1. Introdução
As questões relacionadas com a transparência nos média estão cada vez mais presentes num ecossistema povoado por múltiplas formas de transmissão de informação para os cidadãos. A adoção de práticas que conduzam à promoção da transparência dos meios jornalísticos relativamente à propriedade, financiamento e opções editoriais ajuda os públicos a perceber os mecanismos de recolha, tratamento e difusão de informação e, nessa medida, representa uma forma eficaz de transmissão de confiança acerca daquilo que se está a consumir. A transparência dos meios de comunicação jornalísticos, em tais níveis, é considerada importante para o bem-estar das democracias na medida em que encoraja a abertura e reforça a confiança do público no jornalismo (Meier & Trappel, 2022).
A publicitação dos mecanismos e dos princípios editoriais dos meios jornalísticos, bem como a sua propriedade e financiamento, possibilita, assim, aos públicos entender o que está por trás da informação que consomem e é, nesta medida, um interessante mecanismo de promoção da cidadania e do debate sobre o jornalismo. São vários os contributos teóricos que o conceito de “transparência” nos média tem recebido nos últimos anos e que nos remetem para várias dimensões, pois inclui quem decide, que decisões são tomadas e o que esteve na origem do processo de decisão (Meier, 2009).
Para além da relevância da promoção da transparência em outras áreas da sociedade, o campo jornalístico é particularmente sensível na medida em que a sua prática contribui para o fortalecimento das democracias (Meier & Trappel, 2022). Ou seja, a promoção da transparência dos média noticiosos, vista como fundamental para dar a conhecer quem os detém e a forma como o jornalismo é financiado, é claramente associada à qualidade do jornalismo e, por essa via, à qualidade da própria democracia (Kovach & Rosenstiel, 2001). A promoção da transparência no jornalismo contribui para o melhorar e fortalecer a sua relação com as audiências (Karlsson, 2020), pois clarifica as regras existentes no mercado dos média (Cádima, 2019). Boas práticas de promoção da transparência podem, por isso, restaurar o grau de confiança e de credibilidade no jornalismo, já que clarificam os efeitos da concentração e do pluralismo dos média (Baptista, 2022).
A nível europeu, a Comissão Europeia (2022) adotou um ato legislativo sobre a liberdade dos meios de comunicação social que se baseia num “conjunto de regras para proteger o pluralismo e a independência dos meios de comunicação social na UE [União Europeia]” (para. 3). Enfatiza-se, deste modo, a importância da transparência da propriedade dos meios de comunicação social. Relativamente a Portugal, a promoção da transparência dos média está regulada através da Lei n.º 78/2015 (2015), de 29 de julho, que, por sua vez, é regulamentada pelo Regulamento n.º 835/2020 (2020), de 2 de outubro, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que tipifica a transparência dos média em três pilares fundamentais: titularidade, gestão e meios de financiamento. Significa que todos os meios de comunicação social devem “comunicar à ERC a respetiva relação dos titulares das participações sociais, a composição dos órgãos sociais e a identificação do responsável pela orientação editorial e supervisão dos conteúdos” (Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 2021, p. 303). Este enquadramento legal das matérias relacionadas com a transparência faz de “Portugal um dos países no contexto europeu mais desenvolvidos nestas questões” (Figueira & Costa e Silva, 2023, p. 7).
O novo ecossistema digital coloca novos desafios ao jornalismo e isso tem também implicações ao nível da promoção da transparência. Para Craig Silverman (2014), o ambiente digital fornece aos jornalistas novas formas de promoção da transparência, dando a possibilidade de atualização e adaptação de práticas antigas. É neste contexto que os novos modelos de jornalismo, definidos como independentes, alternativos e empreendedores, que se propõem a oferecer produtos jornalísticos, modelos de negócio e modos de relação com as audiências distintos dos projetos jornalísticos tradicionais, encontram nas questões da promoção da transparência uma estratégia de afirmação pela diferença no mercado das notícias e, como tal, essencial para a sua sobrevivência.
No presente artigo, procuramos caracterizar as práticas adotadas por seis projetos portugueses de jornalismo empreendedor, independente e alternativo em relação à promoção da transparência da sua propriedade, financiamento e opções editoriais.
2. Quadro Teórico
A combinação entre a crise dos modelos de financiamento do jornalismo e as potencialidades oferecidas pela evolução tecnológica, em particular pela internet, motivou o aparecimento de projetos de jornalismo autodenominados de “independentes”, “alternativos” ou “empreendedores”.
A questão concetual não é menor quando tentamos caracterizar este tipo de projetos jornalísticos emergentes, no caso português, mas já com tradição em muitos países europeus e norte-americanos. Olhamos de seguida para os principais argumentos utilizados para classificar estas iniciativas editoriais.
Assim, de acordo com a perspetiva de que falamos em jornalismo independente, assume-se o pressuposto de que estes projetos se apresentam com modelos de financiamento distintos do jornalismo tradicional, que são ancorados nas receitas publicitárias (Silveira & Ramos, 2022). A ideia de independência, sublinhada por estes projetos jornalísticos, vai ao encontro daquilo que é a sua principal característica e que tem a ver com o facto de não dependerem de receitas publicitárias e de não serem propriedade de grupos económicos ou de consórcios de média (Bruno & Nielsen, 2012; Vos & Singer, 2016). Efetivamente, os projetos de jornalismo autodenominados “independentes” emergem da iniciativa de pequenos grupos de jornalistas que se propõem a oferecer um produto jornalístico livre de pressões, não apenas do ponto de vista político, mas sobretudo económicas e financeiras. Por esse motivo, encontramos vários destes projetos jornalísticos de base nativa digital e que se assumem como livres do financiamento de empresas, seja pela via da propriedade, seja pela publicidade (Bonixe, 2022).
Deste ponto de vista, estes projetos jornalísticos garantem essa independência ao nível do trabalho jornalístico que produzem, assumindo essa liberdade para oferecer produtos de jornalismo baseados na investigação de temas, supostamente, livres de pressões externas. Quanto ao jornalismo alternativo, esse é, muitas vezes, associado à abertura dos média ao público em geral, com pouca ou nenhuma formação jornalística, que constrói a realidade a partir da sua posição de cidadão e na qualidade de membro de uma comunidade (Atton, 2003; Forde, 2009; Sandoval & Fuchs, 2010). Embora estas práticas não estejam arredadas dos projetos de jornalismo que aqui nos interessa estudar, o objetivo passa, sobretudo, por olhar para a prática jornalística alternativa numa outra perspetiva, nomeadamente aquela que segue uma lógica que se traduz na disponibilização de trabalhos jornalísticos que abordam questões sub-representadas pelos média tradicionais. Esse tratamento jornalístico, praticado por jornalistas profissionais, traduz-se na apresentação de temáticas como “a agenda de pessoas com deficiência, de moradores de rua, da comunidade LGBTQI+, das minorias étnicas e das mulheres” (Teixeira & Jorge, 2021, p. 185) e na construção da realidade mediática a partir de fontes de informação, também elas sub-representadas nos meios de comunicação jornalísticos tradicionais (Bonixe, 2022).
Vários autores têm preferido, no entanto, classificar este tipo de projetos jornalísticos como jornalismo empreendedor (Brouwers, 2017; Carbasse et al., 2022). Seguindo essa linha de pensamento, falamos de projetos que adotam práticas e modelos que configuram formas inovadoras de gestão, produção, divulgação e organização (Kauhanen & Noppari, 2007; Vos & Singer, 2016). Trata-se, efetivamente, de projetos jornalísticos criados a partir da e na internet e que, por isso, são nativos digitais, já que a esmagadora maioria não tem uma versão física. A configuração enquanto produtos jornalísticos empreendedores sugere a adoção de ferramentas digitais, plataformas online e novos formatos disponibilizados por um novo contexto digital. Para além disso, adotam práticas diferenciadoras de relação com as audiências, disponibilizando newsletters, potenciando o uso das redes sociais e abrindo-se à comunidade leitora, seja através da sua participação (contribuindo para a sugestão de temas), seja através da contribuição financeira, aproveitando as tecnologias digitais para “terem sucesso onde os grandes meios de comunicação falharam” (Cohen, 2015, p. 513).
As matérias relacionadas com a propriedade e o financiamento são das mais relevantes quando abordamos estes projetos jornalísticos, pois constituem a base para a sua afirmação empreendedora, independente e alternativa. Ou seja, é na adoção de modelos de financiamento distintos do jornalismo tradicional que estes projetos procuram resolver questões relacionadas com a sua independência e o seu cariz alternativo, adotando práticas pioneiras ao nível dos modelos de negócio baseados, em especial, na internet (Bruno & Nielsen, 2012).
Ao privilegiarem modelos de financiamento assentes (a) no crowdfunding, segundo o qual os leitores são convidados a participar ativamente no financiamento do projeto ou em trabalhos jornalísticos específicos, (b) em fundos para a liberdade de imprensa, e (c) na subscrição de produtos e trabalhos jornalísticos, estes projetos assumem garantir a liberdade, independência e espaço de manobra para a produção de trabalhos jornalísticos livres de pressões externas, venham elas do campo político ou económico.
Este modelo de financiamento gera, no entanto, alguns problemas ao nível da sua sustentabilidade, já que acarreta fortes riscos a médio e a curto prazo, “pois os novos modelos têm ainda de se provar sustentáveis” (Vos & Singer, 2016, p. 146). De facto, os projetos de jornalismo empreendedor, independente e alternativo, voluntariamente afastados de grupos económicos com capacidade financeira para intervir e garantir esse financiamento, têm sobre eles uma pressão e veem-se obrigados, frequentemente, a seduzir as audiências no sentido de captar os seus contributos financeiros, bem como a apresentar candidaturas a fundos supranacionais de financiamento do jornalismo. Referem Silveira e Ramos (2022) que se percebe “que, com o desenvolvimento tecnológico, o jornalismo foi capaz de transformar seus formatos narrativos, tornar-se ubíquo, mas ainda não conseguiu encontrar maneiras mais atuais de obter receita que possam torná-lo plenamente sustentável” (p. 310). A este propósito, refira-se a título de exemplo a Divergente, um dos projetos portugueses que analisamos neste artigo, e que anunciou no início de 2024 que “pela primeira vez, estamos a começar um ano sem saber se, daqui a seis meses, conseguiremos pagar os salários dos jornalistas que fazem a DIVERGENTE acontecer” (Pereira, 2024, para. 7).
O quadro concetual no qual podemos incluir estes projetos é, por isso, alargado, mas, ainda assim, percebemos pela leitura disponível, que falamos de projetos jornalísticos que adotam modelos de financiamento distintos da publicidade que é comum no jornalismo tradicional, que não são propriedade de empresas ou grupos de comunicação social, que adotam modelos e formatos jornalísticos inovadores e baseados na internet que, no fundo, lhes dá vida, e que, por essa via, se afirmam como projetos que abordam a realidade sob o ponto de vista das temáticas e vozes alternativas.
Renaud Carbasse et al. (2022) identificam alterações em diferentes domínios como resultado do aparecimento de projetos de jornalismo empreendedor, nomeadamente (a) a nível económico, através da redução das barreiras à entrada no mercado dos média, emergência de atores nativos da web e de novos canais de distribuição de informação, questionamento dos modelos históricos de financiamento e distribuição dos produtos jornalísticos e transferência do monopólio do acesso às receitas publicitárias para novos atores; (b) a nível tecnológico, com a disponibilização de conteúdos gerados pelos utilizadores, maior diversidade de locais de difusão e consumo de notícias, papel crescente das plataformas digitais na captação de dados, audiências e receitas; (c) a nível social, mediante a transformação das relações de trabalho dentro e fora da indústria, aumento da quota-parte do trabalho autónomo, diversificação das formas de entrada no mercado de trabalho jornalístico; (d) no plano regulatório, que passa pela acentuação da concentração da propriedade dos média e das estratégias de convergência, ajudada por condições de funcionamento mais flexíveis para as indústrias da cultura e da comunicação; (e) no plano cultural, através de novos formatos e estratégias utilizadas para contar histórias e da redefinição da relação com os leitores; e (f) ao nível ideológico, prestando maior atenção ao empreendedorismo individual no seio das indústrias criativas, redefinição das trajetórias profissionais. Os autores concluem que estas mudanças ajudam a trazer novos intervenientes e a redefinir a paisagem mediática, sugerindo novas práticas jornalísticas, estruturas organizacionais e modelos de produção, distribuição e financiamento do jornalismo.
É neste contexto que a relação com as audiências é assumida como fundamental para a credibilização do trabalho jornalístico que é produzido. Ou seja, estes projetos não só demonstram que se afirmam perante os seus leitores como modelos independentes e alternativos, como fazem questão de tornar essas opções visíveis e transparentes para quem os segue e lê. O estudo de Rachel Moran (2021) coloca o acento tónico nesta relação do jornalismo com as audiências, sublinhando a importância de integrar os leitores no próprio processo de produção informativa. A autora parte do pressuposto de que essa prática vai no sentido da promoção da transparência sobre os métodos de produção de notícias e que isso representa um passo importante na construção de uma relação de confiança entre os leitores e o jornalismo.
Deste modo, a promoção da transparência é uma parte importante deste tipo de projetos jornalísticos, assumindo-se como uma estratégia de afirmação perante as audiências na medida em que dependem delas para a sua sustentabilidade. As práticas e os modelos que adotam seguem, por esse motivo, uma lógica de disponibilização de um conjunto de informações que permite às audiências conhecer a propriedade, o modelo de financiamento e algumas das opções editoriais que são tomadas pelos jornalistas.
Enquanto projetos que se autorrepresentam como “alternativos” e “independentes”, procuram oferecer aos públicos um jornalismo diferente daquele que é disponibilizado pelos média tradicionais. Vivem da sua credibilização aos olhos dos leitores e, nesse sentido, as questões da transparência emergem como prioritárias, pois sinalizam as opções e identificam possíveis pontos de conflito entre práticas editoriais e modelos de gestão e de propriedade.
O estudo de Curry e Stroud (2021) procura estabelecer uma relação entre a adoção de elementos de transparência e a credibilidade e o envolvimento no jornalismo em sites de notícias. Os resultados sugerem que o aumento da transparência num site jornalístico pode afetar quer a credibilidade quer o envolvimento dos utilizadores nas notícias. Para estes autores, existe uma espécie de reação em cadeia, uma vez que a adoção de práticas de transparência sugere o aumento de credibilidade e esta, por sua vez, parece corresponder a um aumento do envolvimento dos utilizadores nas notícias num contexto de jornalismo digital. Embora estes resultados pareçam ir no sentido de uma relação entre a adoção de práticas de transparência e a credibilização das notícias, os autores alertam para a necessidade de realizar outros estudos com o mesmo objetivo, uma vez que poucas pessoas clicaram nos elementos de transparência interativa. Ou seja, “esta baixa taxa de cliques pode sugerir às redações que não precisam de dedicar muitos recursos à criação de elementos de transparência aprofundados, uma vez que relativamente poucas pessoas poderão clicar neles” (Curry & Stroud, 2021, p. 912). A partir desta constatação, os autores levantam a hipótese de que “para ter um efeito positivo na credibilidade, a transparência só precisa de ser uma fachada” (p. 912).
O pressuposto no qual estes projetos se baseiam é o de que os cidadãos têm de ter acesso a informações sobre a propriedade, financiamento e princípios editoriais, uma vez que isso define a “credibilidade sobre aquilo que é reportado e escrito” (Lewis, 2010). No mesmo sentido, Vos e Singer (2016) sublinham que a transparência é vista como uma salvaguarda, já que tão importante como ter ética, é deixar o público saber que se é ético. O projeto europeu Oasis (2023) estudou os média nativos digitais independentes na Europa e concluiu, em relação à transparência, que quanto mais os média revelam sê-lo, mais são respeitados por quem contribui, que nestes casos é o próprio público. “Descobrimos que as organizações mais comprometidas em construir políticas de transparência, especialmente quando essas políticas são publicitadas no seu site, há mais probabilidades de receberem subsídios e donativos individuais” (Geels et al., 2023, p. 15).
No mesmo sentido, o estudo de Porlezza e Splendore (2016) explora a circunstância de o jornalismo empreendedor, independente e alternativo necessitar constantemente de financiamento através de crowdfunding e que, por esse motivo, as questões relacionadas com a responsabilidade e a transparência são muito importantes para potenciais investidores nos projetos, pois é preciso garantir que não existem conflitos de interesse entre quem financia e os conteúdos que são publicados, sabendo-se que, neste modelo de negócio, o investidor é acima de tudo um leitor.
3. Metodologia
O objetivo do presente estudo é identificar e caracterizar as práticas adotadas pelos projetos de jornalismo empreendedor, independente e alternativo em Portugal relativamente à promoção da transparência ao nível do financiamento, propriedade e opções editoriais.
Baseados na literatura exposta anteriormente, partimos do pressuposto de que a transparência dos meios de comunicação relativamente a estes aspetos contribui para aumentar a confiabilidade das audiências face ao jornalismo, representando, desse ponto de vista, um aumento da qualidade do jornalismo que é produzido (Baptista, 2022; Karlsson, 2020; Meier & Trappel, 2022).
Tal como referem Figueira e Costa e Silva (2023), a promoção da transparência ajuda a criar
um “jornalismo mais transparente” - aquele que explica a construção da agenda e a relação com as fontes de informação, assim como aquele que torna visível como se financia - é uma instituição que estabelece uma relação de confiança com o público. (p. 4)
Nesse sentido, procedemos a uma análise de conteúdo dos sites de seis projetos jornalísticos enquadráveis na literatura como jornalismo empreendedor, independente e alternativo, no sentido em que são inovadores quanto à disponibilização de trabalhos jornalísticos para as suas audiências, adotam modelos de financiamento e de propriedade distintos dos média tradicionais - nomeadamente quanto à recusa de publicidade -, e são nativos digitais, não possuindo versões físicas.
Sob este ponto de vista, analisamos os sites dos projetos Fumaça, Divergente, Setenta e Quatro, Comunidade Cultura e Arte, Página UM e Coimbra Coolectiva, com o objetivo de identificar as práticas de promoção da transparência, através da disponibilização de informação que transmita aos leitores conhecimento sobre o modo de financiamento, a propriedade e os princípios que estão por trás das opções editoriais. A escolha destes projetos tem por base uma pesquisa exploratória, já que em Portugal não existe uma lista oficial que identifique os projetos jornalísticos que se enquadram num registo de jornalismo alternativo/independente/empreendedor. Nesse sentido, a nossa opção recaiu sobre os projetos que claramente têm características que os identificam como propostas desse tipo de jornalismo, tal como definido no quadro teórico deste artigo. Ou seja, todos os projetos analisados foram criados e têm existência unicamente na internet, não pertencem a grupos empresariais e privilegiam como modelo de financiamento outras formas para além da publicidade. Para o estudo em causa, foi relevante optar por projetos que disponibilizam nos seus sites informação sobre práticas de transparência. Importa, no entanto, esclarecer que o projeto Setenta e Quatro terminou no dia 28 de março de 2024, mas optámos por mantê-lo no estudo por ter adotado práticas que consideramos relevantes em matéria de disponibilização de informação sobre a transparência.
Trata-se de mecanismos adotados voluntariamente pelos projetos que analisamos, para além da informação que, sob o ponto de vista legal, estes, e qualquer órgão de comunicação social jornalístico em Portugal, estão obrigados a disponibilizar, nomeadamente através do que está estipulado na Lei n.º 78/2015 (2015). Ao disponibilizarem voluntariamente informações deste teor, procuramos perceber em que medida estes projetos jornalísticos utilizam a promoção da transparência como forma de credibilização e distinção face ao jornalismo tradicional.
4. Apresentação e Discussão de Resultados
Partindo da análise dos sites dos projetos jornalísticos Fumaça, Divergente, Setenta e Quatro, Comunidade Cultura e Arte, Página UM e Coimbra Coolectiva, verificámos, numa primeira fase, que existem diferentes modalidades no que diz respeito à disponibilização da informação sobre transparência nos seus sites (Tabela 1).
Conforme se demonstra na Tabela 1, os projetos Fumaça, Divergente e Página UM facultam informação sobre esta matéria através de uma ligação própria, o que ajuda o leitor na consulta, uma vez que torna mais fácil o seu acesso. Nos restantes projetos, ainda que essa informação esteja disponibilizada no site, a não existência de uma ligação dedicada não permite um acesso tão direto e intuitivo. O mais comum, nos restantes sites analisados, é a pesquisa através da ligação “Sobre Nós”, onde encontramos o “Estatuto Editorial”, textos sobre a política editorial ou sobre os modos de financiamento.
4.1. Transparência do Financiamento e Propriedade
Cinco dos seis projetos que constituem o corpus da nossa análise apresentam de modo claro as suas opções relativamente à política de transparência, disponibilizando no site informações precisas sobre o financiamento do projeto, quem o financia e em que modalidades (Tabela 2). Em alguns casos, essa informação é ainda mais detalhada, com a disponibilização de ficheiros Excel, gráficos e valores atribuídos por cada uma das instituições financiadoras.
No caso do Página UM, encontramos uma primeira informação no espaço dedicado aos donativos (https://lp.paginaum.pt/donativos/):
o PÁGINA UM é um projecto jornalístico independente, fundado pelo jornalista Pedro Almeida Vieira que, apesar de gerido por uma empresa (Página Um, Lda., da qual detém a maioria do capital), optou por um modelo de completa independência, pelo que não tem publicidades nem parcerias comerciais, desenvolvendo assim a sua actividade com base exclusivamente no apoio e donativos regulares dos seus leitores. Não recebe assim apoio de quaisquer empresas nem de entidades estatais ou da Administração Local.
De modo mais detalhado, encontramos informações sobre a política de transparência do Página UM essencialmente em três separadores no site: “Política de Correções”, “Código de Princípios” e “Declaração de Transparência”. Neste ponto do artigo, centraremos a nossa análise nos dois últimos, reservando a análise à “Política de Correções” para o ponto seguinte deste artigo.
Assim, no separador “Código de Princípios” encontramos informação sobre a propriedade do projeto, enfatizando o cunho pessoal do jornalista fundador e seu diretor, Pedro Almeida Vieira, referindo tratar-se do “sócio e gerente maioritário e último beneficiário do PÁGINA UM”. Informa que depois de abril de 2022, o projeto assumiu um novo “modelo mais empresarial ( … ) criando-se a empresa Página Um, Lda”. Escrita na primeira pessoa, a informação disponível prossegue referindo o seguinte: “em nenhuma circunstância passarei a ter uma posição minoritária. A minha posição dominante no PÁGINA UM é um bem inalienável”. Ainda no mesmo separador, encontramos informações sobre a política de financiamento, nomeadamente com referências ao facto de não receber donativos de empresas, não ter publicidade e não aceitar “qualquer parceria comercial ou não comercial com empresas, associações ou outros entidades similares nem com entidades da Administração directa e indirecta do Estado, entidades públicas empresariais, Administração Regional e Local e associações públicas”. Ou seja, o Página UM é financiado exclusivamente com recurso a “donativos e subscrições dos leitores, bem como, eventualmente, receitas de merchandising”.
O Página UM disponibiliza ainda uma “Declaração de Transparência”, que pode ser consultada no separador do site com a mesma designação (https://paginaum.pt/codigo-de-transparencia/). Nela, podemos encontrar informações mais aprofundadas sobre o jornalista fundador e diretor do projeto, Pedro Almeida Vieira. Trata-se de informações sobre o seu percurso académico e profissional no jornalismo e enquanto autor de livros. No mesmo espaço, encontramos também informações sobre o posicionamento ideológico do jornalista, referindo que se assume “do ponto de vista ideológico, como uma pessoa de esquerda”.
O projeto Coimbra Coolectiva apresenta também no seu site um conjunto de informações detalhadas sobre o financiamento deste órgão local de informação. Numa primeira fase, é referido que o projeto não tem publicidade nem “nenhum apoio dá direito a interferências nas decisões editoriais”. No mesmo local do site, ficamos a saber que existe um
plano de sustentabilidade financeira que foi elaborado em conjunto com a Stone Soup, consultora com muita experiência em inovação social e que é a ferramenta fundamental que nos permite planear, gerir e levar a bom porto um conjunto de acções de comunicação e angariação de fundos, para o qual também contamos com o precioso apoio e experiência de Maureen Carreira.
No separador “Modelo de Governação”, encontramos um texto explicativo sobre o modo como o Coimbra Coolectiva foi criado e a relação com a associação que o suporta, disponibilizando ainda uma ligação para os estatutos da associação. É neste separador que se encontram várias referências ao financiamento, com ligações para outros documentos, como os relatórios de contas. Acedendo a uma dessas ligações, encontramos um texto, com data de 2022, assinado por uma jornalista do projeto e nele ficamos a saber as contas apresentadas referentes ao terceiro trimestre e onde é explicado que uma política de transparência passa “por mostrar, às claras, como gastamos o dinheiro, que decisões tomamos e quem nos financia”. No site são ainda disponibilizadas informações sobre a atividade orçamental do Coimbra Coolectiva de acordo com várias categorias: recursos humanos, serviços profissionais, infraestruturas e tecnologia, despesas bancárias, seguros e outros custos e despesas.
No Fumaça acredita-se que a transparência radical “é um dever das redações para com quem as ouve, vê e lê. Se queremos construir algo com as pessoas, financiado por elas, cremos que é necessário deixar claro de onde vem e para onde vai o nosso dinheiro”, lê-se no site do projeto (https://fumaca.pt/transparencia/). Na mesma linha de atuação, o Fumaça disponibiliza “os contratos que celebramos para financiar a redação”, referindo que tal prática é “condição essencial para os assinarmos, para além de defesas contra a interferência editorial”. Para os responsáveis pelo projeto, ser transparente “implica comunicarmos de forma consistente e clara os nossos objetivos e expectativas editoriais, de gestão financeira, de angariação de fundos e de marketing”. No site do projeto, é possível encontrar com detalhe o valor recebido, por ano, de cada instituição financiadora, com informação sobre o trabalho jornalístico que esse valor financiou, bem como uma ligação para o contrato que suporta esse financiamento. Também podemos encontrar a lista de financiadores individuais, uma prática que não encontrámos nos outros projetos que aqui estudamos. O Fumaça, para além da informação que disponibiliza no seu site, faz com alguma regularidade publicações nas suas redes sociais nas quais discrimina informações relativas ao seu financiamento (Figura 1), potenciando assim a internet enquanto plataforma que ajuda a criar práticas de promoção da transparência (Meier, 2009; Silverman, 2014).
Fonte. Retirado de Esta semana descobrimos o quão errados estávamos quando às nossas previsões para 2022 e queremos explicar-te porquê [Post], por Fumaça [@fumacapt], 2022, Facebook. (https://www.facebook.com/fumacapt/posts/pfbid02nDnSsqEEnvTFd3MPuhzdFqdF447SEjkPkQB8FSKarg4RKWypAmUH8tPBWMZjEGmxl)
Relativamente à Divergente, no site do projeto defende-se que “a total transparência dos média é fundamental para restaurar a confiança no jornalismo” e, nesse sentido, encontramos informações sobre a propriedade do projeto e a política seguida relativamente ao financiamento, nomeadamente quanto à não aceitação de publicidade ou apoios “que envolvam contrapartidas”, sublinhando que “a gestão financeira é totalmente independente”.
A Divergente disponibiliza também no seu site as fontes financiadoras do projeto, nomeadamente através de “editais e fundos de apoio a projectos de jornalismo independente e de interesse público”, “bolsas de investigação jornalística”, “organizações não governamentais”, parcerias com instituições de ensino superior e contribuições dos leitores. Em cada um destes itens, existe uma ligação para a entidade financiadora.
Tal como o Fumaça, a Divergente complementa, nas suas redes sociais, a informação sobre o financiamento do projeto, disponibilizando com algum detalhe os valores recebidos e o destino que lhes foi dado (Figura 2).
Fonte. Retirado de Queremos partilhar contigo o nosso orçamento de 2022 e 2023 [Post], por Divergente [@Divergente.pt1], 2022, Facebook. (https://www.facebook.com/Divergente.pt1/posts/pfbid0rHngb27NRx4bDjdis6xYnp6Y9BY9dfyKprx1TA1X4Q4YXyNCCaM9mv2Df4314tiEl)
Nos restantes projetos que aqui analisamos - Setenta e Quatro e Comunidade Cultura e Arte -, as informações disponíveis em relação à transparência do financiamento estão menos presentes. No caso do Setenta e Quatro, encontramos referências gerais no espaço dedicado à “Política Editorial”, referindo-se que é “financiado por doações individuais, bolsas de investigação e publicidade, garantindo assim a independência do Setenta e Quatro”. É, no entanto, de destacar o pormenor da informação fornecida relativamente a uma ação de crowdfunding levada a cabo pelo site para a cobertura da COP26, disponibilizando informações sobre a totalidade do valor recebido (ver Figura 3).
Fonte. Retirado de Ajuda o Setenta e Quatro a ir à COP26, por Setenta e Quatro, 2021, GoFundMe. (https://www.gofundme.com/f/wc9m7-ajuda-o-setenta-a-ir-cop26)
A Comunidade Cultura e Arte faz referência ao facto de ser um projeto “independente de organizações partidárias, económicas e religiosas”, sendo “financiada por doações individuais e publicidade”.
4.2. A Transparência Editorial
As opções editoriais e as escolhas dos jornalistas são parte importante do processo de transparência na medida em que possibilitam aos leitores compreender o modo como o trabalho jornalístico é realizado. O conhecimento dessas técnicas, rotinas e estratégias ajuda ao esclarecimento e, por essa via, à compreensão de determinadas opções editoriais, minimizando, deste modo, a existência de críticas pouco fundamentadas sobre o trabalho dos jornalistas, que, em muitas situações, apenas contribuem para descredibilizar esse mesmo trabalho.
Os projetos jornalísticos que analisamos disponibilizam um conjunto de informações nos seus sites que permitem aos leitores compreender a política editorial geral da publicação. A disponibilização do “Estatuto Editorial” é a mais frequente e todos os exemplos que analisamos o fazem com destaque, como podemos visualizar na Tabela 3.
Efetivamente, é o “Estatuto Editorial” que concentra a maior parte das informações gerais sobre matéria editorial dos projetos jornalísticos analisados. Trata-se de um documento muito importante que, para além da obrigação legal, transmite ao leitor informações sobre os objetivos do projeto jornalístico que está a consultar e que, sob essa perspetiva, pode ser considerado um mecanismo de responsabilidade e transparência (Miranda & Camponez, 2022).
Nos estatutos editoriais, encontramos referências do ponto de vista ético e deontológico, bem como à orientação e aos objetivos do projeto editorial, assim como um compromisso com os seus leitores no quadro da responsabilidade social que cabe aos meios de comunicação social jornalísticos.
O estudo dos seis estatutos editoriais dos projetos que aqui analisamos não revelou diferenças muito significativas quanto ao seu conteúdo. De um modo geral, todos fazem referência a projetos independentes de poderes políticos e económicos, sublinham a importância de um jornalismo livre e de investigação, a não discriminação em função da raça, cor e religião.
Apesar da semelhança dos principais aspetos contidos nos estatutos editoriais analisados, que vão ao encontro, afinal, dos princípios basilares do jornalismo (independência, rigor, igualdade no tratamento, etc.), destacamos, no entanto, algumas especificidades. Por exemplo, o Fumaça assume que “não existe jornalismo neutro” e que é “livre de tomar posições políticas coletivas em matérias consensuais numa redação que se quer heterogénea e discordante”. Verificamos também que na Divergente o foco está muito direcionado para o jornalismo narrativo com o objetivo de “revelar silêncios”, enquanto a Comunidade Cultura e Arte “procura contribuir para a democratização do acesso à cultura e à informação”.
Mas, se o “Estatuto Editorial” dos projetos jornalísticos analisados constitui uma das principais fontes de informação sobre as quais assentam as opções editoriais, a análise dos sites permitiu-nos perceber que existem outros espaços que ajudam a promover a transparência em matéria editorial e que analisamos de seguida.
A Divergente é a única no contexto do nosso corpus de análise que disponibiliza informação mais aprofundada sobre o procedimento de construção das peças jornalísticas. Através do seu site (https://divergente.pt/sobre/#quemsomos), percebemos quais os procedimentos que os jornalistas adotam com vista à recolha, seleção e publicação dos trabalhos jornalísticos, como podemos observar no seguinte excerto:
começamos por ouvir e ir ao encontro de quem está no centro dos assuntos que abordamos. Só depois mapeamos outras fontes e traçamos um rumo mais detalhado para a investigação. Queremos trazer um maior equilíbrio às vozes ouvidas nos média e reduzir a distância entre o trabalho do jornalista e as pessoas retratadas. Todos os nossos trabalhos são resultado de um longo e rigoroso processo de questionamento. Juntamos à mesma mesa jornalistas, designers, programadores, para encontrar os formatos e linguagens - seja texto, áudio ou imagem - que melhor traduzem as histórias que queremos contar. Recusamos abordagens bipolares que reduzem a realidade a leituras simplistas. É nas camadas intermédias que encontramos respostas. Através de histórias pessoais, ajudamos a compreender, estabelecemos ligações. Os resultados são narrativas multimédia visualmente fortes e, muitas vezes, não lineares. Levamos quem nos vê, lê e ouve a conhecer, de perto, outras realidades.
A relação com a audiência é um dos aspetos vincados por Craig Silverman (2014) na análise que faz à transparência dos meios de comunicação jornalísticos. Assim, os projetos de jornalismo empreendedor têm nessa mesma relação com os seus públicos uma das suas práticas inovadoras que os distingue de muitos média tradicionais. No corpus que analisámos, foi possível identificar algumas dessas práticas, como, por exemplo, o convite aos leitores para visitarem a redação e, assim, tomarem contacto direto com os jornalistas e obterem informações mais detalhadas sobre o processo editorial (Figura 4).
Fonte. Retirado de A DIVERGENTE é uma revista digital, mas os jornalistas que a fazem teimam em ser analógicos [Post], por Divergente [@Divergente.pt1], 2022, Facebook. (https://www.facebook.com/Divergente.pt1/posts/pfbid0Az2YYL22iTLPvTbvgUMapdCSqiH7WHETSELhFty6mLGKQVMK9sYj36gNdTe1uiACl)
O separador “Transparência” do Fumaça (https://fumaca.pt/transparencia/) é sobretudo destinado a explicar o que o projeto entende por “transparência radical” (como vimos no ponto anterior do presente artigo) e de como esse conceito se aplica ao financiamento. No entanto, dois desses pontos são dedicados a explicar o posicionamento editorial do Fumaça, fazendo referência à independência jornalística, à imparcialidade e assumindo as eventuais “falhas, fragilidades e conflitos de interesses” dos jornalistas do projeto. A dimensão deontológica é também evidenciada neste texto através da intenção de divulgar “os processos de reportagem, edição e verificação de factos”.
Não acreditamos no jornalismo neutro. Cada jornalista tem as suas experiências de vida, ideias sobre a sociedade, ideologias e preconceitos. A transparência na produção jornalística é a resposta à impossibilidade da imparcialidade. Jornalistas da nossa redação dizem ao que vêm, expondo as suas falhas, fragilidades e conflitos de interesses. Respeitando obrigações deontológicas, tentamos partilhar cada vez mais os nossos processos de reportagem, edição e verificação de factos, permitindo que se construa a confiança do público para ser possível compreender como recolhemos informação, como selecionamos fontes e quais os nossos critérios editoriais.
A transparência ao nível dos processos editoriais passa também pela disponibilização de informações de correção às suas peças, sinalizando para os leitores o que não correu tão bem como o esperado durante o trabalho de produção jornalística. Essa informação é disponibilizada pelo Fumaça nas suas redes sociais, como se pode observar na Figura 5.
Fonte. Retirado de Hoje, falamos-te sobre o nosso processo de verificação de factos e os 218 erros que encontrámos nos 13 episódios de Desassossego [Post], por Fumaça [@fumacapt], 2022, Facebook. (https://www.facebook.com/fumacapt/posts/pfbid0LDA4HQDhj74UvS3xNN7n4UBUWpyDTAHVUAaWEL3pK1gYr1zwofr4BzhMNHjwKrL8l)
As principais opções editoriais do Coimbra Coolectiva estão contidas em dois espaços disponibilizados no site: o “Estatuto Editorial” e um texto com o título “Jornalismo de Soluções”. Relativamente ao “Estatuto Editorial”, como afirmámos, assume genericamente a mesma linha de atuação se comparado com os outros projetos jornalísticos que analisamos.
Já o texto sobre jornalismo de soluções (Queiroz, 2022) assume-se como uma espécie de princípio basilar do projeto, cujos fundamentos são seguidos pelo Coimbra Coolectiva, que assume esta prática jornalística como forma de “resolver problemas localmente e tenta encontrar quem faz melhor noutros sítios, para trazer essas lições” (para. 4), assumindo que se trata de “uma forma de fazer jornalismo que considera que dar as notícias é apenas fazer metade do trabalho e que apelar à acção e mobilizar quem lê pode dar muitos e bons frutos” (para. 5)
No Setenta e Quatro, as informações sobre transparência editorial estão contidas, para além do “Estatuto Editorial”, num outro espaço intitulado “Política Editorial”, onde encontramos referências a questões editoriais gerais e a matérias do foro ético e deontológico, para além da enunciação do princípio basilar assumido pelo projeto, que vê o jornalismo de investigação como “um pilar fundamental para a realização de uma sociedade democrática. Pretendemos, assim, fortalecer a democracia e trazer a quem nos lê e ao espaço público temas até agora pouco explorados”. De acordo com a política editorial do Setenta e Quatro, rejeitam-se “discursos e comportamentos baseados no ódio ou em qualquer forma de discriminação”, adotando um “jornalismo rigoroso e ético que apura, interpreta, correlaciona e analisa factos. Procuramos sempre o contraditório, não confundindo, no entanto, teorias com factos”.
Nos restantes projetos analisados, Página UM e Comunidade Cultura e Arte, as informações em matéria de transparência editorial estão sobretudo contidas no seu “Estatuto Editorial”, embora possamos encontrar algumas referências a uma política de correções no site do Página UM.
5. Conclusões
Enquanto mecanismo de credibilização do jornalismo, a promoção da transparência é vista como uma prática fundamental dos média para assegurar a confiança dos públicos no trabalho dos jornalistas. Sob este pressuposto, procurámos perceber que estratégias são utilizadas pelos projetos de jornalismo empreendedor, independente e alternativo existentes em Portugal para promover a transparência ao nível da propriedade, do financiamento e das opções editoriais.
A análise aos sites dos seis projetos jornalísticos permitiu-nos perceber a importância que a transparência assume para qualquer um deles, ainda que em níveis distintos e assumindo formas diferentes. A nossa análise revelou que os casos do Fumaça, do Página UM, da Divergente e do Coimbra Coolectiva apresentam informações detalhadas sobre a sua propriedade e financiamento, disponibilizando, através de ligações, documentos para estatutos das entidades que suportam os projetos, relatórios de contas e informações discriminadas sobre o modo como os valores recebidos são aplicados no projeto.
A transparência ao nível da propriedade e do financiamento assume para este tipo de projetos jornalísticos uma importância acrescida, porque faz parte da sua razão de existência e afirmação no mercado das notícias enquanto projetos distintos do jornalismo tradicional. No fundo, pretendem dizer que a sua existência só é justificada enquanto apresentarem modelos de propriedade e de financiamento distintos e é deles que advém a sua credibilidade e vantagem competitiva no mercado das notícias. Por esse motivo, a apresentação de informações que tornem os seus modelos de propriedade e de financiamento claros e inequívocos aos olhos das audiências é vista como uma estratégia da qual podem acabar por retirar dividendos ao nível das audiências e do próprio financiamento, que, em muitos casos, tem origem nos próprios leitores que assim se sentem mais confiantes para o fazer.
A promoção da transparência ao nível da propriedade e do financiamento é algo muito vincado neste tipo de projetos jornalísticos e isso é muito evidente através da publicitação de informações e documentos detalhados que transmitem às audiências informação que, por regra, não é disponibilizada pelos meios jornalísticos tradicionais, como os contratos com parceiros ou valores recebidos de contribuições individuais.
Do mesmo modo, a apresentação de informações que ajudem os leitores a compreender as opções editoriais destes projetos é também uma estratégia seguida, embora com menor incidência se comparada com as questões relacionadas com a propriedade e o financiamento. Os seis projetos, uma vez mais em níveis e formas distintas, apresentam os critérios gerais onde assentam as suas opções editoriais e isso permite aos leitores conhecerem o quadro genérico da produção jornalística. Vimos que a apresentação do “Estatuto Editorial” é comum a todos eles, sendo que alguns vão para além disso, explicando os processos de produção noticiosa e, esporadicamente, envolvendo os leitores nesse processo, promovendo visitas às redações ou solicitando ideias de trabalhos.
Tal como referem Silverman (2014) e Meier (2009), o novo ecossistema mediático dominado pela internet trouxe vários desafios para o jornalismo, mas trouxe também um leque de novas oportunidades para a adoção de novas práticas que promovam a transparência no jornalismo. Os projetos que analisámos vão ao encontro desse quadro ao utilizarem um conjunto de ferramentas e possibilidades que a internet possibilita, disponibilizando relatórios, mantendo constante para os leitores a informação sobre a política editorial ou clarificando o destino dos valores que recebem para determinado trabalho jornalístico, vincando, deste modo, a promoção da transparência como uma estratégia de afirmação no mercado das notícias.
O estudo realizado apresenta dados que consideramos relevantes para compreender como os novos modelos de projetos jornalísticos encaram as questões relacionados com a transparência. Entendemos que os dados apurados poderão, futuramente, servir para novos estudos que comparem as práticas adotadas nestes projetos de jornalismo com as práticas das empresas jornalísticas tradicionais, no sentido de encontrar eventuais semelhanças ou diferenças e avaliar os impactos que tais práticas têm na produção jornalística.