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Comunicação e Sociedade

versão impressa ISSN 1645-2089versão On-line ISSN 2183-3575

Comunicação e Sociedade vol.44  Braga dez. 2023  Epub 31-Out-2023

https://doi.org/10.17231/comsoc.44(2023).4622 

Artigos Temáticos

Uma Nova Forma de Precariedade (da Prática)? A Descompetencialização Profissional no Centro do Sequestro da Qualidade no Jornalismo

1ICNOVA, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa, Portugal


Resumo

Este artigo procura responder a uma das principais lacunas identificáveis no debate sobre descompetencialização profissional no jornalismo. Esta lacuna consiste numa dificuldade em isolar da restante polissemia conceptual este conceito que é crítico na interpretação dos desafios impostos ao jornalismo, que são múltiplos e que vão da erosão da dominação profissional às crises de valores, passando pela instabilidade de modelos de negócio com impacto acentuado na reconfiguração da divisão do trabalho jornalístico.

Para tal, e com recurso a uma sistematização da literatura sobre descompetencialização profissional, chegamos a uma definição estruturada e maximalista deste conceito no jornalismo. Definição que resulta fundamentalmente da arrumação dos múltiplos significados em dois indutores principais: a despadronização do trabalho jornalístico e o imediatismo na produção jornalística. Uma descompetencialização na profissão de jornalista que, conclui-se, constitui um novo tipo de precariedade da prática, capaz de capturar a qualidade jornalística e que vai além das tradicionais e muito documentadas precariedades do emprego e do trabalho.

Por fim, ensaiamos pistas futuras para continuar a acompanhar os ritmos de transformação profissional e a forma como estes continuarão a abalar competências jornalísticas e a qualidade da prática profissional, nomeadamente o fenómeno da automação digital no jornalismo com capacidade para ditar o regresso ao debate sobre descompetencialização profissional no jornalismo.

Palavras-chave: jornalismo; profissão; descompetencialização; qualidade do jornalismo

Abstract

This article seeks to fill in one of the main identifiable gaps in the debate on professional deskilling in journalism. This gap consists of the difficulty in isolating this concept from other multiple meanings that is critical when interpreting the challenges imposed on journalism, which are multiple and range from the erosion of professional domination to crises of values, including the instability of business models with a marked impact on the reconfiguration of the division of journalistic labour.

To that end, the literature on professional deskilling was used as a resource and systematically analysed to produce a structured and maximalist definition of this concept in journalism. A definition that essentially results from the arrangement of multiple meanings within two main aspects: the destandardisation of journalistic work and the immediacy of journalistic production. It is concluded that a deskilling of the journalist profession constitutes a new type of precarity of practice, able to capture journalistic quality and which goes beyond the traditional and well-documented precarity of employment and labour.

Finally, we suggest future avenues to continue monitoring the pace of professional transformation and how it will continue to affect journalistic skills and the quality of professional practice, in particular the phenomenon of digital automation in journalism, which has the capacity to dictate a return to the debate on professional deskilling in journalism.

Keywords: journalism; profession; deskilling; quality of journalism

1. Introdução

O novo processo evolutivo nas relações entre média e sociedade inaugurou uma arena de disrupção permanente no jornalismo pós-industrial (Deuze, 2017; Hirschhorn, 1988; Jenkins, 2006; Sonwalker, 2019). Uma disrupção potenciada pela aceleração de fluxos informativos e pela hiper-abundância de conteúdos, que levaram à liquidificação da economia clássica dos média através da redução do valor económico da notícia (Tandoc et al., 2019).

Este processo, adjuvado por um outro fenómeno de desintermediação no jornalismo provocado pelo robustecimento (Manovich, 2020) dos subjornalismos nas arquiteturas em rede (Beckett, 2008; Benkler, 2006; Benson, 2019; Hjarvard, 2012; Steensen, 2016), tem levado o jornalismo, e o jornalista, a uma renegociação permanente do seu contrato com a sociedade (Karlsen & Stavelin, 2014; Singer, 2010; Zelizer, 2015). Tal acontece ao mesmo tempo que fortes disputas concorrenciais se desencadeiam num contexto de desinvestimento de anunciantes que migram para os grandes players digitais com maior capacidade de fazer lock-in de audiências, em resultado daquilo a que Hindman (2018) definiria por “maior grau de viscosidade online”.

Os resultados são marcas de média tradicionais pauperizadas, com dificuldades de captação de receita, que laboram em lógicas de racionalização de recursos, ao mesmo tempo que tentam desesperadamente produzir conteúdo informativo com valor de mercado (Carlson, 2014; Compton, 2010).

Nesta conjuntura, consolida-se, ainda mais do que no passado, uma supra-ideologia tecno-mercantil de jornalismo (den Bulck, 2018), que passa a disputar os valores, objetivos e função positiva da profissão (Bruns, 2005; Deuze, 2005; Fenton, 2010; Hjarvard, 2012; Singer, 2010). Ao mesmo tempo, os seus profissionais mergulham num sistema triádico de fazer mais, mais depressa e com menos recursos, numa derivação para uma espécie de um novo taylorismo profissional.

Como consequência, assistimos a uma consolidação de tendências descompetencializadoras no jornalismo, com impacto no fazer jornalístico (prática) mas também no saber jornalístico (epistemologia; Rottwilm, 2014). Tendências descompetencializadoras que se posicionam como antagonistas da ideologia ocupacional do jornalista (Hermida, 2019).

Esta revisão da literatura procura recuperar este debate e aprofundar o conhecimento sobre um conceito que é absolutamente crítico na compreensão dos desafios que se colocam ao jornalismo, aos jornalistas, e à qualidade da prática. Falamos do conceito de descompetencialização (deskilling), tão caro a alguns dos mais celebrados autores nos estudos de jornalismo (Chambers & Steiner, 2010; Cottle, 2000; Deuze, 2001, 2005, 2007, 2009; Deuze & Yeshua, 2001; Fenton, 2010; Örnebring, 2019; Rottwilm, 2014; Singer, 2004). Um conceito que se constrói em camadas, isto é, de acordo com a arrumação de outros micro e meso conceitos que delimitam de forma difusa grande parte da literatura existente sobre desafios impostos ao jornalismo.

Adicionalmente, assumimos o desejo de responder a possíveis lacunas que possam existir no conhecimento já produzido sobre este assunto, nomeadamente na articulação que se possa fazer entre a compreensão destes fenómenos descompetencializadores da prática jornalística e as sociologias do trabalho, emprego e profissões. Estes campos disciplinares debruçam-se sobre questões de trabalho digno, de remuneração do trabalho executado e de identificação de formas de precariedade nas arenas de casualização do trabalho potenciadas pela economia global e pelo informacionalismo enquanto bases materiais das sociedades do século XXI.

2. A Origem do Conceito

A inclusão do conceito de descompetencialização nos estudos de jornalismo é de difícil localização temporal. No entanto, este conceito está presente noutros campos científicos de uma forma mais estabelecida, como é o caso das sociologias do trabalho, do emprego e das profissões, ao acompanhar um debate mais ideológico sobre as transformações operadas pela globalização económica na sua relação com o mercado de emprego, nomeadamente na dimensão de exploração do trabalho nos sistemas capitalistas (Abel, 2001; Baba, 2015; Bowker & Star, 2015; Carroll & Mentis, 2008; Castells, 1996/2002; Downey, 2021; Ferris et al., 2010; Gamst, 2015; Kim et al., 2003; Man, 2004; Martinaitis et al., 2021; Saunders, 2001; Star, 2001; Wall & Parker, 2001).

Um desses debates gira em torno das figuras da racionalização e da flexibilidade de recursos, que acompanha, de certa forma, o racional de Manuel Castells (1996/2002) na sua obra A Sociedade em Rede, quando este fala de um conjunto de oportunidades que o processo de globalização e o informacionalismo operaram nas empresas de países capitalistas. Oportunidades ao nível da redução de efetivos a um número estritamente indispensável, ao nível da flexibilidade contratual e, em traços gerais, ao nível das profundas mudanças que atravessaram o mercado laboral na direção da sua desregulação. Oportunidades que apontam sobretudo a objetivos como a redução da rigidez contratual, o amenizar de constrangimentos do mercado de trabalho pela via da ressignificação dos direitos dos trabalhadores, e o dar às empresas a capacidade de se reorganizarem mais eficazmente em cenários de flutuação económica pela via da maior liberdade de contratação e de despedimento, tornada possível por uma diluição regulatória do mercado de trabalho (Rodrigues, 2009).

Nas empresas de média e de comunicação não é diferente (Bastos, 2014; Cobos, 2017; Matos, 2017; von Rimscha, 2016). Aquilo que está em causa, de uma forma mais genérica, e em todos os setores, é obter da força de trabalho, inclusive da permanente, uma espécie de anuência para conjunturas de trabalho ou de remuneração mais voláteis, como condição apriorística para a continuidade nos empregos, ou como um prólogo para o alcance de um qualquer estatuto de trabalhador permanente continuamente protelado pela cúpula organizacional, por exemplo o caso de jornalistas recém-formados, em transumância entre diferentes estágios (Asahina, 2019; Örnebring, 2018).

Para Castells (1996/2002), uma das consequências destes processos de enfraquecimento de princípios e direitos fundamentais que coexistem na transição para a economia informacional é precisamente a internalização de uma ideia permanente de maximização da produtividade e de eficiência de todos os processos produtivos. Tal acontece mesmo quando palavras de ordem como “racionalização de recursos” e “flexibilidade de relações contratuais” parecem ir contra, paradoxalmente, a possibilidade de melhoria das condições de trabalho que estão na génese do próprio paradigma informacional. Uma ideologia que, por arrasto, implica que o trabalhador aplique, em qualquer circunstância, toda a sua capacidade produtiva, com prejuízo da perfeição e da expertise associadas à representação do ofício. Aquilo a que Bourdieu (2001), ideologicamente, designaria por “atomização metódica” do trabalho. Uma atomização decorrente dos processos mais vastos de dessocialização do trabalho assalariado, que sucumbe ao liberalismo hábil e às exigências inflexíveis do “contrato de trabalho leonino sob as roupagens da flexibilidade” (Bourdieu, 2001, p. 7). Até porque, tal como descrevem Chen e Sonn (2019), a organização flexível em que muitas vezes assenta o contrato de trabalho constitui o ambiente ideal para estas condições favoráveis à descompetencialização profissional.

É nesta perspetiva de abandono da expertise morosa das profissões estabelecidas a favor da consolidação de uma gestão flexível (geralmente associada a uma dimensão de redução de efetivos), que responda ao impacto interligado da globalização económica com a difusão das tecnologias de informação, que o conceito de descompetencialização profissional parece assentar a sua força.

Com efeito, Gamst (2015) afirma que a descompetencialização profissional acontece quando há um contínuo definhar de competências que, para Ferris et al. (2010), pode afetar também a dimensão cognitiva. Definhar de competências que leva precisamente a um proletariado desapossado de expertise como reflexo de condicionalismos, sobretudo externos (Chen & Sonn, 2019), impostos pelo capitalismo e pela desregulação dos mercados de trabalho (Martinaitis et al., 2021; Wood et al., 2019).

Braverman (1974) aludira de forma lapidar, antes, que a descompetencialização profissional, que constitui uma nova fase histórica desse capitalismo, resulta numa completa inversão da qualidade do ofício, estabelecendo-se, por isso mesmo, num mecanismo de degradação ou desabilitação no trabalho. Degradação do trabalho que, do ponto de vista de Cole e Cooper (2006), está associada aos mesmos processos de intensificação produtivista do trabalho.

Com efeito, num artigo publicado por Liu (2006), os conceitos de “descompetencialização do trabalho” e de “degradação do trabalho” são apresentados como expressões de significado exatamente idêntico.

Por seu turno, Gamst (2015) aproximou o significado de descompetencialização profissional, numa perspetiva teleológica neomarxista, às formas de controlo social dos trabalhadores via uma minuciosa divisão do trabalho. Formas que projetam a organização desse mesmo trabalho em tarefas fundamentalmente simples e repetitivas, capazes de pôr em causa a ideologia ocupacional das profissões, mesmo aquelas frequentemente demarcadas por um monopólio do conhecimento (o jornalismo é uma dessas profissões).

Para Wall e Parker (2001), Kim et al. (2003) e Downey (2021), o fenómeno da descompetencialização profissional significa assim, e sobretudo, que existe um processo de simplificação laboral ou uma simplificação de tarefas (seja ao nível da autonomia para a tarefa, seja ao nível da identidade e significância dessa mesma tarefa). Um processo que concorre para uma tendência contínua de estandardização do trabalho em dinâmicas que tendem a agudizar-se ao longo do tempo (Kim et al., 2003) e que encontraram um importante estímulo na última grande revolução tecnológica integrada na tecnologia informacional (Downey, 2021; McQuail, 2007).

Um destino que, para Abel (2001) e Carroll e Mentis (2008), começou a escrever-se com as relações de produção dos séculos XVIII e XIX e que, para Chen e Sonn (2019), é fundamentalmente o efeito de uma proletarização contingente do mercado de trabalho e das profissões que o ocupam. Uma premissa que contraria inclusivamente os paradigmas da transformação e transição lineares de uma economia manual para uma economia baseada no trabalho criativo (Chen & Sonn, 2019). Algo que, segundo os autores, muitos académicos não conseguiram prever, ajudando a sustentar o debate de décadas, com transferência para a sociedade, de que o trabalho criativo era essencialmente imune ao princípio da descompetencialização profissional, que é hoje um elemento extremamente útil para compreender precisamente a proletarização desse mesmo trabalho criativo.

Ainda no campo da correspondência da descompetencialização profissional à consolidação dos modelos capitalistas, Cole e Cooper (2006), ao estudarem de forma sistemática e ao longo do tempo este fenómeno no setor ferroviário japonês, concluíram que os processos de privatização de diferentes indústrias também acabam por levar ao recrudescimento de bolsas de descompetencialização profissional. Os autores posicionam, assim, este fenómeno como consequência de processos de desestatização oferecidos pelo liberalismo económico.

Um estudo realizado no Canadá no início do milénio (Man, 2004), envolvendo imigrantes chinesas naquele país, concluiu que o trabalho de mulheres imigrantes também está mais suscetível ao problema da descompetencialização profissional, introduzindo o tema no campo das desigualdades sociais, étnicas, de género, de classe e de cidadania.

O problema de descompetencialização profissional, apesar de tudo, não é estático e, em determinadas situações, gera reação no sentido da recompetencialização profissional. Algo que Agnew et al. (1997) descobriram acontecer em setores muito específicos. É o caso dos setores da computação e da informática, mais suscetíveis a atualizações contínuas da técnica profissional, o que também sucede em determinadas fases de follow-up na indústria automóvel (Forslin, 1990).

Adicionalmente, mencionam Chen e Sonn (2019), o debate sobre descompetencialização profissional assimilou tarde a ideia de que, muitas vezes, e em muitas atividades profissionais, a agudização desta descompetencialização profissional faz-se paradoxalmente acompanhar por um aumento dos níveis qualificacionais dos trabalhadores, até em virtude da amplificação dos níveis de escolaridade da população ativa. Um debate tardio que fica talvez a dever-se a uma certa tradição do pensamento marxista, que atribui às mais altas competências tarefas também mais complexas (Ertürk, 2019). Um princípio que Braverman (1974) rejeitou cedo, ao apontar, por exemplo, que o fenómeno da descompetencialização profissional não se limitava a trabalhadores de colarinho azul ou pouco qualificados, afetando igualmente trabalhadores de colarinho branco ou os designados “altamente qualificados”.

Isto implica considerar que existe, por vezes, um desajustamento claro entre a qualificação, como princípio de controlo de entrada nas profissões (em constante incremento com o aumento e diversificação dos níveis de educação terciária), e a complexidade da tarefa que se realiza ao abrigo desse selo qualificacional. Ou, se quisermos, uma desarticulação entre o nível qualificacional exigido para entrada numa determinada profissão, como é o caso do jornalismo, como veremos a seguir, e a redução ou uma espécie de definhar de competências e expertise historicamente necessárias ao desempenho dessa prática. Isto apesar de Chen e Sonn (2019) reforçarem a necessidade de considerar, nesta abordagem, as necessárias oscilações interprofissionais, até por causa dos fenómenos de recompetencialização profissional que ocorrem em profissões muito específicas e não tão suscetíveis aos fenómenos de descompetencialização progressiva (Agnew et al., 1997; Forslin, 1990).

3. O Conceito nos Estudos de Jornalismo e nas Ciências da Comunicação

A aplicação do conceito de descompetencialização nos estudos de jornalismo surge integrada numa holística que tem feito história neste campo disciplinar e que diz respeito aos múltiplos desafios colocados a esta atividade, tão impactada pelos efeitos do pós-industrialismo e pela tecnologia informacional, na renegociação do seu contrato com a sociedade. É esta holística que determina que o conceito esteja fortemente mergulhado em discursos onde predomina alguma polissemia conceptual.

Contudo, e sendo a utilização do conceito sobretudo localizável em autores-charneira no património teórico dos estudos de jornalismo, passa a ser possível estabelecer um racional de entrada do conceito como elemento central no debate sobre a captura da qualidade da prática profissional e sobre a obsolescência da ideologia ocupacional da profissão.

No início do milénio, Simon Cottle (2000) sinalizava que a prática jornalística passara a estar suscetível a processos de desabilitação profissional, como resultado dos procedimentos forçados de diversificação de competências profissionais que acabavam por ter um efeito perverso na qualidade da prática. O autor associava desta forma a questão da descompetencialização a uma pressão para a intensificação das valências profissionais múltiplas nas redações.

No entanto, esta discussão fora inicialmente situada de uma forma ambivalente. Autores como Jane Singer (2004) tentaram perceber junto dos profissionais jornalistas, num momento em que estas questões surgiam no debate sobre as grandes transformações operadas pela tecnologia informacional na profissão, se esta pressão para o incremento de competências e para um certo abandono da departamentalização no trabalho jornalístico implicava uma perda do saber-fazer e da qualidade da prática. Ou, em contrapartida, se poderia significar um reforço de competências. Uma discussão que, ao longo do tempo, reforçou o peso da primeira hipótese e reduziu o peso da segunda, sobretudo por causa de uma amplificação das questões relacionadas com os processos de simplificação da matéria noticiosa, com repercussão na sua qualidade.

Com efeito, cerca de 15 anos depois das primeiras ideias enunciadas por Cottle (2000), o discurso de Rottwilm (2014) tornava a afinar pelo mesmo diapasão, sugerindo que a atividade jornalística, ao exigir cada vez mais polivalência e multitarefas, acabava por potenciar mecanismos de incapacitação do desempenho profissional e de diferentes tarefas na sua plenitude. Uma situação que conduziria à tal ideia de descompetencialização que Fenton (2010), alguns anos antes, também havia caracterizado como uma das graves causas de um mecanismo mais vasto de desregulação dos níveis de profissionalismo na atividade jornalística.

Esta associação do termo “descompetencialização”, enquanto conceito, às polivalências e multitarefas ganhou, assim, predominância. Esta predominância é identificável, por exemplo, numa das obras com grande peso nos estudos de jornalismo nos últimos anos, The Routledge Companion to News and Journalism (O Guia Routledge Sobre Notícias e Jornalismo), organizada por Stuart Allan (2010). Numa das entradas do glossário, o conceito de “descompetencialização” acaba por remeter precisamente para os significados e consequências de outros dois atributos fortemente revisitados neste campo de estudos: os multiformatos e as multitarefas.

Por outro lado, outro dos autores-charneira neste campo científico, Mark Deuze (2001, 2005, 2009), tem vindo ao longo dos anos a posicionar o debate sobre a descompetencialização no jornalismo numa perspetiva fundamentalmente crítica do revisitado mito da internet enquanto panaceia tecnológica. O autor entende precisamente este desafio da descompetencialização imposta à profissão jornalística como uma consequência da transição para o jornalismo pós-industrial online (Deuze, 2005). Uma transição suficientemente poderosa que foi capaz de configurar uma dramática mudança conceptual da prática jornalística (Deuze, 2009), que se viu envolvida num declínio acentuado das estruturas de supervisão do fluxo informativo e que tem tido cumulativamente de lidar com novos dilemas éticos que afetam a sua credibilidade (Deuze & Yeshua, 2001).

Esta natureza mutável do trabalho jornalístico, ao afetar os papéis desempenhados pelo jornalista, acaba por ter impacto na sua autonomia, o que afeta a relação histórica deste ofício com as estruturas de qualidade do trabalho (Witschge & Nygren, 2009).

O próprio processo de recolha e tratamento de informação no jornalismo pós-industrial encerra em si mesmo um sintoma maior da descompetencialização a que esta profissão está sujeita, resultando numa reconversão do trabalho, que passa da escrita de notícias para simples projeções ensaiadas em formatos de replicação de conteúdos informativos trivializados, mecanizados e indiferenciados. Conteúdos que são muitas vezes cópias exatas de notícias publicadas por outras marcas - de novo, a dimensão associada aos processos de simplificação laboral e de tarefas.

Adicionalmente, o também celebrado autor Henrik Örnebring (2009, 2010, 2019) refere que o processo de descompetencialização no jornalismo tem ganho tração e sustenta a ideia anteriormente discutida de que esta descompetencialização decorre de uma relação quase institucionalizada na nova prática jornalística. Relação que diz respeito ao binómio fazer mais rápido e em diferentes plataformas (novamente os significados de multitarefa e de polivalência bem presentes, aos quais se adiciona a dimensão de imediatismo), que são uma consequência da captura dos formatos de jornalismo moroso (baseado na perícia e em trabalho padronizado) pela intensificação da gestão tecnocrática e do controlo organizacional das empresas de média.

Uma captura que ocorre paralelamente à consolidação de uma prática que se volta progressivamente para a produção massiva, produtivista e em ciclos contínuos de conteúdos rápidos de qualidade discutível e em speed-up e deadlines permanentes, que refulgem na era da hiper-comercialização das notícias. Notícias que se tornam, elas próprias, numa commodity como outra qualquer, arrastando o trabalho jornalístico para esferas de discussão que o distanciam da prática seminalmente associada ao ofício. Uma ideia que Örnebring (2010) sublinha como sendo a principal razão pela qual se refere que um dos sintomas mais claros de descompetencialização no jornalismo consiste na ideia por vezes veiculada de que a disseminação das notícias mais básicas em cadeias de produção contínuas dispensa uma formação específica ou muito aprofundada em jornalismo. Algo que, de resto, até pode servir aos próprios gestores e administradores de grupos de média, para quem, nos jogos de lutas ideológicas e recuperando as palavras quase proféticas de Carr-Saunders (Carr-Saunders & Wilson, 1933), os jornalistas não detêm sequer o monopólio da técnica indispensável ao exercício desta atividade.

Örnebring (2019) vai mais longe e refere que um dos problemas de base neste debate sobre competências jornalísticas ou sobre a sua descompetencialização consiste precisamente numa dificuldade histórica em balizar aquilo que pode ser entendido, a montante, como uma competência jornalística. Uma discussão que acompanha, de certa forma, aquela outra sobre definições não consolidadas do que é jornalismo e o conflito permanente entre a substância normativa do jornalismo e o seu procedimento justificativo (Anderson, 2019).

4. Arrumando o Conceito ou as Múltiplas Camadas da Descompetencialização Profissional no Jornalismo

A proposta metodológica deste artigo não se esgota numa sistematização da literatura existente sobre a descompetencialização na atividade jornalística. Na verdade, o grande desiderato deste trabalho consiste em avançar no conhecimento já produzido, isto é, em encontrar eventuais lacunas que aí possam existir.

Para que tal seja possível, propõe-se nas linhas seguintes uma arrumação do conceito, avançando com uma indicação daquelas que são as grandes camadas meso e micro por detrás de um significado macro de descompetencialização profissional. Se quisermos ser ambiciosos, uma proposta que faça por situar aqueles que são, na literatura, os grandes indicadores e indutores de descompetencialização na prática jornalística.

Neste sentido, oferecemos a esta discussão sobre descompetencialização na profissão jornalística um esquema onde os significados de despadronização da prática jornalística e de imediatismo se posicionam como fundamentais para uma consolidação mais estruturada e maximalista do conceito.

Numa dimensão de análise mais meso, o significado de despadronização do trabalho jornalístico (Cohen, 2012) implica, na prática, um processo acelerado de desregulação do fazer jornalístico e dos níveis de qualidade da prática, e, por consequência e inerência, uma redução dos níveis de profissionalismo.

Nesta despadronização do trabalho, as dimensões micro, vistas amiúde, da polivalência e dos multiformatos, que têm o efeito perverso de capturar a realização de tarefas e de formatos na sua plenitude e que são também uma consequência de reconfigurações contínuas da divisão do trabalho orientadas para a racionalização de custos, tempos e recursos, consolidam cenários de abandono da departamentalização do trabalho. Isto traduz-se na tal captura do trabalho padronizado, da expertise, da especialidade e do ofício moroso. O vínculo a este jornalismo tecno-mercantil e produtivista ganha assim um profissional mais generalista, capaz de responder à acumulação das tarefas simplificadas, aos multiformatos e às polivalências exigidas pelo ritmo vertiginoso de notícias (com valor económico praticamente nulo). Contudo, ganha também um tipo de jornalismo que converge para níveis inferiores de profissionalismo, uma vez que se estrutura em torno de uma prática desabilitada, simplificada e marcada por aquilo que Deuze (2009) designou por declínio da estrutura do procedimento com impacto na sua credibilidade.

Ainda no plano meso, o papel do imediatismo (Beckett, 2010; Fenton, 2010; Hass, 2011; Hjarvard, 2012; Karlsson, 2011; Waisbord, 2013), enquanto extensão de uma aceleração no jornalismo pós-industrial - que evoca, de certa forma, a própria aceleração generalizada das sociedades modernas proposta por Harmut Rosa (2015) -, entronca nas noções de ubiquidade e de omnipresença informativas e na velocidade e antecipação informativas enquanto atributos preponderantes na saliência dos fluxos informativos contínuos. Em última análise, uma espécie de estar sempre a fazer e no menor espaço de tempo, em ciclos de 24 horas por dia e em tempos pressionados no formato speed-up, onde a máxima “o valor da informação não sobrevive ao momento em que é nova. Vive apenas nesse momento” (Benjamin, 1968, p. 90) nunca pareceu ser tão apropriada à narração do problema.

Este imediatismo constitui-se assim como uma das esferas fundamentais para se entender a forma como as rotinas e lógicas de trabalho dentro das redações se alteraram e continuam a alterar, e onde a busca incessante por novos formatos e agendas inovadoras marcam o caminho de uma indústria que ainda continua a tentar encontrar um modelo de negócio viável para as notícias na era digital (von Rimscha, 2016).

Imediatismo que, nas palavras de Beckett (2010), potencia uma espécie de caldeirão de materiais e conteúdos noticiosos duvidosos que passa a ser preciso saber evitar. Um cenário onde o jornalismo de investigação especializado e baseado na perícia, que resulta do desempenho da tarefa na sua plenitude, passa a ser desafiado por um tipo de jornalismo sustentado em contínuos fluxos informativos capazes de responder às estratégias de monetização das organizações de média. Um imediatismo que, além de tudo o mais, já se consolidou numa espécie de norma procedimental (Buhl et al., 2017).

E mesmo que os jornalistas ainda tentem combinar imediatismo e precisão na produção noticiosa (Mir, 2014), parece avisado trazer a debate as palavras de Fenton (2010) e de Karlsson (2011), quando estes referem que o imediatismo não é mais do que uma espécie de catalisador de uma certa forma de falência da função social do jornalismo. Falência essa que impacta diretamente a qualidade da produção de notícias cada vez mais expostas a erros, incorreções e replicações, que são o reflexo mais óbvio de uma prática a concorrer para a crescente descompetencialização profissional.

Ensaiamos, assim, uma proposta de sistematização do conceito de descompetencialização (Figura 1), assumindo para o efeito os diferentes níveis micro e meso que permitem balizar este conceito enquanto ponto crítico na interpretação do sequestro da qualidade do jornalismo e na interpretação da obsolescência da sua ideologia ocupacional.

Figura 1 Sistematização do conceito de descompetencialização na profissão de jornalista 

5. Uma Nova Forma de Precariedade Projetada nos Efeitos da Descompetencialização na Qualidade do Jornalismo

A tradição dos estudos sobre precariedade profissional precede, mas também acompanha, a emergência daqueles outros que refletem sobre a transição histórica para a sociedade informacional e para a economia global e a forma como esta transição é acompanhada pela precarização das condições de vida e de trabalho (Castells, 1996/2002).

Um autor pivotal neste campo de estudo sobre precariedade profissional é Serge Paugam (2000; Paugam & Russell, 2000). Este autor está ligado a um prolongamento do pensamento durkheimiano nas dimensões de degradação do emprego e crises do laço social, tendo concebido uma tipologia dupla de precariedade: (a) a precariedade do emprego, associada à instabilidade da relação de emprego, que na profissão de jornalista está fundamentalmente associada a ligações de contingência, à peça, e outras não sujeitas à natureza jurídica do salário ou a questões como a estagnação de carreiras profissionais, a fraca condição remuneratória, entre outras; e (b) a precariedade do trabalho, atribuível a um processo de dominação/subordinação na aceitação da exploração do trabalho assalariado. Processo esse que normaliza más condições de trabalho em virtude dos mercados de trabalho fragmentados, flexibilizados e capturados pela insegurança generalizada e permanente que, no jornalismo, é vista como uma extensão da própria profissão. Um tipo de precariedade do trabalho que se reflete sobretudo em questões como a insatisfação e o desajustamento de expectativas de trabalho, angústia e incerteza (pathos), cargas intensas de trabalho em alargamento muitas vezes coercivo e a consequente diluição das fronteiras entre horário de trabalho e vida privada.

Contudo, a substância do tema tratado neste artigo implicaria à partida, até pelo limite do alcance da tipologia de precariedade dupla proposta por Paugam (2000; Paugam & Russell, 2000), a introdução de um terceiro tipo de precariedade, que vai além dos arranjos formais do emprego e que está associado a esta dimensão de descompetencialização numa profissão como a de jornalista, continuamente desafiada na qualidade da sua prática.

Propomos, assim, um novo tipo de precariedade da prática que difere da precariedade do emprego e da discussão sobre os tradicionais vínculos de dominação que se jogam nas novas ordens económicas globais. Um novo tipo de precariedade que vai, também, além da precariedade do trabalho e das características resultantes da subordinação a esses vínculos que impactam fortemente o bem-estar e a dimensão pessoal do trabalhador (precariedade do trabalho).

Este é, assim, um tipo de precariedade que melhor explica esta vertigem do jornalismo para um retrocesso da qualidade da sua prática e cuja representação tem sido tentada por outros autores, como é o caso da proposta para uma definição de profissionalismo precário no jornalismo (Matthews & Onyemaobi, 2020).

A este respeito, autores como Cohen (2017) referem que a pletora de desafios impostos ao jornalismo, representada nas condições de trabalho precarizado, têm uma influência bastante acentuada na qualidade da atividade jornalística. Esta ideia é partilhada por Morini et al. (2014), que referem que os próprios profissionais têm consciência de que a precariedade afeta a qualidade do seu trabalho e reconhecem que os modelos de qualidade das notícias se deterioraram.

Ou seja, um caldeirão de influências que se repercute numa prática fragilizada que pode, do ponto de vista de Chadha e Steiner (2022), assumir um efeito perverso na também histórica relação umbilical entre jornalismo e democracia. Um tipo de precariedade da prática que se normaliza no intrincado complexo que conduz à pauperização da economia clássica dos média tradicionais e que está a jusante (a) do avanço dos processos conducentes à desabilitação profissional (Chadha & Steiner, 2022; Wasserman, 2019) e (b) do desgaste do ideal funcionalista de jornalismo legitimado nos conteúdos de qualidade e nos altos níveis de profissionalismo (Örnebring, 2018). É também um tipo de precariedade pouco discutida, mas que influencia os próprios modos de pensar dos jornalistas (Örnebring, 2018). Com efeito, e no entender de Gutiérrez-Cuesta et al. (2022), os contextos precarizantes da prática são o maior indutor de afetação das rotinas profissionais e, ao final do dia, da qualidade dos textos publicados por diferentes marcas.

E mesmo que o conjunto de conceitos usados para justificar essa precariedade da prática não disponha de uma arrumação consolidada como aquela que propomos neste artigo, autores como, por exemplo, Cohen (2017) aludiam já a uma precariedade da prática associada a um processo de despadronização do trabalho jornalístico que passara a atuar a partir de informação trivializada, gerada por software, e da redação de conteúdos não originais. Processos que Banet-Weiser (2017) descreve como sendo sobretudo explicáveis à luz de uma transformação organizacional, onde o jornalista, para corresponder ao ímpeto hipercompetitivo da profissão, transfere a sua subjetividade, enquanto trabalhador, para as linguagens e práticas do empreendedorismo jornalístico.

Um dos principais exemplos tem sido identificável nas novas ditaduras procedimentais impostas aos jornalistas, como a das métricas, que se sobrepõem à tal histórica substância normativa do jornalismo. Ou, por outras palavras, ditaduras procedimentais que têm hoje mais valor económico do que a qualidade do conteúdo noticioso propriamente dito (Murdock, 2018), subvertendo a ideia de jornalismo enquanto profissão que assenta numa ideologia que assume o compromisso da qualidade do trabalho ao invés do princípio da eficiência económica desse trabalho (Witschge & Nygren, 2009). O resultado é uma sobreposição de anseios da gestão tecnocrática dos média e dos imperativos do mercado à qualidade do jornalismo e do conteúdo noticioso produzido, resultando numa precarização do saber-fazer, que implica assumir como hipótese a correlação negativa entre níveis de precariedade da prática resultantes dos ambientes disruptivos impostos ao jornalismo e a própria qualidade no jornalismo.

No fundo, uma precariedade da prática crescente (Figura 2), que aparece associada às condições de mudança permanente, difusa e caótica, que assolam a prática jornalística na era pós-industrial das notícias, e que acarreta uma desabilitação de um saber-fazer que se torna assim cada vez mais precário na sua relação histórica com a qualidade da prática, podendo colocar o próprio jornalista, apontam Morini et al. (2014), num conflito permanente entre o chamamento e a desilusão profissionais.

Figura 2 A descompetencialização na profissão de jornalista enquanto nova forma de precariedade da prática? 

6. Conclusão

Este artigo começou por situar o tema da descompetencialização profissional no jornalismo enquanto objeto de estudo localizável fundamentalmente no património teórico dos estudos de autores-charneira da disciplina de ciências da comunicação.

Ao contrário do que acontece noutras disciplinas, onde a discussão sobre descompetencialização profissional parece mais consolidada, a polissemia conceptual que invade o ecossistema dos desafios impostos ao jornalismo pós-industrial faz com que não tenha ainda sido possível trabalhar o conceito, e as diferentes camadas que o compõem, de forma mais estruturada.

Desta forma, a mais-valia deste trabalho, que visa responder às lacunas identificáveis no conhecimento produzido, consistiu em propor uma sistematização do conceito de descompetencialização na profissão de jornalista, relacionando o produto dessa sistematização com a dimensão de qualidade no jornalismo.

Concluiu-se que significados como o de abandono da departamentalização e descaracterização procedimental; a acumulação de formatos e de tarefas; a simplificação e repetição laborais; a mecanização e trivialização do produto de trabalho; a aceleração produtivista e ubíqua; e o recrudescimento de imprecisões resultantes da obsolescência da atividade morosa podem ajudar a consolidar uma definição maximalista daquilo em que consiste verdadeiramente a descompetencialização da profissão. Descompetencialização que se subsume nas duas palavras-chave capazes de aglutinar os diferentes significados. Falamos dos conceitos de “despadronização do trabalho” e de “imediatismo”, que juntos consolidam as tendências descompetencializadoras da profissão e ajudam a posicionar este debate num novo tipo de precariedade da prática. Um tipo de precariedade da prática que caracteriza desta forma uma das profissões mais suscetíveis aos ritmos disruptivos da tecnologia informacional, como é o caso do jornalismo, e que tem implicações na qualidade do jornalismo e na deterioração do produto jornalístico.

7. Pistas Futuras ou o Impacto Ambíguo da Automação na Descompetencialização da Prática Jornalística

Como vimos anteriormente, a literatura diz-nos que a descompetencialização profissional se agudizou com a última grande fase da revolução tecnológica e com a estandardização e simplificação de tarefas apoiadas na infraestrutura informacional, com consequências documentadas na qualidade do jornalismo. No entanto, uma parte dessa mesma literatura, mais recente, também conclui que um dos principais pontos positivos potenciados pela integração da “indústria 4.0” e da automação nas ocupações profissionais, nomeadamente no jornalismo, é a capacidade de libertar nas redações o fator humano das tarefas mais simples e fastidiosas, para se abraçar outras mais complexas, como o jornalismo investigativo (Lindén, 2017; Thurman et al., 2017; van Dalen, 2012). Este lado mais celebratório daquilo que a infraestrutura tecnológica dá ao jornalismo e aos jornalistas impõe considerar a ideia de recompetencialização (reskilling) profissional e o resgate de um jornalismo de qualidade apoiado numa infraestrutura que se encarrega das tarefas trivializadas da profissão.

Contudo, esta é uma ideia que não reúne consenso, com outras hipóteses como o reforço do contínuo e progressivo definhar de competências (Carlson, 2014) - mais descompetencialização -, bem como a hipótese neoliberal projetada na redundância profissional (Conboy, 2019), a serem igualmente aventadas.

Neste sentido, parece-nos relevante continuar a acompanhar as dinâmicas de transformação no jornalismo e a forma como estas impactam as competências profissionais dos jornalistas e a qualidade do jornalismo. O tema da automação no jornalismo posiciona-se, assim, como um dos novos temas que suscitarão maior interesse no acompanhamento do eventual reforço das dinâmicas de descompetencialização, por um lado, ou, nos seus correspondentes antípodas, de contextos ressignificantes de recompetencialização profissional. Isto sem ser igualmente despiciendo considerar que, ao final do dia, esta automação aplicada ao jornalismo poderá tratar-se apenas de um mero reforço de mecanismos de racionalização: racionalização de recursos na forma de dispensa de trabalhadores e de libertação, por parte das cúpulas organizacionais, de muitos outros custos operacionais umbilicalmente ligados a uma prática historicamente associada à imagem do ofício moroso. A acompanhar.

Agradecimentos

Este artigo foi escrito com apoio financeiro da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia - Portugal), referência FCT UIDB/05021/2020.

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Recebido: 28 de Fevereiro de 2023; Aceito: 18 de Setembro de 2023

Tiago Lima Quintanilha tem doutoramento em ciências da comunicação. Os seus interesses de investigação incluem estudos sobre os média, jornalismo, ciência aberta e acesso aberto, em tópicos que vão dos grandes desafios impostos ao jornalismo, às desordens do modelo de publicação em acesso aberto. Atualmente, o seu trabalho de investigação e consultoria incide sobretudo na articulação entre os estudos de jornalismo e os estudos de ciência, nomeadamente na problemática das desordens científicas na acumulação sistemática de conhecimento, assumindo como estudos de caso algumas áreas fortemente revisitadas no campo dos estudos de jornalismo. Publicou em Portugal e internacionalmente, em diferentes formatos. A sua investigação foi publicada em revistas como a Communication & Society, Journalism, International Journal of Communication, entre outras. Email: tiagoquintanilha@fcsh.unl.pt Morada: Faculdade de Ciências Sociais e Humana - Av. de Berna, 26 C · 1069-061 Lisboa, Portugal

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