Com crescente importância em várias esferas da vida social, a transparência tem progressivamente alcançado relevância também nos média. Requisito fundamental das sociedades democráticas e livres para responsabilizar governos e outros agentes políticos, a transparência é um instrumento central em várias políticas e estratégias de regulação dos meios informativos. Em particular, tem sido considerada uma resposta consensual às preocupações com a falta de pluralismo dos meios de comunicação e de confiança no jornalismo (Karlsson, 2020), ao mesmo tempo que é utilizada como forma de monitorizar e controlar a propriedade dos média (Figueira & Costa e Silva, 2023).
Este entendimento parte do pressuposto de que devem ser asseguradas as condições para o exercício de um jornalismo responsável e que presta contas, dado que o primeiro requisito para uma cidadania informada é o acesso à informação e a factos verdadeiros nos quais as pessoas possam confiar para tomar decisões (Strömbäck, 2005). Os média, em particular o serviço público, têm-se mostrado essenciais para manter as pessoas informadas (Aalberg & Curran, 2012), já que o público necessita “de um certo tipo e qualidade de informação, para ajudar na autogovernação e apoio da comunidade, e do jornalismo [que tem] qualificações exclusivas para fornecer essas informações” (Craft & Heim, 2009, p. 217). Assim, os média e as democracias são formações sociais co-construídas e os meios jornalísticos têm sido instrumentais no aumento dos níveis de responsabilização dos diferentes poderes (Lindgren et al., 2019; Schudson, 2008), mantendo as democracias escrutináveis e vibrantes. Mas, atualmente, sob pressão da polarização da sociedade e de modelos de negócio moribundos, os meios jornalísticos têm mostrado sinais de tensão.
Para enfrentar esses desafios, as políticas de comunicação, a nível nacional, mas também a nível europeu, têm afirmado os princípios da responsabilização e da visibilidade como esteios que orientam o funcionamento dos média em dois sentidos: respondendo perante os poderes públicos em termos de transparência da propriedade e dos meios de financiamento e respondendo perante o público em termos de visibilidade dos mecanismos de produção. O raciocínio subjacente a este crescente de exigência de transparência resulta do pressuposto de que a produção jornalística deve ser sujeita a mecanismos de verificação da sua efetiva contribuição para a democracia, pois essa função não é uma profecia auto-realizável (Trappel & Tomaz, 2021, p. 11). E, embora seja um conceito ainda em construção, a transparência reporta a dimensões de visibilidade dos processos, abertura e responsabilização dos agentes, num contexto em que são esperadas vantagens sociais dessa exposição (Karlsson, 2010; Singer, 2006).
A nível europeu, há uma importância crescente atribuída à transparência dos média. Desde a aprovação da Diretiva dos Média e Serviços Audiovisuais à discussão do Regulamento sobre Liberdade dos Meios de Comunicação Social (Media Freedom Act), proposto pela Comissão Europeia em setembro de 2022, têm crescido as disposições que impõem níveis de transparência em várias dimensões, nomeadamente a nível de práticas publicitárias, do financiamento público e da propriedade dos média, esta última uma dimensão essencial nas políticas europeias. Esse tem sido, por exemplo, o entendimento de instituições como a União Europeia e o Conselho da Europa. Nesse sentido, a Comissão Europeia comissionou duas fases de um projeto-piloto para criar um mecanismo de monitorização da propriedade dos média. No âmbito deste projeto, chamado EurOMo(https:// media-ownership.eu/), foi disponibilizada uma base de dados que salienta as diferenças entre os países e os riscos que a transparência enfrenta (Tomaz, 2024).
A dimensão da propriedade não é a única condição para o bom exercício das organizações jornalísticas, mas é, ainda assim, um pré-requisito essencial para que os média não sejam desviados da sua missão fundamental. Pelas ligações com o poder político e com o poder económico que podem estabelecer, quer no âmbito da produção noticiosa, quer no âmbito do seu financiamento, os média podem ficar reféns de interesses políticos e económicos (Cagé et al., 2017; Dragomir, 2019). Assim, o princípio da promoção da transparência pode contribuir para mitigar esse efeito ao alicerçar-se na assunção de que é fundamental que a informação sobre quem detém os média e sobre a forma como o jornalismo é financiado esteja publicamente disponível (Picard & Pickard, 2017).
Há grandes expetativas nos sistemas mediáticos e políticos de que a transparência possa sanar alguns dos desafios apontados. A transparência poderá contribuir para restaurar e reforçar a credibilidade do jornalismo (Craft & Heim, 2009), porque um jornalismo que esclarece a forma como se relaciona com a agenda e com as fontes de informação, assim como aquele que não guarda segredo sobre a forma como se financia, é um jornalismo que quer manter relações de confiança com o seu público. A prática profissional pode ser transformada, responsabilizando os agentes perante os seus consumidores de notícias (Bock & Lazard, 2021; Heim & Craft, 2020), ao mesmo tempo que, a nível empresarial, a visibilidade sobre os instrumentos de gestão de propriedade pode aumentar a perceção de independência e credibilidade do jornalismo (Cappello, 2021).
Mas a implementação do princípio da transparência não se consegue sem riscos ou sem obstáculos. A transformação da cultura das redações é um processo constantemente ameaçado pela inércia, e os complexos instrumentos de gestão, nomeadamente financeira, das organizações dificultam a compreensão pública. Acrescenta-se a este cenário a propriedade em cadeias, que caracteriza grande parte das organizações jornalísticas, assim como a plataformização algorítmica da sociedade e da produção cultural (Poell et al., 2022), para se perceber que, tal como a transparência é um conceito multidimensional, assim são multifacetadas as ameaças e barreiras à sua implementação.
A crescente importância política do princípio da transparência que, como já referido, ultrapassa o estrito campo mediático, tem-no tornado omnipresente nas políticas de comunicação, dominando grande parte da discussão e da produção legislativa e regulatória, sendo atualmente uma dimensão muito relevante do debate público sobre as responsabilidades dos média (Miranda & Camponez, 2022). Contudo, a própria noção de “transparência” deve ser permanentemente questionada e colocada à prova. O seu valor normativo, teoricamente inquestionável, contrasta, muitas vezes, com as condições da sua operacionalização, nomeadamente social e política, levantando dúvidas sobre a efetividade e o alcance das políticas de comunicação. Sendo valorizada na agenda pública, a dimensão ética da transparência é confrontada com a “complexidade da operacionalização e as práticas verificadas” (Bock & Lazard, 2021, p. 900), que têm de ser reconhecidas e analisadas. E poderá a transparência ser efetivamente uma panaceia sem fronteira ou devem ser estabelecidos limites à transparência idealmente considerada (Ananny & Crawford, 2018)? Mais: a discussão política sobre a regulação dos média pode esgotar-se nas questões da transparência? Deverá a transparência ser o fim último das políticas de comunicação ou apenas um meio para sustentar outras intervenções na agenda da regulação?
Estas questões continuam na agenda da investigação académica e sob o olhar atento de investigadores, políticos e sociedade civil. Tal como a contribuição dos média para a democracia não é uma “profecia auto-realizável” (Trappel & Tomaz, 2021, p. 11), também as consequências da implementação do princípio da transparência a vários níveis de funcionamento dos média não se traduzem necessariamente nos benefícios antecipados. Assim, este volume temático da revista Comunicação e Sociedade procurou reunir contribuições para o debate que visa compreender criticamente o princípio da transparência, não só em termos concetuais, mas também em contextos empíricos. Em resposta à chamada de trabalhos, os textos agora publicados apresentam perspetivas que aportam densidade e complexidade ao conceito de “transparência”, procurando compreender contextos concretos da sua aplicação e desafios que permanecem por resolver. É um volume abrangente em termos da cobertura geográfica das investigações publicadas, indo desde a América Latina (com trabalhos do Brasil e do Chile) à Europa do Sul, nomeadamente Portugal, mas também aos países nórdicos (Finlândia e Dinamarca) e bálticos (Lituânia, Letónia e Estónia).
Neste volume, assinalam-se contribuições relevantes para a compreensão da dimensão da transparência da propriedade, demonstrando que, de facto, esta é uma preocupação recorrente na esfera mediática. O volume abre com um conjunto de três trabalhos que resultam do trabalho desenvolvido por equipas nacionais no âmbito do EurOMo, o já referido projeto lançado pela Comissão Europeia. Inaugura o conjunto de artigos o trabalho de Marko Junkkari, Marko Ala-Fossi e Mikko Grönlund, que analisa instrumentos de aferição de quem é dono dos média com vista a “Tornar as Cadeias de Propriedade dos Média Noticiosos Transparentes Através de Bases de Dados Relacionais”. Este trabalho evidencia as dificuldades apontadas à compreensão dos mecanismos de propriedade, nomeadamente as relações de propriedade indireta e longas cadeias de propriedade, salientando que os resultados obtidos em diversos trabalhos dependem diretamente da qualidade das informações que servem de base à análise. E a disponibilidade dessas informações nem sempre está assegurada. Neste sentido, defendem que uma base de dados estruturada pode ajudar a resolver alguns destes desafios e permitir análises mais aprofundadas, nomeadamente transfronteiriças.
Também resultante da participação no projeto EurOMo, o trabalho de Mark BlachØrsten, Ida Willig, Mads Kæmsgaard e Rasmus Burkal salienta a forma como a digitalização veio impactar sistemas mediáticos sustentados em fortes princípios democráticos. No artigo “Transformações nas Formas de Propriedade num Sistema Democrático Corporativo dos Média - O Impacto da Digitalização na Transparência e o Risco de Captura dos Média”, os investigadores demonstram que, não havendo uma cultura de divulgação dos interesses políticos ou comerciais das pessoas singulares que detêm média digitais na Dinamarca, nomeadamente investidores privados, aumenta o risco de captura dos média pelos donos.
Finalmente, para terminar o trio de trabalhos resultantes do projeto EurOMo, a investigação de Anda Rožukalne, Auksė Balčytienė e Halliki Harro-Loit, de título “Rumo a uma Comunicação Social Responsável: Compreender as Características dos Países Bálticos Através da Análise da Transparência e da Responsabilização”, aborda o princípio da transparência da propriedade dos média em sua relação com a responsabilização dos média, tomando como estudos de caso organizações na Estónia, na Letónia e na Lituânia. Na proposta de monitorização do EurOMo, as autoras integram princípios conceptuais e metodológicos de um segundo projeto, o Mediadelcom, que captura a forma como desenvolvimentos do mercado dos média, como as mudanças de propriedade e controle, impactam a responsabilização e a performance dos média. As autoras concluem que mercados pequenos como os dos países bálticos têm promovido transparência por mecanismos informais, mas essa tendência acarreta diversos riscos para a responsabilização. Dessa forma, as autoras recomendam a adoção de uma regulação mais explícita sobre a transparência de diversas práticas, como a seleção de editores-chefes por parte dos proprietários.
É também a partir da transparência na dimensão da propriedade, mas situando-se no eixo do ethos da autotransparência nos média profissionais, que se ancoram as duas contribuições seguintes. Luís Bonixe parte de exemplos de jornalismo empreendedor, ou seja, de projetos jornalísticos independentes e alternativos, para demonstrar que a prática da transparência relativamente à propriedade e aos mecanismos de financiamento, em linha como o que defende Cappello (2021), é assumida como uma forma de afirmação na produção noticiosa. O artigo “A Promoção da Transparência Como Estratégia de Afirmação no Mercado das Notícias: Uma Análise aos Projetos de Jornalismo Empreendedor” procura, assim, evidenciar os instrumentos utilizados por estes meios para se distinguirem dos órgãos tradicionais.
Constanza Hormazábal, por seu lado, procura compreender as perceções de transparência de editores de meios tradicionais chilenos sob a perspetiva da responsabilização e considerando a relação com os públicos. Em “Transparência e Participação das Audiências: Uma Perspetiva dos Diretores e Editores de Média no Chile”, a autora conclui pelo consenso reunido, através de entrevistas com diretores e editores de órgãos de comunicação chilenos, que o papel social dos média legitima a importância da transparência. Não se trata apenas, porém, de assegurar a disponibilização de informação sobre os proprietários dos órgãos de comunicação como garantia de maior responsabilização, qualidade, confiança e interação com os públicos. É, aliás, mais abrangente do que isso e poderá incluir maior transparência sobre os processos de produção noticiosa e sobre os perfis dos próprios jornalistas, uma reflexão que a autora continuará em trabalhos futuros.
A análise dos mecanismos de verificação de meios dedicados ao fact-checking é o objetivo do trabalho de Andressa Butture Kniess, Naiza Comel e Francisco Paulo Jamil Marques, que se centram em duas agências noticiosas no Brasil. O artigo “Checagem de Fatos e Autoridade Jornalística no Brasil: Uma Análise do Fato ou Fake e do Estadão Verifica” demonstra como o facto de a produção da verificação ser, muitas vezes, autorreferencial pode obstaculizar a transparência, porque ao apoiar-se em produção jornalística anterior não-transparente, os artigos de verificação acabam por perpetuar estratégias de curadoria de informação. Assim, explicam os autores, muitas informações utilizadas nos artigos de verificação resultam de filtros editoriais anteriores, nem sempre claros para o público.
Este volume temático encerra com duas contribuições que vão a jusante da produção noticiosa, olhando para as instituições que são as fontes de informação usadas pelos jornalistas, considerando que o papel dos média na promoção da transparência na esfera pública e em sociedades democráticas resulta de interações anteriores, também elas potenciais alvos de análise. O trabalho de Daniel Reis Silva e Fernanda Shelda de Andrade Melo analisa práticas de autovisibilidade de instituições da sociedade civil dedicadas especificamente a promover a transparência na esfera pública e que têm grande impacto nos média noticiosos. O artigo “A Dupla Transparência nas Apresentações de Si de Iniciativas Brasileiras de Vigilância Civil Sobre Transparência Pública” assinala várias lacunas na própria transparência destas instituições, argumentando que estas iniciativas de monitorização, que têm um papel de vigilância importante para a lógica democrática, falham em várias dimensões no cumprimento dos propósitos exigidos às instituições públicas.
Finalmente, Marcia Michie Minakawa e Paulo Frazão focam-se no papel ativo que a imprensa teve na promoção e mediação do debate sobre a vacinação contra o HPV (infeção pelo vírus do papilomavírus humano) no Brasil. Os autores avaliam a transparência dos “viés” discursivos no que diz respeito às fontes utilizadas pelos jornalistas em peças publicadas entre 2014 e 2018 sobre a vacinação contra o HPV a partir da leitura dos discursos favoráveis e desfavoráveis à vacinação. No artigo “A Introdução da Vacina do HPV no Brasil, a Mídia Impressa e a Desinformação”, os autores debruçam-se sobre a importância do peso destas fontes na formação da opinião pública, com impacto nas decisões pessoais e de saúde individual, ao mesmo tempo que fazem a ponte com a transparência das políticas públicas em prol da saúde pública.
Este conjunto de artigos, esperamos, proporcionará à comunidade científica uma noção atualizada a respeito dos diversos debates a ocorrer em torno da questão da transparência nos e dos média. Após anos de promoção de políticas públicas para transparência, é importante compreender os desdobramentos na realidade quotidiana da comunicação. Só assim será possível avaliar os acertos e erros das medidas adotadas até aqui e orientar os caminhos seguintes.