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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.17 no.31 Lisboa dez. 2017

https://doi.org/10.14195/2183-5462_31_11 

ARTIGO

 

Novos usos e desafios para os videojogos: streaming, questões de género e assédio online

 

New uses and challenges for video games: streaming, gender issues and online harassment

 

 

David PintoI; Francisco Rui CádimaII; Joana CoelhoIII; Laura DiasIV

I Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital (CIC. Digital FCSH/NOVA), 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: davidjmpinto@gmail.com
II Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital (CIC. Digital FCSH/NOVA), 1069-061 Lisboa, Portugal.(CIC. Digital FCSH/NOVA), 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: frcadima@fcsh.unl.pt
III Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital (CIC. Digital FCSH/NOVA), 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: jrmcoelho1@gmail.com
IV Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura Digital (CIC. Digital FCSH/NOVA), 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: lauradiascarvalho@gmail.com

 

 


RESUMO

Jogar já não significa apenas ficar horas seguidas em frente a um ecrã. Na cultura dos videojogos surgem novos fenómenos em que a nova geração de jogadores quer saber mais sobre os jogos, ver outros jogar, ver os seus fãs, interagir, seguir os ídolos, participar e tornar-se cada vez melhor. Mas há também um lado negro, que tem a ver com questões de assédio, sexismo, agressão e/ou discriminação nos jogos online. Cada vez mais visível, é também cada vez mais desafiada. Muitas das notícias sobre jogos online no passado recente focaram os assédios e a violência online e reforçaram a importância das dimensões da tolerância, diversidade e inclusão. Nesta pesquisa, procuraremos, em primeiro lugar, focar o contexto do desenvolvimento dos novos ambientes e comunidades de jogos online, analisando, designadamente, a expansão e especificidade das grandes plataformas emergentes, para depois nos centrarmos na problemática da discriminação/exclusão e no assédio online.

Palavras-chave: Indústrias culturais; internet; videojogos; streaming; comunidades web; jogadores; género; assédio online


ABSTRACT

To play video games no longer means staying consecutive hours in front of a screen. In the culture of video games there are new phenomena in which the new generation of players want to know more about games, watch others play, see their fans, interact, following their idols, participate and become better and better. But there is also a dark side, which has to do with harassment issues, sexism, aggression and / or discrimination in online games. Increasingly visible, this issue is becoming the object of analysis in specific debates and digital platforms. In the recent past, a large number of news about online games have focused on harassment and violence online, thus reinforcing the importance of the dimensions of tolerance, diversity and inclusion. In this research, we start by focusing on the context of development of new environments and online gaming communities, analyzing in particular the expansion and specificity of the big emerging platforms, then we discuss the issue of discrimination and / or exclusion and online harassment and how to overcome this problem by introducing specific codes to improve the classification of content, as well as through community management strategies that promote diversity and inclusion in online games.

Keywords: Cultural industries; internet; videogames; streaming; web communities; gender; online harassment


 

 

Introdução

Há uma especificidade industrial incontornável quando se fala de videojogos. Os videojogos não só se tornaram numa das indústrias culturais mais importantes do globo, ultrapassando em grandes mercados o próprio cinema, como são hoje uma área determinante no entretenimento, uma indústria de importância crescente, não somente quando falamos da população jovem, mas também entre os adultos. O facto é que há também uma dimensão societal complexa no processo de interação no seio das comunidades de “gamers”.

Os videojogos têm, para além disso, um impacto cultural e social muito significativo, em particular nas culturas juvenis (Aoyama & Izusho, 2004). Um recente trabalho de investigação jornalística em Portugal descrevia André, 12 anos, da seguinte forma: «(…) Faz vigílias madrugada fora com dois monitores abertos ao mesmo tempo, um com o jogo multiplayer online League of Legends, ou Minecraft, ou Watchdog, outro com o Skype dividido em cinco chamadas simultâneas onde vai comentando o jogo com os amigos, e talvez ainda um vídeo no YouTube com explicações sobre o jogo, além do Facebook, as sms do telemóvel e provavelmente a PlayStation” (Moura, 2015:10). A verdade é que algumas das grandes questões que se colocam hoje ultrapassam efetivamente a questão etária propriamente dita, ou a dimensão industrial ou tecnológica, ou mesmo a questão comunicacional “tout court”, para se centrarem no tema da interatividade e da interação entre pares nos novos ambiente web, e, portanto, também da dimensão social e relacional da comunidade, designadamente nas questões de género e no assédio online.

 

Dos walkthrough ao sentido de comunidade

Numa era em que todo o mundo está conectado à internet, plataformas como o Youtube e o Twitch são ferramentas que os jogadores utilizam cada vez mais para partilharem os próprios jogos em tempo real. Na plataforma Youtube, os walkthrough – vídeos que explicam os passos e jogadas para o jogador completar certos objetivos e ganhar o jogo – começaram a ganhar fama entre os “gamers”, surgindo inclusive vídeos “remixados” em que os jogadores criavam histórias usando os cenários e as personagens do próprio jogo, ou mesmo canais que começaram a dedicar-se somente ao conteúdo dos videojogos, que rapidamente se tornaram em fenómenos mundiais. Vídeos com conceitos como machinima ou modding invadiram o Youtube e a popularidade deste género de conteúdo aumentou.

Em 2014, o canal mais subscrito do Youtube pertence ao utilizador PewDiePie, com cerca de 34 milhões de subscritores e o conteúdo do seu canal passa precisamente por videojogos. O quinto canal mais subscrito de sempre – Machinima – é também um canal inteiramente dedicado ao conteúdo dos videojogos, passando por notícias, walkthroughs, machinima, modding, etc. Este tipo de canais estão em competição direta com canais de grandes celebridades como Shakira, Justin Bieber ou até mesmo a editora discográfica EmiMusic. Isto diz muito sobre como os videojogos se estão a tornar uma das maiores formas de entretenimento de sempre, no que diz respeito a conteúdo na internet, em especial no Youtube. Surgiram também plataformas que permitiam a transmissão, em direto, de um jogador ou uma equipa a jogar um videojogo, enquanto se proporcionava um sistema de chat, onde os espectadores poderiam comentar o que viam, em tempo real – plataformas como a HitboxTV, a Gaming Live TV e o TwitchTV, que consolidaram a atual conotação de entretenimento e/ou arte interativa e de comunidade aos jogadores e fãs dos videojogos.

Os jogos atingiram assim um novo plano. Roig et al. (2009) defendem os videojogos como a grande forma de entretenimento, alimentada por componentes de interatividade e diversão que faltam noutros géneros audiovisuais, como o cinema ou a televisão. Os videojogos podem, de facto, impulsionar uma mudança maior, relativamente a como os media são produzidos e consumidos, e essa é uma constatação que deriva da evolução deste campo nos últimos anos.

Dan Harries (2002), aliás, já havia introduzido o termo viewsing, juntando os verbos viewing e using, definindo o novo consumo/entretenimento conectado e as práticas multitarefa que estão, simultaneamente, a ser promovidas através dos ecrãs de computador e televisão. Relacionando com os videojogos, é possível perceber que surgem diferentes maneiras de interação, não só com o jogo em si mas de outras formas, como a partilha de vídeos com este conteúdo nas plataformas de vídeo online, os projetos de machinima utilizando open source (algo que pode ser modificado porque o seu design, código-fonte, é de acesso público), o modding (modificações e extensões feitas ao videojogo, pelos próprios jogadores, que por vezes são comercializadas ou dão origem a um novo jogo).

A componente da socialização sempre esteve bem presente na indústria dos videojogos mas com a chegada da internet consolidou-se o lado social desta indústria interativa. A possibilidade de jogar online, com diferentes pessoas de todo o mundo, é agora uma das principais características dos videojogos. As produtoras de videojogos apostam fortemente nessa vertente, voltando-nos a aproximar do conceito de um salão de jogos universal, com jogadores de todo o planeta a interagirem entre si. Os jogadores são atraídos por esta componente, que muitas vezes chega a tornar-se a razão de jogar. O que faz a diferença é a experiência partilhada, a natureza colaborativa de muitas das atividades e a satisfação de estar integrado numa comunidade com outros jogadores, ganhando uma certa reputação (Ducheneaut et al., 2006). Além do papel da interação, os outros jogadores possuem uma outra função – a função de audiência –, uma espécie de presença social, que torna a atividade de jogar numa forma de espetáculo. Cada jogador investe na experiência de criar a sua personalidade online, que pode ser conhecida e admirada pelos demais jogadores.

Tudo isto contribui para a criação de um sentido de comunidade entre os jogadores, integrando esta dimensão num mais vasto contexto de cultura participativa, que constitui o atual paradigma comunicacional (Cádima, 2011). Este conceito alargou-se quando começaram a surgir as redes sociais e esse sentido de comunidade saiu do jogo em si, para se ramificar pela Internet, na forma de fóruns, blogs, vídeos, websites, etc. A comunidade expandiu-se, as plataformas evoluíram e mais uma vez, o mundo dos videojogos voltou a alterar-se, procurando novas formas de levar o entretenimento e espetáculo a mais pessoas. Os videojogos começaram a ser vistos quase como um desporto em si, com personalidades conhecidas, torneios mundiais, um sustento para jogadores profissionais. O nível de espetáculo e entretenimento ultrapassou barreiras e, entretanto, surgem as novas experiências do Live Video Streaming e, também, uma nova comunidade na Web.

 

A emergência do streaming nos jogos

Um stream é algo que acontece em direto, quase sem interrupções e que pode ser comentado em tempo real, pelos espectadores que estão naquele momento a assistir ao desenrolar dos eventos. Fazer um stream permite a existência de uma nova forma de televisão social, que fornece uma plataforma interativa, para a interação da audiência, a um nível mais pessoal com outros jogadores ou com jogadores profissionais (Edge, 2013). Existem várias plataformas de streaming, que criaram um mercado interativo exclusivo da internet, mas vamos focar-nos na mais popular e na mais bem conseguida, o TwitchTV ou Twitch.

O Twitch é uma plataforma online, onde é possível fazer-se o streaming de vídeos com um conteúdo muito específico, os videojogos. Surgiu de outra plataforma de streaming mais antiga, chamada JustinTV. A JustinTV foi criada em 2007 e nasceu com o intuito de fornecer uma plataforma de vídeo online onde, quem quisesse, pudia fazer streaming, em direto, sobre qualquer assunto ou matéria. Justin Kan, o seu criador, retirou a ideia da sua própria experiência, em que ele próprio decidiu fazer um streaming de vinte e quatro horas, durante sete dias da semana, sobre a sua própria vida. A ideia agradou e a plataforma ganhou vida, com milhares de pessoas a juntarem-se ao movimento. Houve muitas críticas, vários analistas apontando para uma espécie de voyeurismo excessivo, motivadas por um caso específico de um suicídio que foi transmitido em direto. No entanto, o conteúdo mais procurado da plataforma viria a ser, precisamente, o dos videojogos e, em 2011, os colaboradores decidiram lançar uma plataforma própria, dedicada inteiramente a este tipo de conteúdo, o Twitch.

A plataforma permite aos streamers, a transmissão de vídeo com o gameplay de videojogos. O conteúdo do stream pode nem sempre ser de um gameplay, havendo momentos fora do jogo, em que o streamer interage mais ativamente com os espectadores. Os streamers comunicam pela transmissão e pelo chat (situado à direita do stream), enquanto os espectadores comunicam somente pelo chat. Ou seja, o streamer fala para um microfone, esse áudio é transmitido pelo vídeo, os espectadores respondem pelo chat e o streamer vai tentando responder aos espectadores, enquanto joga. A participação é aberta e tudo o que é preciso é criar uma conta no website.

Sendo uma plataforma acessível e fácil de utilizar, com um interesse em comum, o Twitch rapidamente ganhou popularidade, sobretudo nos EUA. Em 2013 alcançou uma média de 43 milhões de espectadores por mês e, em Fevereiro de 2014, foi considerado o quarto website com mais tráfego online dos EUA (Popper, 2014). Foi comprado em Setembro de 2014 pela gigante Amazon e com isso surgiu nova polémica, pois previa-se um controlo mais restrito de determinados conteúdos ou a possibilidade da existência de abuso publicitário, algo que já tinha acontecido antigamente com a compra do Youtube pela Google.

O Twitch tornou-se a principal plataforma de streaming de videojogos, sendo acessível não só no computador, como no tablet ou smartphone. Com o crescimento das comunidades web, o Twitch tem recebido uma grande atenção no que toca às grandes empresas de videojogos, que também usam esta plataforma para a divulgação dos seus produtos ou para comunicar com os seus jogadores. É também a plataforma de excelência no que toca à transmissão dos torneios de E-sports, a mais usada pelos fãs desta indústria emergente, que vibram com as suas personalidades preferidas a jogar os seus videojogos preferidos. Para além da transmissão dos torneios, o Twitch também detém um vasto leque de escolhas, desde o stream de jogos profissionais de equipas, como o stream mais pessoal, de um jogador que quer mostrar ao mundo as suas jogadas num determinado videojogo, ou simplesmente, interagir com outros jogadores.

O Twitch tem vindo a ter um crescimento exponencial de utilizadores em Portugal, ainda que, nada se compare a outros países como os EUA ou até mesmo a vizinha Espanha. Nestes dois últimos anos o acesso cresceu muito, o website teve à volta de 3,2 milhões de visitas, em Portugal. A comunidade gamer tem cada vez mais jovens a utilizarem redes sociais, fóruns e blogs, para comunicarem e interagirem entre si. A criação de equipas profissionais e organização de torneios de videojogos é algo que vai ganhando popularidade, veja-se o caso do Lisbon Games Week (Nov. 2014). Existem, aliás, outros websites portugueses, inteiramente dedicados à comunidade e aos videojogos, organizando torneios, patrocinando equipas, escrevendo notícias: o Fraglíder ou o For The Win ESports, têm sido peça essencial na promoção da cultura dos videojogos. Muitos destes websites têm o seu próprio canal de stream ou promovem outros canais, tanto nacionais como internacionais.

Electronic Sports, ou E-sports, é o termo geral utilizado para descrever a atividade de jogar competitivamente. E-sports é um fenómeno em constante crescimento e evolução, que atrai cada vez mais espectadores, e é uma nova forma de entretenimento. A competição existe há quase tanto tempo quanto os próprios videojogos, embora, no início, esta se baseasse apenas em jogos entre amigos que se desafiavam. A Atari criou a primeira competição, o Space Invaders Tournament em 1980, que então atraiu mais de dez mil participantes. Este torneio foi o precursor daquilo que se haveria de tornar num fenómeno, os E-sports, como hoje conhecemos. Estes diferem do streaming convencional. À semelhança de um desporto tradicional, como o futebol, a comunidade dos E-sports envolve jogadores profissionais, jogadores amadores, equipas, comentadores, patrocinadores, espectadores e fãs. Nos E-sports também se compram e vendem jogadores. Os jogadores de videojogos profissionais procuram treinar e desenvolver as suas capacidades ao máximo. O E-sports abrange vários géneros de videojogos, como os RTS (Real Time Strategy e.g. Starcraft), os FPS (First Person Shooter e.g. Counter Strike), os MOBA (Multiplayer Online Battle Arena e.g. League of Legends) e os Arcade (e.g. Street Fighter). Geralmente, os torneios maiores têm uma arena ou local próprio onde são realizados, em que é possível comprar um bilhete que dá acesso ao espetáculo. Tudo isso é transmitido sobre IPTV, tornando-se um fenómeno global de receitas. O principal evento da indústria é o Major League Gaming, sendo que o MLG Pro Circuit teve em 2012 mais de 12 milhões de espectadores, continuando um crescimento exponencial registado num curto espaço de tempo.

Os E-sports movimentam mais meios humanos, criam um espetáculo muito mais rentável, fazem uso de casters (comentadores em tempo real) e de apresentadores que entretêm a audiência nos tempos mortos do torneio, enquanto se servem da ajuda de vários críticos e especialistas que analisam e comentam o jogo anterior, tal e qual como se vê na TV convencional. O streaming de vídeo online veio permitir aos jogadores, profissionais e não só, atrair milhares de espectadores, expandiu a nova comunidade web, tornou-se uma extensão da experiência e um novo género de entretenimento (Kaytoue et al., 2012). Curiosamente, grandes torneios de videojogos são transmitidos nas televisões nacionais de certos países, como a Coreia do Sul ou a China. O jogar um jogo deu também lugar ao “ver jogar um jogo”.

 

A questão de género e assédio nos videojogos

O “live video” é, portanto, um espaço de forte interação social, de expressão, de produção e consumo. As plataformas de streaming contribuem para a criação deste novo mundo online dos videojogos, onde nasceu uma comunidade que interage e se expressa por vezes de forma descontrolada e intolerante. Mas é um espaço onde jovens e adultos podem encontrar parceiros com interesses semelhantes, tornando-se uma ferramenta que permite um nível de interação e comunicação, enquanto forma de entretenimento, que falta aos media tradicionais, como a televisão ou o cinema, havendo necessidade de acautelar os valores críticos disseminados por uma parte desta indústria cultural (Corral, 2013:202).

Os videojogos são, pois, uma das atividades mais populares de entretenimento global. O streaming de videojogos poderá ser inclusivamente um grande impulsionador para a nova era de televisão social. Nesse sentido, o facto de se verificarem cada vez mais determinados comportamentos discriminatórios por parte dos seus jogadores, designadamente no âmbito das interações multiplayer online, traz uma preocupação acrescentada de um ponto de vista societal.

Uma minoria muito ruidosa de jogadores luta por espaços de jogos exclusivamente integrados por pessoas brancas, cisgénero, heterossexual e masculina, contrariamente à diversidade real dos jogadores destes mundos virtuais. 40 por cento dos jogadores são hoje mulheres e, embora muitas vezes se olhe para os videojogos como entretenimento juvenil, a verdade é que a idade média de um jogador, hoje, é de 34 anos. É um facto que há áreas estratégicas do conhecimento dominadas pelos homens, especialmente na Ciência e Tecnologia e nas TIC (Cano, 2015). O mesmo sucede nos jogos, no entanto, as atuais tendências permitem pensar nalguma inflexão em matéria de representação mais feminina. É um facto que as mulheres se têm vindo a tornar mais visíveis nos jogos, especialmente como “gamers” (Prescott & McGurren, 2014).

Mas o ano de 2014 ficou ainda informalmente cunhado pelos media como “o pior ano para os videojogos”, ao revelar, de uma forma que até agora estava menos óbvia, muita da toxicidade e ódio que existe nos jogos online. Sob a Hashtag #gamergate, jornalistas, críticos e designers de jogos viram-se vítimas de todo o tipo de abuso e assédio por parte de “gamers” com medo de deixar o seu hobby crescer e tornar-se num lugar mais aberto e inclusivo. Nesta indústria, as mulheres, em particular, foram vítimas de assédio, ameaças de morte e de violação, naquilo que pareceu ser a derradeira e última frente de combate de alguns “gamers” para preservarem o meio dos jogos tal como ainda está. Há, de facto, ainda, um “gendered digital divide” nesta indústria (Prescott & McGurren, 2014). Mas porque é que os videojogos suscitam tantas vezes o pior nas pessoas? Que traços psicológicos, sociais, ou do design dos jogos despertam nos jogadores a receita para experiências online, muitas vezes violentas ou desnecessariamente agressivas?

Comecemos por uma análise mais específica da palavra “gamer”. Quando Aisha Tyler, uma actriz e profissional de televisão americana, apresentou a conferência de imprensa da E3 da Ubisoft, em 2004, houve muita gente a ficar desagradada por achar que ela não era uma “gamer”. Na altura, ela respondeu no Facebook com um longo post a enumerar a vasta experiência que tinha a jogar jogos, desde os seus tempos de criança, nas máquinas de arcade, até hoje. Portanto, alguém que claramente adora videojogos teve de vir defender-se de ser acusada de não ser uma “gamer”, por não cair no estereótipo ou na demografia associada a este grupo.

Em vez de ser inclusivo, ou mesmo apenas descritivo, o termo “gamer” tornou- se excludente. De tal forma, aliás, que a Nintendo lançou uma campanha em 2012 intitulada “I’m Not a Gamer”, o que foi, no mínimo, controverso. No fundo, a importância do termo, e a razão das muitas disputas à sua volta são consequência da sensação de comunidade que ele traz. Queremos associar-nos a outros que vivem as mesma aventuras que nós e lutam nos mesmos cenários e que, como nós, se juntam online em conversas e comunidades virtuais em torno disso. O psicólogo social Henri Tajfel chamaria a isto a formação de uma auto-identidade: a parte da autoconsciência de uma pessoa que tem origem no seu grupo social.

Mas o problema é que as comunidades de “gamers” acabam por ser definidas em torno de um pequeno grupo de jogos com orçamentos elevados e gráficos ultrarealistas. O esforço maior passou a ser manter as pessoas “fora deste grupo” e criar uma lista artificial de jogos obrigatórios para “gamers a sério”, ao invés de convidar todas as pessoas que jogam jogos a fazerem parte desta identidade, alargando-a a uma diversidade de pessoas e experiências. E se cada pessoa usa a palavra “gamer” de uma forma diferente, o termo terá utilidade? No caso da Aisha Tyler, o termo serviu para a excluir com base na sua demografia (no caso, por ser uma mulher).

Alguns “gamers” sofrem daquilo que os psicólogos chamam de “viés de confirmação”, ou seja, a tendência para favorecer a informação que confirma uma ideia já pré-concebida. Por exemplo, se uma pessoa raramente vê raparigas a jogar Call of Duty, então pensa que nenhuma rapariga joga videojogos, porque não se cruzam nos mundos virtuais ou porque, apenas vendo os nicknames, assume automaticamente que são só rapazes, por esse ser o seu círculo de amigos com quem joga jogos. Outros estereótipos referem-se a pessoas que jogam em plataformas móveis e smartphones não são gamers “a sério” porque eles são “fáceis de mais”. Ou pior, em casos com o da Aisha Tyler, porque ela é uma mulher negra com mais de quarenta anos…

Para o game designer Raph Koster, o pior destino dos jogos seria eles tornarem- se um nicho. Talvez a solução seja desvalorizar o termo “gamer”… Porque a verdade é que os jogos são potencialmente para todas as pessoas. Um rótulo como “gamer”, na forma como é entendido hoje, acaba por afastar as pessoas criando a ilusão de que um gamer é apenas um tipo específico de pessoa. Quando, na verdade, a população de pessoas que jogam jogos é cada vez mais diversa e complexa. Este rótulo acaba por condicionar a perceção dos jogadores para apenas um tipo específico de jogos, normalmente os mais populares e apenas para um tipo de experiências. Os “jogos a sério”, alguns entendidos como God of War, Halo e Grand Theft Auto. E embora esses jogos sejam realmente jogados apaixonadamente por muitos jogadores, eles são apenas um tipo de jogos. O que acontece é que alguns jogos que não cabem em absoluto nesta categoria, como, por exemplo, Proteus ou Dear Esther, por terem mecânicas e públicos completamente alternativos aos jogos “mainstream”, acabam por ser rotulados de “não verdadeiros jogos”. É por isso que muitas pessoas acabam por dizer que “não sou um gamer, mas...” e depois listam vários jogos que jogam (como Angry Birds, ou Madden, etc) que muitos categorizariam como não sendo “jogos a sério”. Independentemente das experiências mais populares que as pessoas procuram nos jogos, as definições de jogo e de jogador não deviam ficar limitadas.

Podemos dizer que o assédio (sob múltiplas formas de racismo, xenofobia ou misoginia) é um lugar comum e também um dos pontos mais baixos da cultura dos jogos online. Este assédio representa o que há de pior na interação de jogadores em ambientes virtuais e acaba por funcionar como uma antítese de tudo aquilo que os jogos deveriam representar: entretenimento, prazer, expressão e comunidade. A este propósito, Johnny Chiodini, no site de notícias de videojogos Gamespot, referia o seguinte: «Não quero mais varrer o discurso de ódio para debaixo do tapete e fingir que ele não existe [nos jogos], da mesma forma que não lhe quero dar uma plataforma onde ele pode ser reproduzido. Os ataques pessoais que chegam a perseguição e que acontecem são proibidos pelo nosso código de conduta e, no entanto, ocorrem livremente em todo o nosso site» (Chiodini, 2013). Também Nathan Greyson, escrevia no site de videojogos Rock, Paper, Shotgun: «os MOBAs, como o League of Legends, são infames pelas suas comunidades tóxicas, onde as mulheres não surpreendente mas imensamente deprimente recebem ainda mais insultos. ‘Piadas’ sob a sua incapacidade inerente de jogar bem, insultos muito particulares, e referências cruéis aos seus corpos, ‘humor’ sobre o seu peso, convites sexuais o pior que conhecemos» (Greyson, 2013).

Diferentes iniciativas online demonstram a importância de lidar com este tópico. O site Fat, Ugly or Slutty faz coleção dos diferentes tipos de mensagens “arrepiantes, perturbadoras, insultuosas, degradantes e/ou simplesmente cruéis” que jogadoras de jogos online recebem diariamente no contexto dos jogos. A série de videos “Tropes vs. Women” de Anita Sarkeesian, de 2013, tornou-se num dos maiores exemplos de como e quanto as comunidades de jogos manifestam os seus ódios (Martínez, 2014). A série foi financiada no Kickstarter em Maio de 2012 e imediatamente Sarkeesian começou a ser violentamente assediada online, a receber ameaças de morte e de violação de grupos de jogadores antifeministas, apenas porque o projeto tinha como objetivo “explorar os estereótipos de personagens femininas nos jogos ao longo da história da indústria dos jogos” (Sarkeesian, 2009). Embora o projeto tenha sido financiado em 24 horas, até aos dias de hoje, comentários em qualquer vídeo de Anita Sarkeesian estão fechados pela persistência do assédio.

O comportamento humano é infinitamente complexo e a forma como respondemos a situações diferentes pode ser difícil de compreender e absolutamente individual. No entanto, existem algumas características de interações online que são absolutamente diferentes de interações face-to-face e que facilitam a compreensão do porquê dos jogadores online, muitas vezes, terem comportamentos anti-sociais. A comunicação online leva-nos, muitas vezes, a um estado de desinibição, como explica John Suller (2004). Ele descreve seis características da comunicação online que nos levam a comportar de forma diferente na componente menos simpática e social, quando comparada com a comunicação offline. Quatro das características que Suller refere podem ser diretamente aplicadas aos ambientes dos jogos online. i) Anonimidade dissociativa - as nossas ações online não são realmente nossas, mas antes das nossas “personas”; ii) Invisibilidade, que está relacionada com a sensação de não estarmos a ser fisicamente vistos, o que implica sentir maior confiança para fazer/ dizer coisas que não faríamos/diríamos offline; iii) Imaginação dissociativa - que nos faz pensar na internet como um lugar não real, com as nossas ações a não terem grandes consequências; e iv) Minimização da autoridade, quando os jogadores insultam e atacam outros sem haver consequências destas ações por não existir nenhuma autoridade para os censurar. Suller (2004) argumenta que a combinação destes fatores leva a uma desinibição do nosso comportamento quando nos relacionamos online.

Importa então questionar sobre a melhor forma de lidar com o assédio/agressão nas comunidades de jogos. Não basta confrontar os agressores online, há muito que se pode fazer nesta indústria, o que requer cooperação entre designers e gestores das comunidades online. Estas soluções têm, no entanto, de ser simples e práticas de implementar, para funcionarem no imediato nos jogos e comunidades web que já sofrem destes problemas. Têm, igualmente, de ser flexíveis de forma a ir ao encontro das necessidades de diferentes comunidades e culturas que se cruzam no mundo dos jogos online.

A partir de uma reflexão conjunta de vários grupos e personalidades, do que se destacam a “Fat, Ugly and Slutty”, Morgan Romaine da “Red 5”, Elisa Melendez da Universidade da Flórida e Chris Petters, professor na Digipen e antigo engenheiro da Microsoft, eis algumas propostas: Dar relevância à quantidade de vezes que um jogador fosse silenciado, e.g., quando esse valor fosse 10% superior à média, cada vez que esse jogador entrasse no sistema, entraria silenciado por defeito, havendo assim um controlo partilhado do assédio na comunidade, retirando-se aos agressores/ abusadores o acesso livre e direto aos canais de comunicação. Um jogador que entrasse online e visse o seu adversário auto-silenciado ficaria imediatamente em alerta para o que podia surgir. Este mesmo sistema poderia ser aplicado aos serviços de mensagens dos jogos. Por exemplo, se 80% das mensagens enviadas por um utilizador não obtivessem resposta, ele poderia ficar com as suas mensagens limitadas à sua lista de amigos. Outra possibilidade: se algumas destas ferramentas de comunicação tivessem de ser ganhas, ao invés de serem dadas por defeito, isso impediria as pessoas de simplesmente criar uma nova conta sempre que se vêm silenciados ou impedidos de enviar mensagens. Se fosse obrigatório atingir um determinado resultado no jogo, ou um certo ranking, antes do chat de voz ser disponibilizado, seria muito mais difícil para os agressores esconderem-se atrás de identidades descartáveis para fazerem o seu discurso de ódio.

Por último, por vezes as pessoas com quem jogamos são também a força maior de todas. Qualquer jogo que assente numa interação social, deve incorporar o valor do respeito diretamente na sua comunidade. Se as guilds e os clãs tiverem um rating de reputação partilhado, segundo o qual o mau comportamento de um dos seus membros se repercute no rating de reputação do clã como um todo, poderia ver-se a pressão social em criar uma alteração de comportamento. Mas, essencialmente, o importante é deixar claro que o assédio nos mundos online tem consequências para todos e não só para aqueles que são atacados diretamente.

 

Conclusão

Os videojogos e as suas comunidades sofrem dos mesmos problemas que outras comunidades online e offline, no que toca à discriminação, ao sexismo, à violência e ao abuso. Tudo consequências de grandes grupos de pessoas interagirem umas com as outras sem a necessária moderação ou auto-regulação visível de gestão de conteúdos e comunidades.

Em acréscimo, as comunidades de jogos têm, muitas vezes, a pressão da competição, do anonimato e de uma identidade partilhada que não é necessariamente inclusiva. Sem um foco específico em fomentar a inclusão, a diversidade e o respeito das interações entre os “gamers” e as suas experiências online, estas comunidades muitas vezes revelam-se insustentavelmente tóxicas, sem que isso traga benefício algum, nem para os seus jogadores, nem para os moderadores, os designers, as empresas de jogos, ou mesmo para a indústria dos jogos como um todo. Muito pelo contrário, isto limita o seu crescimento, afasta pessoas da indústria, tanto os profissionais como os consumidores.

Mas há sinais de mudança, que se notam por vezes na própria televisão (Press, 2009), embora não tanto na informação na Internet (Cullity & Younger, 2009) ou em mobile location-based services (Hjorth, 2013). Na área dos videojogos têm surgido mais iniciativas, há mais profissionais a falarem sobre a hostilidade e a discriminação nas comunidades de jogos e a aplicarem medidas, que embora ainda embrionárias, são um primeiro passo para tornar melhores as experiências online para todos os participantes. Se os videojogos vivem tempos de crescimento até agora nunca vistos, as suas políticas de gestão de comunidades e de auto-regulação, ou de introdução de códigos específicos que melhorem a classificação de conteúdos (para além de códigos do tipo PEGI - Pan European Game Information, de controlo parental, com classificação por idades e descritores de conteúdos), estão a dar passos significativos, mas necessitam de se tornar mais visíveis e eficientes. A introdução da etiqueta PEGI OK, adaptada à dimensão social da web e às novas plataformas móveis é um passo importante nesse sentido (Corral, 2013:113). No final de contas, como se trata de uma indústria competitiva que se quer rentável e menos “gender-incongruent” (Prescott & McGurren, 2014), que pretende ter produtores e utilizadores cada vez mais numerosos e satisfeitos, é bem provável que seja continuado o esforço nesta área de modo a que as experiências online sejam cada vez mais inclusivas.

 

 

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Artigo por convite /Article by invitation

 

 

David Pinto – Investigador colaborador do CIC.Digital (Pólo FCSH/NOVA)
Francisco Rui Cádima – Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação (FCSH/NOVA). Investigador Responsável do CIC.Digital
Joana Coelho – Investigadora colaboradora do CIC.Digital (Pólo FCSH/NOVA)
Laura Dias – Investigadora colaboradora do CIC.Digital (Pólo FCSH/NOVA)

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