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Media & Jornalismo
versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462
Media & Jornalismo vol.18 no.32 Lisboa abr. 2018
ARTIGO
Direito e proteção à privacidade em códigos deontológicos de jornalismo1
Law and privacy protection in journalistic codes of conduct
Derecho y protección de la privacidad en códigos deontológicos de periodismo
Rogério ChristofolettiI; Giulia Oliveira GaiaII
I Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Jornalismo – SC CEP: 88-040-970 – Florianópoli, Brasil. E-mail: rogerio.christofoletti@uol.com.br
II Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Departamento de Jornalismo – SC CEP: 88-040-970 – Florianópolis, Brasil. E-mail: giuogaia@gmail.com
RESUMO
A privacidade já não é mais o que era antes. As transformações culturais decorrentes dos avanços tecnológicos mais recentes têm ajudado a redefinir os contornos do mundo reservado da intimidade. Câmeras espalhadas por toda parte, dispositivos móveis cada vez mais populares e capazes de captar qualquer movimento, e sistemas de monitoramento, rastreamento e vigilância massiva fazem com que “estar só” seja quase impossível nos dias atuais. Ao mesmo tempo, bilhões de pessoas exibem-se nas redes sociais e a mídia aperta o cerco para satisfazer o direito à informação. Neste contexto de erosão da vida íntima, avaliamos como o tema da privacidade é tensionado em vinte códigos deontológicos do jornalismo. Analisamos como o assunto é tratado, com que profundidade e que recomendações são dadas aos profissionais para atender a esse direito. Os resultados apontam para superficialidade, desatualização e insuficiência dos códigos para tratar da questão.
Palavras-chave: Privacidade; Jornalismo; Códigos Deontológicos; Ética Jornalística; Direito à Intimidade
ABSTRACT
Privacy is no longer what it used to be. The cultural transformations arising from the latest technological advances has helped to redefine the contours of the intimacy. Cameras everywhere, increasingly popular mobile devices capable of capturing any movement, and systems for monitoring, tracking and mass surveillance make "to be alone" almost impossible these days. At the same time, billions of people expose themselves on social networks and the media tightens the noose to satisfy the right to information. In this context of dissolution of the intimate life, we evaluate how privacy is stressed in twenty deontological codes of journalism. We analyze how the subject is managed, what depth and what recommendations are given to professionals to attend this right. The results point to superficiality, outdatedness and insufficiency of the codes to deal with the issue.
Keywords: Privacy; Journalism; Ethical Codes; Media Ethics; Right to Privacy
RESUMEN
La privacidad ya no es la misma de antes. Las transformaciones culturales después de los avances tecnológicos más recientes han ayudado a redefinir los contornos de la intimidad. Cámaras en todas partes, dispositivos móviles cada vez más populares y capaces de captar cualquier movimiento, y sistemas de monitoreo, rastreo y vigilancia masiva hacen que "estar solo" sea casi imposible en los días actuales. Al mismo tiempo, miles de millones de personas se exhiben en las redes sociales y los medios hacen cerco para satisfacer el derecho a la información. En este contexto de erosión de la vida íntima, evaluamos cómo el tema de la privacidad es tensado en veinte códigos deontológicos del periodismo. Analizamos cómo se trata el asunto, con qué profundidad y qué recomendaciones se dan a los profesionales para atender a ese derecho. Los resultados apuntan a la superficialidad, desactualización e insuficiencia de los códigos para tratar la privacidad.
Palabras-clave: Privacidad; Periodismo; Guías Deontológicas; Ética Periodística; Derecho à la Intimidad
Embora haja registros históricos de que os antigos romanos tivessem alguma preocupação com sua intimidade2, a privacidade é uma ideia recente, que passou a ser considerada mais seriamente só depois dos séculos XVIII ou XIX. Antes disso, famílias inteiras dividiam o mesmo cômodo para dormir, banhavam-se e faziam necessidades fisiológicas em grupo, não era incomum que crianças presenciassem cenas íntimas de seus pais, e fiéis liam as sagradas escrituras em voz alta (Ariés & Duby, 1990, 1991a, 1991b).
Com o passar do tempo, a evolução das sociedades e o aumento da complexidade da vida coletiva provocaram não apenas mudanças nas plantas arquitetônicas e a adoção de divisórias mais consistentes entre grupos e pessoas. Também fizeram surgir normas sociais e etiquetas que passaram a regrar as comunidades (Ariés & Duby, 1992a, 1992b; Vincent, 2016), e foi um caminho natural que a privacidade passasse a ser amparada por leis (Ribeiro, 2003). Por isso, em 1890, Warren e Brandeis - receosos com o surgimento de câmeras fotográficas e com o avanço aparentemente sem limites da imprensa - defenderam a privacidade como um direito a ser protegido e observado pelo Estado. Foi o que chamaram de “o direito de ser deixado em paz”, “de estar só”, noção que ainda orienta tribunais e afasta o olhar impertinente que persegue celebridades e anônimos.
No século 20, os meios de comunicação de massa e o jornalismo como crônica do tempo presente vão se consolidar na vida social borrando e reescrevendo os limites entre o que deve se tornar público e o que precisa ser mantido em privado. Reivindicando para si a prerrogativa de fiscalizar poderes, jornalistas promoverão devassas nas vidas pessoais de detentores de cargos públicos, bem como invadirão a privacidade dos famosos ou dos mais fracos. Muitas vezes sem critério consistente. Atraindo para si a responsabilidade de zelar pelo direito à informação, jornalistas assassinarão reputações, e padecerão de amnésias temporárias sobre o direito individual de ter o próprio resguardo. Para justificar suas ações, repórteres e editores evocarão palavras mágicas como “interesse público”, poderosas o suficiente para pulverizar qualquer fronteira bem demarcada para a vida íntima.
A mesma mídia invadirá a vida alheia, não apenas para garantir o direito à informação, mas para alcançar mais lucro e poder de influência. O exagero e outras formas de desprezo levarão a abusos e a violações das leis e normas éticas (Lamay, 2003).
Nas décadas seguintes, as sociedades se abasteceram do farto volume de enredos, personagens e intrigas, aumentando seu nível de informação sobre o que se passa ao redor mas também relaxando em alguns padrões de convivência. Um importante catalisador desse processo foi o acirramento da individualização, que resultou numa cultura do self e na consequente espetacularização da existência privada. A popularização de computadores pessoais, o surgimento de dispositivos móveis como smartphones e tablets, e a ampliação de oferta de internet em banda larga fertilizaram esse terreno. As facilidades técnicas para se produzir conteúdo sobre si mesmo e difundi-lo massivamente na internet (ou em outras vias) tornaram as redes sociais um complexo de vitrines da glória e da ruína individual. Desta forma, muitas pessoas agem como se fossem obrigadas a compartilhar conquistas e sofrimentos com seus “amigos” ou “seguidores”. Mostram-se em selfies, contam onde estão, fazendo check in nas redes wi-fi, e dividem seu universo particular, contando o que estão sentindo em tempo real… Com isso, a “invasão de privacidade” - motivo de acusação frequente a jornalistas e bisbilhoteiros - ganha uma irmã hiperativa, a “evasão de privacidade”, praticada em larga escala (e não circunscrita a nenhum círculo profissional), marcada por um conjunto difuso de ações que fazem corar os mais pudicos e reservados.
A deterioração do edifício mais rígido da vida privada levou a uma disputa de ideias sobre que futuro estaria reservado à privacidade. Enquanto alguns como Rosenberg (1969), Miller (1971), Whitaker (1999) e Sykes (1999) alardeavam a sua morte, Garfinkel (2000), Klosek (2007) e O'hara & Shadbolt (2008) apontaram para a necessidade de travar uma guerra pela sua manutenção, mesmo que reduzida e sob outras bases. O contexto atual de hegemonia de redes sociais e de Big Data oferece mais riscos à privacidade: somos cada vez mais inspecionados por aplicações de geolocalização, e por sistemas que recolhem, armazenam e comutam dados pessoais sem autorização ou conhecimento prévio dos titulares (Tubaro et all, 2014; Sarat, 2015). Para jornalistas e organizações de mídia, somam-se a esses desafios outros ainda em consolidação nas novas mídias, conforme advertem Mills (2015) e McStay (2017). Não se trata mais de zelar apenas pelo anonimato de uma fonte, de decidir sobre que partes da informação divulgar ou de cuidar para não publicizar um segredo que pode trazer danos para a audiência – conforme estavam preocupados Lamay (2003), Hodges (2009), Carlson (2011) e Petley (2013). Whistleblowers e vazamentos de informação, clamores por mais transparência dentro da própria mídia (Christofoletti, 2016), aumento na segurança para o trabalho dos jornalistas e a própria redefinição de qual privacidade é mais conveniente são questões que se apresentam às portas das redações. Mas será que os jornalistas estão preparados para esse vendaval?
Aspectos Metodológicos
Empresas, profissionais e organizações classistas reúnem parcela importante dos valores que ajudam a compor seu campo profissional em códigos deontológicos. É nesses documentos – discutidos, formulados e acordados em grupos sociais – que repórteres, redatores, gestores e editores definem condutas a serem perseguidas como padrões de ação em situações de dilemas éticos. Funcionam como gramáticas profissionais, circulam publicamente e, assim, manifestam preocupações, princípios e valores para os demais grupos sociais. Porque são engendrados coletivamente dentro de uma categoria profissional, os códigos deontológicos têm legitimidade corporativa e seu caráter público enfatiza sua relevância social. Apesar disso, são instrumentos bastante limitados em sua aplicação e funcionamento, já que a fixação de princípios e a recomendação de atitudes não garantem que seus signatários sejam mais éticos. É necessário lembrar que os códigos deontológicos são bem distintos das leis, que têm regime de aplicação compulsória. Códigos de ética são instrumentos de aconselhamento e de orientação, dependendo decisivamente da consciência dos sujeitos para que tenham efetividade. Portanto, são frágeis, numerosos, mas necessários (Christofoletti, 2017).
Por seu caráter normativo, os códigos deontológicos frequentemente funcionam como material de pesquisa e investigação das condutas esperadas ou prescritas na categoria dos jornalistas. São referenciais os estudos de Brajnovic (1978), Bruun (1979), Erbolato (1982), Elliot-Boyle (1985-1986), Meyer (1987), Hulteng (1990), Merrill (1991), Harris (1992), Goodwin (1993), Boeyink (1994), Laitila (1995), Villanueva (1996), Karam (1997), Christians (1998), Aznar (1999), Son (2002), Bertrand (2002), Limor (2002), Tófoli (2008) e Bykov et al. (2015).
Neste artigo, também vamos nos debruçar sobre alguns códigos de ética jornalística, objetivando observar como é abordado o tema da privacidade, e que posturas ou gestos esses documentos preconizam. Para tanto, três questões orientaram nossos passos:
- a) Privacidade é um tema tratado por códigos deontológicos?
- b) Com que profundidade o assunto é discutido nesses códigos?
- c) Que advertências ou recomendações são feitas aos profissionais?
Para responder, recorremos a uma amostra arbitrária de vinte códigos deontológicos, sem preocupação estatística, atendendo a quatro critérios: 1) Representatividade: os códigos devem ter sido originados em instituições e ser seguidos em seu país de origem; 2) Temporalidade: é preciso que a amostra contemple códigos de diversas épocas, o que possibilita uma visão diacrônica e potencialmente evolutiva; 3) Abrangência: os códigos devem ser gerais e com escopo nacional em seus países de origem, não vigentes apenas em empresas ou grupos, e a amostra deve contemplar todos os continentes habitados do planeta; 4) Reputação: os códigos devem ser reconhecidos e respeitados pela categoria profissional.
A amostra foi composta por um código da Oceania, dois da África, três da Ásia, quatro da Europa, quatro dos Estados Unidos, e seis da América do Sul, sendo quatro do Brasil. Fazem parte deste estudo os seguintes códigos deontológicos3:
A partir da definição da amostra, elaboramos um instrumento para coleta dos dados, e que se ocupava de responder às três questões anteriormente mencionadas, que davam conta da presença do tema privacidade nos códigos, do aprofundamento desse tratamento e de recomendações de conduta. Na sequência, por meio de palavras-chave, analisamos cada código, procurando o que se referia à privacidade de sujeitos e aos limites do jornalismo. A nuvem de palavras desta etapa de varredura incluía termos como “privacidade”, “segredo”, “anonimato”, “fonte”, “off the record”, “celebridades”, “vigilância”, “direito de ser esquecido”, “interesse público”, “direito à informação”, “câmera escondida”, “disfarce”, “vazamentos”, “direito à privacidade”, “intimidade” e “segurança”, e suas variantes. Esta fase da pesquisa permitiu ampliar a leitura do corpus, e os resultados são apresentados a seguir.
Presença e visibilidade da privacidade
O tema da privacidade é um assunto recorrente nos códigos deontológicos do jornalismo, e sua presença foi identificada em 19 dos 20 documentos da amostra, taxa que permite afirmar que é uma preocupação ética muito comum4 e globalmente disseminada, pois tem menções em todos os continentes analisados. A leitura do corpus revelou ainda que treze códigos reservam um capítulo ou seção específica sobre o tema, destacando sua importância ou indicando cuidados a serem tomados pelos profissionais:
O Código de Ética para Jornalistas Nigerianos, por exemplo, adverte que “como regra geral, um jornalista deve respeitar a privacidade dos indivíduos e seus familiares, a menos que isso afete o interesse público”, o que em termos práticos vale para “expor crime ou delito grave”, “comportamentos anti-sociais”, “proteger a saúde pública, a moralidade e a segurança” e/ou “impedir o público de ser induzido a erro por alguma declaração ou ação do indivíduo interessado”.
No Código de Ética do Colégio de Periodistas de Chile, jornalistas devem respeitar a dignidade e a vida privada das pessoas, conforme “definições e normas consagradas na legislação chilena e nos instrumentos internacionais”. De acordo com o código, o profissional de informação “respeitará a intimidade das pessoas em situações de sofrimento ou dor, evitando especulações e interferência gratuita em seus sentimentos e circunstâncias em que isso não representa uma contribuição substancial à informação”. São aceitas violações à privacidade quando se enquadrarem em exceções cobertas pelo interesse público, cláusula igualmente encontrada em códigos da Argentina, Espanha, Reino Unido, África do Sul, Indonésia, entre outros.
As Diretrizes do Conselho de Imprensa da Holanda reconhecem ainda que “para pessoas em posições mais ou menos públicas e para VIPs, uma certa quantidade de exposição e publicidade indesejada é inevitável”, embora esses sujeitos também tenham direito de manter reservado seu comportamento pessoal.
O Código de Ética dos Jornalistas Australianos aponta a necessidade de “respeitar a dor privada e a privacidade pessoal” e que jornalistas, por sua vez, “têm o direito de resistir à compulsão de se intrometer”. No Cânone do Jornalismo Japonês, a preocupação é com a “dignidade dos seres humanos”, com a “honra dos indivíduos” e o “direito à privacidade”. Para a National Press Photographers, dos Estados Unidos, os repórteres fotográficos e editores de imagem devem “tratar todos os assuntos com respeito e dignidade. Dar especial atenção a assuntos vulneráveis e compaixão às vítimas de crime ou tragédias. Intrusão em momentos privados de sofrimento apenas quando o público tem uma necessidade imperiosa e justificável de ver”. O também estadunidense Cânones do Jornalismo faz uma distinção útil e relevante no que chama de fair play: “Um jornal não deve envolver direitos privados ou sentimentos sem uma garantia segura de direito público, diferentemente da curiosidade pública”.
Em língua portuguesa, dois códigos merecem menção: o Código do Jornalista Brasileiro – que trata do dever do jornalista de “respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão” – e o Código de Ética da Radiodifusão Brasileira, para quem “as emissoras manterão em sigilo, quando julgarem conveniente e for pedido por lei, a fonte de suas notícias”. Importante notar que a privacidade dos informantes não é amparada pelo interesse público ou coisa que o valha, segundo esse último documento.
De forma generalizada, os dados deste estudo apontam para o fato de que a privacidade é uma preocupação que faz parte da constelação deontológica dos jornalistas, e que sua frequente menção nos códigos de ética sinaliza publicamente cuidado e compromisso na sua preservação, apenas atenuados em situações em que os interesses da coletividade se sobrepõem a garantias individuais.
Aprofundamento do tema e recomendações de conduta
Se o tema da privacidade foi observado em quase todos os códigos deontológicos da amostra, e se em treze, foram dedicadas seções ou capítulos ao tema, pode-se dizer que em apenas cinco casos houve tratamento mais aprofundado do assunto. A taxa é baixa e sinaliza superficialidade considerando-se a amplitude da amostra. Neste sentido, destacam-se documentos da África do Sul, Alemanha, Espanha, Holanda e Índia, e é perceptível que as preocupações deontológicas de cada país estejam intimamente ligadas às suas realidades específicas.
O Código de Ética e Conduta para a Mídia Impressa e Online do Conselho de Imprensa da África do Sul preocupa-se com privacidade, dignidade e reputação: “Deve ser atribuída especial importância aos costumes culturais sul-africanos no que diz respeito à privacidade e à dignidade das pessoas privadas de liberdade e ao respeito pelos que faleceram, bem como às crianças, deficientes físicos e mentais”. Além disso, o documento enfatiza cuidados sobressalentes em coberturas jornalísticas e abordagens a soropositivos (portadores de HIV), mulheres vítimas de violência sexual, crianças e adolescentes.
O Código Deontológico para a profissão do Jornalismo, da Federação de Imprensa Espanhola, é detalhista nas advertências e atenta para a necessidade de equilibrar “o direito dos cidadãos de serem informados” e “o direito dos indivíduos à privacidade”. É um dos poucos guidelines a usar expressões como “interferir na vida privada” e a mencionar “consentimento prévio” de pessoas no processo de produção das notícias. Quando se tratar, por exemplo, de situações que podem causar ou implicar dor ou tristeza nas pessoas relacionadas, o código defende que os jornalistas espanhóis evitem “interferência rude e especulações desnecessárias sobre seus sentimentos e circunstâncias”. Crianças e adolescentes, bem como pessoas albergadas, em hospitais ou em instituições similares devem ter um tratamento diferenciado em matérias, orienta o documento.
Embora o Código de Imprensa da Alemanha não disponha de uma seção específica sobre privacidade, o assunto permeia os deveres dos jornalistas diversas vezes ao longo do documento. É possível ver que o Conselho de Imprensa prevê cuidados básicos, como proteção à imagem e às crianças, e até mesmo questões mais dirigidas, como ressocialização, suicídio, refugiados e doenças. Endereços privados, bem como hospitais, casas de repouso, resorts de cura, prisões e centros de reabilitação não devem ser publicizados, pois gozam de proteção especial, um cuidado específico para a localização das fontes de informação ou pessoas mencionadas em notícias e reportagens.
Segundo o código germânico, quando noticiar acidentes, crimes, investigações ou julgamentos, jornalistas geralmente não devem publicar informações em texto ou imagens que permitam a identificação de vítimas e autores. Como em outras geografias, crianças e adolescentes contam com proteção especial “com respeito ao seu futuro”. Vítimas de acidentes ou de crimes têm direito a reserva especial a seus nomes. “De regra, não é necessário identificar a vítima para que os leitores possam entender melhor o acidente ou o crime. As exceções podem se justificar se a pessoa for famosa ou se existirem circunstâncias especiais de acompanhamento”, reconhece o documento.
São justificáveis as publicações de nomes completos ou imagens de acusados se houver interesse em resolver crimes, se existir mandados de prisão ou se os crimes foram cometidos “à vista do público”. Mas o código ressalva: “Se houver razões para acreditar que um suspeito é considerado incapaz de cometer tal crime, nenhum nome ou fotografia deve ser publicado”. Nomes e imagens de desaparecidos podem ser veiculados abertamente desde que com a anuência das autoridades responsáveis, geralmente policiais ou judiciárias.
Ainda de acordo com o Código de Imprensa da Alemanha, informações e imagens de funcionários públicos e representantes eleitos podem ser publicadas se existir conexão entre seus cargos ou mandatos e os crimes reportados. “O mesmo se aplica a pessoas famosas se o crime de que são acusadas for contrário à sua imagem pública”, defende o documento.
Bastante contemporâneas e visivelmente conectadas com os tempos atuais e com os muitos desafios éticos e tecnológicos, as Diretrizes do Conselho de Imprensa da Holanda mencionam já nos primeiros parágrafos a proibição de dispositivos escondidos de captação de áudio e vídeo. Também adverte para que os profissionais não publiquem ou transmitam imagens de pessoas em áreas não-públicas ou mesmo anotações dessas observações sem as permissões dos sujeitos em questão. Ainda segundo o documento, fotojornalistas devem respeitar as pessoas e não incomodá-las por períodos prolongados de tempo, nem segui-las ou encurralá-las para capturar as imagens ou retratos. Em atitude rara, o código holandês atrai a responsabilidade para além do nível dos repórteres: “Os editores assegurarão que as informações e imagens coletadas de tal forma não sejam publicadas”.
Para o Conselho de Imprensa da Holanda, os jornalistas devem se abster de publicar detalhes em texto ou imagem que permitam a identificação de suspeitos e acusados ou que possibilitem que esses sejam ser rastreados por outras pessoas além de seus círculos íntimos. O receio está atrelado a ações coletivas de perseguição ou justiçamento. Exceções são permitidas quando nomes constituírem partes importantes dos relatos jornalísticos. Os holandeses ponderam ainda: “Não mencionar o nome por causa da reputação geral da pessoa envolvida não serve para qualquer propósito. Não mencionar o nome pode causar confusões com outras pessoas que podem sair prejudicadas se tais informações forem publicadas em reportagens investigativas”.
Erros médicos, de advogados ou similares devem vir a público? As diretrizes holandesas consideram que sim, pois servem ao interesse geral. Os interesses dos negócios das pessoas envolvidas, que podem ser afetados negativamente pela publicação, não devem ser levados em conta na hora da apuração. “Mencionar o nome das pessoas é importante para não haver confusão com colegas de profissão”. No relato de infrações graves, os pormenores devem ser omitidos se contribuírem para o aumento do sofrimento da vítima ou sua família, e se não demonstrarem a natureza e a gravidade do ocorrido ou suas consequências.
As Normas de Conduta Jornalística do Conselho de Imprensa da Índia abordam diversas condutas profissionais na publicização de informações, com destaque para questões de gênero e assuntos suscetíveis à estigmatização feminina. Por isso, chama a atenção de repórteres e editores para quando forem reportar denúncias de crimes envolvendo estupro ou sequestro de mulheres, e agressão sexual contra crianças, para evitarem levantar dúvidas e questões relacionadas à castidade, ao caráter pessoal e à privacidade das mulheres. Em casos semelhantes, nomes, imagens das vítimas ou outras informações que facilitem sua identificação não são passíveis de publicação. Crianças e adolescentes, que são filhos de abuso sexual, casamento forçado ou união sexual ilícita, não devem ser identificados ou mostrados. O luto pessoal deve ser respeitado e, por isso, captação de imagens em cenas fúnebres é considerada intrusão desnecessária. “No entanto, fotografias de vítimas de acidentes ou calamidades naturais podem ter maior interesse público”, contrapõe o documento.
Para as normas da Índia, a privacidade é um direito humano inviolável, embora não absoluto, já que seu alcance difere de pessoa para pessoa e de situação para situação. “Uma pessoa pública que atua sob o olhar público não pode esperar receber o mesmo grau de privacidade que uma pessoa comum. Seus atos e conduta são de interesse público mesmo os privados, e podem ser levados ao conhecimento geral através da imprensa”. Entretanto, os jornalistas têm o dever de garantir que essas informações sejam obtidas por meios justos, sejam devidamente verificadas e relatadas com precisão e correção. “Para obter informações relativas a atos praticados longe do olhar público, não se espera que a imprensa use dispositivos de vigilância”, aponta o documento, para quem os aspectos relativos à casa de uma pessoa, a sua família, religião ou saúde, a sua sexualidade e vida pessoal são assuntos privados e que só podem ser violados quando atravessarem o interesse público.
Na amostra de códigos analisados, são poucos os casos de recomendações ou sugestões de conduta, conforme demonstramos até então. De forma esparsa, há orientações genéricas como “equilibrar direitos”, “ter sensibilidade”, “mostrar compaixão pelos afetados pela notícia” e “tratar todos os assuntos com respeito e dignidade”. A falta de detalhamento de como tais práticas devem ser executadas no cotidiano jornalístico dificultam não só sua incorporação em rotinas de produção, mas também desejáveis mudanças de hábitos pessoais e de culturas organizacionais.
Considerações finais
A análise de duas dezenas de códigos deontológicos dos cinco continentes habitados e provenientes de diferentes organizacionais e realidades profissionais, tendo como foco a privacidade, permitiu-nos compreender como o tensionamento público-privado é recorrente na órbita das preocupações ético-profissionais de repórteres, editores e redatores. Apesar dessa ubiquidade, a leitura revela pouco aprofundamento das discussões, quase sempre oscilando no entendimento da privacidade ora como direito fundamental, ora como condição violável para o atendimento de outro valor do jornalismo, o interesse público. Por isso, vários documentos do corpus admitem e atenuam violações como invasão da privacidade, gravações de áudio e de vídeo clandestinas, acossamento, perseguição e vexame público em nome da satisfação da curiosidade coletiva.
Se o tratamento dado à privacidade nos códigos de ética é superficial, a pouca quantidade de recomendações aos profissionais reforça a necessidade de atualização de tais documentos principalmente para acompanhar os avanços culturais e tecnológicos mais recentes. Quase não se vê na deontologia analisada instruções práticas para como lidar com a privacidade alheia em contextos de redes sociais5, de grandes vazamentos de informação, de Big Data, de vigilância massiva, de economia intrusiva, de sequestro de dados pessoais e monitoramento de perfis na internet, entre outros desafios emergentes.
A desatualização e a superficialidade dos códigos observados ajudam a compor um diagnóstico de insuficiência desses instrumentos deontológicos para compreender as muitas transformações pelas quais vem passando o conceito de privacidade e as muitas mudanças afetivas e práticas que disso decorrem. Isso fragiliza jornalistas, fontes e públicos à medida que expõe organizações e relacionamentos a um número assustador de ameaças às liberdades civis, ao direito de controlar e gerenciar os próprios dados e à afirmação da individualidade e da personalidade. A situação é crítica e seu enfrentamento, inevitável. Para o bem do jornalismo, da democracia, da cidadania e da sociedade.
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Warren, S.; Brandeis, L. (1890). The right to privacy. Harvard Law Review, 193.
Data de recepção do artigo/ Received for publication: 30/06/2017
Data de aceitação do artigo/ Accepted in revised form: 11/12/2017
Notas
1 Este artigo é resultado da pesquisa “Privacidade e Jornalismo: atualizações de conceitos, dilemas e entornos”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil (CNPq). Uma versão preliminar do texto foi apresentada no 15º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, em São Paulo, Brasil, em novembro de 2017.
2 Os conceitos de privacidade e intimidade não são propriamente idênticos (cf. MARTINS, 2013), mas se interrelacionam em diversos aspectos, podendo ser usados como sinônimos em muitos contextos. Será assim neste texto, para fins mais pragmáticos.
3 Todos os códigos avaliados neste artigo foram traduzidos para o português e estão reunidos no site do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS): https://objethos.wordpress.com/codigos/
4 Apenas no código da Online News Association nenhuma menção ao tema foi encontrada.
5 Mais recentemente, alguns conglomerados de comunicação têm editado instruções específicas orientando seus jornalistas a como procederem nas redes sociais, atitude que pode levar a certas controvérsias sobre os limites da liberdade pessoal do indivíduo em situação profissional.
Rogério Christofoletti - Jornalista, Mestre em Linguística e Doutor em Ciências da Comunicação. Professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Pesquisador bolsista do CNPq. Um dos líderes do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS).
Giulia Oliveira Gaia - Jornalista formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil, e bolsista de iniciação cientifica do CNPq no período 2016-2017.