1. Introdução
1.1. Jornalismo de Proximidade no Ambiente Multiplataforma
O jornalismo desenvolvido no âmbito local é aquele que se realiza a partir do mesmo ambiente que é partilhado com os cidadãos, por e para esse ambiente (Izquierdo Labella, 2010). Este pressupõe a existência de uma identidade definida, em referência a um território específico e de um compromisso específico por parte do ambiente local ou regional. Um pacto de comunicação com um território a que alguns autores chamam de “jornalismo de proximidade” (Camponez, 2002; Jerónimo, 2015)1. As informações locais alimentam essa identidade, proporcionando aos membros de uma comunidade o conhecimento necessário para exercerem a cidadania naquele ambiente. Os média regionais influenciam a agenda pública das pequenas comunidades, facilitam o conhecimento dos cidadãos sobre os seus líderes e as diferentes políticas e posições e colaboram na tarefa necessária de responsabilização desses representantes públicos.
No entanto, o consumo de informação local mudou muito na última década, devido à irrupção das plataformas e à desagregação da informação (Morais & Jerónimo, 2023; Newman et al., 2021). O mesmo aconteceu em relação aos modelos de negócio para as notícias locais, que estão sob grande pressão (Wiltshire, 2019). Os serviços que tradicionalmente faziam parte da proposta de valor do ambiente local - como informações de serviço público, resultados desportivos, previsão do tempo, ofertas de trabalho, entre outras - agora são oferecidos por meio de plataformas e sites de entidades e empresas locais. As plataformas adquiriram, de facto, uma posição dominante no mercado da informação, posicionando-se como intermediárias entre produtores e consumidores de notícias, recolhendo uma enorme quantidade de dados dos utilizadores e tornando-se mediadoras na venda de publicidade. Neste cenário, os média regionais passam a concorrer com entidades que, ao mesmo tempo, atuam como intermediárias no acesso ao seu próprio conteúdo, deixando, assim, de ser os únicos provedores de informação de serviço público. O seu modelo de publicidade tem-se mostrado menos eficaz do que o das plataformas, que possuem dados de audiência detalhados e podem oferecer campanhas direcionadas e muito mais precisas aos anunciantes.
O acesso móvel a todos os tipos de informação, nacional e internacional, também tem levado a uma perda significativa da atenção dos cidadãos. De acordo com Nielsen (2015), as notícias locais agora travam uma batalha por atenção, num cenário digital repleto do mais variado tipo de conteúdos e facilmente acessível através dos smartphones. Há cada vez mais meios e tecnologias, mas menos jornalismo local. É o que tem acontecido em países como os Estados Unidos e o Brasil, mas também já em Portugal, onde se foram expandindo os “desertos de notícias”, isto é, cidades que já não têm qualquer meio ou projeto jornalístico (https://www.atlas.jor.br; Abernathy, 2018; Jerónimo et al., 2022; Ramos, 2021). As redes sociais também levaram à criação de comunidades em torno de determinados temas. As autoridades e empresas locais usam as suas próprias redes e sites para fornecer notícias. Isto permite às pessoas encontrarem uma grande quantidade de informações sobre a sua comunidade fora dos meios ou suportes tradicionais.
De acordo com Ardia et al. (2020), uma mudança na forma como o consumidor procura a informação é evidente há mais de duas décadas. Porém, os média têm sido relutantes em mudar o modelo de negócios que era bem-sucedido há décadas, negligenciando as políticas de inovação. Juntamente com a já mencionada desagregação das notícias e a falta de evolução dos jornais, o modelo tradicional de gestão da publicidade ao nível local foi substituído pela publicidade direcionada, gerenciada por gigantes como o Facebook ou a Google, o que destruiu o negócio dos média regionais. A possibilidade que estes oferecerem aos anunciantes locais de segmentarem as audiências das suas mensagens e maximizarem o seu investimento substituiu a oferta tradicional do jornal, rádio e televisão, que antes representavam as únicas formas de se dirigirem ao público. As plataformas possuem dados muito específicos sobre gostos, preferências e necessidades de diferentes tipos de público, algo de enorme valor para os anunciantes e que os média não conseguem oferecer (Morais & Jerónimo, 2023). “Os jornais não têm os dados e, portanto, não podem oferecer o mesmo nível de publicidade direcionada” (Ardia et al., 2020, p. 13). Além disso, como reconhecem os próprios editores dos média regionais, ao colocarem as suas notícias nas plataformas, há uma perda da própria marca de notícia (Bell et al., 2017).
Mas não é apenas o caso de um modelo de negócios desatualizado ser substituído por outro. De acordo com um estudo do Tow Center for Digital Journalism da Columbia Journalism School, copublicado pela Blanquerna University, o verdadeiro problema é que a estrutura e a economia das plataformas sociais priorizam a divulgação de conteúdo de baixa qualidade (Bell et al., 2017). “O jornalismo de alto valor cívico - jornalismo que investiga o poder, ou atinge comunidades marginalizadas e locais - é discriminado por um sistema que privilegia a escala e a partilha” (Bell et al., 2017, p. 4). Segundo os autores do mesmo relatório:
empresas de tecnologia como Apple, Google, Snapchat, Twitter e, acima de tudo, Facebook assumiram amplamente o papel de agências de notícias, para se tornarem atores-chave no ecossistema da informação, querendo ou não esse papel. A distribuição e apresentação da informação, a rentabilização da publicação e a relação com o público são dominadas por um punhado de plataformas. Essas empresas podem estar preocupadas com a saúde do jornalismo, mas não é o seu objetivo principal. (Bell et al., 2017, p. 8)
No novo ecossistema digital, os editores perderam o controle sobre a distribuição da informação, que fica ao critério do algoritmo utilizado em cada caso por determinada plataforma. Estas têm, portanto, o poder de fazer com que uma agência ou meio seja mais ou menos eficaz na divulgação e distribuição das suas notícias. Elas são os novos gatekeepers e, por isso, decidem o que é ou não relevante para um grupo populacional previamente segmentado. No entanto, as plataformas não priorizam o problema da desinformação ou a configuração informativa da identidade local.
1.2. Média Regionais, Desinformação e Fact-Checking
A pandemia acelerou o processo de transformação digital em que a imprensa regional está imersa há décadas, obrigando-a a fazer uma transição que não era considerada prioritária em alguns países (Galletero-Campos & Jerónimo, 2018). Nesse processo, porém, as rotinas profissionais dos jornalistas têm vindo a mudar para se dar prioridade às edições digitais e, em muitos países europeus, as redações estabeleceram novas dinâmicas, papéis e processos para atenderem às necessidades da audiência digital (Jenkins & Jerónimo, 2021).
Mas a crise provocada pela pandemia da COVID-19 também prejudicou seriamente o setor. Nos Estados Unidos, houve um processo de encerramento massivo de títulos (Ardia et al., 2020). Só nos últimos três anos foram 360 jornais (Edmonds, 2022). Em Portugal, o Sindicato dos Jornalistas alertou para o agravamento da situação da imprensa regional, com muitos jornais a suspenderem a publicação durante a pandemia, depois de muitos anos no limite (Jerónimo & Esparza, 2022). A mesma situação foi vivida em países como o Brasil. Já em Espanha, as empresas de comunicação social optaram, desde o início da pandemia, por aplicar os Arquivos de Regulação do Emprego Temporário, medidas apoiadas pelo Governo para sustentar os esforços das empresas e que se traduziram em cortes nos salários e nas horas de trabalho. O teletrabalho também significou a realocação de funcionários, com os jornalistas a trabalharem muitas vezes por telefone e remotamente, longe dos locais onde as notícias são produzidas.
Paradoxalmente, a pandemia desencadeou a procura por informações nos sites das organizações jornalísticas, enquanto as mesmas empresas de informação perderam receitas consideráveis com eventos, publicidade e vendas em bancas. Em países como o Reino Unido ou Portugal, o setor público teve de ajudar economicamente o setor, nomeadamente os média regionais (Sharma, 2021).
A contração do setor e o desaparecimento dos jornais locais está a deixar muitos territórios sem meios que articulem o debate público sobre temas de interesse local. Abernathy (2020) revela no relatório News Deserts and Ghost Newspaper: Will Local News Survive? (Desertos de Notícias e Jornais Fantasmas: Irão as Notícias Locais Sobreviver?) que a tendência foi exacerbada pela pandemia. No caso dos Estados Unidos, mais de 1.500 dos 3.031 condados existentes possuem apenas um jornal local, na maioria dos casos semanal. Em mais de 200 desses condados, não há qualquer meio. Além disso, as comunidades rurais que perderam os seus jornais locais carecem de uma boa cobertura de banda larga, dificultando o acesso fácil à informação na internet.
Em Espanha, duas províncias de Castela-Mancha, nomeadamente Guadalajara e Cuenca, viram os seus jornais locais fecharem (Galletero-Campos, 2018). Nessa comunidade, a população que lê jornais é de apenas 7% (Asociación para la Investigación de Medios de Comunicación, 2018). No caso de Aragão, das três províncias que compõem a comunidade autónoma, duas - Huesca e Teruel - também não possuem um meio de referência local (Galletero-Campos, 2018).
Em Portugal, já durante o período de pandemia, em 2020, o número de municípios sem qualquer meio registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social era de 57 (18,5%; Ramos, 2021). Um número que, entretanto, cresceu - 61 em 2021 (19,8%) -, o que inclusivamente motivou a intervenção pública da Associação Portuguesa de Imprensa (Lusa, 2022), que veio alertar para os problemas associados ao vazio informativo, como a propagação de desinformação. Um estudo mais recente (Jerónimo et al., 2022) identifica que 166 dos 308 concelhos portugueses (53,9%) estão em algum nível de risco: desertos (sem qualquer meio de comunicação), semidesertos (há meios, mas com cobertura pouco frequente) ou ameaçados (apenas um meio). Trata-se de um mapeamento que considerou apenas meios exclusivamente de âmbito jornalístico, isto é, não foram considerados outro tipo de meios, cuja produção resultasse de iniciativas dos cidadãos, sem o envolvimento de jornalistas. Embora se reconheça a possibilidade de essas realidades existirem em qualquer território, nomeadamente nos identificados “desertos de notícias”, elas não foram objeto de análise. Ainda assim, Jerónimo et al. (2022) sinalizam a necessidade de se prosseguirem estudos, designadamente analisando como é que as populações residentes em “desertos de notícias” se informam. Isso também poderá ajudar a identificar que tipo de média atua nesses territórios.
O declínio da imprensa de proximidade deixa as comunidades em estado de grave vulnerabilidade. Recursos e fontes confiáveis em torno da informação local são bens escassos. A informação é cada vez mais consumida através das redes sociais e nelas a desinformação facilmente prolifera. “No vácuo deixado pelo desaparecimento das fontes de notícias locais, os utilizadores estão cada vez mais dependentes de fontes de informação incompletas e, de facto, podem ser enganosas” (Ardia et al., 2020, p. 21).
As plataformas, como vimos, não têm como prioridade enfrentar o problema da desinformação, tendo mesmo pedido ajuda às autoridades nesta área, considerando que não têm o direito de atuar como árbitros da verdade. No entanto, estas não quiseram ficar paradas diante de uma questão que prejudica muito a sua credibilidade. Até agora, regista-se a implementação de medidas de moderação de conteúdo, através da contratação de serviços de consultores de tecnologia externos para eliminar conteúdo tóxico (Satariano & Isaac, 2021). Também chegaram a acordos com empresas de fact-checking (verificação de factos) para enfrentar o problema, dentro do seu programa de verificação externa para combater “notícias falsas”2. Em 2018, o Facebook lançou o projeto Accelerator, dentro do Facebook Journalism Project. O seu objetivo é capacitar os editores de notícias locais a tornarem o seu modelo de negócio sustentável, capacitando-os para criar comunidades online e aumentar os seus proveitos com leitores digitais3.
O interesse pela desinformação a nível académico e institucional tem vindo a crescer na última década (Said-Hung et al., 2021), mas a verdade é que pouco tem sido estudado e debatido considerando a esfera pública local (Torre & Jerónimo, 2023) e os média regionais (Alcaide-Pulido, 2023; Jerónimo & Esparza, 2022). No entanto, os efeitos da desinformação são percebidos a um nível primário à escala local, pois a ausência de investigação jornalística sobre questões que afetam o quotidiano das comunidades tem um impacto imediato nas economias locais e na mentalidade dos cidadãos (Fernandes et al., 2021).
A luta contra a desinformação depende, em grande medida, da vitalidade do jornalismo local (Radcliffe, 2018). Em pequenas comunidades, os jornalistas dos média regionais são muitas vezes os únicos jornalistas que os cidadãos encontram na sua rua, na sua cidade. É a partir da relação entre ambos, de maior proximidade, que se constrói a confiança. E construir essa confiança é o maior desafio que o jornalismo de proximidade tem. A importância da confiança entre cidadãos e jornalistas é confirmada por um relatório do International Press Institute (Park, 2021), baseado em grupos de discussão com mais de 35 jornalistas, editores, responsáveis de meios e empresários que lideram a transição desses meios e que estão a criar novas vozes nos média regionais na Ásia, África, América Latina, Médio Oriente e Europa Oriental. O relatório analisa os casos de novas start-ups digitais e meios tradicionais em transição na Ucrânia, Índia, Zimbábue, Peru, África do Sul, México, Venezuela, Paraguai, Quirguistão, Israel, Palestina, Hungria, Jordânia, Paquistão, Argentina e Guatemala e coloca o foco nos vínculos com as comunidades locais como sendo as maiores oportunidades para o futuro da imprensa local. Como atesta o mesmo relatório, a sustentabilidade dos média regionais exige a demonstração contínua do seu valor para as respetivas comunidades. E esse deve ser o principal objetivo da imprensa de proximidade, demonstrar com o seu trabalho que está do mesmo lado da sua comunidade e, assim, construir um relacionamento especial com os seus públicos.
Atualmente, e como confirma o último Digital News Report (Newman et al., 2022), a imprensa local e regional é um dos produtores de informação em que os cidadãos mais confiam, apesar da perda generalizada dessa confiança em todos os meios informativos. Da mesma forma, face à queda geral do interesse dos cidadãos pelas notícias, o estudo destaca que 63% dos inquiridos manifestam interesse pelas notícias locais, demonstram interesse em informações sobre a pandemia (47%), notícias internacionais (46%), cultura (44%), ciência e tecnologia (42%), política (41%), meio ambiente e mudanças climáticas (39%), segurança (37%), estilo de vida (36%), saúde (35%) e desporto (33%).
A confiança dos cidadãos na informação local e a sua valorização parecem resistir ao longo do tempo, apesar do descrédito e da quebra de interesse registada em outras áreas e temáticas, devendo este capital ser explorado e aproveitado pelos média regionais. O declínio destas é um declínio do modelo de negócio, mas não da credibilidade. E é aí que reside a sua principal oportunidade: o combate à desinformação pode ser uma forma de reforçar a confiança depositada pelos cidadãos no papel da imprensa local a este respeito. Na guerra da desinformação, os média regionais desempenham um papel fundamental e podem demonstrá-lo com a verificação de factos de forma mais rotineira, reportagens aprofundadas e desmascarando a propaganda e a desinformação (Jerónimo & Esparza, 2022).
Uma das tentativas de resposta tem sido dada através do aparecimento de iniciativas de fact-checking, sobretudo de verificação externa, já que a interna é feita nas redações (Graves, 2016, 2018). A própria Comissão Europeia está preocupada, tendo financiado em 11.000.000 €, em 2021, oito hubs académicos e envolvendo outros parceiros, ligados ao Observatório Europeu dos Meios de Comunicação Digitais. Não é de descurar a possibilidade de o público, isto é, não profissionais ou amadores, participar na verificação de factos (Allen et al., 2021). Considerando, por um lado, os reduzidos recursos habitualmente existentes nos média regionais e, por outro lado, o interesse e participação cívica de alguns cidadãos em relação aos média, admite-se a possibilidade de estes se envolverem no processo de verificação, como aliados dos jornalistas (por exemplo, especialistas em tecnologia ou em outros assuntos que aqueles não dominem).
Quando falamos em fact-checking ou verificação, referimo-nos ao processo e atividade de comprovar a veracidade de determinada informação que circula nos média, nas redes sociais, um boato ou uma declaração de uma figura pública. No ecossistema digital atual, o conteúdo de desinformação é amplamente partilhado. Nesse sentido, o trabalho de verificar tornou-se na principal tarefa para muitos jornalistas e, até, num campo de especialização, dada a necessidade de usar ferramentas e técnicas sofisticadas. Existem organizações jornalísticas dedicadas exclusivamente a esta tarefa, isto é, projetos de fact-checking. Algo distante da realidade dos média regionais, onde a escassez de recursos, humanos e técnicos, é determinante. No entanto, os jornalistas que trabalham nesses meios também seguem um processo de verificação de informação nas suas rotinas diárias, isto é, comprovar se as informações que recebem são verdadeiras. Exercem fact-checking, porém, a um nível menos especializado e antes da publicação. É a este processo que nos referiremos neste artigo, quando falarmos sobre o trabalho de fact-checking dos jornalistas. Quando ocorre no âmbito de projetos especializados, assume a particularidade de ser a posteriori (por exemplo, verificam-se declarações, publicações nas redes sociais, etc.).
Deve-se dizer também que da mesma forma que os utilizadores têm a capacidade de multiplicar o impacto dos conteúdos de desinformação, eles também têm a capacidade de participar na deteção e correção de boatos, colaborando assim com os média e os jornalistas (Jerónimo & Esparza, 2022; Park, 2021).
2. Metodologia
Este é um estudo de caráter exploratório, que procurou aferir junto dos jornalistas dos média regionais de Portugal e Espanha quais as suas perceções e práticas relativas ao processo de fact-checking, num cenário de crescente desinformação. Para tal, foram realizadas 12 entrevistas semiestruturadas a jornalistas com e sem responsabilidade editorial nas respetivas redações (Tabela 1), todas online (via Zoom), entre os dias 16 de novembro de 2021 e 18 de março de 2022.
Procurou-se diversificar não só o género dos/as entrevistados/as, como também a natureza e proveniência geográfica dos meios para os quais trabalhavam. Algo que, embora não tenha sido possível em pleno, foi mais conseguido em Portugal do que em Espanha. As entrevistas, com um guião de 22 questões, duraram entre 24 e 61 minutos e incidiram sobre questões como as condições laborais, os conteúdos, as fontes e as rotinas (incluindo o fact-checking), os preconceitos e a luta contra a desinformação. A partir delas, e para este artigo, pretendeu-se: identificar possíveis alterações no número de jornalistas nas redações, provocadas pela pandemia; registar a perceção dos/as jornalistas quanto à evolução da desinformação e do processo de fact-checking; registar a perceção dos/as jornalistas quanto a eventuais diferenças no processo de fact-checking para o meio tradicional versus meio digital e, no caso de existirem, quais as justificações apresentadas; registar a perceção dos/as jornalistas quanto à realização de fact-checking de informação proveniente de fontes oficiais, de outros média e jornalistas, bem como de utilizadores das redes sociais.
3. Resultados e Discussão
O facto de estarmos ainda a viver efeitos de uma pandemia, que trouxe múltiplas alterações na configuração das empresas, fez com que, primeiramente, quiséssemos saber o que terá ocorrido nas redações dos média regionais de Portugal e Espanha. Assim, verificamos que a pandemia quase não trouxe alterações, isto é, o número de jornalistas manteve-se inalterado antes e durante a pandemia. Em média, as redações da amostra apresentavam 7,6 jornalistas, no caso português, e 9,5 jornalistas, no caso espanhol. Este é um dos dados mais relevantes que emerge das entrevistas e que traduz uma imagem de resiliência, que tem vindo a ser reconhecida a este setor, designadamente em Portugal (Jerónimo, 2015). É precisamente neste país que encontramos a única exceção do estudo: a redação de um jornal com presença online, que antes da pandemia apresentava 12 jornalistas, no início da pandemia passou a nove e depois disso a cinco jornalistas. Contudo, não foram despedimentos ou processos de lay-off que motivaram as saídas, mas, sim, opção profissional. Se em dois dos sete casos a saída foi para outro meio de comunicação, isto é, os jornalistas mantiveram-se na profissão, já os restantes “descobriam com a pandemia que queriam mudar de vida” (PT6).
Genericamente, o ónus da desinformação é colocado nas redes sociais e, por isso, os/as jornalistas de Portugal apontam para a necessidade de se verificar mais (Tabela 2). Publicar rapidamente e em quantidade é, igualmente, identificado, pela maioria, como um dos problemas que potenciam o erro.
Já os/as jornalistas de Espanha consideram a verificação como parte do quotidiano de trabalho. Dada a escassez de pessoas, alguns média regionais optam por não publicar determinados temas, nomeadamente aqueles que consideram duvidosos. Nestes casos, a opção passa por trabalhar temas próprios e diferenciados. Percebemos que os média regionais espanhóis são mais seletivos, no sentido de evitar erros, e, na maioria dos casos, consideram que a pressão do imediatismo associado ao meio digital e às redes sociais é um fator que impede a verificação adequada e facilita a disseminação de informações imprecisas ou tendenciosas. A maioria também revela desconfiar das informações que chegam através de fontes oficiais.
Quando questionados/as sobre se a verificação é a mesma caso se trate de publicar no meio tradicional ou online, os/as jornalistas dividem-se (Tabela 3). Isso é evidente entre os/as entrevistados/as portugueses/as. Se, por um lado, há quem considere que a verificação se faz de forma diferente, sobretudo ao nível do tempo dedicado e à quantidade de fontes a que se recorre, por outro, há quem refira que não há qualquer diferença e que a verificação deve ser feita de igual forma. Neste último caso, percebemos que os jornalistas se referem ao rigor, isto é, que o tempo e os meios envolvidos pelos jornalistas devem levar ao mesmo desfecho, independentemente de qual seja o meio para o qual se trabalha a notícia.
Quanto aos/às entrevistados/as de Espanha, deteta-se uma mudança na dinâmica de produção de notícias: as redações passaram a priorizar o ambiente digital, mas numa perspetiva de melhoria da qualidade da informação. Nesse sentido, percebemos que os/as jornalistas assumem um processo de aprendizagem, designadamente o desejo de não repetirem os mesmos erros do passado, causados pela tirania do imediatismo. É possível perceber, em alguns casos, que a reputação do meio é priorizada, nomeadamente através do investimento em temas próprios, trabalhos mais elaborados, ao invés de se dedicarem às notícias de última hora, que potenciam menos verificação.
O aparecimento de projetos de fact-checking resultou, em parte, da constatação de que o processo de verificação de informação por parte dos jornalistas e nas redações não estava a correr como se desejaria. Quisemos que os nossos entrevistados/as identificassem possíveis razões para que tal ocorresse (Tabela 4).
Para os/as jornalistas portugueses/as, o tempo é o principal fator crítico. Destacamos ainda uma resposta, que identifica duas problemáticas: (a) jornalista versus produtor de conteúdo e (b) as novas gerações de jornalistas.
Acho que as pessoas estão a encarar o jornalismo como produtores de conteúdos. É a pressão de ter o título com as palavras-chave certas. Acho que eles se veem mais como produtores de conteúdo. Eu tenho muito essa discussão aqui na redação. Às vezes é mais a quantidade do que a qualidade, porque a forma de se pensar o jornalismo agora, nesta geração que está a trabalhar comigo e que é quase toda nova, está com essa ideia. É tudo muito mais efémero, é tudo muito mais “temos que publicar agora”, “temos que fazer bonito, não temos que fazer o bonito bem”. (PT6)
De sublinhar ainda quem aponta para as grandes plataformas e para a necessidade de gerar volume, isto é, publicar muitas notícias (Morais & Jerónimo, 2023).
Por seu lado, os/as jornalistas de Espanha não parecem diferir muito no que ao imediatismo e à pressão do tempo diz respeito. Há uma aparente unanimidade em torno da ideia de que também os média regionais entraram na corrida para publicar primeiro e rápido, de forma a conseguir mais cliques e com eles gerar mais tráfego para os respetivos sites (Jenkins & Jerónimo, 2021; Jerónimo, 2015). Essa competição causa tensões nas redações, pressa na preparação das notícias e faz com que algumas delas não sejam verificadas como deveriam. Há também a ideia de que é possível corrigir rapidamente informações erradas publicadas online, aprimorar ou completar determinada notícia. Isso acaba por gerar uma certa sensação de provisoriedade do que é publicado.
A relação de confiança que os jornalistas mantêm com as suas fontes é essencial para o exercício da profissão. E essa confiança pode ou não ser determinante para o processo de verificação. Quisemos assim saber se as informações provenientes de fontes oficiais são objeto de verificação por parte dos jornalistas (Tabela 5). Em Portugal, regra geral, os/as jornalistas não a fazem. A principal justificação para que tal suceda é a confiança depositada nas fontes oficiais. Contudo, também se admite que isso é construído ao longo do tempo e que, caso ocorra uma quebra de confiança ou, por outro lado, o assunto possa ser sensível, há lugar a verificação ou a mais verificação do que a habitual. Também em Espanha, as fontes oficiais gozam de absoluta credibilidade, pois as suas informações não são verificadas. O hábito dos/das jornalistas serem meros destinatários/as de comunicados ou notas oficiais ou de publicarem declarações de políticos sem contexto ou contraste (Jerónimo, 2015), transformou alguns meios em porta-vozes de preconceitos, imprecisões ou erros.
A relação com as fontes e a verificação da informação prestada por elas faz parte das rotinas diárias dos/das jornalistas. Porém, há diferentes tipos de fontes e a relação pode não ser a mesma. Conhecida a forma como os profissionais dos média regionais dos dois países estudados atuam em relação à informação prestada por fontes oficiais, quisemos saber o mesmo em relação a conteúdos publicados (a) por outros meios e jornalistas e (b) por utilizadores nas redes sociais.
O histórico dos meios e dos/das autores das notícias leva a que alguns dos/das entrevistados/as em Portugal não coloquem todos no mesmo nível. Há uns mais confiáveis do que outros. Por outro lado, na medida em que as notícias publicadas por outros meios e/ou jornalistas possam dar origem a novas notícias ou novos ângulos de abordagem, então nesses casos haverá sempre lugar a verificação.
Se é um meio confiável, é um meio confiável! Mas temos também que olhar para a dimensão daquilo que é noticiado e até para o impacto que irá causar. Se, por um lado, em determinadas situações bastará citar esse meio e alguns excertos, construindo nós a notícia, por outro lado, se virmos que é uma coisa muito impactante, por exemplo, a nível de público, podemos e devemos. (PT1)
No caso dos/das entrevistados/as em Espanha, predomina a reverificação, consultando-se outras fontes, no caso de notícias avançadas em primeira-mão por outros meios e/ou jornalistas. Também estes/as apontam que a confiança nas informações publicadas por outros vem do conhecimento do profissionalismo ou da falta dele. “Somos muito mais críticos com outros jornalistas do que com as instituições e administrações, devido ao desejo de superar e fazer as coisas de maneira diferente” (ES2). Dependendo do grau de credibilidade e da reputação do editor, também os média regionais espanhóis parecem decidir entre citar ou encontrar as suas próprias fontes.
Recorrer a conteúdos publicados nas redes sociais por utilizadores ou partilhá-los nos próprios perfis ou páginas do meio para o qual trabalham é algo já estudado no âmbito dos média regionais (Amaral et al., 2020; García-de-Torres et al., 2011; Said-Hung et al., 2014). No caso do presente estudo, e em relação à amostra de Portugal, as opiniões dividem-se. Se há quem não considere, de todo, as redes sociais, também há quem não as ignore e que considere o que lá é publicado. Também é possível identificar diferentes práticas entre o uso profissional e o uso pessoal. Se no domínio profissional o publicado por outros utilizadores nas redes sociais por vezes serve como ponto de partida para trabalho jornalístico nas redações dos meios onde os/as entrevistados/as trabalham, já no domínio pessoal a posição dos/das jornalistas é mais extremada, na medida em que os conteúdos de outrem são ou não são publicados. E nesse particular é fator determinante a confiança depositada no emissor de origem.
Há factos que acontecem nas redes sociais, que são lá relatados, que dão origem a uma “investigação”. Agora a transcrição ou colocar uma notícia que vês num perfil de alguém que simplesmente não conheces, isso não acontece. Mesmo quando conhecemos a pessoa, pegamos no telefone ou enviamos um email para que ela nos conte a nós e não na rede social. (PT5)
Já relativamente à amostra de Espanha, volta a emergir a manifestação de aprendizagem com os erros cometidos. Se numa primeira fase do uso das redes sociais estas eram vistas como acesso rápido às fontes e aos acontecimentos que aconteciam na rua ou como forma de conhecer o estado da opinião pública (García-de-Torres et al., 2011), agora os/as jornalistas já sabem que nessas redes pode aparecer qualquer coisa, designadamente conteúdos que visem manipular ou desinformar. Regista-se quem valorize o papel do jornalista como gatekeeper, que deve filtrar as informações, em contraste com os perfis dos utilizadores das redes sociais. “Deixamos alguém que não é enfermeiro ou médico nos vacine? O mesmo com o jornalismo. Hoje qualquer um procura cliques e seguidores” (ES6). Há ainda quem assinale, exemplificando, o que pode acontecer à credibilidade que detêm os média regionais junto das populações quando decidem incorporar conteúdos de utilizadores sem os verificarem.
Recorda-se o caso de um forte nevão numa localidade portuária espanhola e que era algo incomum. Alguém enviou uma imagem via WhatsApp e, enquanto alguns meios verificaram que se tratava de uma fotografia antiga, houve quem tenha decidido publicar logo como notícia. “Isso influenciou-nos muito a tomar nota e a ter cuidado a partir daquele momento com o que vinha pelas redes sociais” (ES5). O mesmo aconteceu durante a pandemia, com imagens de animais selvagens que supostamente invadiram algumas áreas da cidade e que eram falsas.
A deficiente qualidade da informação, que, por vezes, é publicada na imprensa regional e já assinalada em estudos anteriores (Rivas-de-Roca, 2022), está diretamente relacionada com a subordinação e a falta de distanciamento de determinadas fontes, problema que se agrava no caso das fontes institucionais. Estas fontes não são questionadas pelos/as jornalistas entrevistados/as, condicionados/as pela agenda dos gabinetes de comunicação das entidades locais e regionais. A precariedade existente nos média regionais e o excesso de confiança nas informações oficiais, fazem com que os jornalistas não verifiquem ou verifiquem menos as informações provenientes daquelas organizações. Daqui podem resultar conteúdos imprecisos ou desinformativos.
Em estudos recentes sobre a qualidade do trabalho dos média regionais em Espanha e Portugal, os próprios jornalistas consideram que devem evitar o abuso destas fontes oficiais e do chamado “jornalismo declarativo”, apostando na produção de conteúdos originais como fator diferenciador e que determina a qualidade do seu trabalho e do serviço que prestam ao seu público (Alcaide-Pulido, 2023; Rivas-de-Roca, 2022).
Desta forma, a verificação da informação, incluindo a oficial, deve fazer parte do quotidiano dos jornalistas dos média regionais, tendo em conta que o ambiente urbano é bastante propenso à desinformação (Alcaide-Pulido, 2023). No entanto, são muitos os/as jornalistas que consideram que a verificação sempre fez parte do bom desempenho do jornalismo (Couraceiro et al., 2022).
4. Conclusão
O presente estudo destaca alguns elementos que influenciam a dinâmica profissional dos/das jornalistas que trabalham nos média regionais de Portugal e Espanha e que impactam negativamente nas possibilidades de realizarem um correto fact-checking das informações que recebem. Em primeiro lugar, há dois elementos externos ao/à jornalista que condicionam a sua capacidade de verificação: a escassez de tempo e a ausência de pessoas suficientes para realizarem esse trabalho nas melhores condições.
Para a maioria dos/das jornalistas entrevistados/as, tanto em Espanha como em Portugal, a verificação faz parte das rotinas de trabalho. Para a prática de um jornalismo pleno é necessário, portanto, verificar a validade de toda a informação que chega através de múltiplos canais, de fontes oficiais ou de grupos e associações de cidadãos. No entanto, o fator tempo e a pressão do imediatismo imposto pela prioridade dada às edições digitais, aos cliques, bem como ao desejo de ser o primeiro a publicar e receber feedback nas redes, aceleram o processo de publicação e impedem a verificação adequada da informação. O tempo é ainda mais escasso quando não há pessoas suficientes para lidar com o volume de informações que precisam de ser publicadas. A diminuição da força de trabalho sofrida por esses meios de comunicação nos últimos 15 anos impediu mais cortes durante a pandemia. Com os mesmos recursos nas redações, por um lado, e mais procura de informação por parte do público, por outro, queimam-se etapas, ao verificar menos ou recorrer a menos fontes. Não é possível fazer uma verificação correta de factos sem tempo ou pessoas.
Paralelamente aos fatores externos, existem fatores internos ou subjetivos, relacionados com as atitudes dos próprios jornalistas, que condicionam a sua forma de verificar a informação. Assim, a confiança excessiva nas fontes oficiais, aliada por vezes à preguiça - como admitem os/as jornalistas portugueses/as -, faz com que os média regionais de Portugal e de Espanha não verifiquem a informação junto de fontes oficiais. Essa dinâmica pressupõe que o/a jornalista transmita uma única versão dos factos como se fosse a verdade, confiante de que as instituições lhe estão a contar factos verdadeiros ou o essencial dos assuntos. A realidade é que têm sido inúmeros os erros cometidos pelos média e pelos jornalistas, resultantes desse acompanhamento quase cego em relação ao discurso das fontes oficiais. Atrás destas também estão interesses de partidos que ocupam cargos governamentais ou relatórios policiais incriminatórios em que a versão do detido ou acusado nunca aparece.
Apesar do exposto, as entrevistas também revelam, especialmente no caso de Espanha, uma vontade dos/das jornalistas de aprenderem com os erros cometidos no passado e de se adaptarem à situação atual de escassez de tempo e recursos. Para isso, há quem aposte em abdicar da corrida pelo imediatismo e investir num jornalismo mais lento, que se dedica a temas próprios e elaborados com rigor. Os meios onde este tipo de jornalismo ocorre têm assim uma possibilidade de se diferenciarem daqueles que enveredam pela “tirania dos cliques”.
Com base nos dados, pode concluir-se que os/as jornalistas entrevistados/as aspiram a uma melhoria na qualidade das suas informações, pois estão cientes da sua dependência excessiva de fontes institucionais, da existência de preconceitos e interesses partidários entre a classe dominante local e da sua capacidade limitada de verificar corretamente o conteúdo de desinformação, devido à escassez de modelos, à falta de formação em ferramentas tecnológicas e ao imediatismo imposto pelo conteúdo digital. Os/as jornalistas estão conscientes do problema e de que a diminuição da qualidade da informação também reduz a confiança dos cidadãos. Os/as jornalistas são os/as primeiros/as a interessarem-se por enfrentar estes problemas, aprendendo com as experiências e implementando novas formas de trabalhar nas redações.
Por fim, reconhecem-se limitações ao presente estudo que, como assumido, é de caráter exploratório. O número de entrevistas poderá ser considerado reduzido, ainda para mais por envolver somente dois países, porém permite recolher indicadores para uma área pouco estudada: a desinformação à escala local (Jerónimo & Esparza, 2022) e sobretudo sobre práticas de fact-checking e desafios para os jornalistas que trabalham nos média regionais. Nesse sentido, estudos de caráter quantitativo, como inquéritos a jornalistas e meios de outros países, podem ser promovidos futuramente. O mesmo em relação à possibilidade de o público colaborar no processo de verificação (Allen et al., 2021), mas estudando essa hipótese com e em torno dos média regionais.