1. Introdução
O Brasil abriga a maior extensão de floresta tropical do planeta, o que concede à política ambiental brasileira um papel central para a sustentabilidade global. As transformações no uso da terra, notadamente o desmatamento destinado à expansão da fronteira agrícola, despontam como as principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa no país (Pereira et al., 2020). O agronegócio é um dos principais setores econômicos do país, sendo atualmente responsável por cerca de 24% do produto interno bruto brasileiro (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, 2023), e seu poder econômico se reflete em poder político, uma vez que o setor conta com ampla participação no poder legislativo brasileiro, compondo a maior bancada do Congresso Nacional: a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como “bancada ruralista” ou “bancada do boi” (Noberto et al., 2022). Diante desse contexto, o agronegócio aparece como o principal impulsionador do lobby anti-ambiental no Brasil (Castilho, 2018).
Criada em 2002, a FPA tem entre suas prioridades “a modernização da legislação trabalhista, fundiária e tributária, além da regulamentação da questão de terras indígenas e áreas quilombolas, a fim de garantir a segurança jurídica necessária à competitividade do setor” (Frente Parlamentar da Agropecuária, s.d., para. 4). Com membros de todas as regiões do Brasil, a FPA conta atualmente com 374 parlamentares de 20 partidos e posicionamentos diferentes. Apesar de a Frente contar com membros do Partido dos Trabalhadores, o partido de Lula se consolidou como um apoiador dos movimentos de luta pela terra, sendo entendido como um adversário político dos ruralistas (Bruno, 2021).
A FPA foi uma importante aliada do Governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), uma vez que a agenda de desmonte ambiental do ex-presidente ia ao encontro dos interesses econômicos do setor do agronegócio. Sua política ambiental facilitou a expansão da produção pecuária na região amazônica (Pereira et al., 2020), além de enfraquecer importantes estruturas e regulamentos de governança ambiental, cortar orçamentos para pesquisa científica, monitoramento e proteção ambiental (Athayde et al., 2022). Em 2023, no entanto, o Partido dos Trabalhadores voltou à presidência do Brasil, o que a princípio foi visto de forma negativa pela FPA, que acusou o novo Governo de ser ideologizado contra o agronegócio (Borges, 2023).
Uma das estratégias de comunicação da FPA tem sido o impulsionamento de anúncios pagos no Facebook e no Instagram. Na Biblioteca de Anúncios da Meta, coletamos 718 anúncios veiculados entre 1 janeiro e 15 de setembro de 2023 pela FPA. Nesse ambiente das plataformas digitais, os conteúdos publicitários frequentemente se beneficiam do fato de não parecerem anúncios, adotando a linguagem e a cenografia de conteúdos orgânicos e, assim, deixando menos óbvios seus interesses econômicos (Evans & Wojdynski, 2020). A pouca atenção da literatura a essa “crise de identidade” da publicidade nas plataformas digitais, especialmente quando relacionada a questões sensíveis como o debate ambiental, reforça a relevância de trabalhos que venham preencher essa lacuna.
Nesse sentido, a presente pesquisa pretende analisar a possível presença de greenwashing e/ou desinformação nos anúncios publicados pela FPA nas plataformas da Meta durante o ano de 2023. Como detalharemos na terceira seção, entendemos greenwashing como a divulgação de atividades ecologicamente corretas em campanhas de publicidade para desviar a atenção daquelas ambientalmente hostis (Netto et al., 2020). Por sua vez, estamos entendendo “desinformação” como uma estratégia intencional de manipulação da opinião pública caracterizada pela difusão de informações falsas, descontextualizadas ou enquadramentos distorcidos (Fallis, 2015; Wardle & Derakhshan, 2017). Escolhemos 2023 a fim de entender quais estratégias publicitárias são adotadas pela FPA no início de um Governo que é percebido como não alinhado aos interesses econômicos do setor agropecuário. A partir da contextualização da atuação política e econômica do agronegócio no Brasil e da FPA e de pesquisas científicas sobre desinformação e greenwashing no contexto da publicidade, a pesquisa pretende responder duas perguntas principais (PP):
2. O Agronegócio Brasileiro e a Frente Parlamentar da Agropecuária
A “revolução verde” institucionalizou o agronegócio no Brasil no final da década de 1980 (Müller, 1993), estabelecendo o setor como uma estrutura política, econômica e social no país, promovendo exportações e afastando-se de grupos rurais (Silva, 1998). A ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, trabalhou para industrializar o setor (Carvalho, 2019), consolidando o perfil desenvolvimentista do agronegócio (Santos et al., 2019).
Com o aumento da produção agrícola no Brasil, os impactos sociais e ambientais relacionados ao uso da terra cresceram. Segundo Bombardi (2017), a supressão de áreas que seriam voltadas para a cultura de alimentos de consumo interno viabilizou alianças de classes dominantes no Brasil, que passaram a controlar a produção de commodities (mercadorias primárias de origem agrícola, pecuária, mineral e ambiental) com preços estabelecidos pela demanda estrangeira. Esse modelo agrícola também é uma das principais fontes de emissão de gases de efeito estufa no país, com destaque para a pecuária, a agricultura e a indústria alimentícia (Pereira et al., 2020).
O agronegócio brasileiro tem feito um forte lobby anti-ambiental ao alavancar suas pautas no campo político. A FPA é assessorada pelo Instituto Pensar Agropecuária, mantido por 38 associações, incluindo 22 grandes empresas de agronegócio, como Bayer, JBS, Syngenta, Bunge e Cargill. Entre os financiadores do instituto, também há bancos, como Itaú, Banco do Brasil e Santander (Arroyo, 2019). Além disso, há conflito de interesses, pois alguns parlamentares da FPA são proprietários de terras em diversas regiões do Brasil (Fuhrmann, 2019).
Santos et al. (2019) constatam que as conquistas da FPA resultaram em retrocessos na legislação brasileira, incluindo a oposição à reforma agrária, à demarcação de terras, entre outros. Uma das pautas em disputa pela FPA é o “Marco Temporal”, tese jurídica de 2009, que estipula que reservas indígenas só podem ser demarcadas caso estivessem ocupadas por povos originários quando a Constituição foi promulgada, em 1988 (Câmara dos Deputados, 2023). A aprovação da tese permitiria que produtores rurais expandissem suas propriedades, mas também aprofundaria conflitos históricos com os povos indígenas. A construção da Ferrogrão, uma ferrovia que visa interligar estradas no Mato Grosso e Pará para o escoamento de commodities (Xingu +, s.d.), é outra fonte de conflito por conta dos possíveis impactos socioambientais da obra (Melito, 2023).
Em constante disputa pela hegemonia política e econômica no campo, a FPA foi bem sucedida na criação de bancadas suprapartidárias, alianças com a mídia tradicional e o cultivo de lideranças políticas e partidárias que promovem os interesses do setor (Bruno, 2015). As corporações midiáticas são um fator essencial para promover o agronegócio. O interesse em renovar a imagem do setor resultou na criação de emissoras e programas que disseminam uma imagem positiva do modelo agropecuário (Carvalho, 2014). Com o lançamento da campanha “agro é tech, agro é pop, agro é tudo”, em 2016, da Rede Globo, a publicidade do agronegócio entrou em um novo momento (Santos et al., 2019). Além de destacar o “agro” como a “riqueza do país”, promove a ideia de que seu modelo produtivo é um símbolo de avanço tecnológico, modernidade, prosperidade e combate à pobreza rural (Moncau, 2022).
Esses artifícios estabeleceram uma retórica de legitimidade para o setor, que resgata seus interesses históricos: rentabilidade, competitividade e negação dos direitos dos trabalhadores rurais e populações tradicionais (Bruno, 2015). A FPA é parte da classe política dominante e busca promover seus próprios interesses por meio do Estado (Simionatto & Costa, 2012), que se torna um instrumento pró-agronegócio e dificulta que movimentos sociais desafiem essa hegemonia. Diante da atuação controversa nas esferas políticas e econômicas, se faz necessário entender quais as estratégias de comunicação empregadas pelo agronegócio nas redes sociais.
3. Greenwashing, Desinformação e Publicidade
As plataformas online inauguraram uma nova forma de publicidade. Ao combinar dados sobre bilhões de usuários com inteligência artificial, a internet tornou possível direcionar anúncios personalizados de acordo com o perfil de cada consumidor. Nas últimas décadas, a publicidade foi impactada pela fragmentação midiática, pela maturação dos meios digitais e pelo crescente poder de escolha da audiência sobre os canais, dispositivos e programas que prefere consumir (Balonas, 2019). No Brasil, os grandes conglomerados de mídia testemunharam a migração do investimento publicitário para plataformas de mídia social (Bell et al., 2017).
Atualmente, o faturamento com anúncios publicitários é a principal fonte de receita da Meta e da Google (Meta Investor Relations, 2023; United States Securities and Exchange Commission, 2023). O modelo de negócios dessas big tech é baseado em publicidade, por lucrarem vendendo aos anunciantes seus serviços de personalização e direcionamento de mensagens a públicos hipersegmentados (Dobber et al., 2023). Dessa forma, as predições sobre o comportamento dos usuários modeladas a partir de dados pessoais se tornaram o principal capital dessas empresas (Zuboff, 2018/2021). Ao contrário da publicidade veiculada nos meios de comunicação tradicionais, passível de escrutínio público por ser exibida igualmente para toda a audiência, a publicidade programática das plataformas digitais é distribuída por algoritmos opacos, ou seja, não há transparência sobre o conteúdo dos anúncios, tampouco sobre seus critérios de distribuição (Jamison et al., 2020).
Estudos recentes vêm demonstrando que as principais plataformas estão lucrando com desinformação ambiental e práticas enganosas sobre sustentabilidade, uma vez que os seus sistemas de publicidade carecem de mecanismos de transparência e responsabilização. Um relatório recente expôs a ineficiência da Google em cumprir as suas próprias políticas de combate à desinformação, publicando anúncios em vídeos que disseminam mentiras sobre as mudanças climáticas (Climate Action Against Disinformation & Center for Countering Digital Hate, 2023). De forma complementar, outro estudo revelou a natureza estratégica da desinformação e do greenwashing na indústria de combustíveis fósseis, assim como o papel de cúmplice desempenhado pelas grandes plataformas no combate à desinformação ambiental (Bunchan et al., 2023).
A prática do greenwashing pode ser caracterizada como a divulgação de atividades ecologicamente corretas em campanhas de publicidade para desviar a atenção daquelas ambientalmente hostis (Netto et al., 2020). De acordo com Delmas e Burbano (2011), o greenwashing implica enganar consumidores em relação às práticas ambientais de uma organização ou aos benefícios ambientais de um produto ou serviço. Isto é, o fenômeno é visto como uma ação corporativa deliberada com presença de elementos enganosos, focada na manipulação da percepção de stakeholders.
Estudos sobre greenwashing na publicidade mostraram que os anúncios têm baixo nível de alegações factuais e muitos apelos emocionais e ambíguos (Baum, 2012; Naderer et al., 2017). O greenwashing também vem sendo definido a partir da divulgação seletiva de informações ao associar dois comportamentos simultâneos: reter a divulgação de informações negativas relacionadas ao desempenho ambiental da empresa ou setor e, ao mesmo tempo, expor informações positivas a respeito do desempenho ambiental, das iniciativas de responsabilidade social e de práticas sustentáveis (Netto et al., 2020).
Para Baum (2012), o greenwashing envolve necessariamente a disseminação intencional de desinformação. Dessa forma, a produção de informações falsas seria parte constituinte do greenwashing, inserindo essa prática dentro das estratégias de desinformação (Naderer et al., 2017). No entanto, há diferenças entre a noção de “greenwashing” e de “desinformação”, aqui compreendida como uma estratégia intencional de manipulação da opinião pública, caracterizada pela difusão de informações falsas ou descontextualizadas, descredibilização de inimigos, veiculação de conteúdo sensacionalista ou hiper partidário e reprodução de notícias verdadeiras com enquadramentos distorcidos (Fallis, 2015; Wardle & Derakhshan, 2017).
No Brasil, operações de marketing empresarial para ocultar práticas antiecológicas vêm sendo realizadas pelo agronegócio para ganhar legitimidade diante dos seus consumidores e da concorrência internacional (Budó, 2017). Como aponta Budó, nesse contexto, o entendimento de greenwashing é expandido para designar a tentativa de controle da informação a respeito dos danos causados pelos agrotóxicos e pelos organismos geneticamente modificados por setores poderosos no Brasil. A construção da imagem do agronegócio brasileiro, enquanto coalizão hegemônica de grande relevância econômica, política e social no debate sobre o desenvolvimento do país, é essencial diante da disputa antagônica entre as práticas discursivas desse setor e o discurso agroecológico (Bittencourt et al., 2022). De fato, parte do agronegócio brasileiro vem adotando estratégias nocivas de propaganda e greenwashing para atrasar a implementação de políticas de transição energética e regulações para a rastreabilidade da origem de produtos, além de pressionar pelo desmonte regulatório (Regattieri, 2023). Regattieri indica que o repertório negacionista do agronegócio brasileiro foi importado da extrema-direita mundial, baseado na tentativa de criar controvérsias, incertezas e conflitos de interesse entre indústria e ciência para manipular a opinião pública.
Essas estratégias são inspiradas nas táticas de comunicação da indústria do tabaco, por exemplo, que se tornou referência na produção de falsas controvérsias e dúvidas (Brandt, 2011). Empresas cujas atividades são essencialmente destrutivas e inerentemente não-ecológicas (Naderer et al., 2017), como companhias aéreas, produtores de garrafas plásticas ou baterias, petrolíferas e mineradoras, incorrem sempre em greenwashing quando se colocam como “verdes” ou “amigas” do meio ambiente, pois dificilmente alguma medida irá além do meramente acessório diante do impacto negativo que caracteriza a própria atividade. Historicamente, as empresas ligadas aos combustíveis fósseis foram as maiores responsáveis pelo financiamento do negacionismo climático, atrasando a adesão dos países às medidas de enfrentamento do problema. Entre as estratégias negacionistas promovidas por companhias do setor se destacam o discurso de que o aquecimento global se trata de uma teoria, e não de um fato, a ênfase em alegadas incertezas, o alarmismo econômico e a transferência de responsabilidade para o indivíduo (Carrington, 2021).
Importante ressaltar que a disseminação de informações falsas é uma prática comum em vários tipos de estratégias publicitárias para fazer com que produtos ou serviços pareçam mais atraentes para os consumidores: por exemplo, alegações nutricionais como “sem gordura” ou “sem açúcar” muitas vezes são direcionadas a crianças e adolescentes, segmentos mais vulneráveis a estratégias nocivas de publicidade (Naderer, 2020). Nesse sentido, alegações vagas, mensagens emocionais ou promessas falsas não são exclusivas da publicidade “verde”, mas a disseminação de desinformação sobre questões ecológicas em anúncios pode ter um impacto negativo no apoio da opinião pública a políticas de preservação e conservação ambiental (Kilbourne, 2013). Naderer et al. (2017) alertam para o impacto político, econômico e social da desinformação na publicidade “verde” face à emergência climática. Segundo os autores, diante da proclamada influência da publicidade na opinião pública, o greenwashing pode afetar a forma como lidamos globalmente com problemas ambientais e levar à inércia climática.
Devido à conscientização pública e ao aumento dos problemas ambientais, investidores, consumidores, governos e organizações estão mais conscientes e têm pressionado empresas e setores produtivos a divulgarem informações sobre o seu desempenho ambiental, produtos ecológicos e iniciativas de responsabilidade social (Netto et al., 2020). No entanto, à medida que o consumo “verde” se desenvolveu desde a década de 70, organizações e setores vêm tentando tirar vantagem desse segmento, usando alegações sobre sustentabilidade e responsabilidade em seus anúncios, apesar de não oferecerem produtos ou serviços realmente “verdes” (Naderer et al., 2017). Enquanto as práticas de greenwashing vêm crescendo nas últimas décadas, consumidores têm cada vez mais dificuldades em identificar alegações verdadeiras (Schmuck et al., 2018). Para ajudar o público a identificar práticas de greenwashing por parte de empresas, algumas organizações vêm tentando instruir consumidores, produzindo estudos e guias sobre o greenwashing (UL Solutions, s.d.).
Nesse sentido, se faz necessário entender em que medida a sustentabilidade é instrumentalizada pelo agronegócio brasileiro como greenwashing e desinformação em sua comunicação publicitária online. Nesse sentido, nos questionamos sobre quais as estratégias de publicidade que o agronegócio brasileiro usa para se comunicar com cidadãos cada vez mais vigilantes em relação à sustentabilidade, avaliando em que medida argumentos falsos, afirmações vagas e apelos emocionais são veiculados pela FPA em nome do setor.
4. Percurso Metodológico
Com cerca de 150.000.000 de usuários no Brasil apenas no Facebook (Bianchi, 2023), o alcance da Meta pode garantir amplo impacto para as campanhas de desinformação veiculadas em sua rede de anúncios, especialmente se considerarmos o modelo de negócio da plataforma, orientado para a publicidade (Nieborg & Helmond, 2019). As políticas de publicidade e segmentação da Meta têm sido objeto de controvérsia devido à falta de transparência, à violação da privacidade dos usuários e à sua utilização para campanhas de ódio e manipulação política (Andreou et al., 2019; Jamison et al., 2020). Em 2018, após escândalos e pressão pública, a empresa lançou a Biblioteca de Anúncios para arquivar conteúdos veiculados na rede de publicidade da empresa, que inclui Facebook, Instagram, Audience Network e Messenger.
A coleta de dados na biblioteca funciona por meio de buscas por palavras-chave associadas ao anúncio ou à página do anunciante. Neste estudo, buscamos os anúncios veiculados pela FPA na interface da biblioteca, onde é possível baixar o conteúdo e os metadados dos anúncios. Foram coletados 158 anúncios, veiculados entre 1 de janeiro e 14 de setembro de 2023, quando foi feita a aquisição dos dados. Considerando as limitações de transparência da biblioteca (Le Pochat et al., 2022), os dados coletados aqui podem não representar a totalidade dos investimentos realizados pela FPA, mas apenas os anúncios autodeclarados, levando-nos a acreditar que a veiculação de anúncios com desinformação e greenwashing possa ser maior do que nossos dados mostram.
Para a análise dos dados, foram adotadas três abordagens complementares que nos permitiram identificar e interpretar as estratégias discursivas empregadas pela FPA para “melhorar a imagem do agro”: contagem automática de palavras e análise de coocorrência entre elas, análise de conteúdo e análise de discurso. Inicialmente, realizamos uma contagem automatizada de palavras a partir de um script em linguagem R, e seguimos procedimentos básicos de limpeza de dados, como a retirada de URLs e símbolos não alfanuméricos, além da conversão de todas as letras maiúsculas para minúsculas. Também foi utilizado um código para a retirada das stop words, que são palavras que possuem pouco valor semântico, tais quais preposições, artigos e conjunções. Por fim, com o objetivo de identificar palavras compostas, foi feita uma análise humana que considerou todos os n-gramas (2-gramas, 3-gramas e 4-gramas) com mais de 10 ocorrências.
A partir dessa lista, calculamos a correlação entre as palavras-chave mais usadas nos anúncios e identificamos os principais eixos temáticos da comunicação publicitária da FPA, validando os resultados ao analisarmos de forma exploratória o conteúdo dos anúncios. Essa abordagem é vantajosa por permitir um mapeamento aberto, sem definição prévia dos temas, de modo que a identificação de assuntos relevantes não é impactada por premissas e vieses dos pesquisadores. No entanto, como essa análise só permite a consolidação de conteúdo textual, analisamos o discurso presente nos vídeos e imagens para aprofundar a interpretação dos temas.
Também realizamos uma análise de conteúdo sistemática de todos os anúncios coletados para identificar quais criavam uma imagem distorcida do agronegócio a partir da presença de desinformação e de estratégias de greenwashing. Adotamos um protocolo de votação majoritária em que todos os anúncios foram examinados por duas das autoras e, em caso de dissenso, foi realizada uma terceira análise para validação (Lombard et al., 2006). Assim, selecionamos exemplos e padrões relevantes para a análise de discurso, que foi realizada a partir da perspectiva da escola francesa (Maingueneau, 2014). Nesse estágio, analisamos os enquadramentos e o tom das publicações, destrinchando as peças em que a FPA lança mão de estratégias de desinformação, manipulação e greenwashing.
Ainda que tenhamos buscado uma abordagem de métodos mistos para tornar a análise mais completa e pertinente, o estudo apresenta algumas limitações. A primeira tem a ver com as próprias limitações de transparência da Biblioteca de Anúncios da Meta (Le Pochat et al., 2022), o que pode significar que não tenhamos analisado a totalidade de anúncios veiculados pela FPA durante o período analisado. A multimodalidade do conteúdo dos anúncios, que podem envolver texto, vídeo, imagens estáticas, entre outros, também limita a análise em certo ponto, especialmente porque a contagem automática de palavras não pôde dar conta do conteúdo textual presente nos vídeos.
5. Resultados e Discussão
5.1. Eixos Temáticos e Enquadramentos
A partir de uma análise automatizada das frequências de termos no campo textual dos ads, é possível verificar os temas e enquadramentos mais recorrentes nos anúncios da FPA veiculados nas plataformas da Meta. Entre as palavras mais utilizadas, há aquelas que chamamos de termos “operacionais”: palavras que dizem respeito à nomeação e descrição da Frente, de seus integrantes e hierarquias (“FPA”, “deputado”, “Frente Parlamentar Agropecuária”, “setor”, “presidente” e “senador” são alguns exemplos). Há também, entre os termos mais frequentes, nomes de políticos e siglas de partidos (“PP”, “PL”, “Pedro Lupion”, etc.). Há ainda um conjunto de palavras genéricas relacionadas ao destaque dos próprios conteúdos anunciados (“confira”, “vídeo”, “clique”, “assista”, etc.), à abrangência nacional do enunciador (“Brasil”, “brasileiro”, “país”, “nacional”, “união”, etc.), entre outras. Tais palavras não explicitam temas ou enquadramentos específicos, estando distribuídas em anúncios que se situam em diferentes eixos temáticos.
Tendo isso em vista, nossa escolha metodológica envolveu a seleção de termos que marcam a presença explícita de temas e enquadramentos nas publicações. Entre as 100 palavras mais frequentes (Figura 1), identificamos os seguintes termos-chave que se associam a temas e enquadramentos: “propriedade/propriedades” (33 anúncios), “invasões/ invasão” (32 anúncios), “segurança” (29 anúncios) “direito” (26 anúncios), “marco temporal” (20 anúncios), “mst”1 (16 anúncios), “reforma tributária” (15 anúncios), “crime” (15 anúncios), “desenvolvimento” (14 anúncios), “indígena/indígenas” (12 anúncios), “reforma agrária” (11 anúncios), “justiça” (11 anúncios) e “ferrogrão” (seis anúncios).
Na Figura 2, criamos um mapa de calor que mostra a coocorrência desses termos nos mesmos anúncios, com o objetivo de identificar eixos temáticos, atores ligados a eles e enquadramentos presentes nos mesmos. Recorrendo a uma análise exploratória do corpus, aliada aos resultados do mapa de calor, definimos cinco eixos temáticos principais e dois conjuntos de atores. Os eixos temáticos são “invasões de terras”, “Marco Temporal”, “reforma tributária”, “economia” e “Ferrogrão”, enquanto os conjuntos de atores são “mst” e “indígena/indígenas”. Termos como “propriedade/propriedades”, “segurança”, “direito”, “crime”, “desenvolvimento” e “justiça” aparecem como enquadramentos dos eixos temáticos mencionados. O termo “reforma agrária” foi desconsiderado, uma vez que a análise exploratória revelou que entre as suas 11 aparições, em oito delas, o termo aparece apenas como componente do nome de órgãos como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. É possível verificar que os termos escolhidos como eixos temáticos têm pouca ou nenhuma coocorrência dentro dos anúncios, o que demonstra independência entre si, corroborando com a nossa seleção.
Entre os anúncios que utilizam um entre os termos “invasão/invasões”, 41% também mencionam o “mst”. Por sua vez, 81% dos anúncios que mencionam o “mst”, também utilizam em seu texto “invasão” ou “invasões”, o que indica que o MST aparece nos anúncios incluído no debate sobre invasões de terras. Dessa forma, entendemos que o MST é um ator dentro desse eixo temático. Em relação aos principais enquadramentos do eixo temático, 50% dos anúncios que inserem “invasão” ou “invasões” em seu texto, também incluem a palavra “propriedade” ou “propriedades”, 31% incluem a palavra “crime”, 30% incluem a palavra “segurança” e 27% incluem “direito”. Dessa forma, temos que, nos anúncios da FPA, as chamadas “invasões de terra”, frequentemente promovidas pelo MST, são enquadradas como crimes que ameaçam o direito à propriedade e a segurança dos proprietários. É importante destacar que a própria escolha do termo “invasão”, ao invés de “ocupação”, é ideológica. Enquanto “ocupação” remete à posição-sujeito do trabalhador rural sem-terra, apoiando-se no “direito de propriedade”, “invasão” se refere à posição-sujeito do proprietário da terra, assentando-se no “direito à propriedade” (Indursky, 2002).
Entre os anúncios que falam em “Marco Temporal”, 55% mencionam o termo “indígena” ou “indígenas”. Quando olhamos “indígena/indígenas” como termo de referência, temos que 92% dos anúncios que incluem um dos termos também incluem “Marco Temporal”. Dessa forma, os indígenas aparecem como atores implicados no debate sobre o eixo temático “Marco Temporal”. No que diz respeito aos enquadramentos presentes no eixo temático, 70% dos anúncios sobre “Marco Temporal” incluem a palavra “direito”, 55% incluem “propriedade” ou “propriedades”, 55% incluem segurança e 35% incluem “justiça”. No discurso dos anúncios, portanto, o projeto de lei que limita a possibilidade de demarcação de terras indígenas é enquadrado como uma questão de justiça, de direito e de segurança dos proprietários de terras onde tais demarcações poderiam ocorrer.
A Figura 3 sintetiza os atores e enquadramentos relacionados aos dois principais eixos temáticos da nossa análise: “invasões de terras” e “Marco Temporal”. No diagrama, a opacidade da linha pontilhada está relacionada à coocorrência de cada palavra nos anúncios sobre os temas.
“Reforma tributária” aparece como um eixo temático que tem pouca interseção com os termos de alto valor semântico mais recorrentes selecionados nessa análise. Nossa análise exploratória mostrou que os anúncios desse eixo temático buscam defender os interesses dos produtores rurais na proposta de mudança na política de impostos no Brasil. A Figura 2 mostra que apenas a palavra “direito” aparece relacionada a “reforma tributária” em mais de um anúncio (dois no total, representando 13% das ocorrências). Em ambos, uma “reforma tributária justa” é enquadrada como uma questão de “direito a uma alimentação acessível”.
“Economia” é outro eixo temático que se correlaciona pouco com as palavras analisadas. Na análise exploratória, verificamos anúncios que ressaltam o setor agropecuário como um motor da economia brasileira. Apenas “propriedade/propriedades” e “crime” aparecem em mais de um anúncio que contem o termo (cada termo aparece em dois anúncios em coocorrência com economia).
Por fim, metade das ocorrências do eixo temático “Ferrogrão” também inclui a palavra “desenvolvimento”. Há ainda um anúncio sobre a Ferrogrão que inclui a palavra “economia”, sendo essas as únicas ocorrências nesses eixos temáticos. Dessa forma, entendemos que a obra de infraestrutura da Ferrogrão é enquadrada como um agente de desenvolvimento para o Brasil.
Para além da análise dos eixos temáticos, destacamos a relevância do termo “propriedade” combinado com a sua variação no plural (“propriedades”) como enquadramento transversal a diferentes eixos temáticos. Os termos “propriedade/propriedades” foram os mais recorrentes entre os termos de alto valor semântico considerados nessa análise. Entre os anúncios que incluem um dos termos, 61% também incluem a palavra “direito”, o que indica que o direito à propriedade é uma ideia central propagada pelos anúncios da FPA. Tal ideia trabalha para a manutenção do status quo da distribuição fundiária no Brasil, rechaçando qualquer ideia de redistribuição de terras, seja para fins de reforma agrária, seja para a demarcação de terras destinadas aos povos indígenas.
5.2. Desinformação e Greenwashing
Nossa análise de conteúdo, realizada através de avaliação humana, identificou que entre os 157 anúncios estudados, 61 (39%) continham algum tipo de discurso tóxico ou desinformativo, como mostra a Figura 4. Nesta análise, consideramos como discursos desinformativos ou tóxicos aqueles que trazem informações checáveis falsas, aqueles que promovem alarmismo/fatalismo, discursos que criminalizam movimentos sociais, discursos de negacionismo do impacto ambiental do agronegócio e discursos conspiratórios. Na categoria de “greenwashing”, encontramos 27 anúncios (17%). Consideramos como peças que contém greenwashing aqueles anúncios que buscam promover uma imagem de responsabilidade ambiental do agronegócio como um todo, silenciando os reconhecidos impactos ambientais do setor.
Consideramos informações checáveis falsas os anúncios que trazem afirmações ou dados reconhecidamente falsos. Por exemplo, a seguinte fala aparece no vídeo de um dos anúncios: “já imaginou um projeto gerar mais de 370.000 empregos, sendo 30.000 diretos, ajudar o desenvolvimento do país e do agro, e não causar impactos ambientais? Esse é a Ferrogrão” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=1281712859380537). Consideramos a afirmação desinformativa pelo fato de ser impossível que uma obra de infraestrutura não cause impactos ambientais (ainda que fosse o caso de eles serem reduzidos).
Para além das informações checáveis falsas, também entendemos o uso de alarmismo/fatalismo como uma estratégia de desinformação. Dentre os 13 anúncios marcados como contendo alarmismo, 10 se encontram no eixo temático “Marco Temporal”. Portanto, nos anúncios da FPA, o alarmismo aparece como uma estratégia discursiva para a abordagem deste tema. De uma forma geral, temos o forte uso de um léxico que inclui palavras como “ameaça”, “incerteza”, “prejudicar” e “perdas”, além do uso de estimativas numéricas para prever prejuízos para agricultores e a população como um todo. A Figura 5 traz um exemplo dessa estratégia discursiva. Além do léxico alarmista e das estimativas preocupantes, o anúncio utiliza a cor vermelha (frequentemente associada a perigo), além do uso do pronome de tratamento “você”, que tem como objetivo implicar o leitor no grupo de pessoas ameaçadas por uma não-aprovação do Marco Temporal.
Retirado de Marco Temporal | Se você acha que a aprovação do Marco Temporal não tem nada a ver com você, presta atenção [Post], por Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, 2023b, Facebook. Identificação da biblioteca: 34497995586413132. (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=548436300794954&set=pb.100068857674657.-2207520000&type=3)
No tocante à criminalização dos movimentos sociais, a maior parte dos conteúdos desinformativos que adotam esse discurso está no eixo temático “invasões de terras”. A criminalização pode ser verificada em afirmações como “aumentar a pena para quem pratica invasões de terras é fundamental para garantir o direito de propriedade” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=135508952585668) e “as práticas do MST não se assemelham pela luta da terra, e sim de práticas de extorsão e diversas outras figuras do código penal [sic]” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=1663390137413440). Em um dos anúncios, a FPA destaca a prisão de um ex-líder do MST, como mostra a Figura 6.
Retirado de José Rainha, líder da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), grupo responsável pelas invasões de terras em diversas [Post], por Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, 2023a, Facebook. Identificação da biblioteca: 4332827598999090. (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=506527054985879&set=pb.100068857674657.-2207520000&type=3)
No anúncio, o destaque do fato de o sujeito do enunciado ser “ex-líder do MST” configura uma tentativa de implicação discursiva do movimento com o crime cometido. Visualmente, a palavra “extorquir” aparece em caixa alta logo após a palavra MST, o que corrobora com a tentativa de associação do crime à imagem do movimento, ainda que o ator em destaque não tenha mais vínculo ativo com o MST.
Como discurso conspiracionista, encontramos um anúncio que defende que “estamos sendo governados por Organismos Internacionais com interesses econômicos travestidos com preocupação ambiental [sic]” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=610674101176294).
Quase todos os anúncios marcados como contendo discursos de negacionismo do impacto ambiental do agronegócio também foram classificados na categoria “greenwashing”. Na Figura 4, eles aparecem em azul. Além da afirmação já mencionada de que a obra do Ferrogrão não traria impactos ambientais, há nessa categoria afirmações como a que consta na Figura 7.
Retirado de Sustentabilidade | O Brasil segue representando quando o assunto é agricultura sustentável! Através de muitos anos de pesquisa, estudos e tecnologias [Post], por Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, 2023c, Facebook. Identificação da biblioteca: 1338797093713366. (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=579478054357445&set=pb.100068857674657.-2207520000&type=3)
O discurso de que o agronegócio brasileiro é exemplo de sustentabilidade é uma das principais estratégias de greenwashing nos anúncios da FPA. Tal alegação aparece constantemente associada à ideia de progresso científico e aumento de produtividade. No corpus pesquisado, aparecem afirmações como “caminhando lado a lado com o meio ambiente, o Brasil lidera o ranking mundial na redução de impactos ambientais na produção agropecuária” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=1437746120392536) e “o Brasil, para que não reste dúvida, possui sustentabilidade na produção e vocação para alimentar o mundo, com respeito ao meio ambiente e combate aos crimes cometidos. Não aceitaremos que ideologias superem dados oficiais de satélite e a ciência” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=755405875984507).
Uma outra característica que atravessa os anúncios que contêm greenwashing é a tentativa de anulação da conflitualidade através de um discurso de conciliação entre crescimento econômico e sustentabilidade (Krieg-Planque, 2010). Verbos como “conciliar”, “aliar” e expressões como “lado a lado” são usados para fomentar a ideia de que não há qualquer contradição entre a expansão da atividade econômica e a proteção ambiental. Esses anúncios dizem, por exemplo, que com a Ferrogrão “nosso país terá maior competitividade, milhares de empregos serão gerados, bilhões de reais gastos com frete serão economizados, além de ser a melhor alternativa em termos de sustentabilidade” ou que “o apoio da frente a essa medida reflete o compromisso dos membros em buscar soluções que conciliem o crescimento econômico com a preservação ambiental, visando um futuro próspero para o setor e para o país”.
5.3. Outras Estratégias e Regularidades Discursivas
Além das estratégias de desinformação, discursos tóxicos e greenwashing, identificamos outras regularidades discursivas nos anúncios que são usadas para criar uma imagem distorcida do agronegócio brasileiro. Em 26 anúncios (16,6%), o pequeno produtor é colocado como protagonista do agronegócio. Enquanto termos como “pequenos produtores” ou “agricultura familiar” são recorrentes nos anúncios, palavras como “latifúndio”, “grandes produtores” ou “fazendeiros” são omitidas. Num dos anúncios, lemos no campo textual: “agronegócio x agricultura familiar | Você sabia que a agricultura familiar é um segmento do agronegócio, não um setor concorrente?” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=594461118820772). No vídeo que integra este anúncio, o deputado Pedro Lupion afirma que
a gente não pode fazer essa segregação entre produtores. ( ... ) Todos nós somos produtores rurais. Do microprodutor, do pequeno, do assentado, do recém entrado aí no campo como também o gigantesco. Todos nós temos a nossa parcela de responsabilidade, geramos emprego, geramos renda.
A tentativa de enquadrar todos os produtores rurais num mesmo grupo de interesse é também uma tentativa de anulação discursiva das contradições no campo, silenciando pautas históricas como a luta pela terra e a redução das desigualdades fundiárias no Brasil.
Em 28 anúncios (17,8%), encontramos algum tipo de estratégia de apelo emocional, a maior parte deles relacionado aos eixos temáticos do “Marco Temporal” ou das “invasões de terra”. De forma geral, há uma tentativa de se colocar o pequeno produtor rural como vítima em potencial das demarcações de terras indígenas ou de invasões de terras por movimentos sociais. “Essa família gostaria de passar o legado da produção de alimentos por gerações. O que impede? A incerteza que o município de Arvoredo enfrenta com as demarcações previstas para a região” (https://www.facebook.com/ads/library/?id=1365046254223082) é um dos enunciados que reflete essa construção. Entre esses anúncios, também encontramos vídeos que utilizam o testemunho como estratégia de apelo emocional, individualizando as problemáticas. Se o léxico do campo textual dos anúncios e da fala das personagens recorre a termos que se relacionam a conceitos como “família” e “legado”, os vídeos que acompanham os anúncios utilizam estratégias fílmicas para reforçar a ideia, como a presença de diferentes membros de uma família, de diferentes gerações, no mesmo enquadramento, como mostra a Figura 8.
Retirado de Gerações, um amor inabalável pela terra e a paixão pela produção de alimentos, que agora enfrentam a incerteza de que [Post], por Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, 2023e, Facebook. Identificação da biblioteca: 1578592689215512. (https://www.facebook.com/ads/library/?id=1578592689215512)
Uma última estratégia discursiva que mapeamos foi o uso da cenografia do fact-checking (checagem de fatos) para a propagação de ideias favoráveis ao agronegócio brasileiro. Maingueneau (2014) explica que todo enunciador instaura, através da sua enunciação, a situação a partir da qual quer enunciar. Essa mise en scène singular da enunciação é justamente o que o autor chama de “cenografia”. Quatro dos anúncios publicados em 2023 pela FPA iniciam seu campo textual com a expressão “fato ou fake”, comumente associada à atividade de checagem de fatos. A expressão também aparece nos vídeos que acompanham os anúncios (Figura 9).
Retirado de Fato ou Fake Sustentabilidade | Brasil desmata? Brasil queima? A agropecuária está matando nosso planeta? [Reel], por Frente Parlamentar da Agropecuária - FPA, 2023d, Facebook. Identificação da biblioteca: 828184975681014. (https://www.facebook.com/reel/864820808405303)
A utilização da cenografia do fact-checking tem a função de legitimação das informações que são verbalizadas pelo enunciador. Fundos virtuais dinâmicos, inserção de memes em meio às falas e uso de humor na construção do conteúdo são alguns dos elementos utilizados nesses anúncios. Os vídeos que carregam a marca “fato ou fake” estão entre os poucos da nossa amostra que são verticais e se apropriam de estratégias comuns ao formato de microvídeos consumidos na seção “Reels” no Instagram e em vídeos do TikTok.
6. Conclusão
A presente investigação utilizou múltiplas perspectivas metodológicas para analisar o tipo de conteúdo que vem sendo impulsionado nas plataformas da Meta pela FPA no Brasil. Nos anúncios analisados, a sustentabilidade é instrumentalizada pelo agronegócio brasileiro como greenwashing e desinformação em sua comunicação publicitária online.
Entre os principais resultados, a análise automatizada das frequências de termos permitiu identificar cinco eixos temáticos principais: “invasões de terras”, “Marco Temporal”, “reforma tributária”, “economia” e “Ferrogrão”. Estes temas foram associados a termos-chave que destacam a forma como são enquadrados nos anúncios. De uma forma geral, os enquadramentos tentam criminalizar os movimentos sociais que lutam por uma reforma agrária e que buscam influenciar a opinião pública a favor da aprovação do Marco Temporal, alegando ser uma questão de direito à propriedade e segurança jurídica.
A análise de conteúdo nos permitiu identificar a presença de discursos desinformativos ou greenwashing em 75 dos 157 anúncios estudados, o que representa cerca de 48% do total. Através de escolhas lexicais e visuais nos anúncios, verificamos estratégias discursivas de criminalização dos movimentos sociais que lutam por reforma agrária, estratégias de alarmismo que visam evitar uma legislação mais favorável à demarcação de terras indígenas, estratégias de negacionismo em relação aos impactos ambientais do agronegócio, estratégias de anulação discursiva da conflitualidade no campo, entre outras.
Nossos resultados mostram que os discursos dos anúncios defendem a manutenção do status quo das relações socioeconômicas no campo, tendo como principal objetivo combater atores e pautas que pleiteiam a redistribuição de terras no Brasil. Tal pretensão fica evidenciada, por exemplo, pela forte oposição discursiva dos anúncios à demarcação de terras indígenas e pela vilanização discursiva dos movimentos sociais que lutam pela redução das desigualdades fundiárias no Brasil. A promoção do alarmismo também tem como objetivo promover o medo em relação a possíveis transformações nas relações de propriedade no campo, buscando fazer com que a opinião pública respalde a manutenção das atuais relações de poder. Além disso, a tentativa de anulação discursiva das contradições no campo promovida pelos anúncios, que enquadram todos os produtores rurais num mesmo grupo de interesse, fabrica a ideia de um campo harmônico em que grandes e pequenos partilham dos mesmos objetivos. Essa “harmonia fabricada” é um outro elemento discursivo de manutenção do status quo.
Como agenda de pesquisa futura, entendemos que a análise de conteúdo desses anúncios deve ser confrontada com uma análise das estratégias de segmentação adotadas pelo anunciante, de modo a podermos perceber os tipos de mensagens que são direcionadas a públicos específicos.