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Media & Jornalismo
versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462
Media & Jornalismo vol.19 no.35 Lisboa dez. 2019
https://doi.org/10.14195/2183-5462_35_15
ARTIGO
A estratégia de informação de Marcello Caetano o último governante do Estado Novo
The information strategy of Marcello Caetano, the last ruler of Estado NovoLa estrategia de información de Marcello Caetano el último gobernante del Estado Nuevo
Ana Cabrera*
https://orcid.org/0000-0002-2372-5165
*Instituto de História Contemporânea
RESUMO
Este artigo analisa a estratégia de informação levada a cabo por Marcello Caetano quando, em setembro de 1968, substituiu Salazar na presidência do Conselho de Ministros. Esta estratégia consistiu na realização de acontecimentos que lhe assegurassem uma boa visibilidade na imprensa, afirmação de uma relação mais próxima com os jornalistas, e realização das conversas em família teledifundidas.
A investigação assenta no estudo do perfil político de Marcello Caetano suportada por fontes (cartas, textos, livros e entrevistas) e na análise de jornais da época (A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular, Diário de Notícias) no período compreendido entre setembro de 1968 e setembro de 1969. Como conclusão assinala-se que a construção da imagem deste político na imprensa favoreceu o início da sua governação através da construção de uma personalidade política, social e familiar bem distinta da de Salazar.
Palavras chave: Marcello Caetano; estratégia de informação; imprensa; Estado Novo; censura
ABSTRACT
This paper examines the information strategy followed by Marcello Caetano since September 1968, when he succeeded Salazar in the president of Council of Ministers. This strategy implied setting up events capable of ensuring him a good visibility on the media, establishing a closer relationship with journalists, and broadcasting his own TV programme “conversations in family”.
This research assesses the political profile of Marcello Caetano and is supported by documents (letters, texts, books and interviews) and by the analysis of newspapers (A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular and Diário de Notícias) from September 1968 to September 1969. The image of Marcello Caetano, as portrayed by the press, has favoured his early stages as leader of the government by building a new political, social, and familiar personality, which was much different from Salazar’s.
Keywords: Marcello Caetano; information strategy; press; Estado Novo; censorship
RESUMEN
Este artículo analiza la estrategia de información llevada a cabo por Marcello Caetano cuando, en septiembre de 1968, sustituyó a Salazar en la presidencia del Consejo de Ministros. Esta estrategia consistió en la realización de acontecimientos que le asegure una buena visibilidad en la prensa, afirmación de una relación más cerca de los periodistas, y realización de las “coversaciones en familia” teledifundidas.
La investigación se basa en el estudio del perfil político de Marcello Caetano apoyado en fuentes (cartas, textos, libros y entrevistas) y en el análisis de los periódicos de la época (A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular, Diário de Notícias) durante el período comprendido entre septiembre de 1968 y de septiembre de 1969. Como conclusión se señala que la construcción de la imagen de este político en la prensa favoreció el inicio de su gobernanza a través de la construcción de una personalidad política, social y familiar bien distinta a la de Salazar.
Palabras clave: Marcello Caetano; estrategia de información; prensa; Estado Nuevo; censura
1. Marcello Caetano
A vida académica será a maior e a mais estável constante que acompanha transversalmente toda a sua vida profissional. Funciona como um porto seguro, onde regressa sempre que a política o desiludiu. Entrou para a Faculdade de Direito em Outubro de 1933 (com 27 anos), rege a cadeira de Direito Administrativo e o curso de Administração Colonial para além da atividade de jurisconsulto (Antunes, 1994, p.31). Entre 1942 e 1944 rege, em acumulação, a cadeira de Economia Política e Direito Industrial, no Instituto Superior Técnico.
O enorme prestígio universitário que rodeia Caetano estrutura-se em torno de uma carreira brilhante, de que são expressão as inúmeras obras publicadas[1], os saberes transversais que unem diversas áreas e a dedicação e admiração, quer dos seus alunos, quer dos seus pares. É em nome da Universidade que abraça algumas causas e toma algumas posições[2] que lhe valerão o ódio reforçado dos sectores mais ortodoxos do regime e a admiração de outros.
A política é uma outra paixão de Caetano. Desde jovem demonstra interesse na participação e no envolvimento em questões públicas. Tinha 20 anos quando se deu o golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 e era, na altura, militante da causa do Integralismo Lusitano e admirador de António Sardinha.
Tinha 23 anos quando colaborou, pela primeira vez com Salazar que na altura era ministro das finanças. Primeiro para dar apoio jurídico à revisão do regime legal de seguros. De seguida foi contratado como auditor jurídico do Ministério das Finanças. Mais tarde vai secretariar as sessões de trabalho para a preparação da Constituição de 1933. Quando Salazar o convida para subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social opta pela carreira académica (Cabrera, 2006).
Marcello é um homem do Estado Novo e um profundo conhecedor dos diversos sectores da atividade nacional. Conhecia de perto os problemas económicos, esteve envolvido em especial no último Plano de Fomento Económico. Conhecia o problema das colónias através das diversas deslocações aos territórios em 1935, e mais tarde como ministro das Colónias (1944-47). Conhecia o país de norte a sul e também todas as instituições do Estado Novo de que foi responsável: Mocidade Portuguesa, Presidente da Câmara Corporativa e responsável máximo da União Nacional (Cabrera, 2006). Mas a colaboração com Salazar não foi pacífica nem fácil. O prestígio alcançado granjeava-lhe um estatuto que lhe permitia falar de igual para igual com o chefe do governo. Estas críticas recrudescem durante e depois da guerra. Numa carta que escreve a Salazar em 8 de outubro de 1942 (cf. C16. Antunes, 1994), lê-se:
O Estado Novo - que, à falta de instituições objectivamente duradoiras, continua a ser uma “situação” sem chegar a ser um “regime”- tem esta deficiência de não permitir uma ampla informação de quem governa. Se se diz na Imprensa que qualquer coisa não vai bem, logo o ministro ou o director geral respectivo considera o seu prestígio em jogo. Se se conversa com um ministro, a preocupação deste, em geral, não é ouvir, mas demonstrar ao informador que não tem razão. Ora pode um estado de espírito público ter-se criado sem razão: mas isso não quer dizer que ele não exista e que não seja necessário tomá-lo em conta e providenciar contando com ele.
Antevia-se no espírito de Marcello inquietação de um homem conservador, mas implicado na criação de dinâmicas políticas desenvolvimentistas, aliadas a uma mente inconformista com o situacionismo que urgia alterar com a integração de políticos mais intervenientes, ousados e sem medo, nem do público, nem da imprensa. Marcello pretendia cativar a Imprensa, como virá a fazer em 1968 e permitir críticas que constituíssem, na verdade, mais denúncia ao que ia mal, do que a criação de alternativas, mas sempre no contexto da salvaguarda dos princípios do Estado Novo. Quando, em agosto de 1958, Marcello renuncia à pasta de ministro da Presidência, tinha deixado, no seio do regime, o germe reformista que se alicerçava no inevitável arranque na industrialização, modernização da administração, abertura à Europa e na preparação de novos quadros técnicos aptos a intervir, com experiência, no sector público e privado (Rosas, 2004).
As responsabilidades como ministro da Presidência (1955-1958) possibilitaram-lhe a coordenação do Secretariado Nacional da Informação (SNI) e o contacto direto com os problemas da informação, os jornais, a censura, a rádio e a televisão. Em sua opinião este tinha sido o mais interessante trabalho político a que tinha estado ligado, porque o SNI cumpria uma dupla função: a de alimentador e acelerador através do apoio e colaboração com a Imprensa e, a de freio, e travão através da Direção dos Serviços de Censura (Caetano, 1977, p.653).
Foi também nesta altura que acompanhou os primeiros passos da radiotelevisão e foi o primeiro governante a fazer uma alocução televisiva em junho de 1957. Na altura Marcello reconheceu as potencialidades comunicativas da televisão e refere mesmo nas suas memórias (Caetano, 1977, p.656): “anos depois, como Chefe do Governo, ela me seria de tanta utilidade para o estabelecimento de uma corrente de comunicação entre mim e o povo português. Mas sabia, desde o início, que era o instrumento ideal para um Governo se tornar popular…se o merecesse”.
Regressa à vida académica mas vai assegurar uma crónica semanal no Diário Popular entre novembro de 1958 a abril de 1959. Estas crónicas têm uma característica comum. Demonstram um elevado conhecimento dos assuntos económicos, associados a um projeto de desenvolvimento para o País e são, simultaneamente, muito didáticas, porque explicam em linguagem comum conceitos complexos e aspectos estruturais do Plano de Fomento, tais como os malefícios da desvalorização da moeda e da inflação. Mas torna-se claro que Marcello Caetano tem outros objectivos. Pressionar o poder político na aplicação, sem desvios, de todas as intenções e abrangências do Plano, de forma que, a sua aplicação, não resultasse mutilada. Demonstra, igualmente, uma profunda consciência de todos os entraves, nomeadamente aqueles que provinham da ignorância e dos espíritos mesquinhos e provincianos que abundavam na estrutura governativa, nas orlas do poder e que tinham capacidade para exercerem influências (Cabrera, 2006).
Na vida política Marcello demonstrou ser um homem de grande coerência na relação entre o pensamento e ação. Fiel aos princípios do regime, acredita num Estado forte e autoritário, assente na dominação e na liderança de um chefe. Encarava a atividade política com uma moral e uma ética de dever cívico quase religiosa, regulada pelo Direito que segundo ele “nasce das necessidades decorrentes da existência dos homens em sociedade... destinado a valorizar o que a humanidade tem de bom e a reprimir as suas manifestações de maldade” (SEIT, 1970, p.60). Marcello tem uma visão organicista da sociedade onde cada um desempenha um papel gerido a partir da hierarquia e do poder do Estado. Partia da noção de ordem para assegurar a manutenção das estruturas políticas autoritárias num edifício político onde o poder político se assume com uma função controladora e por isso legitima toda a função da censura e da repressão.
Para Adriano Moreira (2007) o principal traço da governação de Marcello Caetano foi a ambiguidade e a hesitação numa política onde as reformas semânticas lideraram as suas primeiras medidas depois de 1968, aliadas a uma concentração de poderes nas suas mãos.
Hipólito de la Torre Gomez (2007) descreve Marcello Caetano como um político que sustenta a ideia de revestir a governação de uma certa legitimidade popular, que não se esgotava no sufrágio, mas que se podia conseguir por via dos meios de comunicação que facilitavam a aproximação ao público e que permitiam uma auscultação permanente das necessidades do povo. Eu diria também que para Marcello Caetano o importante era dar ao povo a ideia de que participava e comungava das decisões que na política se tomavam. Por isso para Marcello Caetano a ação e a emoção eram fundamentais no exercício político.
A ideia de que a aproximação do político ao povo se podia fazer através dos meios como a televisão, a imprensa e também pelos contactos diretos em viagens e visitas, constituíram os alicerces da estratégia de comunicação marcelista. Optava assim por uma via de comunicação sem intermediários entre governantes e governados.
A ideia da política marcelista assentava em três ideias estruturantes: a importância do direito e da lei; a procura da legitimidade popular nos contactos diretos com o povo; e a orientação pela razão e justiça (o governante devia ser a voz da razão apoiada na reflexão no estudo em que se baseavam decisões com autoridade, com segurança e firmeza) (Caetano,1970).
Marcello tinha também uma perspectiva catastrofista tanto da cena nacional, como da internacional, o que o impedia de acreditar no futuro e até possibilitar uma mudança. Por isso Marcello mantém todos os mecanismos de controle do Estado Novo, mantém a própria estrutura do Estado Novo porque é fiel às suas crenças e aos fundamentos originais do seu pensamento político, baseado na autoridade de um Estado forte guiado por um escol de políticos, uma elite do conhecimento.
Marcello não temia só a subversão internacional que tinha já contagiado muitos portugueses, temia também a democracia que só podia precipitar a dissolução dos costumes. Mas, por outro lado, um político não escreve sobre uma página em branco, percorre um caminho que foi desenhado pelos que o antecederam. Por isso, como sublinha Jiménez (2007), Marcello Caetano, tal como os seus contemporâneos tecnocratas e desenvolvimentistas do franquismo, partilhava uma visão organicista da sociedade, em que o exercício da liberdade individual equivalia à dissolução social e a democracia política representava o triunfo da anarquia.
2. Marcello Caetano: o conhecimento e o gosto pelo jornalismo
A imprensa e o gosto pelo jornalismo estão profundamente ligados aos interesses e atividades de Marcello Caetano. Conhecia os jornais do lado de dentro, considerava até a experiência jornalística enriquecedora: “tão necessária foi sempre à minha vida intelectual a respiração pela Imprensa” (Caetano, 1968, p. 14). A este gosto aliava também saberes sobre processos produtivos das notícias, a importância dos comentários, as técnicas de montagem, as estratégias de titulação. Era neste campo um homem que juntava o saber teórico ao saber prático. Por isso, o conhecimento destas matérias conferia à sua ação política uma maior intencionalidade (Cabrera, 2006).
Desde cedo colaborou com diversos jornais e revistas e, quando entrou para a Universidade, essa participação foi fundamental para suportar as despesas dos seus estudos. Em 1927 fez parte da redação da Ideia Nacional. Colabora na Época e passa depois para a redação de A Voz.
Mantém, então, uma cooperação estreita com várias revistas. Foi secretário da Nação Portuguesa e um dos fundadores da Ordem Nova, revista integralista que terá tido impacto não só em Lisboa, mas também no Porto e em Coimbra. Em 1931 assegura uma coluna no Jornal do Comércio e das Colónias e colabora no rejuvenescimento do jornal. Neste jornal a maioria das crónicas escritas foram sobre política financeira. Entre 5 de novembro de 1958 e 15 de abril de 1959 assegura semanalmente uma crónica no Diário Popular justamente com a função de salvaguardar o trabalho realizado enquanto ministro da Presidência e como responsável do Plano de Fomento Nacional, um trabalho que segundo ele não podia ser desvirtuado, esquecido ou secundarizado. Caetano refletiu também muito sobre o papel da informação na formação da opinião publica que reuniu numa publicação, Ensaios pouco políticos.
Defende que,
em teoria, o processo ideal de formação da opinião pública consistiria em proporcionar a todos os indivíduos a mais ampla e circunstanciada documentação acerca dos factos e das ideias do seu tempo. (Caetano, s/d, p.93)
Mas considera de seguida que há vários factores que prejudicam aquela possibilidade: o excesso de informação, a incapacidade por falta de tempo de se ler tudo o que é publicado, a impossibilidade de apreensão, e a incapacidade de formar juízos pessoais sobre a informação recolhida.
Ao debruçar-se sobre o trabalho jornalístico põe em causa a objectividade. Por um lado, devido à existência de vários interesses em jogo - as nações, os capitais e os próprios jornalistas; mas, por outro lado alerta para intencionalidade e falta de isenção na seleção das notícias, no destaque dado ao noticiário e na escolha da titulação:
Mas as notícias, que já na escolha, na extensão e na redacção, traduzem um implícito juízo do seu produtor, vão ser agora aproveitadas na composição do jornal. Nem todas caberão no espaço disponível; seleccionar as aproveitáveis implica uma nova decisão segundo certo critério. Vem depois o relevo maior ou menor, do tipo em que são compostas e sobretudo do título a que são subordinadas.
O jornal influi poderosamente na opinião ao escolher umas notícias a publicar em vez de outras, ao dar maior relevo a umas do que a outras e sobretudo ao intitulá-las, sabido que a massa de leitores só lê, ou na melhor das hipóteses, só retém os títulos. Graças ao relevo dado a certo noticiário, a Imprensa de informação pode provocar ondas de emoção ou despertar reacções de interesse que agitem momentaneamente, mas por vezes violentamente, a opinião. (Caetano, s/d, pp.94-95)
Marcello está claramente consciente do importante papel da imprensa mas teme os seus efeitos. Entende que as massas respondem com elevados índices de emoção e considerava também que nem os portuguesas nem os jornalistas, nem os políticos estavam preparados para viver sem censura. A censura é uma necessidade inevitável para criar obstáculos ou até eliminar os diversos factores e interesses que procuram intervir no processo informativo. A ideia era que para o público, só passem ideias e opiniões filtradas e consonantes com os interesses do Estado. O povo não tem interesses, porque, na incapacidade de compreender as ideias no seu estado puro, é maleável à instrumentalização que a informação pode exercer na opinião pública (Caetano, s/d).
Marcello avaliou a situação e, por isso, sublinha no discurso de tomada de posse a necessidade do apoio do país:
Não me falta ânimo para enfrentar os ciclópicos trabalhos que antevejo. Mas seria estulta a pretensão de os levar a cabo sem o apoio do País. (…) Este apoio terá muitas vezes de ser concedido sob a forma de crédito aberto ao Governo, dando-lhe tempo para estudar problemas, examinar situações, escolher soluções. Outras vezes será solicitado através da informação tão completa e frequente quanto possível, procurando estabelecer comunicação desejável entre o Governo e a nação. (Caetano, 1969, p.17)
No entanto considera que ação governativa retira grandes vantagens da exposição mediática já que os governantes têm o dever de informar e têm ao seu dispor vários meios:
Exposições ou entrevistas na televisão, discursos radiodifundidos, visitas aos mais remotos lugares do País dando pretexto a discursos públicos e conversas particulares, difusão em larga escala de documentos impressos e até essa forma da facilitação da entrevista individual que é o telefone, processo de multiplicar as audiências sem forçar os interlocutores a uma deslocação, permitiram aos que governam estarem sempre presentes perante os governados e ao alcance destes como nunca. (Caetano, s/d, p.113)
Esta informação deve partir da iniciativa do governo e nota-se que Marcello encara os media como meros executores, repositores, e transmissores acríticos dessa informação disponibilizada. Nesta perspectiva imprime aos media um carácter utilitarista onde predomina a circularidade da informação que assegura o status quo, nutre a confiança do povo e enaltece as decisões políticas. Responde assim a uma coerente liderança autoritária e, por via dos meios de comunicação, dá ao povo a ilusão de participar nos assuntos de Estado. Os meios são, assim, instrumentos decisivos na política que Marcello vai exercitar a partir de setembro de 1968. Finalmente vai poder pôr em prática a acção e a emoção que tantas vezes tinha recomendado a Salazar nas cartas que lhe escreveu (Antunes: 1985; 1994).
3. O papel da Imprensa na construção da imagem de Marcello Caetano
Na estratégia de informação marcelista revela-se em três níveis onde a imprensa e a televisão estão envolvidas: apresenta-se à imprensa como um homem de família (filhos e netos, múltiplas relações sociais), contrapondo-se à imagem do celibato, isolado e solitário de Salazar; inicia uma nova relação com os jornalistas logo em setembro (permite que o acompanhem num dia de trabalho, visitam o seu gabinete, permite até que os jornalistas lhe façam perguntas e elogia a importância do seu trabalho); impõe aos seus ministros uma política de maior colaboração com a imprensa (conferencias de imprensa para explicar o trabalho dos diversos ministérios); garante acontecimentos para a imprensa a partir das viagens pelo país, estrangeiro e colónias; inicia as Conversas em Família em 8 de janeiro de 1969, com uma periodicidade mensal que se vão prolongar até março de 1974 (Cabrera, 2006).
Igualmente importante foi a escolha de Moreira Baptista para a Secretaria de Estado da Informação e Turismo. Político experiente, Moreira Baptista encarrega-se de preparar o caminho numa reunião com os diretores dos jornais diários.
A imagem de Marcello Caetano na Imprensa corresponde a um homem ativo, coloquiante, sedutor e simpático. Mas acabou por ter sido fácil fazer passar esta imagem a uma imprensa dependente dos boletins de saúde de Salazar e saturada das intermináveis esperas por informação na Casa de Saúde da Cruz Vermelha, onde Salazar estava internado[3]. No dia 29 de setembro somos surpreendidos por títulos inesperados que se repetem em diversos jornais. Do Diário de Notícias destacam-se os seguintes títulos: Ontem de manhã, em S. Bento o Presidente do Conselho começou a trabalhar. Simpatia pela Imprensa e amizade pelo Brasil nos primeiros actos do Prof. Marcello Caetano[4]; O Presidente do Conselho saiu de casa às dez horas acompanhado pela secretária[5].
O Diário Popular apresenta uma fotografia de Marcello Caetano sentado na sua secretária, no Palácio de S. Bento, com a seguinte legenda: Amável e sorridente o novo chefe do Governo franqueou aos jornalistas o seu gabinete de trabalho[6].
Numa fotografia publicada na primeira página do Diário de Lisboa, o jornalista José Carlos Vasconcelos faz perguntas a Marcello Caetano. Na legenda lê-se: Prof. Marcello Caetano quando hoje falava ao “Diário de Lisboa”[7]; e ainda o título: Primeiro dia de trabalho do novo governo. O Prof. Marcello Caetano ocupou o gabinete do seu antecessor [8].
N’A Capital, fotografias permitem observar o ambiente de trabalho do gabinete de Caetano e a legenda sublinha a situação: O novo chefe do Governo já esteve hoje a trabalhar no seu gabinete em S. Bento [9].
A titulação, as fotografias e as respectivas legendas representam uma atitude inovadora nas relações com a Imprensa e uma personalidade aberta e coloquiante. Marcello procura dar a conhecer que tem pela Imprensa elevada consideração, como se nota nas declarações que fez a uma equipa de televisão francesa, transcritas no Notícias da Beira: “Para mim estão sempre em primeiro os jornais e os jornalistas portugueses.”[10]
As viagens no país e ao estrangeiro resultaram da necessidade de apresentar publicamente o novo Presidente do Conselho de Ministros. Mas servem também um objetivo, muito a gosto de Marcello, do convívio com as multidões, com os jornalistas aliado à facilidade que tem nos contactos diretos, seja com gente do povo, seja com qualquer governante de outro país.
Foi a propósito das homenagens fúnebres ao general Eisenhower que se deslocou aos EUA numa viagem relâmpago, acompanhado de diversos jornalistas. A imprensa portuguesa cobriu, com grande destaque, esta viagem entre 1 e 5 de abril de 1969. Marcello reuniu com o presidente norte americano Richard Nixon, deu entrevistas a diversos jornais e demonstrou uma destreza e espontaneidade no uso de idiomas e nos contactos com a imprensa que espantaram os jornalistas portugueses. No título do Diário Popular lia-se: Os espantos positivos. Não estamos habituados.
E no texto da reportagem lê-se:
A grande maioria das pessoas reagiu favoràvelmente à deslocação aos Estados Unidos do Presidente do Conselho. “Foi uma surpresa agradável” - dizia no Aeroporto, à chegada, um alto funcionário. - “Não estamos habituados a ver imagens como as do encontro Marcello Nixon”. Isso mesmo não estamos habituados. O chefe do governo português decidiu, no sábado, que devia comparecer no funeral de Eisenhower; nomeou, no mesmo dia, a sua comitiva; tomou no domingo, um jacto para Nova Iorque; participou, na segunda, nas cerimónias fúnebres; conversou, na terça, com o Presidente dos Estados Unidos e com outros estadistas; e, na quarta de manhã, estava de volta. É claro que dezenas de outros políticos do mundo inteiro adoptaram procedimento semelhante, mas para nós, Portugueses do século XX, não deixa de causar um certo espanto vaidoso descobrir, na primeira página dos jornais o sorridente aperto de mãos de Richard Nixon e de Marcello Caetano no idílico cenário da Casa Branca.[11]
Mas maior foi o espanto quando a 19 de maio de 1969 o New York Times publicou uma entrevista de Marcello Caetano. Como era habitual na altura a entrevista foi traduzida e publicada na integra nos diversos jornais em Portugal. Mas o mais interessante é a forma como os jornalistas reagiram. No Diário Popular[12] o jornalista Álvaro Esteves salienta a grande quantidade de informação a entrevista disponibiliza e lamenta que tal informação tenha chegado a partir de um jornal estrangeiro. Mas é o Diário de Lisboa que, na Nota do Dia, sublinha o aspeto que mais incomodou os jornalistas portugueses:
Quantos jornalistas portugueses teriam ousado propor ao prof. Marcello Caetano aquele questionário que lhe submeteu o New York Times? A maior parte teria começado naturalmente por duvidar que tais perguntas fossem admitidas e que, tendo-o sido, elas houvessem resposta, para mais quando estava ali de certo modo implícita a ideia de que as palavras não são coisas de mastigar. E, para seguir no mesmo tom, quase nos apetece dizer que também nós, ainda nessa altura, não andamos longe de pensar que teriam fundamento as reservas assim postas.[13]
Quer isto dizer que a nossa reacção oscila em certa medida entre uma certa decepção e um certo azedume. A decepção resulta de não se ter tomado de cá a iniciativa, o azedume de nos ter sido servido o apetitoso prato em cima da longa toalha neo-iorquina. Não fica mal confessar tais sentimentos, que não é petulância supor quanto eles possam não ser apenas pessoalmente nossos, mas de muitos mais como nós: mas então não há jornais portugueses, era preciso recorrer à expansão de um jornal estrangeiro?[14]
É evidente o descontentamento dos jornalistas portugueses por terem sido ultrapassados e consideraram também que as suas capacidades profissionais, bem como as competências interpretativas dos portugueses, estavam a ser subestimadas. Mas não há dúvida de que o jornalismo do New York Times foi posto em comparação com o jornalismo que se fazia em Portugal. Tornou-se evidente que a nenhum jornalista português seria permitido tal desenvoltura na realização de perguntas numa entrevista, não porque não fossem capazes, mas sim porque estava fora de questão alguém dirigir-se ao Presidente do Conselho de Ministros com perguntas diretas sobre assuntos que bem sabiam deverem ser silenciados como a guerra colonial, a censura ou a nova lei de imprensa. Mas as respostas de Marcello Caetano na entrevista, em relação à nova lei de imprensa, deixaram um enorme desagrado na classe, uma vez que elas constituíam verdadeiros atestados de menoridade e de irresponsabilidade aos jornalistas.
Entre abril e julho Marcello percorre o pais de norte a sul, visita as colónias, visita o Brasil e vai a Madrid.
A viagem às colónias foi rápida: a 14 de abril está em Bissau, a 16 em Luanda e a 17 em Lourenço Marques e a 21 regressa a Lisboa. Todas as deslocações foram acompanhadas pela multidão que o rodeavam e ilustradas com fotografias, discursos, conferências de Imprensa e encontros informais com os jornalistas. No Porto entre 21 e 22 de maio, é também recebido com banhos de multidão. E o mesmo se repete na visita particular à Feira do Ribatejo, em Santarém; foi de tal forma calorosa a recepção que resolveu regressar oficialmente no dia seguinte.
A viagem ao Brasil que realizou entre 7 e 14 de Julho, voltou a encher as páginas dos jornais. Esta foi a última e a mais importante deslocação antes das eleições. Fez-se acompanhar por cinquenta e sete jornalistas e cada jornal enviou os mais reputados profissionais. Marcello não deixou de mencionar o apoio que deles recebeu:
Creio, pois, que valeu a pena esta visita. Ficou mais viva no Brasil a presença de Portugal. Apertaram-se mais os laços de amizade entre os dois países.
Uma palavra para sublinhar o comportamento unânime dor órgãos de Informação brasileiros que deram à visita realce e apoio. E para agradecer a boa camaradagem e o excelente espírito dos representantes da Informação portuguesa que me acompanharam nesta viagem. (Caetano, 1969, p.314)
Marcello Caetano foi, sem dúvida a principal figura do ano nos jornais portugueses. O impacto destas viagens foi grande, na Imprensa. A cultura organizacional das redações constrangia a um tratamento reverencial das figuras de Estado, à realização de peças que demonstravam concordância com as atitudes e opiniões dos representantes do país, à transcrição na totalidade de discursos. Mas, neste período, são também evidentes a discordância e a crítica localizada especialmente nos jornais como A Capital, o Diário de Lisboa, e, por vezes, no Diário Popular (Baptista, 2012).
Não sendo objeto do estudo que agora apresentamos, as conversas em família fecham, sem dúvida, a estratégia de informação de Marcello Caetano e constituem uma abordagem forte e inovadora. Cádima nota que:
1969 será essencialmente um ano em que a informação televisiva se centrará portanto na figura de Marcello Caetano, de uma forma, aliás, insistente, não deixando de ter um claro significado o facto de logo a 8 de Janeiro começarem as suas “conversas em família” anunciadas por Henrique Mendes logo a abrir o TJ desse mesmo dia, e após - como era então norma - a leitura do boletim clínico de Salazar: “o Sr. Presidente do Conselho fará esta noite, às 22 horas, na RTP, a primeira de uma série de comunicações nas quais tratará alguns dos problemas do Governo.” (Cádima, 1996, p.212)
As conversas em família iniciam-se em 8 de Janeiro de 1969 e mantêm-se com uma periodicidade quase mensal até Março de 1974. Foi, sem dúvida, uma parte substancial da estratégia marcelista muito bem sustentada no trabalho de Cádima (1996). Estas conversas não se confinam só à transmissão pela televisão. No dia anterior são anunciadas nos jornais e no dia seguinte são transcritas na íntegra, situação que revela a enorme importância que era atribuída a estas alocuções televisivas[15].
Conclusão
Marcello demonstrou, na vida política, ser um homem de grande coerência na relação entre o pensamento e ação. Acreditava que a governação devia ser regida por um Estado forte e autoritário, sob uma liderança carismática. Governava seguindo uma moral e uma ética de dever cívico quase religiosa, regulada pelo Direito. Mas considerava fundamental usar os meios de comunicação como estratégia de aproximação ao povo, de forma a criar-lhe a ilusão de proximidade com o poder político.
Quando, em setembro de 1968 Marcello assume a Presidência do Conselho de Ministros não hesita no envolvimento do povo através da ação e emoção que faz passar por via de um inteligente e moderno uso dos media.
A imagem de Marcello na Imprensa corresponde a um homem ativo, coloquiante, sedutor, simpático, ativo e cheio de energia. As conversas em família constituíram de facto um dos aspectos mais significativos da estratégia de comunicação de Marcello Caetano que não só foi pioneira em Portugal como é moderna. É, na atualidade posta em prática por todos os governos autoritários, todos os populismos emergentes e todas as ditaduras contemporâneas. Esta estratégia foi algumas vezes confundida com uma abertura no regime. Mas, pelo contrário, todo o aparelho repressor do Estado Novo prosseguiu até ao fim do regime em abril de 1974.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Fonte: A Capital, Diário de Lisboa, Diário Popular, Diário de Notícias entre setembro de 1968 a setembro de 1969.
Financiamento
Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto PTDC/COM-JOR/28144/2017 - Para uma história do jornalismo em Portugal.
Submetido Received: 2019.01.18
Aceite /Accepted: 2019.09.02
Notas
[1] Entre 1937 e 1939 publica cinco livros: Manual de Direito Administrativo (1937), O Município no Estado Novo (1937), O Sistema Corporativo (1937), Estatuto dos Funcionários Civis (1939), Lições de Direito Penal (1939).
[2] Em Maio de 1947 estalou na Academia de Lisboa uma greve. Os estudantes nacionalistas envolvem-se em agressões com os estudantes grevistas e a polícia intervém nas instalações universitárias. Marcello Caetano manifesta-se contra a entrada da polícia nas escolas. Em 1962, como reitor da Universidade Clássica de Lisboa, Marcello Caetano demite-se após uma ação semelhante e violenta por parte da polícia.
[3] Borges Coelho, jornalista de A Capital entre 1968 e 1969, conta, em entrevista (7 de Novembro de 2001), que os jornais destacavam diariamente profissionais para fazerem permanência na Clínica da Cruz Vermelha. Jornalistas de todos os jornais passavam o dia e a noite naquela instituição e sabiam quem entrava e quem saía, quem assinava o livro e as personalidades que visitavam Salazar, para além, naturalmente da informação recolhida através dos boletins de saúde que diariamente eram emitidos.
[4] Diário de Notícias, 29 de Setembro de 1968, 1ª Página
[5] Diário de Notícias, 29 de Setembro de 1968, p.7.
[6] Diário Popular, 28 de Setembro de 1968, 1ª Página.
[7] Diário de Lisboa, 27 de Setembro de 1968, 1ª Página.
[8] Diário de Lisboa, 28 de Setembro de 1968, 1ª Página.
[9] A Capital, 28 de Setembro de 1968, 1ª Página.
[10] ANTT. Arquivo de Marcello Caetano. Presidência do Conselho de Ministros. Cx872; doc.16. Notícias da Beira, 29 de Setembro de 1968
[11] ANTT. Arquivo de Marcello Caetano. Presidência do Conselho de Ministros. Cx873; doc.418.Diário Popular, 5 de Abril de 1969.
[12] ANTT. Arquivo de Marcello Caetano. Presidência do Conselho de Ministros. Cx873; doc.392. Diário Popular, 24 de Maio de 1969.
[13] ANTT. Arquivo de Marcello Caetano. Presidência do Conselho de Ministros. Cx873; doc.399. Diário de Lisboa, 21 de Maio de 1969.
[14] Diário de Lisboa, 21 de Maio de 1969, p. 1.
[15] No ano de 1969 foram emitidas sete conversas em família: 8 de Janeiro; 10 de Fevereiro; 8 Abril; 17 de Junho; 11 de Setembro; 27 de Outubro; 17 de Dezembro.
Nota biográfica
Ana Cabrera é doutorada em História Contemporânea pela NOVA FCSH e investigadora integrada do Instituto de História Contemporânea IHC. Investigadora Responsável de vários Projetos da FCT no Centro de Investigação Media e Jornalismo. Integra a equipa do projeto “Para uma História do Jornalismo em Portugal”.
Email: cabrera.anacabrera@gmail.com
Morada: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de História Contemporânea, Av. de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal