1. Introdução
As tecnologias da informação e da comunicação (TIC) desempenham um papel central na sociedade contemporânea, influenciando desde a economia até à cultura, passando pela educação e pelas interações sociais. A Declaração Europeia sobre Direitos e Princípios Digitais (European Commission, 2022) reforça que as tecnologias podem transformar a vida das pessoas, apresentando oportunidades capazes de aumentar a socialização, o acesso à saúde, à cultura e à educação. Porém, se, por um lado, as TIC oferecem muitos benefícios a quem as domina, por outro, evidenciam as desigualdades existentes na sociedade, podendo até acentuá-las, à medida que criam brechas digitais (Ragnedda, 2017). As brechas digitais podem ser classificadas ao nível do acesso, da utilização e da apropriação e são interseccionadas por fatores socioeconômicos como educação, gênero e classe, por exemplo.
Este trabalho centra-se no conceito de “brecha digital de gênero”, que pode ser definido como “a distância existente entre homens e mulheres em relação ao uso das tecnologias, que distingue entre o mero acesso e o uso e aproveitamento que se faz com esses recursos” (Pérez-Escoda et al., 2021, p. 506). O impacto da brecha digital de gênero é perceptível não apenas na economia e no acesso desigual às TIC, mas também na presença limitada das mulheres como produtoras destas tecnologias. Em Portugal, este cenário é agravado por questões históricas e culturais, como os estereótipos de gênero perpetuados durante décadas, que relegaram as mulheres a papéis sociais limitados e restritos ao cuidado e ao lar (Fonseca et al., 2023).
Diante da relevância das TIC para o desenvolvimento socioeconômico, as instituições de ativismo tecnológico que atuam na promoção da igualdade de gênero no setor em Portugal surgiram com estratégias alternativas ao que é proposto pelo Governo português, cujo foco está na qualificação técnica e em iniciativas direcionadas para aumentar a mão de obra qualificada, ignorando marcadores sociais existentes (Fonseca et al., 2023). Instituições como Portuguese Women in Tech, As Raparigas do Código, Geek Girls Portugal e Women in Tech Portugal emergem como plataformas digitais cujo objetivo é promover a igualdade de gênero nas TIC, através do empoderamento, do desenvolvimento de habilidades digitais em um espaço acessível e seguro e da desconstrução dos estereótipos de gênero nas várias etapas da vida.
Sendo a comunicação uma ferramenta poderosa que molda e reflete as dinâmicas sociais, incluindo as relações de poder e combate das desigualdades, a eficácia das instituições depende, em grande parte, da utilização de estratégias de comunicação que alcancem e incluam mulheres de diferentes realidades. Neste sentido, ao falarmos de comunicação interseccional, buscamos compreender de que forma as estratégias e práticas comunicacionais dessas instituições podem estar contribuindo (ou não) para a inclusão efetiva das mulheres, na sua diversidade. Consideramos importante identificar se a comunicação utilizada por estas instituições considera marcadores sociais e vias de opressão que se sobrepõem ao gênero, como, por exemplo, a raça e a idade, ao criarem suas publicações no Instagram, rede social digital em que atuam mais.
Assim, a promoção da igualdade de gênero nas TIC é uma tarefa multifacetada, que requer a articulação entre governo, sociedade civil e instituições de ativismo tecnológico e incorporar a interseccionalidade como um princípio orientador dessas ações é fundamental para garantir que as iniciativas de inclusão digital sejam eficazes e alcancem todas as mulheres. Este trabalho busca, assim, contribuir para o debate sobre a importância de se adotar uma comunicação interseccional no âmbito da promoção da igualdade de gênero nas TIC por instituições de ativismo tecnológico em Portugal.
2. Ciberfeminismo e o Acesso ao Espaço Público a Partir das Redes Sociais Digitais
A horizontalização da comunicação nas redes sociais digitais, impulsionada pelas TIC, revolucionou a maneira como interagimos. As ferramentas de “publicação, partilha e comunicação orientada a uma estrutura coletiva” (Amaral, 2012, p. 133) contribuíram para a construção de novos modelos de comunicação.
Recuero (2014) refere que estas ferramentas geram novos estímulos para os processos de conversação, estímulos que possibilitam “conversações coletivas, assíncronas ou síncronas, públicas e capazes de envolver uma grande quantidade de atores, que aqui chamamos conversação em rede” (p. 123). Para a autora, os novos modelos de conversação no espaço digital diferem dos demais, porque permitem que o discurso seja amplificado e modificado por diversos grupos sociais, em espaços diferentes e em momentos diferentes, sendo enriquecido colaborativamente e em novos contextos, criando, também, novas oportunidades de transformação social.
É neste sentido que Chadwick (2017) confere ao ciberespaço - nome atribuído ao ambiente digital onde ocorrem a partilha, a produção e a descentralização de conteúdos - a característica da hibridez, já que não é possível dissociar “ontologicamente” o online do offline (Abreu, 2017, p. 136). No ciberespaço, as antigas e as novas tecnologias se entrelaçam e se complementam, rompendo barreiras físicas, geográficas e culturais.
Segundo Babo (2018), o ciberespaço é um espaço de partilha que, graças à sua hibridez, mobiliza ações coletivas que podem impactar a esfera pública.
Os canais de comunicação hiperconectados pela convergência midiática fazem com que no ciberespaço a vida real se mescle com a vida online, o privado com o público (Santaella, 2004, 2010). No Poder da Identidade, Castells (1996/2018) apresenta a dinâmica de mobilização em rede e a junção de grupos conectados por valores comuns, que se materializam através das comunidades virtuais que ocupam novos locais sociais para a construção de realidades diversas.
O movimento feminista passa a utilizar o ciberespaço para potencializar seu poder de alcance, disseminar sua luta, conscientizar mulheres e chegar até locais que antes não conseguiam alcançar, surgindo assim o ciberfeminismo. Para Brandt e Kizer (2015), a internet tornou o ativismo ainda mais acessível e o ciberespaço virou um disseminador da justiça social, onde o modelo conversacional contribui com a sua popularização.
O ciberfeminismo foi um movimento “estético e político” que reformulou o debate feminista, trazendo para o centro das demandas as desigualdades de gênero na tecnologia e nas ciências (Martinez, 2019). O primeiro manifesto ciberfeminista foi escrito em 1991 pelas artistas australianas do grupo VNS Matrix (Timeto, 2019). Porém, foi a partir do Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway (1991), que identificamos as duas principais abordagens do movimento. A primeira questionava a hibridização entre as mulheres e a máquina e buscava desconstruir as assimetrias de gênero relacionadas com o corpo feminino. Já a segunda abordagem questionava os estereótipos de gênero no mercado tecnológico, que era dominado por homens, principalmente em cargos de poder.
Foi nos anos 2000, porém, com a popularização das tecnologias digitais para fins domésticos, que o ciberfeminismo passou a abordar pautas sociais e suas ações passaram a ter uma dinâmica reticular entre os pontos de contato realizados nas ruas e nas redes, evidenciando a necessidade de o movimento se readaptar (Boix & Miguel, 2013; Reis & Natansohn, 2021). Essa nova dimensão fez emergir demandas antes silenciadas dentro do próprio movimento feminista e elevou à esfera pública pautas como a luta das mulheres negras e questões relacionadas aos direitos de mulheres trans, por exemplo. As redes sociais digitais passam a oferecer, nomeadamente a minorias marginalizadas e silenciadas, um lugar de fala e resistência (Ferreira & Lima, 2020; Ribeiro, 2017).
Os objetos de estudo deste trabalho acabam por exemplificar esse caminho em prol de um engajamento político, social e cultural, através do ciberfeminismo. Na sua maioria, buscam compartilhar conhecimento tecnológico com outras mulheres, empoderá-las, desenvolvê-las e ocupar novos locais sociais e econômicos possibilitados pela “quarta vaga” do movimento feminista (Lamartine & Cerqueira, 2023). Apesar da falta de consenso acerca da existência de uma quarta vaga, seu surgimento está associado ao uso generalizado das redes sociais digitais como espaço de mobilização coletiva e à inclusão de uma perspectiva interseccional em suas pautas.
3. A Importância de Interseccionar o Debate
A quarta vaga do movimento feminista tem como pauta as demandas já existentes nas vagas anteriores, e, por esse motivo, não é possível estabelecer uma total separação entre o passado e o presente. É, porém, seu alcance digital um dos principais diferenciais do movimento atual (Lamartine & Cerqueira, 2023). Através do ativismo digital é possível promover mobilizações, cuja fluidez no ciberespaço permite alcançar milhares de pessoas (Reis & Natansohn, 2021). Martins e Nunes (2019) consideram que “é desta forma que a internet assume um papel de suma importância para que as mulheres construam a sua atuação política no espaço público e encontrem uma forma eficaz de utilizá-la, para difundir informações e criar espaços de fortalecimento” (p. 122).
Outra característica da quarta vaga é a inserção da diversidade na construção de narrativas mais inclusivas, abordando lutas identitárias que buscam questionar o racismo, o discurso capacitista e o etarismo, entre outros fatores que continuam silenciando e invisibilizando mulheres atravessadas por estas opressões. O objetivo é diversificar a representatividade nos discursos feministas e assim acolher e impulsionar as diversas vozes e demandas existentes (Cerqueira & Magalhães, 2017).
A preocupação em aumentar a representatividade de mulheres invisibilizadas resgata o conceito de “interseccionalidade”, bastante defendido por autoras do movimento feminista negro. Em um contexto norte-americano, autoras como Audre Lorde (1984/2019), Angela Davis (1981/2016) e bell hooks (1984/2019) questionaram as dinâmicas ineficientes que ignoravam o marcador racial, os estereótipos de gênero e os privilégios de classe dentro e fora dos movimentos feministas. Outro importante contributo veio através de Kimberlé Crenshaw (1989), responsável por oferecer uma abordagem metodológica que considera que a interação entre gênero e raça se sobrepõe a partir de “avenidas” que se cruzam.
No Sul Global, especificamente no Brasil, autoras como Lélia Gonzalez (1988) e Beatriz Nascimento (1974), duas grandes referências do movimento feminista negro brasileiro, também deram os seus contributos para o debate ao abordarem em suas obras o impacto da articulação entre os atravessamentos de gênero e classe na vida de mulheres racializadas (Casemiro & Silva, 2021). Em uma perspectiva mais recente, Akotirene (2019) busca valorizar e resgatar a herança cultural de pessoas negras ao considerar que “a articulação metodológica proposta pelas feministas negras, atualmente chamada interseccionalidade, recupera as bagagens ancestrais perdidas” (p. 25).
Incorporar o conceito de “interseccionalidade” para incluir e representar todas as pessoas exige do movimento feminista da quarta vaga não só ter domínio dos conceitos, mas também tratar do tema de uma perspectiva metodológica e crítica. Pensar a interseccionalidade desta forma pode auxiliar na identificação de desigualdades existentes, além de permitir criar alternativas de mudanças possíveis (Collins & Bilge, 2021). Este é, segundo Akotirene (2019), o único caminho para alterar as relações de poder dominantes até hoje e, assim, realizar um “resgate discursivo” que foi sistematicamente negado, seja pelo gênero, pela raça, pela sexualidade ou por outros marcadores de diferenças sociais.
Nomeadamente em relação à promoção da igualdade de gênero, a “interseccionalidade” aparece como um conceito central, sem o qual não é possível ter resultados verdadeiramente expressivos para todas as pessoas (Parry et al., 2018). Para Zimmerman (2017), o movimento feminista da quarta vaga se opõe ao silenciamento de pessoas marginalizadas e cria uma dinâmica que possibilita a visibilidade política através da promoção da diversidade e inclusão, conceitos, também, essenciais para a promoção da igualdade de gênero.
Apesar da importância da utilização das redes sociais digitais como espaço de comunicação horizontal, acolhimento e empoderamento, é necessário capacitar as mulheres para que não sejam apenas consumidoras destas tecnologias, para serem também produtoras. As interações entre máquina/técnica e humanos possuem padrões programados para excluir tudo aquilo que não se encaixa, criando uma relação que favorece quem os domina, tornando essencial que todas as mulheres ocupem lugares estratégicos e de poder através do uso pleno das tecnologias.
4. O Uso da Interseccionalidade no Combate das Brechas Digitais de Gênero
Apesar do uso generalizado das TIC na União Europeia, inicialmente as pessoas que mais tinham acesso as estas tecnologias eram jovens do sexo masculino e brancos (Lapa & Vieira, 2019). O conceito binário de homem e mulher, em que o primeiro sempre foi visto como superior ao segundo, estabeleceu uma hierarquia que desqualificou as mulheres no campo das ciências tecnológicas.
Em Portugal, os estereótipos de gênero, reproduzidos em manuais escolares e propaganda durante anos, perpetuaram a imagem de que a área tecnológica é uma área masculina. Fonseca et al. (2023) destacam que a ditadura do Estado Novo, que assombrou o país durante quase 50 anos, foi um dos fatores responsáveis pela perpetuação desses estereótipos e pelo atraso de políticas de gênero verdadeiramente inclusivas. Segundo as autoras, “as mulheres portuguesas viviam, portanto, numa condição de desigualdade jurídica face ao homem, de desigualdade de estatuto no seio da família e do casal, mas também em termos de direitos políticos, sociais, laborais e culturais” (Fonseca et al., 2023, p. 105). Apenas após o 25 de Abril de 1974, com a queda do regime fascista, se começou a lenta emancipação das mulheres no país.
A herança das desigualdades de gênero na sociedade portuguesa se reflete no ciberespaço e é perceptível em diferentes camadas da sociedade. Na economia, a falta de mão de obra qualificada interfere na capacidade de atender uma demanda crescente de profissionais da área tecnológica, o que pode impactar não só no desenvolvimento econômico do país, mas também na sua capacidade de digitalização (Cruz-Jesus et al., 2017).
Além da questão econômica, a ausência de diversidade na produção das TIC faz com que as tecnologias sigam a lógica de quem as criou, reproduzindo padrões de uma área ainda majoritamente masculina (Albusays et al., 2021). O resultado são soluções tecnológicas carregadas de enviesamentos e a reprodução de discursos que, ao invés de incluir, excluem quem não se encaixa em determinados padrões.
A exemplo desta lógica, citamos o trabalho de Carrera e Carvalho (2020), cujo objetivo era compreender qual era o conceito de “família” que os algoritmos de sistemas de buscas adotavam. Ao inserirem nos mecanismos de busca as palavras “family” (família), “black family” (família negra) e “white family” (família branca), as autoras descobriram, ao analisar mais de 2.500 imagens, que mulheres negras eram mais representadas sozinhas ou como mães solos1 do que mulheres brancas. Isso acaba contribuindo para a imagem de solidão de mulheres racializadas. Ao pesquisarem pelo termo “family”, constataram que a grande maioria eram representações de famílias brancas (mulher, homem e filho/s). Ou seja, o algoritmo considera a branquitude como o padrão hegemônico e relega as mulheres, neste caso negras, à condição de solitárias.
Os algoritmos são treinados para reproduzir padrões criados por quem os produz. Analisar esses padrões nos auxilia a compreender como o gênero e a raça, por exemplo, são fatores determinantes para estas relações e o seu impacto no desenvolvimento e na apropriação das TIC. Esta relação é tão forte que influencia também, de maneira subjetiva, a forma como esta desigualdade afeta o emocional e a autoestima dos indivíduos, nomeadamente das mulheres (Natansohn, 2013). O impacto sociocultural desta construção androcêntrica da tecnologia relegou as mulheres a um lugar de não pertencimento e criou a brecha digital de gênero.
A brecha digital de gênero reflete essa desigualdade histórica entre mulheres e homens, tanto no acesso quanto no desenvolvimento de competências digitais das TIC. Castaño (2008, 2019) a divide em três frentes: o acesso, o uso das ferramentas tecnológicas e a produção de tecnologias. Em Portugal, a brecha digital de gênero vem sendo abordada pelas políticas públicas, ao longo dos anos, pela ótica de iniciativas voltadas para educação e emprego (Silveirinha, 2011), desconsiderando a raiz social do problema (falta de aparatos tecnológicos, ausência de acesso de qualidade, baixa literacia tecnológica a depender do gênero ou geolocalização, por exemplo; van Deursen & van Dijk, 2015). É neste contexto que observamos nos últimos anos, em Portugal, o surgimento de instituições de ciberfeminismo, que atuam no combate à desigualdade de gênero nas TIC em Portugal e que são o objeto de estudo deste trabalho.
5. Metodologia
Esta investigação visa identificar se as publicações realizadas pelas instituições de ativismo tecnológico, que atuam na redução das brechas digitais de gênero em Portugal, possuem características interseccionais. Neste sentido, parte da seguinte pergunta: a interseccionalidade é refletida nas publicações destas páginas? Para tal, realizamos uma análise de conteúdo mista (Bardin, 1977/2006) em todas as publicações realizadas no primeiro semestre de 2023 (de 1 de janeiro até 30 de junho), no Instagram das páginas da Portuguese Women In Tech, As Raparigas do Código, Geek Girls Portugal e Women In Tech Portugal. Todas são instituições privadas de ativismo tecnológico em Portugal, que atuam em parceria com a Iniciativa Nacional de Competências Digitais (INCoDe.2030), principal iniciativa do Governo responsável pela promoção da igualdade de gênero nas TIC em Portugal. Os dados foram coletados manualmente nos dias 17 e 18 de julho de 2023 e inseridos em uma base de dados criada no Excel.
Optamos por fazer uma análise do Instagram, pois é a rede social digital mais utilizada pelas páginas analisadas. Além disso, o Instagram conta com mais de um bilhão de usuários em todo o mundo (Sprout Social, 2019). A plataforma foi criada com o intuito de que seus usuários pudessem compartilhar fotografias e vídeos com a sua rede de seguidores, tendo como característica principal a valorização de conteúdos visuais.
A análise do conteúdo foi dividida em duas partes. Na primeira, foram mapeadas todas as publicações realizadas e identificados os principais temas abordados por estas instituições. Inicialmente, essa análise não estava prevista, mas durante a pré-análise identificamos essa necessidade. O levantamento temático nos forneceu insumos para compreender de que maneira a interseccionalidade aparece associada a estes temas. Em um segundo momento, buscamos identificar se, para além do gênero, que sabemos ser abordado por estas instituições, são considerados outros fatores como:
Raça: buscamos identificar se mulheres não brancas são representadas nas publicações por meio de imagens, nomeadamente mulheres negras.
Idade: buscamos identificar se (a) existem publicações direcionadas para adolescentes; e (b) existem publicações voltadas para mulheres com mais de 50 anos que queiram aprender a programar ou a atuar na área tecnológica.
Geolocalização: buscamos identificar se (a) existem formações, eventos e atividades online; e (b) existem formações, eventos e atividades físicas realizados em cidades fora do eixo Lisboa e Porto.
A escolha destas categorias está associada ao pensamento de Corrêa et al. (2018), que diz que “a interseção entre as múltiplas identidades subjugadas é fundamental para pensarmos no lugar social ocupado pelos sujeitos em suas trocas comunicativas, na construção de suas identidades e no reconhecimento das identidades dos outros” (p. 154). Entendemos, então, que o problema da desigualdade de gênero nas TIC é multifatorial e atravessa raparigas e mulheres de maneiras diferentes, conforme o contexto social e econômico em que cada uma está inserida.
6. Resultados e Discussões
6.1. Análise de Conteúdo
Foram analisadas 380 publicações, totalizando 788 imagens, das quais 20 eram vídeos (ver Tabela 1). Foram descartadas quatro publicações da página da Women In Tech Portugal, pois embora aparecessem no seu feed, não haviam sido postadas pela mesma e, sim, em modo colaborativo, por outras páginas.
Acerca da distribuição dos conteúdos (ver Figura 1), observamos que eles se dividiam em cinco categorias: (a) comemorativos: postados em datas especiais; (b) informativos: divulgação de eventos, treinamentos ou de conteúdo que agregasse algum valor na formação do público-alvo; (c) empoderadores: mensagens motivadoras e de encorajamento; (d) representativos: imagens que representassem mulheres em lugar de sucesso/poder e imagens dos eventos realizados; e (e) parcerias: divulgação e agradecimento dos parceiros ou patrocinadores.
As quatro páginas analisadas concentram as suas publicações em conteúdos informativos e representativos. Sendo o Instagram uma rede social de proximidade (Carvalho, 2018), onde é possível interagir diretamente com os usuários, os conteúdos representativos acabam por cumprir este papel. A partilha de fotografias de mulheres falando sobre tecnologia tem o objetivo de despertar a curiosidade e o interesse de outras mulheres e, assim, desconstruir estereótipos de gênero. A desconstrução dos estereótipos de gênero nas TIC é um dos objetivos apresentados por estas páginas como fator determinante para diminuir as brechas digitais de gênero no setor.
Já a criação de conteúdos que despertem o interesse dos usuários é importante para gerar engajamento, cuja mensuração é feita pelos comentários, curtidas, mensagens em direto e compartilhamento. As interações são usadas como um termômetro de relevância, para conduzir o algoritmo da plataforma (Phua et al., 2016), sendo essencial a utilização de uma linguagem simples, de fácil compreensão e que seja rica em informações para o público-alvo.
No exemplo da Figura 2, a publicação da página das @raparigasdocodigo apresenta informações sobre profissões nas áreas da tecnologia. Com uma linguagem simples e direta, exemplifica as principais funções e habilidades necessárias para se trabalhar naquele cargo. O texto da legenda, além de ser complementar ao da imagem, direcionando para um link com mais informações, também acolhe as possíveis incertezas dos seguidores, ao dizer que “com tantas opções disponíveis no mundo IT pode tornar-se difícil saber qual é o melhor caminho escolher”. A validação de uma possível dúvida é uma mais-valia para se conectar com os seguidores do perfil. Além disso, esta, entre outras publicações das páginas aqui analisadas, são exemplos de como tornar a internet num espaço mais democrático para todos, a partir do compartilhamento de informações (Reis & Natansohn, 2021).

Fonte. Retirado de Com tantas opções disponíveis no mundo de IT pode tornar-se difícil saber qual o melhor caminho escolher [Fotografia], por As Raparigas do Código [@asraparigasdocodigo], 2023, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CoXEKipLYHi/?img_index=5)
Figura 2 Post do Instagram @asraparigasdocódigo
Se, por um lado, os conteúdos e representações são empregados de maneira a democratizar o conteúdo e facilitar que o acesso chegue às raparigas e mulheres, por outro, identificamos em nossa análise que, apesar de se tratar do contexto português, o idioma utilizado pelas páginas era em sua maioria o inglês. Notamos, embora não fosse o nosso foco inicial, que a Portuguese Women In Tech publicou 74% do seu conteúdo em inglês e sem tradução; As Raparigas do Código publicou 100% do seu conteúdo em português; a Geek Girls Portugal publicou 58% do seu conteúdo em inglês; e a Women In Tech Portugal publicou 90% do seu conteúdo em português. No caso da Geek Girls Portugal, observamos que os conteúdos eram publicados em inglês quando o idioma oficial do evento ou atividade realizada seria neste idioma. Já a Women In Tech Portugal apresentava em suas imagens conteúdos em inglês, mas em 90% dos casos utilizava o espaço da legenda para traduzir o texto e passar a mensagem também em português.
Associamos o uso do inglês a dois fatores: o primeiro é a internacionalização destas páginas na União Europeia, o que facilita o networking e a troca de conhecimento; o segundo é o facto de muitos dos materiais, documentos e linguagens de programação estarem em inglês, sendo um universo construído à luz deste idioma. Porém, ainda que 64,2% dos portugueses dos 18 aos 69 anos dominem o inglês (Instituto Nacional de Estatística, 2023), a escolha da língua inglesa pode representar mais uma barreira para quem deseja ingressar nesta área e não consiga acessar esse conteúdo por não dominar totalmente esse idioma.
6.2. A Interseccionalidade nas Publicações
6.2.1. Gênero e Raça
Nesta categoria, analisamos exclusivamente as imagens das publicações para identificar pessoas com fenótipos diferentes do branco, com foco em identificar a representação de mulheres negras. O processo de identificação foi feito a partir da análise das imagens, tendo sido considerados traços físicos característicos dos afrodescendentes. Estudar essa avenida de atravessamento é importante por dois motivos. O primeiro diz respeito ao processo imigratório pelo qual Portugal vem passando. Desde os anos 2000, Portugal vem recebendo imigrantes, principalmente dos países de língua oficial portuguesa, incluindo o Brasil (Vieira et al., 2020). Ou seja, um grupo historicamente oprimido pelo passado colonial e pelo racismo estrutural. O segundo, porque observar a presença da mulher negra é importante para romper com o imaginário de que pessoas brancas são universais (Kilomba, 2019). Quando olhamos para as questões de mulheres marginalizadas, acabamos por perceber uma necessidade ainda maior de inserirmos na nossa análise uma perspectiva interseccional, considerando, além do gênero, a raça, a classe, a religião e a nacionalidade, por exemplo (Crenshaw, 2002).
Os dados analisados (Figura 3) nos mostraram que a página da Women In Tech Portugal foi a que mais apresentou diversidade neste quesito, já que 22% de suas publicações são de mulheres com fenótipos diferentes do branco. Segue-se a Portuguese Women In Tech com 14%, As Raparigas do Código com 13% e, por último, a Geek Girls Portugal com 11%.
Conforme o exemplo da Figura 4, observamos mulheres negras retratadas em posição de protagonismo, fugindo ao estereótipo de que mulheres negras ocupam apenas lugares à margem da sociedade. Desconstruir o imaginário de que apenas homens brancos podem ocupar locais de poder é essencial para desconstruir os estereótipos de gênero e estimular raparigas e mulheres a verem-se naquela posição. Outro ponto que julgamos interessante nas publicações da Women In Tech Portugal diz respeito ao facto de estas mulheres serem retratadas no meio de outras mulheres não brancas, fugindo ao estereótipo do “negro único” (Corrêa & Bernardes, 2018, p. 207). Ou seja, não era utilizada, salvo nas publicações que enaltecia uma mulher específica por seus contributos, a imagem de uma única mulher negra no meio de outras brancas para gerar uma falsa representatividade.

Fonte. Retirado de Starting 2023 with 3 ways to develop your leadership skills [Fotografia], por Women in Tech Portugal [@witportugal], 2023, Instagram.(https://www.instagram.com/p/Cm8nvY0IA92/?img_index=2)Nota. Tradução: “2. Desenvolver consciência situacional: A capacidade de prever e sugerir formas de evitar potenciais problemas é uma qualidade inestimável para um líder”; “witportugal: A começar 2023 com 3 formas de desenvolver as suas competências de liderança: 1. Pratique a disciplina: Desenvolver disciplina na sua vida profissional (e pessoal) é essencial para ser um líder eficaz e inspirar os outros a serem disciplinados também. Estudos mostram que líderes com um forte sentido de autocontrolo e persistência têm maior probabilidade de serem diligentes e de se envolverem com o seu trabalho; 2. Desenvolva consciência situacional: Uma característica de um bom líder é a capacidade de ver o panorama geral e antecipar problemas antes que estes ocorram. Aquilo a que escolhe dar atenção tem uma grande influência naquilo de que está automaticamente consciente. O segredo está em ser proativo, e não reativo; saber quando é altura de tomar precauções e intervir antes que uma situação se torne perigosa; 3. Continue a aprender: A melhor forma de desbloquear todo o seu potencial de liderança é investir em si próprio e estar aberto a aprender coisas novas. Líderes que se comprometem com a aprendizagem ao longo da vida estão mais preparados para identificar a necessidade de mudança quando esta surge e mais favoráveis a recompensar as suas equipas por experimentarem coisas novas. Quais são as suas dicas para alguém que deseja desenvolver as suas competências de liderança? Partilhe nos comentários. Fonte: Wrike 2022”.
Figura 4 Post do Instagam da @witportugal
Porém, nas outras páginas não identificamos grande diversidade, exceto em datas comemorativas, como o Dia Internacional das Mulheres, celebrado mundialmente no dia 8 de março. As páginas da Portuguese Women In Tech, As Raparigas do Código e Geek Girls Portugal publicaram imagens em formato de desenho nesta data. Apesar de considerarmos essencial a diversidade na representação de corpos e raças nas datas comemorativas, torna-se evidente a necessidade de aprofundarmos o debate sobre as limitações destas representações.
Os dados analisados mostram que mulheres com fenótipos diferentes do branco são sub-representadas por estas páginas. Ainda que quando representadas seja em posição de protagonismo ou compartilhando o protagonismo com outras mulheres. A invisibilização de mulheres não brancas continua refletindo a desigualdade existente na vida real.
6.2.2. Gênero e Idade
O discurso das quatro páginas analisadas é de inclusão das mulheres nas áreas da tecnologia, para promover a igualdade de gênero e aumentar, consequentemente, a diversidade num mercado de trabalho ainda dominado por homens. Porém, ao analisarmos o conteúdo, constatamos que existe pouca diversidade relativamente à idade do público-alvo representado, sendo possível identificar uma predominância de conteúdos voltados para mulheres jovens e jovens adultas, que estejam a iniciar as suas carreiras ou que queiram redirecionar as suas carreiras para o mercado tecnológico. Esse é o principal público-alvo do Instagram, de forma que a comunicação direcionada para este público está adequada.
Buscamos identificar elementos visuais voltados para mulheres com mais de 60 anos, a fim de identificarmos se elas são representadas por estas páginas. E inferimos que são, principalmente, na página da Women In Tech Portugal, porém, quase sempre como palestrantes que irão compartilhar os seus conhecimentos. Ou seja, são representadas em lugares que passam credibilidade e confiança, o que acaba reforçando o estereótipo de que idade é sinônimo de sabedoria e excluindo a possibilidade de que mulheres mais velhas também possam estar em um local de aprendizado.
Nomeadamente em relação ao público infanto-juvenil (Figura 5), encontramos cinco publicações com imagens de adolescentes participando de alguma atividade desenvolvida especificamente para eles. Ainda que saibamos ser importante preservar a imagem de adolescentes com idade inferior a 18 anos, também não encontramos referências textuais ou mesmo atividades que fossem direcionadas aos adolescentes.

Fonte. Retirado de #throwback ao dia 6 de Maio, em que marcámos presença na Women in Tech Summit, o primeiro evento da @witportugal na Invicta! [Fotografia], por As Raparigas do Código [@asraparigasdocodigo], 2023, Instagram. (https://www.instagram.com/p/CsRyWXJszQ9/?img_index=2)
Figura 5 Publicação para o público infanto-juvenil
A quebra do estereótipo de que a tecnologia é uma área primordialmente masculina é essencial para diminuir a brecha digital de gênero. A reprodução destes papéis sociais está enraizada nos estereótipos perpetuados pelas sociedades patriarcais (Alozie & Akpan-Obong, 2017), sendo um dos motivos apontados como transversal ao problema aqui exposto, além de ser responsável pela “segregação sectorial e discriminação das mulheres nas profissões e sectores das TIC” (Segovia-Pérez et al., 2019, p. 187). Persistem ambientes considerados masculinos, dos quais pessoas do gênero feminino foram constantemente desencorajadas a fazer parte, sendo muitas vezes consideradas incapazes.
O movimento de quebra de paradigma deve começar ainda nas escolas, quando as jovens começam a desenvolver suas habilidades e interesses. Assim, a pouca diversidade em relação à representação, ou mesmo existência, de atividades direcionadas para o público infanto-juvenil nos leva a inferir que as páginas não levam em consideração o atravessamento da idade para construir seu programa de atuação ou as suas publicações no Instagram.
Analisar a fratura geracional é essencial para compreender como as TIC são incorporadas na rotina de jovens e seniores. Pessoas que nasceram antes do advento da internet são consideradas “imigrantes digitais” e costumam apresentar mais dificuldades em se adaptar aos avanços tecnológicos. Já as pessoas que nasceram após a criação da internet são chamadas de “nativas digitais” e tendem a possuir mais facilidade em utilizar a internet (Ballano et al., 2014). Este é um fator importante, pois a capacidade de utilizar a internet e as TIC está diretamente associada com a pré-disposição de implementar o uso de novas tecnologias no cotidiano e, consequentemente, pode trazer mais qualidade de vida e autonomia (Berkowsky et al., 2017).
6.2.3. Gênero e Geolocalização
Das publicações que continham a localização dos eventos ou treinamentos, identificamos que 27% são realizados em Lisboa e/ou no Porto, enquanto 8% são realizados online e 14% em outras cidades. Das outras cidades que encontramos, destacamos Coimbra e Aveiro, outras duas grandes cidades do país. Foi identificada apenas uma atividade realizada numa cidade do interior do país, numa escola secundária (ver Figura 6).
A ausência de eventos presenciais realizados em cidades menores ou no interior do país acaba por excluir uma parte da população, que não consegue custear ou percorrer as longas distâncias que separam o interior das grandes metrópoles. Entretanto, se por um lado, os eventos presenciais não chegam ao interior, as páginas Geek Girls Portugal e Portuguese Women In Tech oferecem boa parte das suas mentorias e treinamentos de maneira remota, o que em tese possibilita que mulheres de todo o país tenham acesso aos conteúdos. Além de disponibilizá-los de maneira gratuita.
Porém, é necessário não só ter acesso à rede e às ferramentas disponibilizadas, mas também saber utilizá-las. É essencial participar tanto do processo de consumo quanto do de produção de conteúdos e, para isso, é imprescindível considerarmos vários níveis de exclusão digital, como o nível de competências, literacias e engajamentos existentes (Castaño, 2008; van Dijk & van Deursen, 2014). Desta forma, ainda que as páginas ofereçam formações online, devemos questionar e tentar aprofundar o debate sobre a eficácia destes treinamentos.
7. Conclusões
Este trabalho, de natureza exploratória, teve como objetivo verificar se existia ou não a utilização de uma comunicação interseccional nas instituições de ativismo tecnológico que atuam na promoção da igualdade de gênero nas TIC em Portugal. A análise das publicações no Instagram de quatro instituições mostrou que, embora se observe alguns esforços para incluir mulheres de diferentes raças, idades e localizações geográficas, essas iniciativas ainda são insuficientes para promover uma comunicação verdadeiramente interseccional.
A análise das publicações das instituições de ativismo tecnológico em Portugal revelou pouca diversidade na representação de mulheres com fenótipos não brancos, com destaque para a Women In Tech Portugal, que apresentou a maior diversidade, com 22% de suas publicações incluindo mulheres não brancas. Essa instituição se destacou por representar mulheres negras em posições de protagonismo, rompendo com estereótipos de marginalização e destacando a importância de representações diversificadas para desconstruir imaginários sociais e estimular a inclusão de mulheres em locais de poder.
Por outro lado, as outras instituições analisadas (Portuguese Women In Tech, As Raparigas do Código e Geek Girls Portugal) apresentaram menor diversidade racial em suas publicações, com percentuais de 14%, 13% e 11%, respectivamente. Essa falta de diversidade, exceto em datas comemorativas como o Dia Internacional das Mulheres, evidencia uma representação limitada, que necessita de aprofundamento e ampliação. Essa limitação reflete a necessidade de uma abordagem mais consistente e contínua na inclusão de mulheres não brancas em suas comunicações.
Já a análise da idade mostrou que a maioria das publicações não possui conteúdos específicos para raparigas ou mulheres acima dos 60 anos, indicando uma possível lacuna na inclusão de diferentes faixas etárias nas discussões sobre tecnologia e empoderamento feminino. Esse aspecto é fundamental para promover a inclusão intergeracional e garantir que mulheres de todas as idades se sintam representadas e motivadas a participar do campo tecnológico.
Quanto à geolocalização, a maior parte dos eventos e atividades promovidos pelas instituições estavam concentrados nas cidades de Lisboa e Porto, refletindo uma centralização geográfica que pode limitar a participação de mulheres de outras regiões. A descentralização das atividades e a promoção de eventos online poderiam ampliar o alcance e a participação de mulheres em diferentes locais, contribuindo para a redução das desigualdades regionais no acesso às TIC.
A discussão desses resultados sugere que, embora haja esforços significativos por parte das instituições de ativismo tecnológico em Portugal, ainda existem desafios consideráveis na promoção de uma comunicação verdadeiramente interseccional. A inclusão de mulheres de diferentes raças, idades e localizações geográficas é essencial para uma abordagem mais abrangente e eficaz na luta contra as desigualdades de gênero nas TIC.
Portanto, as instituições de ativismo tecnológico em Portugal devem revisar e expandir suas estratégias de comunicação para incorporar uma abordagem interseccional robusta. Isso inclui a representação contínua e diversa de mulheres de diferentes raças e idades, bem como a descentralização das atividades. Essas mudanças são fundamentais para criar um ambiente mais inclusivo e equitativo, onde todas as mulheres tenham a oportunidade de se desenvolver e prosperar no campo das TIC.










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