outubro de 2019, cinco entrevistas de cerca de 60 minutos, cada uma com um responsável por cada mapa do lado português. Foi preparado um guião de entrevista semiestruturado, com uma ordem de questões flexível na sua sequência. As questões visaram as origens do mapeamento, os critérios para inclusão/exclusão de iniciativas, os modos de governança e de participação no mapeamento, o modelo económico de financiamento, a tecnologia usada no seu desenvolvimento e a política de dados adotada. Era também pedido aos entrevistados que refletissem sobre os desafios encontrados no processo e necessidades apontadas a futuros desenvolvimentos. Num dos casos, em que o mapa português estava integrado num projeto europeu, houve também correspondência via email com o grupo alargado, destinada a clarificar questões técnicas. As entrevistas foram anonimizadas e transcritas na íntegra. A transcrição gerou cerca de 30 páginas de texto, as quais foram analisadas destacando trechos relativos às origens, aos critérios e objetivos dos mapeamentos e aos principais desafios enfrentados pelos projetos. Foram ainda extraídos dados quanto às dimensões definidas no modelo Fuster Morell (2018). No caso específico da dimensão “impacto”, e dado que não tivemos mais dados relevantes, recorremos à quantificação de iniciativas presentes em cada mapa.
Recolha no caso catalão: neste caso, a entrevista foi substituída por dados recolhidos em eventos nos quais estivemos com a equipa do Pam a Pam. Na Feira de Economia Solidária da Catalunha de 2019, houve oportunidade para conversar informalmente sobre o mapeamento e recolher materiais produzidos pelo projeto; entre março de 2019 e janeiro de 2021, foi possível estar presente em fóruns de discussão online da Comissão de Tecnologias de Informação e Comunicação do Pam a Pam. Tirando partido da abundante literatura existente, chegámos também a fontes secundárias, nomeadamente, estudos prévios de Espelt et al. (2019) e Fuster Morell e Espelt (2019).
4. Mapeando Mapas de “Alternativas” em Portugal
Passamos a apresentar os diversos mapeamentos segundo os critérios acima definidos. De cada projeto de mapeamento extraímos um diagrama, o qual explicita a estrutura e taxonomia que a organiza. A imensa aprendizagem que extraímos nas entrevistas fica aqui necessariamente resumida numa seleção de citações.
4.1. Rede Convergir
A Rede Convergir é provavelmente o mapa de alternativas mais conhecido em Portugal: apresenta o maior número de iniciativas auto-georreferenciadas no país (n=242; ver Figura 1) e é frequentemente referido em estudos académicos. Lançado em 2012, é o mais antigo dos mapas abordados neste estudo.
Retirado de Mapa das Iniciativas, por Rede Convergir, s.d.-a. (https://redeconvergir.net/iniciativas)
Com a missão de “mapear iniciativas sustentáveis e inspiradoras para que em rede possamos cooperar, coordenar, e potenciar as nossas sinergias para contribuir para uma sociedade equilibrada e sustentável, e para uma vida humana em harmonia com o meio envolvente” (Rede Convergir, s.d.-b, para. 1), a Convergir germinou num encontro internacional de ecoaldeias, em Tamera, em julho de 2011, organizado pela rede internacional Rede Global de Ecoaldeias. O encontro originou um grupo de trabalho preocupado com a “dispersão de energias no âmbito das iniciativas de sustentabilidade” e com vontade de “discutir a construção de uma plataforma para mapeamento de iniciativas em território nacional” (Rede Convergir, s.d.-b, para. 24).
“Olha, ‘tá [sic] a haver esta iniciativa, vamos estar a cocriar o que será isto, não sabemos bem, temos uma ideia”, e durante um ano de 15 em 15 dias tínhamos reuniões online onde discutíamos várias coisas ( ... ) uma delas é o nome: vamos chamar “rede” porque o que queremos é mapear a rede, e “convergir” - porque não é só projetos de permacultura ou ecoaldeias, ( … ) é uma convergência na verdade de projetos, ideias que querem ser alternativas ao modelo vigente. (Teodoro, entrevista, 17 de outubro de 2019)
Guiada por princípios de cooperação e reciprocidade, transparência, autorregulação e organização, abrangência e proximidade geográfica e holarquia, a Rede é gerida por voluntários num esquema que se deseja rotativo. As principais funções de governança dividem-se entre moderadores e guardiões: os primeiros aprovam novas iniciativas submetidas no mapa, gerem o projeto em geral e assumem tarefas de programação web e de comunicação; os segundos refletem sobre a integridade e promoção da Rede, embora, segundo Teodoro, “há mais de um ano que não há um email entre nós [guardiões] a falar”.
Qualquer pessoa pode propor um novo ponto no mapa, preenchendo um formulário online que inclui contactos, morada, website, logotipo, data de criação, caraterização, público-alvo, universo de interação direta, recetibilidade a visitas, âmbito (rural/urbano/ ambos), número de pessoas envolvidas, área do terreno, descrição geral. Inclui-se também o “estado” da iniciativa quanto ao seu momento (ver Figura 2), desde a condição “em germinação” à condição oposta de “desativada” (e, logo, no estado de “em semente”, que deu ou dará origem a novos projetos e/ou iniciativas, a qual não implica a sua eliminação do mapa).
Após a submissão, a proposta é aprovada (ou não) pelos moderadores, que verificam se esta está de acordo com os critérios principais da Rede Convergir (s.d.-b): (a) iniciativas que “promovem a sustentabilidade” (para. 11); (b) “são contactáveis, visitáveis e geo-referenciáveis” (para. 12); e (c) “são, de algum modo, inspiradoras” (para. 13). Após publicação, a iniciativa fica visível no mapa e tem uma página dedicada, a qual pode e deve ser gerida pelos promotores. Para além do mapa, a plataforma disponibiliza uma agenda de eventos colaborativa, uma newsletter e uma página no Facebook, embora sem atualização desde 2019-2020.
Na entrevista feita a Teodoro (17 de outubro de 2019) é destacado o facto de na Convergir ser “o próprio mapa que se auto-mapeia, e para isso é preciso tempo, requer confiança”, por oposição ao “foco na quantidade” que leva à “fraca qualidade da informação”.
A entrevista tem um ponto quente dedicado à governança e modos de visibilidade:
falou-se do perigo, pá... não sei se é só em Portugal que há este muro, este dragão da centralização por parte dos projetos alternativos. O pessoal desconfia bastante. ( … ) Uma coisa que ficou muito clara foi que a Rede Convergir nunca irá falar sobre os projetos, é uma centralização e mapeamento por questão de custos e know-how, mas nem sequer convém que apareça malta que dê a cara pela Rede. (Teodoro, entrevista, 17 de outubro de 2019)
O tema dos “dragões” progride: “como é que se criam ferramentas que centralizam a informação, mas descentralizam o poder?”, questão à qual se juntam outras relacionadas com a sustentabilidade e disponibilidade das pessoas para o projeto: “como é que trabalhas de forma séria e [com] alguma qualidade num projeto em que estás em voluntariado? E por muito gosto que tenhas quando andas a mil, andamos todos nós, não somos exceção, torna-se difícil” (Teodoro, entrevista, 17 de outubro de 2019).
Os desejos de futuro apontados incluem: atualização dos projetos mapeados; apuro técnico que dê aos participantes maior autonomia na atualização da informação; evidência de relações entre pontos da rede, nomeadamente, quanto a projetos que tiveram origem noutros.
4.2. Alternativas
O projeto Alternativas - Experiências Locais Para uma Transformação Global foi desenvolvido entre 2016 e 20183 por cinco organizações portuguesas que trabalham temas de educação para o desenvolvimento e cidadania global - Fundação Gonçalo da Silveira, Fundação Fé e Cooperação, CooLabora, Rede Inducar e Instituto Politécnico de Leiria, com o apoio do Instituto Camões. De acordo com o website do projeto (https://www.projetoalternativas.org), o objetivo era contribuir para uma leitura da relação entre local e global em processos de transformação social e promover a reflexão e o espírito crítico em ambientes educativos formais, não formais e informais.
Do projeto, resultou um documentário, uma carta aberta para a transformação social, recursos pedagógicos e um mapa de “iniciativas locais de mudança”.
O mapa não era o nosso fim, o mapa é apenas um meio. O fim do projeto Alternativas são os processos pedagógicos, os recursos educativos... e este mapa de alguma maneira também alimenta estes processos pedagógicos. ( … ) Para nós um mapeamento é um instrumento válido em si mesmo, e haver vários mapas com diferentes critérios não nos faz confusão, é sinal de vivacidade, de atividade, estamos numa área que tem tão pouca visibilidade, tão pouco conhecimento, tão pouca abrangência ( ... ) que o facto de haver vários atores motivados para fazerem este tipo de iniciativas é positivo ( ... ) numa lógica de valorização da diversidade, se o fazemos ao nível das pessoas e das sociedades também faz sentido fazer ao nível dos processos e dos mapeamentos. (Ulisses, entrevista, 15 de outubro de 2019)
A equipa definiu cinco requisitos-chave obrigatórios para a inclusão das iniciativas: (a) terem dimensão coletiva; (b) coerência com os princípios e valores subjacentes à visão de transformação social do Alternativas: justiça social, democracia e sustentabilidade; (c) tomadas de decisão democráticas e partilhadas entre todos (incluindo aqueles a quem a ação se dirige); (d) enraizamento local e inter-relação com o território; e (e) estarem em curso à data do mapeamento. Complementarmente, foram ainda definidos cinco critérios de referência: a “predisposição aprendente”, a “inter-relação com outras iniciativas, redes e outros atores”, o “caráter experimental”, a abordagem a questões consideradas prioritárias pela equipa (tais como a participação das mulheres e as relações de poder) e a “transformação das relações interpessoais e dos laços coletivos” (Alternativas, s.d.-a, para. 3).
O mapeamento foi realizado seguindo um “processo colaborativo, crítico e dialógico” que incorporou as respostas a um questionário baseado na visão de transformação social e critérios definidos pela equipa.
Teve cerca de 85 respostas, mas cerca de 45 não foram incluídas no mapa porque houve alguns critérios, nomeadamente, relativamente às questões ligadas à democracia interna, mais ou menos abertos à participação, a existência de dinâmicas coletivas, que fizeram com que não considerássemos ( … ) há muitos que são unipessoais. Muitas não podem ser consideradas da sociedade civil, embora usem formas formais da sociedade civil, por exemplo, associações que são dominadas por duas ou três autarquias. (Pandora, entrevista, 8 de outubro de 2019)
Ao contrário dos restantes mapas neste estudo, não existe uma taxonomia de caracterização das iniciativas a partir da qual se possa navegar. Os pontos estão simplesmente agrupados por distrito (ver Figura 3), a partir dos quais se pode aceder a listagens de iniciativas, cada uma com uma ficha informativa em formato PDF.
Retirado de Mapa de Iniciativas, por Alternativas, s.d.-b (https://www.projetoalternativas.org/mapa-de-iniciativas)
4.3. Autonomia Regional no Sul de Portugal
O mapa da Autonomia Regional no Sul de Portugal (Figura 4) é uma iniciativa espontânea, que teve origem num encontro de comunidades em Tamera, em 2016, com o objetivo de mapear as necessidades e recursos da região. “Desde então tem sido atualizada permanentemente por todos os que se dedicam a isto”, indica uma breve nota descritiva no Google Maps (s.d.).
O mapa inscreve 188 referências à data de finalização deste artigo, incluindo 114 produtores, 34 “coprodutores/projetos”, 11 terapeutas (“rede de saúde”) e 29 projetos educativos (Figura 5).
O levantamento autónomo das necessidades e ofertas de recursos entre as cerca de 50 pessoas que participaram no dito encontro foi mobilizado após um dos participantes ter demonstrado a intenção de criar uma loja ou centro de abastecimento de produtos na região, como recorda outro dos participantes e iniciador do mapa:
antes de discutirmos o que precisamos para a autonomia regional e onde é que fica o centro de logística, era bom se calhar mapearmo-nos, quem somos, as pessoas que estão aqui, em que parte do território é que estão, podemos, inclusive, perceber que o centro de gravidade, o centroide desta gente fica se calhar noutro sítio e não [no lugar proposto pelo outro] ( … ). Eu tinha o meu computador, abri um Google Maps e comecei a mapear ( ... ), o que é que têm para oferecer e o que precisam? O que produzem e o que precisam comprar? Ao final do mapeamento, ou ao fim de uma dúzia de pessoas, percebemos que se calhar isto, ‘tá [sic] a precisar também de introduzir aqui uma dimensão de transportes, ( ... ) pessoas que se movem, de um sítio, têm percursos regulares e podem servir de estafeta, fazer serviço de transporte para outros ( ... ) e não só produtos mas também serviços, ( ... ) sei lá, tem uma máquina, uma infraestrutura qualquer, um equipamento, um trator, um centro de conferências ( … ), e ficou aí esse mapa, percebemos no final que aquilo tinha algum potencial. Eu acrescentei alguns recursos da região depois, aquilo foi crescendo com contributos do [anónimo] que introduziu a rede de fornecedores de Tamera ( … ), pessoas que não estão tão ideologicamente voltadas para a autonomia, mas são fornecedores de produtos e serviços interessantes. (Américo, entrevista, 18 de outubro de 2019)
Numa região do país desde há anos propensa à instalação de neo-rurais, o mapa “era uma forma de agregar gente com uma orientação ideológica semelhante” (Américo, entrevista, 18 de outubro de 2019). Quanto aos critérios de inclusão, “não havia critério, era quem estava e quem quisesse dar [os seus dados], dava. Ficou completamente aberto para quem quisesse colocar novos pontos no mapa”. O mapa continua nos dias de hoje em modo automático e já conta com mais de 18.000 visitas (8.000 em finais de 2019), sendo que o mapeamento tem sido usado como recurso para outros projetos (Moreira, 2018). Quanto a sonhos para o futuro:
tenho, assim, um desejo que um dia aquele mapeamento atualizado possa ser a base de uma espécie de app de comunidade, estilo Waze ou outras que estão ligadas ao trânsito, mas que servisse mesmo para troca direta, que as pessoas pudessem fazer compras e ter o rating, uma espécie de EBay comunitário da rede que servisse também as questões logísticas... aquilo como mapeamento tem um potencial de acervo de informação para se desenvolver apps e tecnologia ali em cima que não aconteceram ainda e não sei se as pessoas da rede estariam disponíveis para isso. (Américo, entrevista, 18 de outubro de 2019)
4.4. SUSY
O mapa SUSY - SUStentabilidade e Solidariedade na Economia nasceu do projeto internacional A Economia Social e Solidária Como Abordagem de Desenvolvimento Para a Sustentabilidade no e Após o Ano Europeu do Desenvolvimento 2015 (Troisi et al., 2017)4. Entre 2015 e 2017, o projeto apoiado pela União Europeia juntou uma rede de 26 associações em 23 países europeus e nove países de África, América Latina e Ásia. Em Portugal, a organização parceira foi o Instituto Marquês de Valle Flor, uma organização não-governamental para o desenvolvimento, com o apoio do Instituto Camões.
Com o objetivo de “aumentar a visibilidade da Economia Social e Solidária na Europa e no mundo”, a missão do SUSY era “mostrar e fortalecer o movimento da economia alternativa, em que se aplicam princípios sociais e de sustentabilidade diferentes dos aplicados no atual sistema económico” (SUSY, s.d., para. 3). De acordo com o website do projeto:
as pessoas envolvidas e interessadas em iniciativas solidárias podem estabelecer ligações e interagir, e podemos partilhar e abrir a ideia da economia solidária a cada vez mais pessoas. Ao coletar e partilhar estes exemplos, pretendemos obter novos insights sobre a economia solidária. ( ... ) Ao mesmo tempo ( ... ) estamos a criar vínculos com decisores políticos para aumentar o seu apoio a uma forma alternativa de fazer as coisas. (socioeco.org, s.d., para. 1)
O mapa apresentava ao todo mais de 1.100 práticas nos diversos territórios (ver Figura 6), distribuídas por 12 categorias principais referentes a setores de atividade, e todas elas com tipos pré-definidos de iniciativas (ver Figura 7). Em Portugal foram mapeadas 98 iniciativas, principalmente nas zonas de Lisboa e do Alentejo. Um primeiro carregamento foi feito a partir da atualização de uma base de dados da economia social em Portugal, disponibilizada pela Universidade Católica Portuguesa.
Retirado de SUSY, por SUSY - Sustainable and Solidarity Economy, s.d. (http://pt.solidarityeconomy.eu/)
Há iniciativas que são difíceis de colocar dentro de uma caixinha porque estamos limitados a uma série de categorias e ficamos na dúvida ( ... ) porque se calhar não [se] traduz a verdadeira essência, e depois há iniciativas ( ... ) de cidadãos que na sua génese não são formais e que não pudemos incluir, porque precisávamos de um contacto e é pena por ser assim, mas eram os princípios que nos foram comunicados no âmbito do projeto. (Ofélia, entrevista, 10 de outubro de 2019)
O mapa foi desenvolvido sobre a plataforma Open Street Maps em parceria com o coletivo internacional TransforMap5:
queríamos que quem fosse responsável por construir esta plataforma fosse também uma cooperativa, uma organização com base na economia social e solidária, de forma a ser coerente com o objetivo do processo ( … ). Trabalhar com um coletivo foi um grande desafio e uma grande fonte de aprendizagem porque são diferentes formas de colaboração, os timings de resposta e o nível de compromisso também é diferente quando se trata de estruturas mais hierarquizadas porque as pessoas [que] circulam dentro destes coletivos ( … ) vão saltitando entre projetos e foi dos momentos que mais clash deu entre diferentes parceiros. Houve muitos problemas técnicos por trás da aplicação do mapeamento, e por outro lado em termos de recursos humanos, falta de resposta para esses problemas devido à rotatividade das pessoas. (Ofélia, entrevista, 10 de outubro de 2019)
Frustração partilhada por um dos elementos do TransforMap:
com muita pena, mas não conseguimos fazer com que o projeto TransforMap, no qual o mapa SUSY está baseado, funcionasse a longo prazo, principalmente devido a diferenças ideológicas e pessoais, bem como por não conseguir gerar meios de subsistência a fazer esse trabalho, e a necessidade de cada contribuidor individual organizar a sua vida. (Wim, comunicação eletrónica, 22 de outubro de 2019)
O projeto envolveu também a “partilha de práticas e experiências” e momentos como as “speakers tour”, com pessoas convidadas de vários continentes a visitarem iniciativas de economia social e solidária na Europa. “Esta proximidade entre pessoas é uma mais valia” (Ofélia, entrevista, 10 de outubro de 2019).
Dar visibilidade às iniciativas e ser uma tentativa de fortalecer o movimento de ESS [Pesquisa Social Europeia] europeu. Serviu entre pares. Que parceiros trabalham a questão da energia ou a floresta comunitária em Portugal? Com o acesso ao mapa podiam encontrar congéneres... [o mapa] pode ser um catalisador nesse sentido, dar a conhecer e partilhar. (Ofélia, entrevista, 10 de outubro de 2019)
Sendo este um projeto financiado em grande escala e com recursos alocados por tempo limitado, um dos principais desafios colocados foi mantê-lo: “o tempo de vida útil acaba por ser limitado”. Este receio veio a confirmar-se pois o mapeamento já não está disponível.
4.5. Transição Portugal
A rede Transição Portugal agrega pessoas e iniciativas ligadas ao movimento de transição e tem a missão de “agir como catalisadora, impulsionadora ou como apenas um convite… para criarmos comunidades locais mais resilientes e com uma cultura humana saudável” (Transição Portugal, s.d.-c, para. 1). Reconhecida como hub nacional pelo movimento internacional Transition Network desde o final de 2020, a rede portuguesa começou a formar-se em 20106, e desenvolveu durante os primeiros anos diversas atividades, tendo, depois, entrado num período de dormência, até à sua reativação em 2021-2022.
A Transição não dispõe de um mapeamento próprio e recorre a dois mapas fornecidos por plataformas externas (a Rede Convergir e a Transition Network), como explicam no website:
apesar de a maior parte das iniciativas de Transição de Portugal estarem no mapa e calendário da Rede Convergir, algumas ainda não estão e podem ser encontradas no site da Transition Network. Por outro lado, algumas iniciativas estão na Rede Convergir e não no site da Transition Network. (Transição Portugal, s.d.-b, para. 3)
Assim, é possível consultar no website da Transição (Figura 8) um mapa exportado (automaticamente atualizado) a partir da categoria “Transição” na Rede Convergir (com 40 pontos), referente a iniciativas sociais que facilitem a transição da comunidade para uma visão positiva.
Retirado de Portugal, por Transição Portugal, s.d.-b (https://www.transicaoportugal.net/iniciativas-de-transicao/portugal/)
Por outro lado, no website da Transição é também disponibilizado um link que direciona para a página do mapeamento da Transition Network (Figura 9), no qual estão representados 22 grupos locais de transição em Portugal, quatro formadores individuais e o hub nacional. Qualquer pessoa pode propor um novo grupo, hub ou formador no mapa da Transition Network, tendo para tal de se registar como indivíduo.
5. O Caso do Pam a Pam Catalão
O Pam a Pam é o mapa de referência da economia solidária na Catalunha (ver Figura 10). Nascido em 2013 por iniciativa da organização não governamental Setem (financiada pela Ayuntamiento de Barcelona) e mais tarde com o apoio da Xarxa d’Economia Solidària, o Pam a Pam assume-se como “ferramenta coletiva que contribui para a transformação social para superar a lógica capitalista”, “espaço de referência para a visibilidade e articulação da economia solidária” e “comunidade de aprendizagem através do ativismo, da formação e da prática do consumo responsável” (informação disponível em https://pamapam.org/ca/).
O objetivo do mapa é duplo, segundo o website Pam a Pam: “por um lado, pretende visibilizar alternativas de cidadania e, por outro, articular as iniciativas de economia solidária do território, conhecê-las melhor e saber como podemos trabalhar juntas para a consolidação de um movimento socioeconómico alternativo ao capitalismo”.
Com mais de 1.300 iniciativas georreferenciadas, distribuídas por 15 setores de atividade económica e 98 subcategorias (listadas na Figura 11), o mapa serve de guia para o consumo responsável.
Onde posso encontrar roupa feita sem exploração laboral? Onde comprar alimentos biológicos e de comércio justo? Como posso cobrir as necessidades da minha vida quotidiana (habitação, educação, ócio, etc.) fora do mercado capitalista? ( ... ) Há cada vez mais alternativas que oferecem produtos de proximidade, que nos deixam investir o nosso dinheiro numa banca coerente com os nossos valores, que permitem o fornecimento de energia verde e renovável à casa, uma vida mais comunitária… O Pam a Pam aproxima-te de todas estas iniciativas. (Pam a Pam: Iniciativas de Consumo Responsable y de Economía Solidaria en Cataluña, 2014, para. 1)
O Pam a Pam apresenta cada iniciativa face a uma lista de 15 critérios considerados fundamentais no âmbito da economia solidária: “proximidade”, “comércio justo”, “integração social”, “transparência”, “intercooperação”, “sustentabilidade”, “gestão de resíduos”, “eficiência energética”, “faixa salarial”, “desenvolvimento pessoal”, “equidade de género”, “democracia interna”, “banca ética”, “redes” e “licenças abertas”. Para tal, uma comunidade de voluntárias, conhecidas como “xinxetes” (pioneses), entrevista as iniciativas que querem fazer parte do mapeamento e aplica um questionário para validar o seu enquadramento nos critérios da economia solidária (devem cumprir pelo menos metade dos critérios mais 1). Apesar do apelo à participação nas assembleias periódicas de membros e no próprio mapeamento, patente nos diversos canais de comunicação do Pam a Pam, de acordo com Fuster Morell e Espelt (2018), e também com as nossas próprias observações, existem dificuldades em manter a mobilização das comunidades territoriais, para as quais houve um financiamento europeu inicial. O projeto procura formas de revitalizar essa frente, bem como o seu modelo de sustentabilidade económica de forma a ter maior autonomia das organizações e financiadores.
Do mapa original derivaram mais mapeamentos, como o mapa de redes alimentares locais, a einateca agroecológica7, lançado em plena pandemia COVID-19, o mapa das economias comunitárias (Pam a Pam, s.d.-a), lançado em junho de 2021, agregando um conjunto de práticas económicas que procuram resolver necessidades de forma coletiva, bem como mapas regionais (Pam a Pam, s.d.-c) do País Basco e da Comunidade Valenciana.
Para além da plataforma online, o Pam a Pam faz-se visível através da participação em eventos, oferta de materiais promocionais (calendários, postais, folhetos informativos) e um rótulo autocolante identificador das iniciativas que fazem parte do mapa, a utilizar nos espaços físicos, mostrando que “esta é uma iniciativa Pam a Pam”.
6. Síntese e Considerações Finais
Os mapas estudados evidenciam diferentes abordagens ao mapeamento colaborativo de economias alternativas. Sintetizamos as evidências na Tabela 1, tendo em conta as qualidades democráticas pró-comum propostas por Fuster Morell (2018).
Prosseguindo no objetivo de estudar o potencial dos mapas como um meta-território/bem/comum, vertemos em seguida os resultados - quer os sintetizados na tabela, quer os que foram recolhidos em entrevistas - nas considerações e ampliações seguintes.
6.1. Governança
Reconhecemos, nos mapas estudados, tanto contextos institucionais como comunitários, bem como distintos mecanismos de participação pelos membros.
Ao classificarmos, excecionalmente, o caso Autonomia Regional como “ausente”, reconhecemos a impossibilidade de identificar neste caso uma “tutela” ou assinatura clara de autoria, afiliação e/ou controlo, embora este mapa continue ativo e em aparente crescimento. Esta ideia de ausência surte harmoniosa com os anseios subjacentes a estas iniciativas.
Os “mecanismos de participação pelos membros” existem, mas deparam-se com a débil literacia tecnológica e a escassez de um recurso fundamental: o reconhecimento, pelos participantes, de real interesse (ver o ponto da economia, abaixo).
Apesar de as iniciativas estudadas se unirem em convicções ideológicas afins, vemos mais casos em que tais iniciativas se ignoram do que casos em que cooperam.
Em função da sua dimensão/ambição, as iniciativas de mapeamento vão-se aproximando de práticas contrárias aos anseios expressos, nomeadamente quanto à violência das regras de inclusão/ exclusão, à opacidade dos processos de decisão, e à (in)dependência em relação a forças externas contrárias como as tecnologias e os sistemas de financiamento.
Não obstante, vê-se reconhecida, entre os envolvidos, a necessidade e utilidade de mapear e de entender como fazê-lo.
Pergunta-chave: como centralizar a informação descentralizando o poder?
6.2. Economia
Os mapeamentos apresentam-se todos sem fins lucrativos declarados. Não recolhemos informação quanto à transparência dos fluxos financeiros existentes nestes projetos. Parece-nos, no entanto, útil fazer aqui uma leitura mais larga do tema economia:
Os atores destas iniciativas movem-se amiúde por uma mistura de necessidade de concretização existencial e de expetativas de sustento individual, e cedo entendem que a resposta a tais anseios se demonstra frágil e/ou efémera.
Quando as iniciativas de mapeamento, com a finalidade de obterem financiamento, se comprometem com parâmetros das chamadas às quais se propõem, veem-se na dificuldade de harmonizar tais parâmetros com as incidências do processo e as mudanças que estas solicitam. Por outro lado, estes compromissos institucionais nunca garantem resposta ao problema da manutenção/longevidade das iniciativas.
Existe uma tutela invisível, a qual podemos nomear como contextos sócio-político-culturais endógenos e exógenos a estas iniciativas. Navega-se, sugere-se, em dilema entre os desejos de autonomia e a necessidade constante de regressar, mesmo que parcial ou temporariamente, ao sistema do qual se quer sair.
Entendendo a economia como a gestão dos recursos, visando uma viabilidade para a vida, propomos que os recursos são: as energias individuais e de grupos geradas pela necessidade de alternativa; as capacidades de produção efetiva presentes nestes indivíduos e grupos; a capacidade para, mantendo o rumo, captar e dialogar com recursos fora dos círculos restritos das iniciativas.
Pergunta-chave: como garantir independência financeira e disponibilidade humana?
6.3. Tecnologia
O recurso à tecnologia digital é um exemplo claro daquilo que enunciamos no ponto anterior. Argumentamos:
As plataformas tecnológicas “capitalistas” de mapeamento impõem um padrão técnico/infraestrutural difícil de combater. Há que reconhecer que tais plataformas, globalizadas e globalizantes, impõem-se pela sua ubiquidade e suposta facilidade de acesso e utilização.
Sabemos, de âmbitos diversos, desde a informática à medicina e à mecânica, que a sofisticação da tecnologia veda o acesso às ferramentas. Ou seja, neste caso, as ferramentas globalizantes são apenas aparentemente uma dádiva e uma facilitação. Na verdade, o padrão que impõem tende para a hegemonia e para a supressão de autonomia.
A opacidade e domínio inerentes à sofisticação da tecnologia apenas podem ser combatidos pelo uso experimental (Flusser, 1998).
As pessoas e grupos que dão corpo a estes mapas confrontam-se com a sua iliteracia e dependência quanto às tecnologias digitais, as quais sentem como inevitáveis.
Neste sentido, a questão do recurso ao software livre e arquiteturas descentralizadas é controversa, já que implica lidar mais dificilmente com a iliteracia e/ou dependência já instigada pelas plataformas globalizantes.
Pergunta-chave: como adotar ferramentas práticas alinhadas com os princípios?
6.4. Conhecimento
No que diz respeito ao conhecimento gerado pelos distintos mapeamentos, tecemos alguns comentários em torno da sua categorização, legibilidade e abertura:
Chama-se “categorização” ou “taxonomia” à necessidade de transfigurar para entender ou criar verdade. Parte do vício imposto pelo contexto sócio-político-cultural acima mencionado diz respeito à necessidade de separar em caixas estanques realidades complexas, dinâmicas, promíscuas, inclassificáveis.
A diversidade lexical que observamos na linha “critérios” da Tabela 1 é em si uma vantagem, já que dificulta a canibalização de motes lexicais pelo mundo capitalista, como é seu hábito e especialidade. Não obstante, vemos inscritos na tabela muitos termos que já estão apropriados e banalizados pelas supostas causas fraturantes dos poderes dominantes.
Neste sentido, dizer que estes mapas desejam propor e propagar desvios da maioria óbvia não significa que os mesmos beneficiem de uma, digamos, fácil legibilidade geral.
Pergunta-chave: como abrir dados e conhecimento e ao mesmo tempo manter íntegra a iniciativa?
6.5. Impacto
Em termos de impacto, destaca-se a dificuldade em quantificar ou medir o alcance das iniciativas para além do óbvio número de projetos mapeados.
Se os atores envolvidos já têm dificuldades em manter as plataformas vivas, pouco se pode esperar de uma auto-observação crítica e sistemática, capaz de evidenciar impactos (ou a falta deles).
As medidas de impacto serão, em projetos formais financiados, exigidas pelos financiadores em termos que desconhecemos. As medidas de impacto não formais são inexistentes, o que nos traz de volta o primeiro ponto desta lista. Como ter energia para tudo?
Pergunta-chave: como medir, crítica e sustentadamente, estes instrumentos?
6.6. O Exemplo Catalão
Embora não seja imune a problemas que ensombram os diferentes mapeamentos, o exemplo catalão aponta caminhos possíveis. Criou uma estrutura de governança liderada pela rede de economia solidária da Catalunha, Xarxa d’Economia Solidària, mas também descentralizada e aberta, com assembleias frequentes e equipas locais espalhadas pelo território que garantem o enraizamento local, a integridade dos pontos e a atualização do mapa. Conseguiu apoio financeiro inicial para o desenvolvimento tecnológico e para a criação das equipas territoriais e, anualmente, a Xarxa d’Economia Solidària dedica cerca de 65.000 € do seu orçamento ao Pam a Pam (Xarxa d’Economia Solidària de Catalunya, 2019, 2020), enquanto procura formas autónomas de sustento económico (Fuster Morell & Espelt, 2018). Desenvolveu uma plataforma baseada em software livre e código aberto e disponibiliza todo o código livremente no GitLab para replicação e melhoramentos, onde atua uma comunidade digital de programadores. Quanto ao impacto, estão a ser recolhidos através de um inquérito dados como a utilidade do mapa na identificação de produtores e fornecedores e na angariação de novos clientes ou contratos, como medida do impacto nas iniciativas mapeadas (XES, 2022).
7. Conclusões
Os mapas estudados confirmam a fragilidade e efemeridade dos “universos diversos” em Portugal. Aqui, manter os mapeamentos vivos - como outras iniciativas desviantes - depende essencialmente de uma força mobilizadora equiparável àquilo que as feministas definem como trabalho reprodutivo necessário para a manutenção da vida (Federici, 2018). Não obstante, o estudo reafirma quer a importância dos mapas enquanto dispositivos comunicativos e promotores das realidades que pretendem mapear, quer a necessidade de tornar visíveis práticas económicas alternativas que divergem do modelo capitalista dominante.
O estudo contribui para o cruzamento disciplinar entre os mapeamentos colaborativos, os comuns digitais e as economias diversas, incentivando não só o debate, como a sua prática e disseminação nos territórios. Esperamos que o contributo possa inspirar novos avanços no mapeamento das iniciativas de economia solidária em Portugal que permitam acalentar as alternativas divergentes e reais de consumo, produção e distribuição que existem no território.
Cremos também estar a contribuir para inscrever as economias diversas nas áreas da comunicação e do design de comunicação. Não se trata apenas das qualidades e desafios que estão implicados nos objetos e estruturas de comunicação. Trata-se de acalentar alternativas de vida. De facto, a maturidade observada no caso catalão fez-se também graças aos profissionais e investigadores destas áreas que apostaram o seu trabalho e o seu sustento neste tipo de deriva social, por entre um tecido socioeconómico dominante, o qual subestima, e sistematicamente, preda, não a substância, mas sim a potência comunicacional das alternativas.
O mapa não é o território e as práticas não existem por estarem no mapa. O mapa à escala 1:1, ironicamente evocado por Jorge Luis Borges, existe, provavelmente, utopicamente, riscado nos calcanhares, nos olhos, nos ouvidos e nos narizes dos que percorrem o território. Poderá andar por aqui a utopia - por natureza inalcançável, mas meta-mapeadora - que pode orientar o trabalho de mapear o diverso.