1. Introdução
Este artigo explora o conceito clássico de jornalismo de investigação, acentuando aquilo que o distingue da prática quotidiana, mas também a forma como a tecnologia digital, sem alienar a matriz do conceito, promoveu o seu alargamento, acrescentando novos desafios ao jornalismo e ao jornalista de investigação. Num ambiente moldado pelo mercado, esta reflexão analisa, igualmente, a forma como o jornalismo de investigação resiste, aliado a novos modelos de negócio e a novas formas de produção e distribuição.
A crise de sustentabilidade nos média, provocada pelo digital e acentuada pelo rebentamento da bolha do mercado hipotecário, em 2007, nos Estados Unidos da América, desintegrou, como reconhecem diversos autores, o negócio do jornalismo, provocando cortes nas redações, reduções salariais e encerramento de plataformas jornalísticas em todo o mundo (Birnbauer, 2019; Cagé, 2016; Hoxha, 2019; Jack, 2006; Starkman, 2014; Starr, 2011). Esse “meteorito”, na expressão de Ramonet (2011, p. 11), provocou uma alteração radical em todo o “ecossistema mediático”, tendo como primeira vítima a qualidade jornalística, como complementam diversas análises (Cagé, 2016; Kovach & Rosenstiel, 2010; Tong, 2022).
Ultrapassando a dificuldade inerente à definição do conceito de qualidade, sobretudo se aplicada ao jornalismo (Marinho, 2015), muitos autores estabelecem um paralelo direto entre qualidade e jornalismo de investigação1 (Antelava, 2018; Birnbauer, 2019; Coelho & Rodrigues, 2020; Starkman, 2014; Tong, 2022), acentuando outros autores que a quebra de qualidade aberta pela crise de sustentabilidade teve especiais reflexos no jornalismo de investigação (Burgh, 2021; Cagé, 2016; Hamilton, 2016; Hoxha, 2019; Jack, 2006; Knobel, 2018).
Dean Starkman (2014), prolixo sobre a matéria, descreve o desaparecimento, nas redações, das vozes dissidentes e enfatiza os cortes permanentes que a “desintegração do negócio” (p. 246) provocou no jornalismo de investigação. O desinvestimento no jornalismo de investigação “não poderia ter vindo em pior altura” (p. 246). “O cão de guarda deixou de ladrar” (p. 4), conclui.
A análise de Bill Birnbauer (2019) parece seguir em sentido oposto. Para provar a sua tese, o autor australiano socorre-se de diversos estudos, incluindo um estudo de Knobel (2018), onde a autora, respondendo diretamente a Starkman, apresenta provas de que “o cão de guarda ainda ladra”. Com base na interpretação que faz desses estudos, Birnbauer (2019) conclui que os editores fizeram valer “a cultura e os valores do jornalismo” (p. 52), protegendo a reportagem de investigação e as equipas de jornalistas que as faziam.
Veremos adiante que estas duas visões, aparentemente em oposição, têm um ponto comum a uni-las.
A omnipresença da guerra na Ucrânia ajuda-nos a enquadrar as linhas de pensamento que estruturam este artigo, desde logo as diferentes velocidades do jornalismo, mas também os novos desafios que o jornalismo tem de enfrentar para participar na preservação da democracia (Sarmina, 2018).
Como alerta Natalia Antelava (2018), o jornalismo quotidiano é “descartável”, não tendo sido “desenhado para se manter numa história” (p. 220). A guerra na Ucrânia, elevada ao estatuto diário de notícia desde 24 de fevereiro de 2022, rompe essa lógica universal.
Numa guerra, um ambiente moldado pela propaganda e pelas notícias falsas, a disseminação de verdades amputadas é veloz e difícil de controlar e os jornalistas, como reconhece Medea Benjamin (2014), têm tendência a ser mais cães de colo do que cães de guarda do Governo, silenciando visões dissonantes.
Os textos que Martha Gellhorn (2007) escreveu sobre a guerra do Vietname nunca foram publicados em jornais nacionais. A repórter precisou do britânico The Guardian para publicar e contrariar a “versão oficial americana da guerra” (p. 448).
Nas décadas de 60 e 70 do século passado, o controlo da informação por parte do Estado permitiu-lhe ter “o controlo da realidade” (Sarmina, 2018, p. 193), o que facilitou a exclusão de Martha Gellhorn do coro de vozes oficiais que alinharam com uma determinada visão da guerra do Vietname. No entanto, na era digital, o controlo dos fluxos de informação requer instrumentos muito mais complexos, que, “quanto mais invisíveis forem, mais poderosos serão” (p. 194).
A era digital terá de usar a mesma receita que a era analógica tentou usar para desafinar o coro da visão oficial forjada na propaganda e na desinformação. Se, no século passado, Martha Gellhorn (2007) encontrava no “jornalismo sério, cuidadoso e honesto... um meio ( ... ) de esclarecer os factos” (p. 420), na era digital, Jingrong Tong (2022) considera que, quando a “saúde da democracia” está ameaçada pela “desinformação e pelas notícias falsas”, “precisamos de jornalismo de qualidade mais do que nunca” (p. 170). E “essa necessidade”, completa a autora, é o que “obriga” o jornalismo a “sobreviver e a reviver” (p. 170).
Estamos, exatamente, no ponto da sobrevivência, alerta Barbie Zelizer (2017): “o estado de cansaço em que o jornalismo se encontra é o gatilho que espoleta o seu renascimento” (p. 7).
Na era digital, o renascimento do “jornalismo de qualidade, em concreto do jornalismo de investigação” (Tong, 2022, p. 171), exige, todavia, ao jornalista “novas competências, mas também autonomia e pensamento crítico” (p. 138). De facto, como reconhecem Oliver Hahn e Florian Stalph (2018), “o jornalismo de investigação foi fortemente afetado pela transformação digital” (p. 2).
2. Jornalismo de Investigação
A definição clássica de jornalismo de investigação tem resistido aos avanços do tempo e, mesmo que o conceito original tenha alargado o âmbito, à mercê das influências do mercado e da tecnologia, exigindo do jornalista de investigação novas competências e impondo-lhe novos desafios, a matriz do conceito mantém-se. Essencialmente, a definição clássica de jornalismo de investigação, assente no desejo, forjado na viragem do século XIX para o século XX, a partir do contributo dos muckrakers2, de colocar os poderosos sob escrutínio, não se alterou e tem sido partilhada por diversos autores, em diversos períodos (Anderson & Benjaminson, 1976; Aucoin, 2005; Birnbauer, 2019; Burgh, 2021; Hamilton, 2016; Houston & Horvit, 2021; Kovach & Rosenstiel, 2010; Randall, 2016; Starkman, 2014; Tong, 2022)3.
A definição de jornalismo de investigação, que encontramos no Oxford Dictionary of Journalism (Dicionário de Oxford de Jornalismo; Harcup, 2014), materializa a função de cão de guarda dos poderes, referindo-se à “reportagem que pretende descobrir algo que alguém quer que permaneça secreto” (p. 144). A missão, de um ou vários jornalistas, envolve trabalho de investigação “detalhado e demorado” na descoberta de “algum tipo de alegada transgressão” (p. 144).
Esta definição deve ser complementada com a descrição de algumas tarefas específicas que, agindo sob o primado da ética, permitem ao jornalista de investigação atingir o propósito de desvendar o oculto, apurando quem, quando e onde oculta, por que oculta e como oculta.
2.1. Jornalismo de Investigação e Jornalismo Quotidiano
Em 1976, ainda no rescaldo do caso Watergate e do impulso de dois anos de revelações sobre o assalto à sede do Partido Democrata, em 1972, os jornalistas de investigação David Anderson e Peter Benjaminson (1976) publicam o primeiro livro inteiramente dedicado ao jornalismo de investigação.
Para afirmar as diferenças que separam o jornalismo de investigação do jornalismo quotidiano, o livro abre a discussão pelo argumento que anula essa distinção: “um repórter que faça bem o seu trabalho já é, em parte, um investigador. Os que apenas se limitam a gravar os poderosos ( … ) para atrair a atenção dos média são publicitários ou estenógrafos, não são jornalistas” (Anderson & Benjaminson, 1976, p. 3).
De facto, a ideia de que todos os jornalistas se deixam guiar pelo instinto natural de cão de guarda, sem diferenças entre perfis e cultivando todos o mesmo grau de envolvimento com o objeto jornalístico, é um argumento utilizado por muitos jornalistas (Aucoin, 2005)4 e alguns académicos (Lanosga et al., 2015)5. Não é essa a nossa posição.
David Randall (2016) condensa, numa frase, a linha de fronteira que separa o jornalismo de investigação do jornalismo quotidiano: “o jornalismo de investigação começa onde o jornalismo quotidiano para” (p. 128). A atualidade, matéria-prima do jornalismo quotidiano, tem prazos curtos e a publicação não pode esticar para lá das exigências desse efémero. Randall destaca isso mesmo, “o ponto” em que o jornalista quotidiano “tem de parar e relatar” o que descobriu e não descobriu (p. 128). Por sua vez, o jornalista de investigação, a trabalhar numa outra velocidade, “não” precisa de “aceitar nem o segredo, nem a recusa das fontes oficiais... Pode descobrir por ele próprio” (Randall, 2016, p. 128).
A observação de Randall (2016) sugere que o jornalismo de investigação não anula o jornalismo quotidiano. As duas diferentes abordagens complementam-se, corporizando ambas a nobre missão do jornalismo de servir o público.
Dean Starkman (2014) também estabelece uma distinção clara entre jornalismo de investigação, que o autor classifica como jornalismo de prestação de contas (accountability reporting), e jornalismo quotidiano, access reporting, mas a linha argumentativa do autor reflete uma clara sobrevalorização do accountability reporting, apontando ao access reporting um conjunto de práticas que aparentam perverter o quadro de valores do jornalismo. Dean Starkman (2014) quebra o laço e a complementaridade entre as duas velocidades do jornalismo, cujo fundamento já aqui foi valorizado:
o access reporting diz aos leitores o que dizem os poderosos, o accountability diz-lhes o que fazem os poderosos ( ... ). Tendencialmente, o access fala com as elites; o accountability com os dissidentes ( ... ). O access transmite visões ortodoxas; o accountability ( ... ) heterodoxas ( ... ). No jornalismo financeiro, o access foca-se no interesse dos investidores; o accountability foca-se no interesse do público ( ... ). O access ( ... ) as suas histórias são mais fáceis, ou pelo menos, mais rápidas e raras vezes suscitam o confronto ( ... ). O accountability reporting é marginal, mais dispendioso... de produção mais lenta, mais stressante e destinado a fazer inimigos... Em síntese: o accountability é o cão de guarda que chega à história que o access falha... Sem o accountability, o jornalismo não tem objetivo, não tem foco, não tem ponto. (pp. 10-11)
2.2. Os Temas que Desencadeiam Investigações
O jornalismo de investigação está muitas vezes associado à denúncia das más práticas originadas nos diversos organismos da administração pública, concretizadas por servidores públicos em geral, sobretudo políticos no ativo ou outros que tenham assumido cargos públicos de relevo. O espetro temático mais evidente inclui, igualmente, a denúncia de más práticas de empresas privadas e respetivos gestores, desde logo os que mantêm vínculos profissionais mais apertados com o Estado, mas também nas fundações e os seus gestores, bem como outras entidades - e respetivos responsáveis - da sociedade civil, em especial as que recebem apoios públicos.
A escolha do tema depende, sobretudo, de três fatores: da originalidade e da iniciativa do repórter (Hamilton, 2016; Houston & Horvit, 2021; Hunter, 2018; Novais, 2022; Randall, 2016), dos custos associados ao trabalho (Hamilton, 2016) e do impacto potencial que a desocultação do tema possa gerar.
A este propósito, para avaliar o impacto das histórias de investigação, Hamilton (2016) analisou a carreira do jornalista de investigação da Carolina do Norte, Pat Stith, exemplo que à frente detalharemos, e concluiu que, em quatro décadas de trabalho, as reportagens de Stith geraram 4.700.000 $ em benefícios para a comunidade. A conclusão do académico norte-americano exorta, por isso, o poder político e a sociedade civil a zelarem pelo reforço do jornalismo de investigação:
um dólar investido ( … ) no jornalismo de investigação pode gerar centenas de dólares em benefícios para a sociedade quando as políticas públicas mudam. As reportagens de investigação, que custam milhares de dólares, podem gerar milhões em benefícios para a comunidade. (Hamilton, 2016, p. 279)
Andrew Lehren (2018) pega, exatamente, no exemplo de Pat Stith para sublinhar a relevância do impacto do jornalismo de investigação. A aliança que Stith firmou com a tecnologia permitiu-lhe alargar a escala das suas histórias e, igualmente, o impacto.
O lucro social associado a estes trabalhos, quando provocam mudança, alteram leis obsoletas, denunciam casos de corrupção, revelam redes criminosas, não tem correspondência direta no lucro financeiro, mas o investimento, como reconhece Philippe Meyer (2004), é de longo prazo, porque “a qualidade traz associado o sucesso empresarial” (p. 79).
O impacto de uma investigação determina que o jornalista não abandone o tema depois da publicação ou exibição. Há que seguir o lastro da história e investigar as novas pistas geradas pelo impacto (Hamilton, 2016; Houston & Horvit, 2021; Hunter, 2018).
2.3. O Desafio de Desocultar
Por ser mais complexo e original do que o jornalismo quotidiano, por demorar mais tempo, incomodar mais pessoas e ser mais exigente relativamente às fontes oficiais (Birnbauer, 2019); porque os jornalistas de investigação enfrentam maiores dilemas éticos, têm maiores preocupações de transparência, consultam mais documentos, gastam mais tempo a produzir as histórias do que os jornalistas quotidianos (Houston & Horvit, 2021), o jornalismo de investigação é “uma forma superior de jornalismo” (Coelho & Silva, 2018; Knobel, 2018).
O desafio da investigação é, pelas razões apontadas, demasiado exigente para o jornalista. “Agitar um ninho de vespas”, reconhecem Oliver Hahn e Florian Stalph (2018, pp. 2-3), tem custos. Há um conflito permanente entre quem investiga e quem é investigado e que se esforça, “criando obstáculos”, para evitar a pressão da investigação. Ao jornalista compete resistir, “ultrapassando” cada um desses obstáculos.
Jingrong Tong (2022) resume a natureza desse conflito - “o jornalismo de investigação coloca o jornalismo contra o poder” (p. 34) - estando essa evidência na base de um paradoxo assinalado por dois autores, numa análise separada por 12 anos. James T. Hamilton (2016) e Érik Neveu (2004) destacam a forma como o jornalismo de investigação é, ao mesmo tempo, valorizado pelo público e pelos próprios jornalistas, mas insuficientemente praticado.
O tempo que o jornalismo de investigação exige, a incerteza do desfecho e os custos associados às investigações mais complexas poderão não ser as únicas justificações para a expressão residual do jornalismo de investigação. Tong (2002) complementa esta hipótese. Escreve a autora que, num ambiente dominado “pelas perdas severas”, “os média jornalísticos podem também recear o efeito das suas relações com os poderosos” (p. 34).
Coelho e Silva (2018) e Houston e Horvit (2021) utilizam a mesma expressão - “prova à prova de bala” - para salientarem a necessidade de que a matéria publicada resista à pressão dos interesses instalados, que a investigação pretende desocultar, mas também aos inevitáveis processos judiciais que essa revelação acabará por suscitar.
No mesmo sentido, Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2010) associam à reportagem de investigação a necessidade de serem obtidos “elevados padrões de prova”, mas também “elevados níveis de transparência” e “grande detalhe sobre as fontes e sobre os métodos” utilizados, com o propósito de ser demonstrada a “independência” dessa reportagem (p. 72).
2.4. Sob o Primado da Ética
Um reforço do compromisso com a ética e laboriosa reflexão sobre situações passíveis de criarem a dúvida no público é, de entre todas, a tarefa verdadeiramente distintiva. Esse compromisso forja “a prova à prova de bala” e reforça a transparência. Como refere David Randall (2016), “a ética não é um extra, é a espinha dorsal do trabalho” (p. 171).
Hoxha (2019) propõe, por isso, que a investigação seja sujeita a “diversas camadas de verificação” (p. 1), tarefa que Houston e Horvit (2021) classificam como “verificação linha a linha”, que obriga o jornalista a “confirmar todos os factos” e a regressar “aos documentos originais” e “às entrevistas”, “o jornalista confere citações”, identificando “inconsistências ou falhas de informação” (p. 104).
O mais exigente compromisso ético também pressupõe que o jornalista de investigação revele especiais cuidados na relação que estabelece com as fontes. Cultivar uma distância relativamente à fonte, descodificando, desde logo, o que a motiva a fazer determinada revelação, limita o risco de o jornalista se deixar instrumentalizar, ficando refém dos interesses dessa fonte (Anderson & Benjaminson, 1976).
A utilização de fontes anónimas é outra decisão que pode comprometer a transparência da investigação. Houston e Horvit (2021) recomendam que fontes anónimas apenas sejam utilizadas depois de ponderada a relevância da informação e esgotadas todas as vias alternativas ao alcance do jornalista, desde logo, tentar que a informação em causa seja assumida, de facto, por outra pessoa com conhecimento real da matéria, ou possa ser confirmada em documentos oficiais.
3. A Personalidade Específica do Jornalista de Investigação
No campo dos paradoxos que revestem o jornalismo de investigação, James Aucoin (2005) disponibiliza-se a abraçar outro. Numa análise detalhada que faz da evolução do conceito de jornalismo de investigação entre 1960 e 1975, Aucoin cita um dos jornalistas que a história do jornalismo elevou ao estatuto de estrela do jornalismo de investigação, Carl Bernstein. Em 1975, o parceiro de Bob Woodward nas revelações de Watergate recusou publicamente o título de jornalista de investigação: “todas as boas reportagens se baseiam no mesmo tipo de trabalho” (Aucoin, 2005, p. 85), “sempre cheguei às grandes histórias escavando... não creio que faça esse trabalho de forma diferente” (p. 108).
Alicia Shepard, que em 2007 publicou um detalhado relato sobre o percurso de Bernstein e Woodward, depois da fama conquistada com a cobertura de Watergate, reconhece que, “três décadas depois das revelações”, os dois nomes “ainda são sinónimo de elevados padrões na reportagem de investigação aprofundada” (p. xiv). Pela descrição de Shepard (2007), percebemos que Bernstein tinha, afinal, uma posição diferente, sobre o jornalismo de investigação, daquela que expressou em 1975. A biógrafa recorda que, durante a administração Bush, Bernstein exigiu publicamente que fosse feita “uma investigação idêntica à de Watergate” (p. xv).
No intenso detalhe que coloca na caracterização da personalidade jornalística de Carl Bernstein, Alicia Shepard (2007) reproduz as opiniões de colegas de trabalho, de editores; e, na voz de todos, destacam-se os traços distintivos que Bernstein desvalorizou, em 1975: “um desejo irreprimível de estar no centro das coisas, uma curiosidade feroz... brilhante, intenso, agressivo” (pp. 21-22), o que, desde logo, acentua a posição adversativa, habitualmente associada ao jornalista de investigação (Lanosga et al., 2015; Novais, 2022).
David Anderson e Peter Benjaminson (1976) discorrem sobre a personalidade específica do jornalista de investigação. Os autores consideram que “desocultar informação, sobretudo informação deliberadamente ocultada, exige um certo tipo de personalidade”, caracterizada por “uma extraordinária paciência” e uma “capacidade inesgotável de suportar o aborrecimento” (p. 3). Em 1976, estes autores afirmaram uma distinção que, ainda hoje, é replicada nos manuais dedicados ao estudo do jornalismo de investigação. “O que distingue o jornalista de investigação dos outros jornalistas é a predisposição para escavar [no original, ‘willingness to dig’]” (Anderson & Benjaminson, 1976, p. 4)6. Mais de 40 anos depois, Houston e Horvit (2021), destacam, exatamente, a “propensão para escavar” (p. 3), como a marca de água do jornalista de investigação.
3.1. Saber Dispor do Privilégio do Tempo
O tempo que os jornalistas “que sobreviveram aos cortes” esgotam, cada vez mais, em “histórias superficiais” (Birnbauer, 2019, p. 44), desenvolvendo um trabalho quase mecânico, “como o hamster na roda” (Starkman, 2014, p. 246), é, nas redações da era digital, um privilégio. O tempo, por permitir escavar, aumenta a distância entre o jornalista quotidiano e o jornalista de investigação; é uma conquista e uma responsabilidade.
Pat Stith, que durante quatro décadas foi jornalista de investigação, recebeu “o presente do tempo” (Hamilton, 2016, p. 278). O jornalista do News Observer, cuja carreira James T. Hamilton (2016) analisou, soube construir “uma combinação feliz”: as suas reportagens geraram “retorno financeiro”, “orgulho profissional” e “responsabilidade social” (p. 278). Stith geriu o tempo de forma sábia, condensando, nessa gestão, as principais características que distinguem o jornalista de investigação: “receber formação”, tendo sido um dos pioneiros do jornalismo de dados, “lutar por ter fontes, analisar dados, preparar entrevistas, conferir e verificar informações, publicar com frequência, e continuar as histórias até gerar a mudança” (Hamilton, 2016, p. 278). Mas ao tempo que o News Observer lhe deu, Stith acrescentou o seu próprio tempo, “entregando-se muito para lá do que lhe era exigido, passando noites e fins de semana recolhendo e confirmando informação” (p. 278).
3.2. A Dúvida e o Método
Stith deixava-se guiar por “um mantra”, a dúvida: “eu duvido disso... a frase destaca-se nas muitas entrevistas que deu sobre o seu trabalho” (Hamilton, 2016, p. 208).
John Pilger (2005) encoraja, igualmente, o ceticismo do jornalista de investigação. Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2010) recomendam que o repórter comece sempre uma história como se nada soubesse, cultivando um “conhecimento cético” (p. 30) permanente. David Randall (2016) assume que o “questionário cético” é atributo do “jornalista universal” (p. viii). Houston e Horvit (2021) recomendam ao jornalista de investigação um “ceticismo saudável” (p. iv). David Anderson e Peter Benjaminson (1976) caracterizam o jornalista de investigação como aquele que desconfia da “natureza humana”, porque, acrescentam, “alguém, algures, estará a prejudicar o interesse público” (pp. 3-4).
Se a dúvida marca o compasso da história, desde a inquietação que a lança até ao momento em que é publicada ou exibida, é a curiosidade que a alimenta. A curiosidade reflete o “desejo” de “conhecer a história para lá da história” (Houston & Horvit, 2021, p. iv). David Randall (2016) considera que os melhores jornalistas revelam uma “curiosidade compulsiva” (p. 279) que os impele a saberem cada vez mais sobre o assunto que investigam. A informação, que acumulam nesse trajeto em direção ao conhecimento aprofundado sobre as matérias que tratam, reclama dos jornalistas de investigação, como consideram Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2010), “um método” que “lhes discipline a curiosidade” (p. 153). Só dessa forma, concluem os autores, os jornalistas conseguem “ir sempre mais longe no processo de questionar” (Kovach & Rosenstiel, 2010, p. 153).
3.3. Persistência, Inteligência e Credibilidade
Aprofundar o como exige do repórter “envolvimento pessoal” (Hunter, 2018, p. 9), empenho, dedicação, muitas horas de pesquisa, pensamento apurado, inteligência. Como relata Randall (2016), “nunca conheci um repórter excecional que não fosse, igualmente, muito inteligente, reflexivo e de pensamento apurado”. E esses “são mais meticulosos nas suas reportagens do que os restantes jornalistas” (pp. 277-278). Os “repórteres extraordinários” cultivam uma “subtil assinatura”, que os impele a ir mais fundo no trabalho de verificação (Kovach & Rosenstiel, 2010, p. 153); “a voz e as palavras desses jornalistas reforçam a credibilidade da investigação” (Novais, 2022, p. 313).
Este compromisso com o conhecimento jornalístico, enquanto reforça a utilidade do verbo “escavar”, já aqui assinalada, também associa ao jornalista de investigação outras características que o distinguem dos restantes. Desde logo, a persistência. David Randall (2016) afirma que essa “determinação” é o que lhe permite seguir em frente, ultrapassando “as inevitáveis frustrações” (p. 131).
É “o desafio da verdade por revelar”, acrescentam Anderson e Benjaminson (1976, p. 4), o que leva o repórter de investigação a não desistir. “Desvendar informação escondida” (p. 5) - resistindo à hostilidade dos visados e às manobras de obstrução que todos os que querem que a informação permaneça oculta criam - obriga o jornalista de investigação a esforçar-se ao máximo nesse exercício de desocultação.
3.4. A Subversão
John Pilger (2005) e Dean Starkman (2014) associam ao jornalista de investigação uma característica menos óbvia, a subversão, que acaba por colocar este jornalista num território marginal. Os autores não usam a palavra, mas os exemplos que valorizam parecem associar aos jornalistas de investigação uma certa rebeldia, um certo desprezo pelas regras e uma vontade de agitar a visão dominante.
Nos exemplos que compilou em Tell Me No Lies (Não Me Contes Mentiras), Pilger (2005) destaca os jornalistas que, rejeitando “ser parte do aparato de propaganda” que os reduz ao papel de “porta-vozes dos porta-vozes”, alertam os leitores “para as verdades escondidas vitais”. Esses jornalistas cultivam uma certa “insurreição contra as regras do jogo” (pp. xv-xvi).
Dean Starkman (2014), por seu lado, detalha o papel do jornalista marginal, Mike Hudson, repórter de sociedade de um semanário de Pittsburgh, na cobertura dos acontecimentos que desencadearam a crise do mercado hipotecário norte-americano. Na análise de Starkman (2014), Hudson foi um dos poucos que expôs Wall Street, ultrapassando os constrangimentos da visão oficial: “o jornalismo financeiro é culpado de ter falhado o momento” (p. 287). Quando foi contratado pelo Wall Street Journal, Hudson, qual “jogador de basquetebol que joga fora da posição habitual”, nunca se adaptou e demitiu-se (Starkman, 2014, p. 271).
4. As Novas Fronteiras do Jornalismo de Investigação
A influência decisiva da tecnologia digital no jornalismo, em geral, e no jornalismo de investigação, em particular, recomenda um regresso aos Elements of Journalism (Elementos do Jornalismo), cuja primeira edição Bill Kovach e Tom Rosenstiel publicaram na viragem do século. Na revisão dessa obra seminal, publicada seis anos depois, os autores refletem detalhadamente sobre os efeitos da revolução digital no jornalismo, mantendo a essência:
o propósito do jornalismo não é definido pela tecnologia, nem pelos jornalistas ou pelas técnicas que empregam ( ... ) mas por algo mais básico: a função que as notícias desempenham na vida das pessoas… A face do jornalismo mudou, de facto, mas o seu objetivo manteve uma constância admirável. (Kovach & Rosenstiel, 2007, pp. 11-14)
Focado, exclusivamente, na influência da tecnologia digital na “evolução do jornalismo de investigação”, Abit Hoxha (2019) reconhece que a “a função e o papel do jornalista de investigação mudaram nas últimas décadas. Contudo, a verificação e o conhecimento aprofundado” dos temas que são investigados “permanecerá sempre no âmago do jornalismo de investigação” (p. 1).
A ideia é retomada por outros autores que têm estudado, em detalhe, as novas fronteiras do jornalismo de investigação. Oliver Hahn e Florian Stalph (2018), por exemplo, consideram, exatamente, que as novas técnicas e os novos dispositivos de investigação “empurram as fronteiras” do jornalismo, expandem as técnicas tradicionais do reportório jornalístico, mas “o jornalismo tradicional mantém-se como pilar” (p. 89).
Jingrong Tong (2022) assume, igualmente, que os dados ajudam a contar histórias, mas não as contam sozinhas. “Os dados são um complemento vital às fontes humanas” (p. 62), no sentido em que o jornalismo de dados e o jornalismo tradicional se articulam num “contínuo” em que o jornalismo “adota as ferramentas informáticas e os algoritmos para recolher, armazenar, filtrar, analisar dados e apresentar as descobertas de uma forma que o ajude a contar histórias” (Tong, 2022, p. 62).
Se, num manifesto “erro de cálculo”, a tecnologia, na viragem do século XX para o XXI, foi por muitos encarada como panaceia de todos os problemas do jornalismo (Downie & Schudson, 2009, p. 16), duas décadas depois, a tecnologia ocupa serenamente o lugar de ferramenta que fortalece e enriquece o jornalismo, sem pôr em causa os valores que o estruturam. A este propósito, Hugo de Burgh (2021) destaca que “o jornalismo deve tratar os dados como qualquer outra fonte de informação ( ... ) com o mesmo grau de ceticismo” (p. 3). Para o jornalista de dados, conclui o autor, o desafio é, por isso, “óbvio”: “estar à altura dos níveis de imparcialidade, prova e verificação dos factos dos melhores jornalistas do passado pré-digital” (Burgh, 2021, p. 6).
4.1. O Desafio da Tecnologia
Para manter a missão de fiscalização da ação dos poderes, o jornalista de investigação da era digital tem de adquirir novas competências e assumir novas funções. Aceder a fontes digitais e saber explorar os dados que elas contêm - dando aos dados um sentido jornalístico, construindo uma matéria, com potencial de criar impacto, a partir desse trabalho - exige “jornalistas híbridos”, que “combinem a prática jornalística com os métodos das ciências e a inovação tecnológica” (Hahn & Stalph, 2018, p. 7).
Este hibridismo digital consiste no aprofundamento do conceito de jornalismo de precisão, cunhado por Philip Meyer, nos anos 70 do século passado, e que, no essencial, aplicava as metodologias das ciências sociais ao jornalismo. Na era digital, essa aliança é alargada às ciências computacionais e à estatística (Hahn & Stalph, 2018; Tong, 2022).
A tecnologia que permite filtrar e desencriptar um volume de dados com a gigantesca dimensão da fuga que o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação tratou nos Panama Papers7 é a mesma que permitiu erguer a rede que aliou os 370 repórteres dispersos por diferentes lugares do mundo, aproximando culturas distintas, línguas diferentes e atribuiu, a cada repórter, o escudo protetor que, sobretudo, em regiões do globo marcadas pelos atentados à liberdade de expressão, permitiu diluir o risco por todos os jornalistas envolvidos (Coelho & Rodrigues, 2020; Lück & Schultz, 2019; Sambrook, 2017).
A tecnologia, que possibilita que o jornalismo cruze fronteiras, conquiste escala e atinja um impacto global, é, todavia, a mesma que alimenta a paranoia securitária dos Estados, simultaneamente criando bolhas de proteção de informação - que tornam o acesso a matérias essenciais difícil, ou mesmo impossível - e vigiando, fiscalizando, a todo o momento, qualquer cidadão, mesmo que essa escuta seja mera expressão de um poder descontrolado.
O jornalismo colaborativo de investigação vive um “dilema tecnológico” (Coelho & Rodrigues, 2020, p. 143), que Bell e Owen (2017) descrevem nestes termos: “as razões pelas quais o Estado quer domar, penetrar e controlar o universo digital são as mesmas que fazem desse universo um instrumento de liberdade” (p. 8).
O dilema de que falávamos conquistou especial relevância com as revelações de Edward Snowden, que tiveram um duplo efeito no jornalismo de investigação. Por um lado, fortaleceu-o - potenciando a criação de uma rede de jornalistas que investigaram e revelaram a fuga, permitindo que a denúncia da vigilância maciça da Agência de Segurança Nacional atingisse uma dimensão global, o que fragilizou a administração norte-americana -, por outro lado, essa revelação inaugurou um novo tempo de paranoia securitária, com efeitos negativos diretos no jornalismo de investigação: “os cinco olhos8 perceberam que tinham tecnologia para vigiar os jornalistas e as suas fontes e o jornalismo de investigação teve de se adaptar” (Burgh, 2021, p. 4).
Para reconquistarem a confiança das fontes, muitos jornalistas de investigação, mesmo conscientes de que a vigilância está em toda a parte, retomaram o contacto direto, outros aprenderam técnicas de encriptação. Os órgãos de comunicação social financeiramente mais robustos, onde o jornalismo de investigação tem expressão, montaram ações de formação em segurança digital destinadas aos jornalistas e estes estenderam essa formação às fontes. Mas a consciência de que a segurança da informação deixou de ser um dado absoluto instalou-se: “o caso Snowden virou do avesso o trabalho dos jornalistas” (Posetti, 2018, p. 252).
4.2. O Desafio da Colaboração
Associada ao jornalismo de investigação, a tecnologia digital permitiu reforçar o jornalismo colaborativo. Na realidade, os projetos colaborativos estão identificados desde os anos 70 do século passado. Em 1976, num tempo em que a comunicação à distância dependia do telefone ou das cartas, e a cultura do “lobo solitário” (Burgh, 2021, p. 3) marcava o compasso da investigação jornalística nas redações, o Arizona Project juntou 40 jornalistas de 12 meios de comunicação social para prosseguirem as investigações do jornalista Don Bolles, assassinado em Phoenix, Arizona (Houston & Horvit, 2021). O Arizona Project lançou a mensagem clara de que “ninguém poderia matar a história, matando o repórter”9 (Houston & Horvit, 2021, p. v) e foi a fonte de inspiração de todas as colaborações que aconteceram depois, sobretudo daquela que, sustentada pelo jornalismo de dados, reinventou o conceito de colaboração (Hoxha, 2019) e mudou “a antropologia do jornalismo de investigação” (Burgh, 2021, p. 3) - a investigação dos Panama Papers, que antes referimos.
A colaboração assenta naquilo que o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação classifica como “partilha radical” (Guevara, 2016). Os repórteres em rede partilham, a todo o momento, o resultado das suas descobertas. A partilha é, desde logo, um desafio para os jornalistas, sobretudo para aqueles que se formaram no universo da competição. Por isso, para ser efetiva, a partilha exige confiança, o princípio onde se alicerça a colaboração jornalística (Días-Struck & Cabra, 2018; Houston & Horvit, 2021).
4.3. O Desafio da Inovação
O jornalista de dados enfrenta, como o jornalista da era analógica sempre enfrentou, o desafio da forma. Houston e Horvit (2021) consideram, aliás, “um erro enorme” que os jornalistas de investigação “dediquem pouco pensamento” à forma como devem apresentar as histórias: “há inúmeros exemplos de brilhantes trabalhos de reportagem que ( ... ) acabaram por ter pouco impacto, apenas porque a escrita era impenetrável” e incapaz de cativar o leitor (p. 77). A crítica é válida para a imprensa, mas também para a televisão, multimédia ou podcast.
Na era digital, o jornalismo de investigação vence o desafio da forma estabelecendo um maior compromisso com o visual nas suas diversas dimensões: o vídeo, as infografias interativas, os gráficos, a fotografia, as imagens de drone. Nesse sentido, as equipas alargam-se, integrando infografistas, designers, fotógrafos, programadores, jornalistas visuais e operadores de drone (Kreimer, 2018; Radu, 2018).
“Inovação” é a palavra-chave para Natalia Antelava (2018). A plataforma CODA10, da qual é cofundadora, é fruto de duas alianças: junta diversas categorias profissionais e articula os modelos tradicionais de storytelling - “o texto tradicional, os longos formatos narrativos e o vídeo” - a “formatos digitais distintivos e inovadores” (p. 223). As alianças da CODA são estruturadas a pensar no essencial: produzir conteúdos de “elevada qualidade”.
5. Conclusão
Aliado à tecnologia digital, o jornalismo de investigação está a adaptar-se à crescente complexidade do mundo, abraçando histórias que transbordam fronteiras, criando redes de jornalistas que, a partir de vários lugares de muitas culturas, conseguem, elegendo a história como objetivo supremo, colaborar em vez de competir. Aliado a engenheiros informáticos, especialistas em ciência de dados, infografistas, académicos, designers, o jornalista de investigação alarga as fronteiras da profissão, conseguindo armazenar, organizar, filtrar pacotes gigantescos de informação, dar-lhes sentido e forma, e construir histórias de qualidade, geradoras de impacto.
A tecnologia digital está, igualmente, na base da criação de novos modelos de negócio no jornalismo de investigação, desde as start-ups que investigam matérias que despertam o interesse de nichos, algumas delas financeiramente alimentadas pelo crowdfunding (Antelava, 2018, p. 226), até às grandes entidades não lucrativas que explodiram nos Estados Unidos da América a seguir à crise do mercado hipotecário (Birnbauer, 2019, p. 64).
Nos grandes média jornalísticos norte-americanos, o jornalismo de investigação, como Birnbauer (2019) enfatiza, e já aqui escrevemos, resistiu aos cortes que afetaram o jornalismo quotidiano. Mas resistiu, igualmente, porque, na sequência da crise, despontou, com velocidade, um setor não lucrativo, suportado por fundações e doadores individuais. Receando que os piores prognósticos sobre o futuro do jornalismo de investigação se cumprissem, esses protagonistas salvaram-no por antecipação, entregando centenas de milhões de dólares em doações a jornalistas de referência que, tendo abandonado os média tradicionais, fundaram entidades não lucrativas, inteiramente dedicadas ao jornalismo de investigação.
Birnbauer (2019) encara, por isso, o futuro do jornalismo de investigação nos Estados Unidos da América com otimismo, desvalorizando, de forma clara, as diversas ameaças que ele próprio identifica, e que, na nossa ótica, não são passíveis de desvalorização.
É o próprio autor que assinala a concentração das doações, mais de 40%, em três entidades nacionais - ProPublica, Center for Public Integrity e Center for Investigative Reporting (Birnbauer, 2019). Se o futuro destas três entidades não parece ameaçado, o estudo de Birnbauer lança dúvidas expressivas sobre o futuro das entidades não lucrativas mais pequenas, que servem territórios de proximidade e onde, como, aliás, salienta o autor, os doadores não comungam dos mesmos valores dos que financiam as entidades nacionais.
É certo que Bill Birnbauer (2019) acredita que, no futuro, as entidades não lucrativas nacionais possam estabelecer parcerias com as mais pequenas, revitalizando-as e tornando-as menos dependentes das incertezas dos doadores locais, mas a base onde esse futuro se há de sustentar não está descrita.
Nos territórios marginais dos Estados Unidos da América, se o setor não lucrativo, dedicado à investigação jornalística, não parece ter a força para resistir, também é certo, como, aliás, salienta o autor, que a segunda vida do jornalismo de investigação também não chegou aos jornais metropolitanos norte-americanos (Birnbauer, 2019).
Seguindo esta linha de análise, poderemos estabelecer um paralelo com outros mercados menos pujantes, como o português, por exemplo, onde a expressão do jornalismo de investigação é igualmente residual (Coelho & Silva, 2021; Freitas et al., 2019).
A possibilidade de estarmos a alimentar um mundo a duas velocidades é real. De um lado a penumbra - sugerida pela ausência do escrutínio apurado do exercício dos poderes, que a investigação jornalística alcança - do outro, a permanente vigilância crítica que contribui para alimentar de informação de qualidade, rigorosa, verificada, aprofundada os que a ela conseguem aceder.
O jornalismo de investigação pode estar a viver uma segunda vida, mas o risco de esse renascimento não estar a chegar a todos existe, e não deve ser omitido.