1. Introdução
A pandemia de COVID-19 foi decretada pela Organização Mundial de Saúde a 11 de março de 2020. Nessa altura, o novo coronavírus tinha infetado mais de 118.000 pessoas em 114 países e feito já 4.291 mortos (Duarte, 2022, pp. 19-30). Os primeiros casos surgiram em Portugal a 2 de março e, 10 dias depois, o Governo anunciou a suspensão de todas as atividades letivas. O primeiro estado de emergência foi decretado a 18 de março e prolongou-se até 2 de maio. Foi assim o início do combate à pandemia em Portugal, um caminho no qual os media noticiosos assumiram um papel importante através do reforço da missão de serviço público, nomeadamente pelas fontes de informação a que deram voz - fontes oficiais e fontes especializadas, que transmitiam uma informação credível e explicativa dos acontecimentos.
As fontes de informação especializadas são convocadas pelo seu conhecimento e ocupam um lugar central na informação noticiosa sobre ciência e saúde, sobretudo quando a saúde é abordada pelo ângulo da investigação, da inovação e dos tratamentos clínicos mais complexos. Em plena pandemia, essas fontes (cientistas, médicos especialistas, professores universitários) revelaram de forma inequívoca a importância do seu contributo, explicando aos media e, consequentemente, à sociedade - mas também aos decisores políticos - a gravidade da situação sanitária vivida, o comportamento do vírus, o que podia ser feito aos níveis individual e coletivo. No início da pandemia, quando o conhecimento científico sobre a COVID-19 era escasso e existia uma grande incerteza em relação ao vírus, as fontes especializadas tornaram-se hegemónicas e forneceram o contexto que os jornalistas procuravam, mostrando a preponderância dos especialistas num cenário de crise de saúde pública.
2. Enquadramento Teórico
2.1. A Importância das Fontes de Informação no Desenho do Espaço Público Mediático
Instituindo em permanência um influente espaço público, os media noticiosos parecem abrir diante de todos vias para uma expressão ampla e de livre acesso, eufemisticamente povoadas de eufemísticos cidadãos numa eufemística democracia, na qual todos têm a ilusão do ingresso (Lopes, Loureiro, & Neto, 2013, p. 8). No entanto, ao longo dos anos, o espaço social que os media jornalísticos vêm construindo a partir daqueles a quem dão a palavra, seja para testemunharem factos, seja para opinarem sobre eles, não tem sido verdadeiramente democrático. Nas escolhas que fazem, os jornalistas tendem a privilegiar o binómio poder/grandes centros urbanos, instituindo uma confraria circunscrita, localizada e colada ao status quo que tomou de assalto o centro do espaço público mediático. Esse poder dominante vem criando, ao longo destes anos, apertados quadros de opinião em relação aos quais qualquer pensamento “fora da caixa” não tem muitas possibilidades de se impor. Apesar de mais democráticas nos seus espaços de opinião, a rádio e a imprensa têm sido incapazes de criar alguma rutura com esta ordem hegemónica. Aliás, muitos daqueles que comentam na televisão assinam também colunas de opinião nos jornais e participam em espaços de debate na rádio, criando-se assim uma estrutura circular de opinião. Sobra o universo digital, de acesso (quase) universal, onde cada um pode criar o seu blogue ou integrar uma rede social online com vias de expressão praticamente ilimitadas. No entanto, aí há utilizadores mais conhecidos do que outros e os primeiros também constituem uma confraria mais alargada, mas partilhando os mesmos traços de identidade daqueles que vingam noutros meios de comunicação social. Na verdade, tem sido uma tarefa algo complexa procurar nos media noticiosos uma autêntica esfera pública como espaço real de ação e de cidadania ou como lugar por onde circula uma diversidade assinalável de opiniões, oriundas de personalidades de perfis diferentes que têm uma palavra válida a dizer sobre determinado assunto. Temos estado muito longe de uma ação comunicativa racional, plural, orientada pelo entendimento de que nos falara Jürgen Habermas (1962/1984).
Foi essa a lógica da informação jornalística até à pandemia, nomeadamente no que diz respeito às fontes de informação que normalmente ocupam o topo dos alinhamentos noticiosos (Lopes, Ruão, et al., 2013). Confrontados com um inesperado surto que ganhou uma repentina escala internacional e confinou parte da população mundial, os jornalistas adotaram outras tematizações, mais próximas do campo da saúde e das preocupações dos cidadãos. E sentiram necessidade de ouvir com mais regularidade outras fontes, mais analíticas do que fáticas, menos conhecidas, mas mais especializadas. Como lembram Olsen et al. (2020), nessa altura percebemos que o jornalismo não pode ser apenas um negócio, mas também uma parte fundamental da infraestrutura da democracia que estava “ameaçada” pelo SARS-CoV-2. Neste período, o trabalho das redações desenvolveu-se numa lógica de serviço público em que o importante se foi sobrepondo ao interessante, reunindo altos índices de consumo, estendendo-se por franjas populacionais que nem sempre se interessavam por informação jornalística. Como sublinha Casero-Ripollés (2020), “este crescimento extraordinário (do consumo de notícias) demonstra que a informação é, em determinados momentos, um recurso de grande valor para os cidadãos” (p. 9).
Na verdade, esta pandemia levou ao reconhecimento do jornalismo como uma instância essencial nas sociedades do século XXI. A ansiedade perante o vírus que ganhou escala global e ameaçou a vida tal como a conhecíamos foi praticamente generalizada. Fornecer informação de qualidade, útil, pertinente e integradora na vida coletiva foi sempre propósito estrutural do jornalismo e um dos elementos centrais da sua conceção (Kovach & Rosenstiel, 2007), que se reforçaram como nunca durante esta pandemia. Analisando o impacto da COVID-19 no ecossistema informativo à escala global, Andreu Casero-Ripollés (2020) defende que, nesse período, a informação jornalística foi um meio valiosíssimo para orientar as pessoas, ajudando a reduzir a incerteza. Nessa missão, as fontes oficiais com informação credível e as fontes especializadas com uma análise ponderada revelaram-se fundamentais para uma qualidade da informação reconhecida por vários académicos (Costa-Sánchez & López-Garcia, 2020; Masip et al., 2020) e para um outro desenho do espaço público mediático: explicativo daquilo que estava a acontecer, à procura de um “saber sábio” que contribuísse para reduzir o medo das populações, preocupado em dotar as pessoas de meios de prevenção de uma pandemia que provocou uma travagem a fundo à escala planetária.
2.2. As Fontes Especializadas: As Vozes que Dotam o Jornalismo de Mais Qualidade
A relação entre os jornalistas e as suas fontes é central para a produção jornalística (Fisher, 2018). As fontes estão na origem das informações que lemos, vemos e ouvimos nos media, desenhando o espaço público mediático através de um fluxo informativo constante, avidamente sorvido - mas também triado e transformado - pelas redações. Nesta relação de complexa interdependência, o jornalismo valorizou sempre mais as fontes associadas ao poder instituído, o que foi convertendo este campo num lugar privilegiado para a reprodução do poder dominante, que as elites ligadas aos vários campos sociais procuraram impor. Linhas teóricas como os estudos culturais, que tiveram em Stuart Hall uma das suas referências, sempre lembraram que os media estariam ao serviço da manutenção de uma hegemonia ideológica da sociedade. Autores de uma linha interacionista, que dedicaram parte do seu trabalho à análise do desempenho das fontes no campo jornalístico, como Harvey Molotch e Marilyn Lester (1993), recordaram várias vezes que os definidores primários das notícias têm uma enorme proximidade às estruturas do poder. Diz-nos a bibliografia da comunicação e do jornalismo que, no contexto de normalidade pré-pandemia, a cobertura jornalística dependeu em grande medida das fontes oficiais (Berkowitz, 2009; Kleemans et al., 2017; Splendore, 2020). Em Portugal, especificamente, o noticiário sobre saúde pré-COVID-19 caracterizava-se pela sua carga política, tendo como vozes principais governantes ou membros de autoridades sanitárias (Araújo, 2017; Lopes et al., 2013).
Apesar deste quadro de reconhecida influência do poder político no âmbito da produção noticiosa sobre saúde, as fontes especializadas gozaram sempre de um enorme crédito junto dos jornalistas. Livres, desinteressadas e apostadas em defender o interesse público, sobretudo quando ligadas ao meio académico e científico, estas fontes outorgam conhecimento, aditam rigor e conferem credibilidade ao noticiário como nenhum outro grupo de fontes, sendo que os jornalistas lhes reconhecem estes importantes atributos (Magalhães, 2020). Assim, as fontes especializadas de informação (como cientistas e médicos) ganharam um papel preponderante no âmbito da cobertura jornalística da saúde, na sua vertente clínica, mas também na sua vertente científica (Hanson et al., 2017; Nisbet et al., 2003; Stroobant et al., 2018; Viswanath et al., 2008). Afinal, são elas que alicerçam um noticiário altamente complexo, emprestando a reputação das suas credenciais profissionais, académicas e científicas ao jornalismo (Magalhães et al., 2020).
Porque assumem um papel determinante, importa saber quem são estas fontes que fornecem informação e emitem opinião especializadas (Boyce, 2006). Albæk (2011) diz-nos que “os especialistas geralmente fornecem conhecimento de base e servem de parceiro de treino ao jornalista, na tentativa deste último de interpretar um determinado evento ou curso de eventos na agenda pública” (p. 335). Os especialistas são, por isso, fontes especiais, cuja capacidade de colaboração com o jornalista é reconhecida, criando uma dialética capaz de catalisar a qualidade da informação veiculada. São eles - os especialistas - que auxiliam os jornalistas a passar do relato de factos para um jornalismo de caráter explicativo e interpretativo, que se traduza em peças noticiosas que “expliquem o background, interpretem a relevância e avaliem possíveis consequências” (Albæk, 2011, p. 336). Ou seja, em cenários em que há necessidade de interpretar e traduzir informação complexa sobre saúde, os especialistas destas áreas assumem uma posição preponderante na hierarquia das fontes (Araújo & Lopes, 2014; Deprez & Van Leuven, 2018; Lopes, Ruão, et al., 2013; Magalhães, 2020). Naturalmente, muitas vezes os especialistas são também usados como recursos de “legitimidade compensatória” (Weiler, 1983). Isto é, eles confirmam um facto ou conclusão já conhecida do jornalista, emprestando-lhe as suas credenciais científicas como garantia de credibilidade e isenção.
Cientes da complexidade de muitos temas da medicina, quando escolhem fontes especializadas, os jornalistas assumem que procuram as fontes mais bem informadas e as que conseguem de forma mais eficiente passar a mensagem ao público, remetendo os cargos hierárquicos para um patamar inferior de relevância (Magalhães, 2020). Ou seja, quando a saúde cruza a linha da ciência, o jornalismo é capaz de escamotear as fontes tradicionais, nomeadamente as oficiais, recorrendo a fontes alternativas alicerçadas no saber, como investigadores, médicos e outros especialistas, revistas médicas científicas e centros de investigação, entre outros (Deprez & Van Leuven, 2018; Len-Rios et al., 2009; Magalhães, 2020).
O surgimento da pandemia da COVID-19 começou, desde o início, a desafiar a capacidade de resposta das fontes oficiais, pois a necessidade de informação era permanente e a capacidade de resposta era limitada. Neste contexto, o jornalismo teve de abrir o seu campo de ação, chamando para o espaço mediático (mais) especialistas oriundos de vários campos sociais, com predomínio do campo da saúde, detentores de um “saber sábio”, desconhecidos da opinião pública, mas reunindo um capital de credibilidade científica “interpares”. Se esta ascensão dos especialistas no elevador das fontes pode ser perspetivada como algo positivo do ponto de vista da qualidade do jornalismo, também é um facto que a presença de mais especialistas com “microfone aberto” originou algumas contradições entre as respetivas posições, até porque a ciência é evolutiva e a linha que separa o comentário de um especialista e a partilha da sua opinião é ténue. Um estudo conduzido no Canadá, por exemplo, mostra que houve frequentemente “demasiados especialistas” nas notícias, sendo que apenas alguns deles tinham de facto conhecimentos técnicos e currículo específico que justificasse a escolha dos jornalistas (MacDonald, 2021). Também no Canadá, Perreault e Perreault (2021) notam que, embora os jornalistas tenham valorizado muito os especialistas (médicos), também reconheceram os perigos desta colaboração com os especialistas. Entre eles, os perigos da desinformação, de ver o seu trabalho ignorado em resultado de ausência de credibilidade percebida e, ainda, de que o seu trabalho seja considerado enviesado. Como diz o teórico do risco Ulrich Beck (como citado em Boyce, 2006), os especialistas podem “competir uns contra os outros”, mas aquilo que dizem tem sempre a vantagem de colocar no espaço público mediático um saber especializado que remete para campos de análise e de reflexão.
3. Opções Metodológicas
Esta investigação procura perceber a visibilidade que as fontes profissionais, sobretudo aquelas com uma atividade mais especializada em determinado domínio, ocuparam enquanto fonte de informação no tempo da pandemia por COVID-19.
Optou-se por uma análise de conteúdo das notícias sobre COVID-19 publicadas na imprensa nacional diária: foram escolhidas as versões digitais de dois jornais nacionais impressos, um de linha mais popular, o Jornal de Notícias, e outro considerado de referência, o Público. A escolha destes jornais justifica-se pela sua natureza generalista e nacional. Estamos perante uma amostragem não-probabilística, o que significa que não é possível determinar probabilidades ou generalizar os resultados (Agresti & Finlay, 2009). Os dados obtidos foram estudados através da análise de conteúdo estabelecida por Laurence Bardin (2008), procedendo-se, assim, à respetiva organização, codificação, categorização, inferência e informatização do material recolhido, sendo esta feita com recurso ao programa de análise estatística SPSS, de acordo com uma grelha de análise previamente elaborada e testada (Araújo, 2017; Lopes et al., 2011; Magalhães, 2020), que foi adaptada ao contexto pandémico de forma dedutiva (Tabela 1).
Por forma a garantir uma abordagem transversal e significativa da pandemia por COVID-19, foram selecionados três períodos - de 18 de março a 2 de maio de 2020, de 9 de novembro a 23 de dezembro de 2020 e de 15 de janeiro a 26 de fevereiro de 2021 - em que o estado de emergência esteve em vigor em Portugal, constituindo, assim, intervalos temporais comparáveis. Para a seleção dos casos foram considerados todos os textos noticiosos publicados nas secções dos jornais intituladas “Primeiro Plano” (Jornal de Notícias) e “Destaque COVID-19” (Público). Estas secções foram escolhidas pela sua natureza passível de uma análise comparativa, na medida em que correspondem àquilo que é sinalizado pelas publicações como mais relevante dentro do repertório noticioso de cada edição.
O corpus de análise é composto por 2.933 textos noticiosos e 6.350 fontes: 1.850 textos foram publicados durante a primeira fase de emergência nacional, citando 4.048 fontes; 457 foram publicados na segunda fase, apresentando a citação de 857 fontes e 626 foram publicados na terceira fase, citando 1.445 fontes.
4. Resultados
4.1. A Valorização das Fontes Especializadas na Cobertura da COVID-19
Analisando a imprensa portuguesa generalista durante os períodos de estado de emergência, evidencia-se uma grande presença dos profissionais enquanto fontes de informação e, de entre estes, dos profissionais da saúde e dos académicos das áreas médicas e das ciências sociais. É um facto que as fontes oficiais foram igualmente relevantes, nomeadamente o Presidente da República, o Primeiro-Ministro e alguns dos ministros (da Saúde, da Presidência, da Economia, da Educação e do Trabalho e Segurança Social), mas os interlocutores detentores de um saber especializado adquiriram uma visibilidade nunca antes alcançada.
Percorrendo os três estados de emergência, constata-se, de acordo com a Tabela 2, que há oscilações no interior de cada categoria, mas a relação entre elas mantém-se invariável ao longo desse tempo. Os três tipos de fontes mais citadas foram as seguintes: humanas profissionais, humanas oficiais e documentos. Dentro das profissionais, aqueles que detinham um cargo tiveram sempre preferência. No primeiro estado de emergência representaram 21,8%; no segundo período somaram 19,7%; e no terceiro período alcançaram 21,3%.
Nas fontes oficiais, representadas na Tabela 3, o Primeiro-Ministro reuniu uma alta frequência, quando comparado com o Presidente da República e com o presidente da Assembleia da República. Os governantes também estiveram muito presentes na imprensa portuguesa, sobretudo a ministra da Saúde e os ministros da Economia e da Administração Interna.
As fontes profissionais citadas nos textos noticiosos sobre a pandemia têm proveniência diversa, dando origem a uma fragmentação considerável de categorias. Na Tabela 4, discriminam-se apenas aquelas com uma frequência igual ou superior a 2%. Nesse grupo, salientam-se sobretudo três categorias: académicos, profissionais da saúde, administradores/economistas. Os militares apenas ganham relevância devido à forte presença do, então, Vice-Almirante Henrique de Gouveia e Melo nos media noticiosos que surge aqui como responsável pela task force da vacinação, podendo essa percentagem ser somada, por extensão, à dos profissionais da saúde.
No que diz respeito aos académicos, salientam-se aqueles que são oriundos das ciências da saúde (2%) e das ciências sociais (1,7%). Também se constata que este tipo de fontes fala mais em nome individual do que em representação de um grupo. Dentro dos profissionais da saúde, os médicos destacam-se, perfazendo 4,2% de todas as fontes citadas, e são aqueles que detêm um cargo os mais interpelados pelos jornalistas (3%). As fontes pertencentes ao campo económico também adquirem alguma expressão, resultante do impacto de uma conjuntura pandémica que teve consequências significativas em diversos setores da vida económica do país.
Relativamente às fontes documentais (Tabela 5), ganham relevância os documentos de natureza oficial, o que pode entender-se como resultado da centralidade dos decretos e regulamentação dos sucessivos estados de emergência, produzidos pelo Governo e pela Presidência da República. Todavia, no conjunto de documentos, os boletins da Direção-Geral da Saúde, sempre com muita informação disponível no sentido da prevenção e tratamento da doença, e os artigos científicos foram valorizados, contribuindo assim para uma construção de textos jornalísticos mais contextualizada, explicativa e também pedagógica.
5. Discussão dos Resultados
Em tempo de pandemia, as fontes de informação passaram por uma mudança substancial. Se o jornalismo pré-pandemia privilegiava sobretudo as fontes oficiais, o aparecimento do vírus SARS-CoV-2 introduziu novos atores e trouxe os especialistas para o centro do espaço público mediático. Estas fontes especializadas são, sobretudo, médicos com cargos nas suas organizações (hospitais, serviços de saúde, etc.) e investigadores das áreas da saúde, da matemática e das ciências sociais que se representavam a si próprios e ao seu saber. Esse “saber sábio” que tanto destaque teve na imprensa diária portuguesa é um dado absolutamente novo no jornalismo da saúde e ajudou os jornalistas a alargarem ângulos e a melhor contextualizarem uma realidade desconhecida e incerta.
Convém sublinhar que as fontes oficiais não desapareceram. Pelo contrário, Governo e Presidência da República, por um lado, e autoridades de saúde, por outro, tiveram uma intensa presença no jornalismo português. No entanto, no inquérito promovido para conhecer as perceções dos jornalistas relativamente ao trabalho que fizeram durante a primeira fase da pandemia, a classe exprimiu a dificuldade que experimentou para aceder à informação de que necessitava (Lopes et al., 2021). A procura de dados era permanente e as fontes oficiais não conseguiam responder a tantas solicitações, nem tão pouco fazer a extensão da sua competência para os enquadramentos e esclarecimentos necessários. É verdade que o Primeiro-Ministro e o Presidente da República se constituíram como as vozes políticas principais em momentos-chave, mas era preciso mais informação, principalmente a partir de uma zona mais recuada, as assessorias. Nas fases mais críticas, a Direção-Geral da Saúde foi promovendo conferências de imprensa diárias e respondendo, dentro de algumas limitações de tempo e de recursos, às diversas solicitações dos media noticiosos. Todavia, o caudal de informação permanente que se foi produzindo, centrado na COVID-19, o clima de enorme incerteza sobre o que se passava e a proliferação de informação falsa exigiam mais colaboração e, sobretudo, informação que contextualizasse o que estava a acontecer. É, pois, neste contexto que ganham maior visibilidade as fontes especializadas, mais descomprometidas com os processos de decisão, mas com mais habilitações para problematizar, contextualizar, explicar, ajudando, desse modo, a população a ganhar outras competências na literacia em saúde. Já não se valorizava apenas a função fática, mas as funções referencial e metalinguística daquilo que se transmitia, sem nunca se menosprezar, naturalmente, a capacidade de comunicação de quem falava e que se encarava como um requisito ao serviço da eficácia da mensagem.
6. Conclusão
Crises como a pandemia da COVID-19 exigem sempre informação atualizada, imediata e precisa (Masip et al., 2020). Falhando as fontes oficiais nesse caudal de dados relevantes de que as redações tanto necessitavam, os especialistas teriam sempre de ganhar bastante relevo. Foi o que aconteceu em tempo de SARS-CoV-2 e, com isso, os jornalistas conseguiram diversificar temas, multiplicar ângulos, ser mais analíticos e contextualizar com dados mais precisos a informação que iam difundindo. Em tempos de grande incerteza como foram aqueles que atravessámos durante a COVID-19, as fontes especializadas foram imprescindíveis para ajudar o jornalismo a ser mais um meio de combate a esta pandemia, orientando comportamentos para a prevenção da doença e dotando os cidadãos de mais conhecimentos.
Alterar aqueles a quem se dá voz no discurso noticioso implica uma mudança estrutural do espaço público mediatizado. Ao contrário do que vingou desde a implantação do regime democrático em Portugal, o jornalismo deixou, neste período pandémico, de priorizar as elites do poder para valorizar as fontes especializadas, grande parte delas desconhecidas da opinião pública. Muitos autores defendem que em períodos de crise os cidadãos estão mais abertos a ouvir vozes distintas, principalmente aquelas oriundas de campos mais credíveis e mais aptas a fomentar um debate público mais esclarecido (Thorbjørnsrud & Figenschou, 2016). Foi isso que fizeram os jornalistas, contribuindo para uma maior qualidade da informação jornalística.
Como bem sublinha Andreu Casero-Ripollés (2020), o surto do coronavírus restituiu parte da autoridade jornalística que havia sido perdida. A questão de fundo, lembra, é saber se isso constituiu um parêntese ou uma mudança estrutural nos processos de produção noticiosa. Aliás, muitas das mudanças verificadas no campo jornalístico neste período excecional, quer em termos profissionais, quer em termos de produção noticiosa, podem vir a configurar uma mudança de paradigma que só o tempo permitirá aferir. Em todo o caso, o recurso privilegiado a fontes especializadas também requer a ponderação de um conjunto de aspetos que, em períodos de crise, tendem a ser elididos ou secundarizados, em nome de “um bem maior”. Referimo-nos, por exemplo, à escolha das fontes especializadas (quem é ouvido e porquê) e ao necessário equilíbrio entre dimensão especializada e dimensão política.