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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.19 no.35 Lisboa dez. 2019

https://doi.org/10.14195/2183-5462_35_16 

ARTIGO

A invenção da televisão revolucionária - a RTP durante o PREC(1974-1975)

The invention of the revolutionary television - the RTP during the PREC (1974-1975)

Carla Baptista*

*Universidade NOVA de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Instituto de Comunicação da NOVA - ICNOVA


 

RESUMO

Este artigo analisa o impacto do 25 de Abril de 1974 na programação da RTP, em particular os programas informativos não diários produzidos pelo Departamento de Programas Político-Sociais (DPPS). Estes refletem as visões da época sobre a natureza e a vocação de uma televisão popular e permitem caracterizar o processo de “invenção da televisão revolucionária”, criada para responder ao ambiente revolucionário do PREC (1974-1975). Este processo, marcado pelas relações de força que ditaram as orientações das sucessivas administrações e direções de informação e de programação da RTP, não se esgota no campo político. Foi acompanhado de uma discussão alargada sobre o papel do jornalismo televisivo na construção da democracia portuguesa e na articulação com a sociedade. É essa discussão, refletida na natureza e tipo de programas criados para responder às necessidades de informação e formação do povo identificadas na época, que constitui o foco deste artigo.

Palavras chave: RTP; 25 abril; PREC; televisão revolucionária; povo


 

ABSTRACT

This article analyzes how the April 25 revolution, in 1974, impacted on RTP programming, in particular, the non-daily information programs produced by the Department of Political-Social Programs. These reflect the visions of the time about the nature and the mission of popular television and allow to characterize the process of the “invention of the revolutionary television”, created to respond to the information needs of the people identified during the PREC revolutionary context (1974-1975). This process, marked by the relations of force that dictated the guidelines of successive administrations and directories of information and programming of RTP, does not confine to the political field. It was accompanied by a broad discussion about the role of television journalism in the construction of Portuguese democracy and society.

Keywords: RTP; 25 april; PREC; revolutionary television; people


 

1. A RTP no 25 de abril - de refém dos militares revoltosos a parceira dos revolucionários

A RTP foi, desde “as primeiras horas” a seguir ao golpe militar de 25 de Abril de 1974, para usar uma expressão jornalística da época, um laboratório de experimentação da democracia nascente. Ainda antes de haver um plano para a televisão desenhado pela futura administração militar, que se manteve até 1977, foi a montra privilegiada das mudanças políticas, sociais e culturais provocadas pela revolução. No dia 25 abril, era um dos objetivos estratégicos definidos pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), que incluíam o comando da Legião Portuguesa «LP», a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português, a RTP, a Rádio Marconi, o Banco de Portugal, o Quartel-General da Região Militar de Lisboa, o Quartel-General da Região Militar do Porto, o Ministério do Exército, o Aeroporto da Portela, o Aeródromo Base nº 1, a Manutenção Militar, o Posto de Televisão de Troia e a Penitenciária do Forte de Peniche. Este plano de operações deixa claro a importância que os meios de comunicação tinham para os capitães de abril, mas nada diz sobre as estratégias concretas de uso e potenciação desses meios. Aparentemente, o MFA apenas tinha determinado que a RTP, bem como as rádios, eram instrumentos cruciais para informar o país da evolução dos acontecimentos. Num primeiro momento, a televisão foi uma instituição refém dos militares revoltosos, que a capturaram e usaram como veículo de transmissão de comunicados, subjugando todo o discurso jornalístico ao formato típico da propaganda.

A ocupação da RTP pela coluna da Escola Prática de Administração Militar (EPAM), comandada pelo capitão Teófilo Bento, exemplifica a estreita forma de pensar o potencial da televisão. Após a neutralização dos 3 polícias que faziam a segurança das instalações, a preocupação de Teófilo Bento foi selar o local para impedir fugas de informação sobre o contingente militar que comandava (uma coluna com 130 militares) no âmbito da operação “Fim do Regime”. Foi imposto um rígido controlo de presenças, permitindo apenas a entrada de uma pessoa adstrita a uma especialidade. O núcleo de trabalhadores que conseguiu entrar e permanecer nos estúdios do Lumiar reduziu-se a 25 pessoas, reforçadas com mais 10 a meio da tarde, com instruções para não filmarem absolutamente nada dos acontecimentos que mudariam para sempre a história do país. Teófilo Bento admitiu, em entrevista à revista Sábado[1], ter cometido um erro de avaliação: “Antes de tudo, eu queria era garantir a segurança da Televisão e não podia permitir que as pessoas entrassem e saíssem. Portanto, quando me pediram para enviar operadores para ir filmar, porque havia tropas na rua, a minha reação inicial foi: ‘Não, senhor!’.”

O desconhecimento genérico dos militares sobre a atividade televisiva era tão grande que a tomada de Mónaco, nome de código da RTP, só não se transformou num fracasso devido a um desfecho rocambolesco. Desde logo, não incluíram o Centro Emissor de Monsanto no plano de operações. Foi Soares Louro, então chefe de serviço e futuro presidente da RTP entre 1978-80, quem os alertou para esse detalhe crucial quando chegou ao local de trabalho e se confrontou com a ocupação: as antenas de Lisboa e do Porto não estavam controladas pelas forças revoltosas. E, sem isso, não havia emissão.

Do outro lado da barricada, Ramiro Valadão, o todo poderoso presidente da RTP nomeado por Marcelo Caetano em 1969, uma figura com um papel central na reestruturação da televisão durante o marcelismo, foi a primeira coisa em que pensou: cortar a antena aos militares, isto é, retirar-lhes a possibilidade de usar a televisão como arma. Deu essa instrução aos elementos que faziam a segurança em Monsanto, que sabotaram o equipamento, retirando e escondendo uma válvula do emissor de imagem. A situação só ficou resolvida a meio da tarde e explica o facto da RTP apenas ter entrado no ar às 18 40 do dia 25 de Abril, com uma emissão especial e compacta do Telejornal, já totalmente controlada pelos militares.

Essa emissão histórica foi apresentada pela dupla Fialho Gouveia e Fernando Balsinha, rostos habituais do Telejornal desde 1970, com o estatuto de “locutores” e não de jornalistas[2], o que significava uma circulação ampla entre a apresentação do telejornal e alguns programas de entretenimento[3]. A emissão compila os comunicados transmitidos durante o dia pelo Rádio Clube Português e apresenta as imagens recolhidas por uma equipa da RTP, constituída pelo operador de câmara João Rocha e pelo seu assistente, José Saraiva. Contrariando as ordens do capitão Teófilo Bento, escaparam dos estúdios do Lumiar por volta das 16h e foram para o Largo do Carmo registar, em filme e sem som, as preciosas imagens da revolução em curso que hoje constituem o escasso espólio visual da RTP. Sobre os acontecimentos nas instalações da RTP, existem também algumas imagens registadas pelo operador de câmara José Manuel Tudela, que dão conta da ocupação e da chegada ao edifício de cada vez mais pessoas, designadamente jornalistas de outros órgãos de informação que acorriam à primeira conferência de imprensa marcada pelos capitães.

É a este reduzido conjunto de imagens fragmentadas e sem som que Fialho Gouveia dá sentido na edição especial do Telejornal do dia 25 de abril[4], num notável exercício de improviso, ao identificar os presentes ao mesmo tempo que vai incorporando os acontecimentos do dia e enfatizando a “total sintonia” entre jornalistas e militares, o “fino trato e a cordialidade” destes e a adesão imediata que os seus propósitos libertadores suscitaram junto dos trabalhadores. Em poucas horas, a forma de fazer televisão mudara drasticamente em Portugal. Era um prenúncio da tempestuosa mudança que nas semanas seguintes iria transformar a RTP num laboratório vivo de experiências comunicativas híbridas entre o jornalismo e a propaganda.

Os sinais dessa mudança estão presentes desde a primeira hora da transmissão televisiva do 25 de Abril de 1974 e traduzem o desejo de dar visibilidade aos jornalistas como parceiros da revolução, nas imagens que mostram os bastidores do estúdio onde decorria a emissão do telejornal, na postura descontraída de Fialho Gouveia que fuma e ri em plena emissão, desafiando o protocolo visual que até ai impunha seriedade aos rostos e rigidez aos corpos dos apresentadores, e no tom festivo e explicativo com que comenta os acontecimentos do dia, prometendo continuar a dar “agradáveis notícias com certeza”.

Embora celebratória da liberdade conquistada e beneficiando do fim da censura e do afastamento dos quadros apoiantes do regime deposto que até aí controlavam a RTP, a nova televisão precisava de uma teoria que sustentasse a sua prática. Essa orientação ficou plasmada numa frase do tenente Bargão dos Santos, diretor de informação da RTP, proferida em Abril de 1975[5], nas vésperas das primeiras eleições livres realizadas após o golpe militar: “Uma televisão ao serviço do MFA, o que quer dizer uma televisão ao serviço do povo.” É uma formulação tardia para uma política que estava em curso desde Junho de 1974, data da criação da 5º Divisão, órgão emanado da Comissão Coordenadora do Programa do MFA.

A génese da 5ª Divisão, herdeira do SIPFA - Serviço de Informação Pública das Forças Armadas durante o tempo colonial - bem como o seu organigrama,[6] distribuído por quatro comissões: 1) a Comissão Dinamizadora Central (CODICE), responsável pela realização de campanhas de dinamização cultural; 2) o Centro de Esclarecimento e Informação Pública (CEIP), que publicava o Boletim do MFA, emitia um programa de rádio e outro de televisão; 3) o Centro de Sociologia Militar, que organizava cursos, colóquios e preparava atos celebrativos; e 4) o Centro de Relações Pública, sugerem uma linha de continuidade entre o novo órgão e as funções de informação e persuasão do público desenvolvidas durante a guerra colonial.[7] A história da 5º Divisão cruza-se com a história da RTP durante o PREC, já que a estação pública emitia o Programa do MFA e a programação deste período estava contagiada pelo objetivo de explicar a revolução ao povo. Mas seria redutor pensar a ação da 5º divisão como uma mera agência de propaganda ao serviço do MFA. Esta visão tática e instrumental tende a inflacionar os conflitos partidários e a obliterar a discussão paralela sobre o projeto de sociedade e o papel dos media associados.

Independentemente das inegáveis “estratégias dirigistas” (Mesquita, 1988) postas em marcha para controlar a informação produzida e veiculada em muitas redações, a diversidade de meios existentes, a exuberante proliferação de forças políticas em jogo e as próprias divisões internas do MFA rapidamente frustraram qualquer veleidade de impor quadros ideológicos monolíticos. É o reconhecimento dessa inadequação que leva à extinção da 5ª Divisão, cumpridos 14 meses de existência. Vasco Ribeiro (2014, p. 91) conclui que a 5ª Divisão desenvolveu “um sofisticado trabalho de comunicação política governamental, através da tentativa de controlo de informação interna e das campanhas de instrumentalização da opinião pública”, sublinhando que “nunca foi uma estrutura una e indivisível”.

Ivo Veiga (2014) assinalou que os amplos recursos humanos e materiais colocados ao dispor da 5ª Divisão “traduziam a reconfiguração da própria esfera militar que, num regime de transição, reclamava um papel de natureza interventiva mesmo nas esferas política e civil”. As mudanças introduzidas na grelha de programas durante o PREC, e a inflação de programas de debate e mesa redonda convocando os “tipos sociais” até ai interditos na televisão (intelectuais de esquerda, trabalhadores rurais, operários, feministas) são um reflexo da tomada de consciência abrupta do papel central dos media numa disputa que, para além dos aspetos materiais, era também simbólica. Tratava-se de disseminar e estabilizar o sentido coletivo para conceitos chave como democracia, pluralismo e povo.

A redefinição do campo jornalístico fez-se de forma desordenada, mas movida pelo imperativo de responder à evolução política, às mudanças sociais do país e às novas oportunidades geradas pelo quadro revolucionário. Desde logo, mesmo se existiram tentativas formais de institucionalizar novas censuras, os administradores militares não eram os censores da ditadura. Tal como não existiu um modelo hegemónico para os projetos de comunicação governamental ou de propaganda, também não existiu um modelo único para o jornalismo, que não foi nunca inteiramente subjugado ou apropriado pelas várias e sobrepostas tentativas de controle dos poderes partidários e suprapartidários, como é o caso do poder militar.

O padrão do jornalismo “militante e não explicativo” que, segundo Mário Mesquita (1988), marcou o período entre 1974-76, coexistiu com formas de afirmação do campo jornalístico. Procuramos neste texto valorizar e autonomizar esses movimentos em relação ao campo político. No caso da televisão, trata-se de trilhar o caminho de invenção de uma profissão a de repórter televisivo pleno, não amputado pela censura, que tem pela primeira vez a oportunidade de descobrir o país real e dar-lhe visibilidade e expressão. Os programas que integram a grelha informativa não diária durante o PREC são um exemplo de inovação ao nível de conteúdos, mas também formal, recorrendo a formatos e dispositivos narrativos inspirados nas linguagens do cinema documental, do teatro de revista, da reportagem televisiva, forjados num ambiente criativo e colaborativo que amiúde integrava cineastas, jornalistas, atores, escritores, locutores e intelectuais. Eram contributos e equipas até aí improváveis.

2. A televisão popular: uma utopia revolucionária

As preocupações com a reestruturação da RTP começam logo em 25 de Maio de 1974, com a ordem de serviço 11/74, na qual a Comissão Administrativa Militar anuncia ser seu propósito lançar a semente da “objetividade, independência e honestidade da informação” e transformar a RTP num órgão “informativo formativo e isento”. Anuncia como valores orientadores a liberdade, a isenção e a honestidade. Inácia Rezola (2014), a propósito dos saneamentos na RTP, aponta a “intervenção decisiva” entre

Abril e Agosto de 1974, traduzida na suspensão imediata do Conselho de Programa e do Gabinete de Exame e Classificação de Programas e de todos os seus membros, assim como de 16 quadros superiores da empresa (diretores gerais e adjuntos, chefes de serviço e de divisão). O saldo desta “operação de limpeza” traduziu-se, segundo Rezola (2007), no afastamento de 50 funcionários, afetando 4% do quadro de pessoal. Entre os saneados estão dois dos rostos mais conhecidos da televisão, os locutores Henrique Mendes e Alves Caetano. O ritmo de contratações, expresso em numerosas ordens de serviço, acompanha o ritmo de saneamentos e demonstra o carácter frenético do movimento de recomposição e renovação do pessoal da RTP.

Em 3 de Julho, a ordem de serviço 26/74, refere que, no âmbito da reestruturação da RTP, terá grande prioridade a reorganização dos serviços da atual direção geral de programas e nomeia José Carlos Megre e Sidónio Pais, dois não jornalistas, para coordenar essa tarefa. Em Julho, a ordem de serviço 28/74, autoriza a Divisão de Programas de Informação a contratar novos redatores, repórteres e estagiários. Em Setembro de 1974 são concretizadas as novas admissões, incluindo nomes como Joaquim Letria, José Gabriel Viegas, Amadeu José de Freitas, Anabela Sargaço, Manuela Viegas, Cesário Borga, entre outros. A ordem de serviço 42/74, emitida no mesmo dia 2 setembro, anuncia também a contratação de Carlos Cruz para orientar a reestruturação dos serviços informativos do 1º canal; e de Joaquim Letria para coordenar a reestruturação de um serviço de informação autónomo para o 2º canal. É ainda relevante para o nosso estudo a ordem de serviço 44/74, de 9 setembro, que contrata como colaborador Vasco Pulido Valente com o objetivo de “iniciar o estudo da programação e da produção de programas relativos ao Departamento de Programas Políticos e Socioeconómicos”. Pulido Valente, à semelhança de outros quadros, não ocupou o lugar por muito tempo, sendo substituído em Novembro por Carlos Megre. A componente Económicos acabou por cair do intitulado do novo departamento, que ficou conhecido apenas pela sigla DPPS (Departamento de Programas Político-Sociais).

É no DPPS que surgem os programas informativos não diários, de divulgação e de atualidades mais interessantes da televisão do PREC, que colocam os repórteres da RTP à descoberta do país real e do povo imaginado. Esta entidade abstrata foi construída como lugar de martírio, sofrido, explorado, mantido inculto e embrutecido pelo fascismo, mas que, com o estímulo e as aprendizagens certas, iria rapidamente politizar-se e apoiar os ideais revolucionários. É esse trabalho emancipador do povo que a RTP se propõe fazer, ensinando as pessoas a viver em democracia e contribuindo para o esclarecimento cívico necessário à nova condição de cidadão eleitor. O primeiro teste seria daí a um ano, em Abril de 1975, data limite de realização das eleições para a Assembleia Constituinte. O projeto utópico da televisão popular não tinha tempo a perder.

3. O DPPS e o programa A Política é de Todos

DPPS é uma sigla que condensa a dinâmica da grelha informativa pós 25 abril e traduz o ambiente sincrético entre a sociedade e a política, indistinguíveis na lógica revolucionária. Não só todo o trabalho social era um trabalho político como a política não se concebia mais desligada da atuação viva no espaço da sociedade. No início, a representação televisiva da política e dos políticos ainda herda os códigos visuais do passado, de que são exemplo a recorrência aos lugares protocolares do poder e ao formalismo dos gabinetes, mesmo se agora ocupados pelas novas figuras cujos rostos a RTP vai apresentando ao país, ajudando a definir as lideranças políticas emergentes. Mas, rapidamente, o que os telespectadores vêem na RTP são políticos que arregaçam as mangas e estão na rua a conversar com as pessoas ou em reuniões de trabalho com informalidade e dinamismo. A representação do poder político através da ação compaginava-se com a ideia do coletivo, das lideranças horizontais, da multiplicidade de interlocutores e é importante assinalar este espírito programático que inaugura a nova era da televisão.

Ao adotar este espírito, o DPPS mergulhava a RTP no centro das convulsões sociais e assumia a natureza política da informação. Trata-se de uma viragem que implicou vários gestos de rutura. Os novos formatos colocam a reportagem no centro do dispositivo informativo, com tudo o que essa viragem implica: a descoberta da rua e do país rural, dando voz ao povo que não falava nunca na televisão, anteriormente confinado a um papel de mera figuração. Prolongam-se alguns géneros que já existiam na televisão da ditadura, como as entrevistas, as mesas redondas e os debates, mas com uma reviravolta dos personagens convidados: quem estava interdito passou a ser presença assídua, sobretudo no campo cultural, com a entrada dos escritores, intelectuais e artistas que militaram na oposição ao regime. Altera-se o repertório de temas noticiosos: o que era tabu e não se discutia passou a estar no centro da programação, designadamente as chagas sociais como a pobreza, a desigualdade económica, o analfabetismo; ou os desafios prioritários, como a educação do povo e a participação popular no processo politico.

Passamos de uma televisão de boas notícias (que noticiava inaugurações e anunciava medidas positivas) para uma televisão centrada na sinalização de problemas e engajada com os objetivos da revolução. Embora com métodos, figuras e estratégias discursivas diferentes, estas duas televisões a RTP da ditadura e a RTP revolucionária - partilham a característica de serem doutrinárias. É este paradoxo que vemos desenrolar-se quando analisamos a programação e a documentação desta altura. O MFA tenta inventar uma nova televisão e subtrai-la aos partidos - nas administrações militares existe a orientação clara de que a televisão deve transcender os partidos e ser conduzida numa lógica pluralista e não partidária - mas acaba por ceder à tentação de tomá-la para si, à medida que o próprio MFA se institucionaliza no Conselho da Revolução e assume uma vocação de poder.

Esse caminho faz-se cheio de tensões e de lutas, de vários episódios de novas censuras que põem em evidência os limites da liberdade jornalística e originam intromissões censórias praticadas pelos administradores militares. Estes cortes, que não teremos tempo de desenvolver neste artigo, incluem uma panóplia variada de temas, muitos deles fora do campo estritamente político e levantando questões morais, religiosas ou até memórias recentes e sensíveis como as relacionadas com as práticas da PIDE. Alguns exemplos de reportagens censuradas incluem temas como o nudismo nas praias, peças de teatro que parodiavam a igreja católica ou acontecimentos da atualidade como ocupações de fábricas com momentos de expulsão dos antigos proprietários.

Ao invés de perspetivar estes conflitos como menorizadores do poder do jornalismo, devemos apreendê-los no contexto de um processo de autonomização do campo dos jornalistas profissionais de televisão que ganham neste período um protagonismo intrínseco. Os jornalistas tornam-se mediadores engajados e envolvidos ou, noutras palavras, atores políticos. Esse é um estatuto inteiramente novo. A distância entre o jornalismo e a política, anteriormente tão esmagadora, reduz-se imenso e os jornalistas passam a conviver fraternalmente com os representantes dos novos poderes. Este rumo implicou perdas de objetividade, com pouca distância crítica, com olhares parciais sobre uma realidade mais complexa e fragmentada do que a televisão revolucionária dava a ver, acompanhando a explosão das parcialidades políticas e das correntes de opinião. Mas os ganhos que permitiu em termos de diversificação dos conteúdos e profundidade das abordagens fazem deste período um momento fundacional para o jornalismo televisivo português, comparável ao movimento de profissionalização e renovação que vinha ocorrendo para os jornalistas da imprensa desde há uma década e que finalmente chega ao bastião informativo do poder: a RTP. Não podemos compreender o facto destas mudanças terem coincidido com a revolução, enquanto nos outros meios de comunicação social foram acontecendo ainda durante o Estado Novo[8], sem reforçar o papel instrumental que a RTP desempenhou na estratégia de poder e na política informativa de Salazar e de Marcelo Caetano. Até ao 25 abril, foi um bastião inexpugnável ao serviço da política de informação do regime. Depois do 25 de Abril, e sendo feita já em liberdade, a mudança é exuberante e explosiva. Em síntese, é uma televisão de génese revolucionária, tal como essa é também a origem da democracia portuguesa.

Logo em Maio de 1974, a Comissão Administrativa Militar nomeou 4 diretores para garantirem o funcionamento da Direcção-Geral de Programas. O comunicado de 3 de Maio de 1974 que anuncia os nomes de Álvaro Guerra, Artur Ramos, Manuel Ferreira e Manuel Jorge Veloso como os novos responsáveis pela programação da RTP, preconiza que esta deve “assegurar as condições necessárias para que este meio de comunicação social se realize, integral e imparcialmente, em completa liberdade de expressão e informação”.[9] A nova orientação da RTP foi apresentada ao público pelos quatro diretores, no programa Diálogo, emitido a 9 de Maio, numa clara sinalização aos telespectadores de que a nova televisão se desejava agora transparente e participada.

Álvaro Guerra (escritor e jornalista no República) ficou encarregue da Informação e das Atualidades. Teves (2007) aponta que uma das suas primeiras preocupações foi apelar, através de um comunicado, ao sentido de responsabilidade dos jornalistas da redação do Telejornal para resistirem às constantes manipulações de informação: “A partir desta data (3.7.1974), a confirmação da autenticidade das notícias a transmitir pelo Telejornal deve obedecer às mais estritas regras de segurança e rigor. Qualquer que seja a fonte de informação invocada deve ser feita, sempre, a contraprova.” Os títulos dos programas do DPPS surgidos no PREC são quase autoexplicativos, traduzindo a vontade de descobrir o povo, uma categoria forjada pela imaginação revolucionária, e dar-lhe voz e expressão. Procuram fornecer alguma educação histórica básica, responsabilizando a ditadura pelos males estruturais do país, e estimular uma aprendizagem política rápida sobre os mecanismos burocráticos da democracia, incluindo nas suas formas populares (assembleias, comissões de moradores, cooperativas, etc.). Existe também uma preocupação com a divulgação cultural, fruto do acesso que uma elite intelectual ganha à televisão, e da crença enraizada de que a cultura é um instrumento de capacitação para uma discussão política produtiva. Alguns dos programas mais representativos da nova grelha são “Vamos Decidir em Conjunto”, “No Mundo do Trabalho”, “Responder ao País”, “Escrever é Lutar”, “Nome Mulher”, “A Gente que Nós Somos”, “Diálogo”, “Os Movimentos Políticos e a Economia”, “Sonhos e Armas”, “A Lei e o Povo”, “Canto Livre” e “A Política é de Todos”.[10]

Merece menção especial o programa “A Política é de Todos”, por condensar o espírito e o corpo da televisão revolucionária que temos vindo a caracterizar, e por ter alcançado uma elevada qualidade formal e estilística. Em 1974, recebeu o prémio “Melhor Programa do Ano” atribuído pela Casa da Imprensa. Começou a ser emitido em maio de 1974, sendo classificado dentro da categoria Programas Especiais. Ao todo, foram emitidos 7 programas, 3 em 1974 e 4 em 1975. Os 2 primeiros têm uma natureza didática, revelando aspetos formais do processo democrático (alguns exemplos são como se organizam eleições para as juntas de freguesia, como se faz uma assembleia geral de trabalhadores, como se contam os votos). As restantes rubricas oferecem um fresco do país e dos seus enormes atrasos em matérias cruciais, como a saúde ou a educação. Uma das reportagens acontece numa escola primária e o foco é saber se a escola faz os alunos felizes, se os faz pensar, se lhe ensina artes, se está articulada com idas à biblioteca ou a visitas de estudo que possam complementar a educação formal. É visível o incómodo da professora que procura ganhar espaço na entrevista, enquanto a jornalista se interessa sobretudo pelos depoimentos das crianças.

Os temas abordados no programas de 1975 abordam os efeitos do fascismo no esmagamento das pessoas e da sua capacidade de pensar, na proibição de ler, no medo de falar em público e expressar a sua opinião livremente, na descrença ou suspeição em relação à liberdade. Existem programas dedicados à literatura proibida em Portugal, e um centrado sobre as desigualdades transversais no mundo do trabalho operário e rural: entre assalariados e patrões, entre homens e mulheres.

Estes programas denotam o fascínio dos intelectuais pela descoberta do povo que encontram nas fábricas e nas aldeias inacessíveis por ausência de estradas, ainda paralisado pelo mutismo e pelo conformismo. É notório o empenho do jornalista (Fernando Balsinha) para obter respostas, para conseguir que falem, que digam de sua justiça, que percam o medo. A partir de intervenções e comentários de vários intelectuais, um deles João Bénard da Costa, é repetido um mantra quase terapêutico: O Voto é a Arma do Povo. Reis (2009, p. 333) resume o espírito do programa: “A mensagem parece ser esta: o malefício que o regime deposto trouxe foi a ignorância política, o medo, e, no geral, a resignação à miséria. A revolução através da presença da televisão nestes contextos de miséria, vem trazer a política, vem ensinar a utilizar a ferramenta da reivindicação”.

As opções de realização valorizam os sujeitos filmados que ganham coragem para falar ou contar a sua história e apresentam um caderno reivindicativo (as mais comuns são exigências salariais, sonhos progressistas, esperanças partilhadas). Em alguns momentos fascinantes, assistimos a uma politização em direto que ocorre no curto espaço de uma conversa gravada em televisão.

Conclusão

Procuramos neste texto apresentar as principais linhas de força que marcam a programação da televisão durante o PREC. Trata-se de uma televisão orientada por objetivos revolucionários, apostando no tratamento jornalístico da atualidade e na documentação dos problemas sociais do país para fins de formação política do povo. Move-se num registo duplo: entre a premência da lógica informativa do acontecimento, e os contextos históricos e políticos enquadrados pela lógica revolucionária. Embora muito devedora da estratégia do MFA para a RTP, a linha de programação seguida neste período não está inteiramente subordinada ao jogo político resultante das lutas entre os poderes emergentes. É também fruto, e neste aspeto nos focámos, de um projeto jornalístico abrangente construído num ambiente de grande conflitualidade interna nas redações, mas também de grande valorização do jornalismo enquanto campo social e disciplina profissional.

 

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Financiamento

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto PTDC/COM-JOR/28144/2017 - Para uma história do jornalismo em Portugal.

 

Submetido: 2018.12.26

Aceite: 2019.08.07

 

Notas

[1] Revista Sábado, 25 Abril: as imagens da RTP que desobedeceram aos capitães de abril, 25-04.2018. Acessível em https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/25-de-abril-as-imagens-da-rtp-que-desobedeceram-aos-capitaes-de-abril

[2] Até 1969, os redatores da televisão e das rádios não eram considerados jornalistas. Apenas tinham título profissional os jornalistas que trabalhavam para jornais diários nacionais e das agências de notícias. Ver, para mais detalhe, Arons Carvalho; Figueiredo; Monteiro Cardoso (2012). Direito da Comunicação Social. Lisboa: Texto Editores.

[3] Fialho Gouveia era um dos elementos que, juntamente com Carlos Cruz e Raul Solnado, apresentava o Zip-Zip, um programa de entretenimento e entrevistas filmadas no Teatro Vilaret, que modernizou a imagem da televisão em 1969, introduzindo novos formatos, linguagens e rostos que se tornaram estrelas televisivas.

[4] Disponível em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/edicao-especial-do-telejornal-no-dia-25-de-abril/

[5] Peça inserida no portal Memórias de uma Revolução. Disponível em http://media.rtp.pt/memoriasdarevolucao/acontecimento/a-televisao-ao-servico-do-povo/

[6] Inventário do Fundo do EMGFA. 5a Divisão - Informação e Relações Públicas, 1972 - 1978 Fundo 06. Disponível em https://www.defesa.pt/institucional/oministerio/Documents/ArquivoDefesaNacional/f6%20inventario%20emgfa%205div.pdf

[7] O SIPFA escrevia os comunicados da situação militar nos teatros de operações, divulgava os nomes dos feridos e dos falecidos e produziu alguns programas de rádio e filmes de propaganda.

[8] O movimento de rejuvenescimento e diversificação dos perfis profissionais começa na imprensa portuguesa a partir da década de 60 do século XX. Ver, para mais detalhe, Batista, Correia (2007). Jornalistas, do Ofício à Profissão. Caminho: Lisboa.

[9] Ordem de serviço nº 5/74.

[10] Ver, para mais detalhe, o livro de Vasco Hogan Teves, RTP, 50 anos de História. Disponível em https://museu.rtp.pt/livro/50Anos/Livro/DecadaDe70/ODificilCaminhoParaANacionalizacao/Pag7/default.htm.

Nota biográfica

Carla Baptista é doutorada em Ciências da Comunicação pela NOVA FCSH. Professora Auxiliar da NOVA FCSH, Investigadora do ICNOVA - Instituto de Comunicação da NOVA e membro da direção da revista Media & Jornalismo.

Ciência Vitae: FF1B-13F5-CE58

Email: carlamariabaptista@gmail.com

Morada: Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Comunicação da NOVA, Av. de Berna, 26-C - Lisboa 069-061, Portugal

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