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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.21 no.38 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.14195/2183-5462_38_3 

Artigo

Hibridismo e géneros jornalísticos: análise de uma ‘reportagem-folhetim’.

Hybridity and journalistic genres: analysis of a ‘report-news story’.

Ana Teresa Peixinho1 
http://orcid.org/0000-0002-4533-7921

Teresa Almeida Santos2 
http://orcid.org/0000-0001-7423-2996

1 Universidade de Coimbra. Faculdade de Letras, CEIS20, Portugal. ana.cristo@fl.uc.pt.

2 Universidade de Coimbra. Faculdade de Medicina, CNC, Portugal. almeidasantos@fmed.uc.pt


Resumo

Este artigo trata de um fenómeno de hibridização de géneros jornalísticos no jornalismo na contemporaneidade. Com base numa análise de uma reportagem televisiva, emitida pela cadeia privada de televisão portuguesa TVI, demonstra-se como um género nobre do jornalismo televisivo - a grande reportagem - foi colonizado por práticas narrativas e discursivas características da ficção, com impacto a diversos níveis. Ponderando as possíveis causas desta opção, pensam-se criticamente as consequências para a perceção pública de um tema de saúde pública - a gravidez medicamente assistida (GMA). A análise recorre a uma metodologia qualitativa - a análise narrativa - e enquadra-se no campo teórico da análise dos media e dos estudos narrativos mediáticos. Há também um suporte especializado sobre o tema em questão - criopreservação e procriação medicamente assistida - que é fundamental para compreender questões de representação, mediação e efeitos da narrativa televisiva exibida pela estação televisiva.

Palavras-chave: género; hibridismo; jornalismo; reportagem; ficção; saúde

Abstract

This article focuses on the hybridization that exists exists within the theoretical genres of contemporary journalism. Based on the analysis of a televised newscast, broadcast by the private television Portuguese channel TV1, this study aims to show how the noble genre of telecast journalism - great news reporting - has been colonized by discursive and narrative pratices characteristic of fiction, with an impact on several levels. Reflecting on the possible causes of this choice, this analysis will explore its consequences in relation to the public’s perception of a theme pertaining to public health - medically assisted reproduction (MAR). This study uses qualitative methodology - narrative analysis - and draws from the theoretical field of analysis of media and mediatic narrative studies. There is also a specialized basis in relation to the theme in question - cryoconservation and medically assisted reproduction - that is fundamental to understanding issues of representation, mediation and the effects of televised narrative presented by the television station.

Keywords: genre; hybridism; journalism; news report; fiction; health

Introdução: géneros e media

Os géneros jornalísticos são categorias classificatórias com impacto quer nos processos de construção dos textos, quer nos processos cognitivos de leitura e interpretação. O intuito classificatório que preside ao conceito de género depende de parâmetros de natureza diversificada: além de propriedades de natureza estilística, consideram-se também questões de estrutura textual e de conteúdo, de periodicidade e dimensão, bem como a variedade de efeitos perlocutórios pretendidos1. Os géneros têm, portanto, um valor pragmático relevante, pois são convenções partilhadas tacitamente pelas comunidades discursivas - grupos de media, jornalistas, produtores, leitores / espectadores - que normalizam certas formas de olhar o mundo e providenciam limites interpretativos aos contextos de receção: “The concept of genre thus serves both producers (standardisation for production and marketing purposes) and audiences (recognition and accessibility)” (Dunn, 2005, p. 131).

Tendo em consideração o conceito de género e a forma como ele se constitui, a sua historicidade e diacronia, pode concluir-se que, à semelhança do que sucede em outras formações discursivas,2 também no Jornalismo os géneros evoluem, transformam-se e sucedem-se num processo de renovação, dependente dos contextos, da evolução dos dispositivos de mediação, das linguagens e da relação comunicacional estabelecida.

Na sua dimensão arquitextual,3 os géneros não são categorias fechadas nem modelos puros e, hoje, especialmente, o jornalismo contemporâneo não se compagina com definições estanques, sendo antes meio de cultura para os fenómenos de hibridização4 que tornam qualquer tipologia rapidamente obsoleta (Santos e Peixinho, 2017). Acresce que, com as transformações que a prática jornalística tem sofrido sobretudo desde o desenvolvimento do digital, com impacto nas rotinas de investigação, de produção e de disseminação, a questão dos géneros adquire novo relevo, precisamente porque a chegada de um novo medium trouxe consigo formatos novos, alguns deles fruto de reciclagem e combinatórias de outros já pré-existentes (Giltrow e Stein, 2009; Santos e Peixinho, 2017). Não é também despiciendo, para esta discussão, o papel dos géneros no processo de globalização, enquanto instrumentos de marketing que as empresas de media, sobretudo as cadeias de televisão, utilizam para captar, satisfazer e fixar audiências (Dunn, 2005, p. 127).

A liberalização dos sistemas de televisão, sobretudo nas duas últimas décadas do século XX - que em Portugal se traduziu no aparecimento das primeiras estações privadas, no início dos anos 90 -, as crescentes pressões de mercado, a fragmentação das audiências e a dependência das receitas publicitárias, que se têm agudizado nas últimas duas décadas, contribuíram fortemente para o desenho das grelhas de programação das televisões, afetando tanto as escolhas dos programas de entretenimento (veja-se, por exemplo, a aposta na real Tv) quanto os blocos informativos, com impacto nos valores notícia e nos formatos dos espaços noticiosos. Um estudo comparativo recente a 14 sistemas televisivos de diferentes países do mundo ocidental evidencia o crescimento do infotainment, do sensacionalismo e das histórias de interesse humano (geralmente categorizadas como soft news) nos espaços noticiosos das televisões públicas, mas sobretudo das privadas (Arbaoui et al., 2016). Por outro lado, segundo Anne Dunn, a televisão é um meio vocacionado para o consumo privado, logo, tendencialmente um meio de entretenimento com impactos na prática jornalística (Dunn, 2005). Também João Canavilhas entende que uma das consequências mais evidentes da guerra pelas audiências tem sido a espetacularização da informação televisiva “que procura no sensacionalismo e na rapidez, os ingredientes que fazem subir as audiências, nem que isso seja conseguido à custa de imprecisões” (Canavilhas, 2001, p. 8).

Num clima teórico que crescentemente valoriza a fluidez e a flexibilidade, num campo mediático em mudança acelerada, no qual os meios tradicionais - imprensa, rádio, televisão - continuam a absorver lógicas, linguagens e dinâmicas dos formatos da web, e num contexto em que muitas fronteiras tendem a diluir-se, a reflexão teórica sobre a relação entre media e géneros deve ser revitalizada e recuperada.

A categoria do género é, assim, em última instância, muito relevante para a distinção entre narrativas factuais e narrativas ficcionais, problemática central ao Jornalismo. Em trabalho recente, Marie-Laure Ryan (2021) propõe que se clarifique o tipo de relação que media e géneros estabelecem com os novos produtos comunicacionais: se o medium pode ser entendido como um conjunto de recursos - definidos pela tecnologia do dispositivo de mediação e pela substância semiótica -, o género tem uma essência normativa e restritiva. Embora, como reconhece a autora, a distinção entre género e medium não tenha consequências operativas ou teóricas relevantes, ela conflui numa problemática fundamental para o campo jornalístico da contemporaneidade: a relação entre o mundo e a ‘verdade’ das suas mediações narrativas. Tratando-se de debate antigo, a autora julga, contudo, ser urgente resgatar para a discussão os conceitos de ‘facto’ e de ‘verdade’, precisamente para contrariar o contexto de ‘pós-verdade’ que contamina diversos campos sociais, nomeadamente o discurso político e o jornalístico.

Cingindo-se a uma abordagem comunicacional, Ryan explica que a factualidade e/ou a ficcionalidade de uma representação dependem essencialmente de dois fatores: i) não só das substâncias semióticas dos media - como esclarece, há media que servem a ficção e a factualidade, mas outros há que são defetivos relativamente a um dos termos do binómio; ii) mas também do género narrativo, pois que todos os textos de um mesmo género partilham o mesmo estatuto relativamente à factualidade e à ficcionalidade - assim, todos os romances são ficcionais e todas as reportagens são factuais. Apesar disso, acrescenta, há casos que perturbam a clareza desta asserção: a autobiografia, o romance de não ficção, o romance histórico são exemplos de géneros híbridos que podem ter diferentes graus de factualidade / ficcionalidade.

Ficção e factualidade são duas formas de expressão humana com fronteiras porosas, cujos fenómenos de interpenetração e contaminação, embora sempre tenham existido e integrem mesmo a matriz de alguns géneros,5 recrudesceram com “o advento dos meios de comunicação de massa e da dramatização geral da cultura” (Motta, 2013, p. 36), mas também com a centralidade dos fatores económicos que determinam as lógicas de produção, as rotinas das redações e a construção das grelhas de programação.

Neste artigo, discutir-se-á precisamente um desses fenómenos de hibridização e de justaposição de fronteiras, decorrente da contaminação das práticas jornalísticas por géneros tradicionalmente ligados à ficção. A discussão será teoricamente enquadrada pelos estudos narrativos mediáticos e pelos estudos televisivos, sobretudo pelos estudos sobre géneros e formatos em televisão. Procede-se à análise narrativa de uma ‘reportagem’ emitida em sinal aberto pela TVI, no mês de fevereiro de 2020, sobre inseminação post-mortem, discutindo-se, no quadro médico e legal da criopreservação e da procriação medicamente assistida, as questões de representação, mediação e efeitos da narrativa televisiva exibida.

Ficção, facto e narrativa televisiva

Vivemos numa sociedade do entretenimento, excessivamente preenchida com narrativas várias, na qual mesmo as histórias factuais - as narrativas naturais para usar a terminologia de Eco6 - são permeáveis a fatores de espectacularização e ficcionalização.

Este é, aliás, um dos elementos perturbadores da comunicação contemporânea, dominada pela lógica do storytelling que invadiu diversos campos discursivos, da Política ao Jornalismo. Como explica Marc Lits:

A mecânica do storytelling, longe do modelo otimista de Ricoeur, tornou-se um instrumento de persuasão, indiferente aos desafios éticos dos seus objetivos, inclusive em certos formatos de jornalismo narrativo ou de escrita narrativa com finalidade sensacionalista (Lits, 2015, p. 15).

Um dos aspetos centrais da reflexão contemporânea sobre géneros jornalísticos permite compreender precisamente as lógicas de construção narrativa que, nas últimas décadas, têm transformado consideravelmente o papel do Jornalismo como mediador, diluindo a fronteira entre informação e entretenimento, entre facto e opinião e, mais do que isso, enfraquecendo os limites entre narrativa factual e narrativa ficcional (Fidalgo, 2017). Esta última é determinante para a análise que aqui se pretende construir e tem um impacto profundo no campo jornalístico e no modo como as expectativas sociais do público em relação ao jornalismo se têm alterado.

A problemática não é nova nem exclusiva ao campo do Jornalismo. Ganha hoje, contudo, uma importância renovada precisamente porque a dinâmica de renovação dos géneros jornalísticos, acelerada, como se disse, pelas práticas do Jornalismo digital, trouxe novas interpelações. Trata-se de duas modalidades narrativas - ficcionalidade e factualidade - cujas relações de interpenetração devem ser equacionadas no quadro de dinâmicas comunicacionais e não tanto no âmbito da constituição discursiva ou textual. Segundo Searl (1979), a ficcionalidade não reside numa qualquer especificidade estilística ou numa qualquer função metafórica da linguagem, mas sim numa intenção de comunicação que é da inteira responsabilidade do autor. Assim sendo, ela é, por um lado, um valor ilocutório do enunciado que se prende com o fingimento intencional do autor, por outro, está suportada por um conjunto de convenções comunicacionais que a distinguem da mentira e, finalmente, depende do pacto estabelecido com o recetor/leitor/espectador.

No fundo, a questão reside naquilo a que Umberto Eco chama de “protocolos ficcionais”, que mais não são do que pactos de leitura previamente estabelecidos entre autor e leitor, geralmente inscritos na zona paratextual (Eco, 1997). O semiótico italiano recolocou muito bem esta questão, defendendo o valor comunicacional das narrativas, cujo autor, título, medium, contexto e enquadramento ensinariam o leitor a decodificá-las. Quer isto dizer que será no paratexto, enquanto lugar envolvente das narrativas, que se constroem os pactos de leitura que orientarão o horizonte de expectativas do leitor na sua decodificação (Eco, 1997).

Já para Gonzaga Motta, a narrativa mediática deve ser sempre pensada em contexto e tendo em conta a intencionalidade inerente ao discurso que a constitui; o que distingue as duas modalidades - ficção e factualidade - é o contrato comunicativo e a vontade de sentido partilhado entre interlocutores (Motta, 2013). Neste sentido, deveremos perspetivar a ficcionalidade, como modalidade literária, como um conjunto de regras de natureza comunicacional e não estilística, como bem o demonstrou Maria Augusta Babo:

Do ponto de vista da estrutura narrativa não nos é possível encontrar uma diversidade estruturante entre as chamadas narrativas ficcionais e as ditas narrativas factuais. Quer dizer que os procedimentos textuais inerentes à ficção, na literatura, são os mesmos, do ponto de vista formal, da narrativa histórica ou jornalística. O que se passa é que a condição da própria “mise-en-intrigue” ou narratividade é a da produção, configuração do sentido, independentemente da referência (Babo, 1996, p. 3).

A relação entre os dois termos do binómio - facto e ficção - é de responsabilidade ‘autoral’ e depende sempre de um compromisso ético por parte do produtor / criador das narrativas. Para o que interessa discutir neste artigo, é importante perceber que o Jornalismo é portador implícito de narrativas naturais / factuais, pois o público espera encontrar nele histórias reais e não efabulações possíveis. O pacto que o Jornalismo estabelece com o público assenta em convenções de verdade, de referencialidade e de honestidade: as narrativas jornalísticas funcionam como índices de real, fundam-se em protocolos de natureza pragmática que pressupõem compromissos tácitos entre destinadores e destinatários. A credibilidade, a autoridade e a capacidade mobilizadora dos jornalistas são caucionadas por princípios éticos e normas deontológicas que os obrigam ao respeito referencial na construção dos seus textos.

Se é certo que as reflexões destes autores se focaram sobretudo em narrativas verbais, elas são muito importantes para compreendermos a construção dos géneros e formatos televisivos, muito mais permeáveis a miscigenações do que géneros dos outros media tradicionais (Dunn, 2005), em parte devido às pressões económicas subjacentes às lutas por audiências:

A opção das televisões pela informação-espetáculo resulta da influência de um destes elementos: o fator económico. Melhor programação obriga a maiores investimentos. Mais investimento exige mais receitas publicitárias e estas são consequência do aumento das audiências. Para que as audiências aumentem é necessário tornar a informação mais apelativa e o caminho mais fácil é o da opção pela informação-espetáculo (Canavilhas, 2001, p. 1).

A reportagem amor sem fim: o caso de Hugo e Ângela Ferreira

Na primeira semana de fevereiro de 2020, a TVI transmitiu, na rubrica coordenada por Alexandra Borges, Amor sem fim, uma ‘reportagem’ do jornalista Emanuel Monteiro em quatro episódios. Transmitida em horário nobre, a reportagem seriada, constituída por quatro episódios com duração média de 28 minutos,7 pode inserir-se naquilo a que diversos autores chamam de ‘histórias de interesse humano’ (Hughes, 2014; Langer, 2001), geralmente utilizadas no jornalismo popular e supostamente distintas das hard news (Fiske, 1992; Langer, 2001).

No seu site, a estação televisiva pré-anunciava a transmissão da seguinte forma, com evidentes consequências no modo de receção e apropriação da mensagem:

O especial Alexandra Borges - “Amor sem fim” - é uma minissérie documental de quatro episódios da autoria do jornalista Emanuel Monteiro, que promete surpreender Portugal do primeiro ao último minuto, num enredo imprevisível, apaixonante e repleto de mistério, onde nada é o que parece. Os episódios serão emitidos entre 3 e 6 de fevereiro, de segunda a quinta-feira, no programa Alexandra Borges, na TVI.8

Este enunciado remete para um conjunto de estratégias discursivas, tradicionalmente oriundas da publicidade e do marketing, com vista a atrair as audiências do produto que divulga, mas é também um sintoma dos fenómenos de hibridização e contaminação que têm afetado particularmente alguns géneros do jornalismo televisivo (Mast et al., 2016; Baym, 2016). Aliás, esta indefinição genológica9 transparece do modo como a estação televisiva introduziu e divulgou esta peça: umas vezes anunciada como ‘reportagem’ - género relativamente estável do jornalismo, com uma clara inscrição informativa - outras como ‘minissérie documental’ - enunciado que integra uma categorização híbrida, apontando para um produto de base factual, mas construído num formato habitualmente ficcional.

A criopreservação de gâmetas de um doente oncológico consiste na recolha e armazenamento, em laboratório, de espermatozoides ou óvulos. Este procedimento tem como objetivo permitir a concretização de um projeto de parentalidade após o tratamento da doença oncológica e tem vindo a realizar-se em Portugal de forma rotineira, sobretudo nos últimos 10 anos. Graças a esta criopreservação, os gâmetas mantêm o seu potencial de fertilidade, permitindo aos jovens com doença oncológica a esperança de ter filhos biológicos, mesmo quando são submetidos a tratamentos com elevada probabilidade de causar infertilidade, nomeadamente a quimioterapia e/ou a radioterapia pélvica.

Em Portugal é disponibilizada a criopreservação de espermatozoides a todos os indivíduos pós-púberes, antes de iniciarem uma terapêutica potencialmente causadora de infertilidade (Almeida-Santos e Ramos, 2010; Almeida-Santos et al., 2016). No entanto, a lei portuguesa não permite a utilização (por outrem) de gâmetas criopreservados de um indivíduo já falecido (designada por “inseminação post mortem”), salvaguardando, assim, a possibilidade de a Medicina contribuir para o nascimento deliberado de órfãos (Lei 32/2006 de 26 de julho).10 Esta tem sido a realidade em Portugal, existindo relatos episódicos de mulheres que, desconhecendo a lei, solicitaram a utilização de gâmetas do cônjuge já falecido.

Porém, o alargamento dos beneficiários das técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA) a mulheres sem parceiro, consagrado na Lei nº 17/2016 de 20 de junho, garante o acesso de todas as mulheres às técnicas de procriação medicamente assistida, independentemente do estado civil, da orientação sexual e do diagnóstico de infertilidade. Com esta alteração legislativa passou a permitir-se, em Portugal, a utilização de esperma de um dador anónimo (vivo, ou eventualmente até já falecido) por uma mulher sem parceiro ou por um casal de mulheres. Reconhece-se o direito à concretização de um projeto de maternidade sem projeto de paternidade associado, mas não se contemplou a possibilidade de inseminação post-mortem, mesmo na presença de um projeto parental prévio ao falecimento. As sucessivas modificações parciais da lei para atender à evolução societal criaram uma situação potencialmente conflituante que merece ser avaliada.

No caso concreto descrito na reportagem da TVI, Amor sem Fim, Hugo Ferreira (HF) congelou os seus espermatozoides antes de se submeter a um tratamento de radioterapia a que se associaria uma probabilidade muito elevada de infertilidade (“…60 sessões de RT pélvica…”). Esta criopreservação de espermatozoides terá sido prévia à relação com Ângela Ferreira (AF), devendo na altura HF ter assinado o respetivo documento oficial de consentimento informado (CNPMA 2020).11 AF não teria ou poderia não ter conhecimento do conteúdo e das estipulações deste documento do qual deveria constar a informação

…apenas ao próprio e a mais ninguém é reconhecido o direito de utilizar os espermatozoides criopreservados / (…) tenho conhecimento de que, salvo em caso de doação a pessoa(s) beneficiária(s) de tratamento de PMA e/ou para uso em projetos de investigação científica, apenas a mim é reconhecido o direito de utilizar estes espermatozoides congelados.

Deve salientar-se ainda que o mesmo texto contempla a informação

A criopreservação de espermatozoides não estabelece nenhuma obrigação deste centro em relação à utilização futura dessas células, nem confere ao seu originário nenhum tipo de tratamento preferencial; serão sempre utilizados os critérios clínicos da boa prática médica adequados a cada situação.

Segundo as declarações de AF, o médico urologista terá dito a HF que “teriam de estar um ano a tentar a gravidez espontânea antes de se poder iniciar um processo de fertilização”. Admite-se, neste caso, a hipótese de ter havido uma informação deficiente, já que, se tivesse sido confirmada a infertilidade masculina, resultante do tratamento de radioterapia, este facto permitiria avançar com a proposta de realização de uma técnica de PMA. Não seria, pois, necessário aguardar um ano para ter um diagnóstico de infertilidade, a qual estaria confirmada pela deficiência do espermograma. Outra coisa seria o tempo de espera, inevitável, para poder realizar uma técnica de PMA num hospital público, aspeto, aliás, explorado no último episódio.

AF terá recorrido à sua médica de família e também à especialista em oncologia que seguiria o HF, para “agilizar o processo” de recurso a uma técnica de PMA, na sequência do que terá sido agendada uma consulta de avaliação da fertilidade “num prazo de 5 meses” (o que está de acordo com o tempo de espera habitual no SNS). Nesta consulta, “sabendo que a médica oncologista, um mês antes, lhe teria dado uma expectativa de vida de 3 meses”, HF terá questionado o tempo que demoraria o processo, tendo-lhe sido explicado que poderia demorar um ano. Conhecendo esta realidade, HF terá dito “que não tinha um ano e que queria levar o material daquele hospital”. Tal desiderato não chegou a concretizar-se, até porque, dois dias depois desta consulta, foi internado com uma pneumonia. AF terá tentado, então, sem sucesso, concretizar esta intenção, mas tal só poderia ser feito com a presença do HF.

Em Espanha é permitida a inseminação post-mortem até um ano após o falecimento do cônjuge do género masculino, o que levou AF a solicitar ao Hospital a disponibilização dos gâmetas do marido falecido, com o intuito de recorrer a uma clínica, em Espanha, para tentar engravidar. Tendo conhecimento do falecimento do HF, o Hospital teria legitimidade/obrigação legal de pôr em prática as estipulações deste no momento da criopreservação dos espermatozoides.12 Foi, porém, acertada a decisão do Hospital de não proceder à destruição do material criopreservado, não inviabilizando assim definitivamente o recurso a este. Mesmo assim, ao longo da peça questiona-se a atitude dos médicos (“sempre a adiar”; “frieza”) e AF acusa o Hospital de ter demorado demasiado tempo para marcar a primeira consulta, tempo que, na sua perspetiva, teria permitido que “já estivesse grávida” no momento da morte do marido.

Caso HF tivesse podido concretizar o transporte do seu material biológico para Espanha, teria sido possível a AF recorrer uma técnica de PMA no ano seguinte à morte do companheiro. A conseguir-se uma gravidez, a criança nasceria sem pai vivo, mas com um pai legal (o que tem implicações, até porque haveria um meio-irmão do qual pouco se fala na peça). Deve, porém, ressalvar-se que pelo facto de ser possível realizar uma tal técnica (que poderia ser uma inseminação intrauterina ou uma fecundação in vitro vulgarmente e na peça referidas como inseminação artificial e fertilização), a ocorrência de uma gravidez não passaria de uma possibilidade, já que as taxas de sucesso destas técnicas não ultrapassam os 15% e os 40%, respetivamente e por tentativa.

Esta noção de que as técnicas de PMA, a serem realizadas com os espermatozoides criopreservados, não assegurariam uma gravidez, não parece ser sequer admitida pelo casal, e também não terá sido explicada pelo médico espanhol que vemos na reportagem (a equipa de reportagem acompanhou AF à consulta numa clínica do País Basco).

Parece-nos que a pergunta essencial - qual a probabilidade de AF conseguir engravidar com recurso aos espermatozoides criopreservados do falecido marido? - não foi nunca equacionada, nem pela interessada nem pelo jornalista que conduz a reportagem. De facto, o médico espanhol refere-se à possibilidade técnica (presume-se que de inseminação intrauterina), como se o sucesso fosse garantido logo no 1º mês, agigantando, assim, as já excessivas expectativas de AF que afirma mesmo: “…não tinha noção que era tão fácil…que era um processo tão simples”.

Na verdade, as expectativas do casal não estiveram nunca ajustadas à realidade, como aliás demonstra o facto de terem admitido que poderiam ter conseguido uma gravidez natural e de se referirem a um filho que tinha mesmo já nome (“…chegaram a pensar que teriam conseguido…”; “…lembra-te que tens um príncipe meu dentro da tua barriga”), antes mesmo de AF realizar um teste de gravidez, que veio a ser negativo. No Natal de 2018, HF teria já comprado “…uma prenda para o filho, nunca perdeu a esperança…”.

Neste contexto, AF sente-se defraudada nas suas expectativas, vítima de uma injustiça, e terá recorrido aos meios de comunicação social para fazer conhecer a sua luta e influenciar uma decisão a seu favor, numa batalha contra o tempo. Compreende-se, assim, a instauração de uma providência cautelar para impedir a destruição do material biológico criopreservado.

Reportagem-folhetim

Assume-se, na análise que se desenvolve de seguida, uma atitude crítica e interpretativa que permite compreender o processo de representação e de construção da história, relacionando-a com o seu contexto comunicacional. Esta posição analítica exige, portanto, que se considere não apenas a materialidade discursiva e semiótica do objeto em análise, mas também a complexidade de fatores que envolvem o seu entorno comunicacional. Tal como Gonzaga Motta (2013), considera-se que a problematização e compreensão dos fenómenos de hibridização de narrativas mediáticas como esta, que criam um universo diegético parafactual, só se atingirão se o foco analítico for holístico, privilegiando a comunicação narrativa e contemplando a intencionalidade do produtor, o contexto cultural e mediático, as estratégias narrativas e argumentativas, e os efeitos cognitivos obtidos.

O título da peça nada diz acerca da problemática de interesse público suscitada pela história - a da GMA com material biológico de um indivíduo falecido -, nem fundamenta o valor jornalístico do caso. Apura-se que é um enunciado utilizado por uma das pessoas entrevistadas, amiga do casal protagonista,13 e dá o tom à narrativa, desenhando um horizonte de expectativas temático revestido de ambiguidade: será uma história de amor invulgar, contada num formato jornalístico, dentro de uma rubrica dedicada a grandes reportagens. Outros aspetos contribuem também para a construção de um universo ficcionalizado: o genérico, sobretudo a música escolhida - o adágio de Albioni, peça neobarroca muito conhecida e com efeitos cognitivos que adensam o ambiente de tristeza e nostalgia; e a lógica serial, a que o público está acostumado nos formatos de ficção audiovisual, como a telenovela ou a minissérie (aliás, cada episódio desta ‘reportagem’ ostenta “cenas do próximo episódio” e resumo “do último episódio”, como uma telenovela).

Do ponto de vista da instauração do pacto comunicacional, portanto, esta ‘reportagem’ transmite ao espectador sinais ambíguos: se, por um lado, assume o género nobre do jornalismo (a reportagem), integra uma rubrica informativa da estação televisiva e é feita e coordenada por jornalistas; por outro lado, vem acompanhada por um conjunto de signos comuns à ficção televisiva, aliás anunciados pela própria cadeia: “promete surpreender Portugal do primeiro ao último minuto, num enredo imprevisível, apaixonante e repleto de mistério, onde nada é o que parece”.

Uma análise qualitativa a Amor sem Fim permite detetar a presença de um conjunto de processos de espetacularização, bem conhecidos e identificados por J. Canavilhas, cujo resultado é a criação de um produto híbrido, entre jornalismo e entretenimento, facto e ficção, com vista a amplificar a resposta emocional do telespectador:

Seleção de dramas humanos: Procura-se explorar os sentimentos mais básicos da pessoa, pondo em destaque casos de insatisfação das necessidades básicas, [...] nomeadamente as necessidades fisiológicas e a segurança. Reportagem: Recurso ao enquadramento local, se possível, na hora do acontecimento, tirando partido da emoção oferecida pelo repórter no papel de testemunha ocular do acontecimento. Dramatização: Uso de gestos, do rosto e da expressão verbal (volume, tom e ritmo de voz) para emocionar ou sublinhar as imagens que desfilam na tela. Usualmente, são cinco os procedimentos clássicos da dramatização: o exagero, a oposição, a simplificação a deformação e a amplificação emocional. Efeitos visuais: Todo o esforço de montagem e pós-produção, que permite manipular o acontecimento através da seleção de imagens mais elucidativas (Canavilhas, 2001, p. 5).

A estrutura episódica da narrativa e a sua lógica serial revelam um investimento perlocutório com consequências na apropriação dos sentidos globais da reportagem, permitindo concentrar nos três primeiros blocos a história de amor dos protagonistas: AF, uma mulher comum de 32 anos, e HF, de 29 anos, doente oncológico. Só no quarto e último episódio se aborda diretamente a problemática de interesse jornalístico - a inseminação post-mortem -, ouvindo-se especialistas. Dois terços da ‘reportagem’ constituem, portanto, uma narrativa que obedece aos modelos das histórias de amor de um certo tipo de ficção popular, recuperando inclusive aspetos temáticos e narrativos prototípicos: o coup de foudre, a excecionalidade do sentimento que une os protagonistas, a perfeição da relação entre ambos, os sonhos e projetos futuros, os obstáculos exógenos, a morte de HF, vista como contranatura, a resiliência e a luta pela superação. Trata-se de uma estrutura elementar, que dialoga com a memória coletiva e com enredos ficcionais cristalizados, não exigindo grande esforço interpretativo ao espectador. Só no quarto e último episódio, entram em cena os quatro especialistas ouvidos, três médicos e uma jurista, que emitem as opiniões técnicas sobre o caso. Além de o tempo de antena destas figuras ser muito mais reduzido, a contextualização das suas falas e o feedback do jornalista são estratégias argumentativas que dão força à vontade de AF de engravidar com material biológico do falecido marido.

Este desequilíbrio na estrutura narrativa - em que o tema de interesse público e o tratamento jornalístico são secundarizados pelo desenvolvimento de uma intriga pessoal e íntima - resulta de uma escolha por parte da realização e tem em vista determinados protocolos de receção, fundados na emoção e na proximidade, e, sobretudo, a utilização do storytelling como estratégia argumentativa. Seguindo uma estrutura binária - em que o par protagonista encontra na comunidade jurídica e médica os seus oponentes - do ponto de vista da organização da intriga, esta história tem evidente recorte novelesco, recorrendo a artifícios facilmente identificáveis e assimiláveis pelas audiências, a quem é dado a ver uma história de amor de duas pessoas comuns, interrompida pela morte prematura de uma delas e a consequente impossibilidade de concretização do sonho comum: serem pais.

O trabalho de mise-en-scène é sobretudo visível em duas categorias narrativas fundamentais - a organização e gestão do tempo e a figuração de personagens - e recorre a estratégias retórico-discursivas e técnicas facilitadas pelas possibilidades do medium televisão, nomeadamente os efeitos visuais (movimentos de câmara, planos) e sonoros (músicas e sonorizações).14 A história mostra-se, simulando uma dramatização em que o espectador assiste ao desenrolar dos acontecimentos como se estivessem a acontecer em tempo real (privilegia-se, portanto, o que em narratologia se denomina por showing15). Para tal contribuem o recurso a testemunhos de familiares e amigos do par protagonista, mas sobretudo as reconstituições e simulacros de algumas cenas mais tristes e dramáticas (nomeadamente as últimas horas da vida de Hugo na madrugada seguinte à do casamento na cama do hospital), com recurso a atores, bem como a utilização de vídeos, fotografias e mensagens de Whatsapp cedidas à produção.

A organização temporal também é marcadamente ficcional: com o recurso a flashbacks e flashforwards, a trama da história vai sendo construída com base na gestão de expectativas do espectador, cuja atenção é mantida por técnicas de suspense e envolvimento emocional - nomeadamente cortes estratégicos em determinadas cenas ou mudanças de episódios - tradicionalmente usadas na ficção audiovisual. A sintaxe narrativa está habilmente construída, por forma a criar uma história em crescendo dramático, cujo enredo segue sobretudo uma coerência emocional com fins persuasivos. Cada um dos episódios se dedica a um tópico: o amor excecional e transformador dos protagonistas; o acontecimento trágico e disruptivo da morte prematura do jovem Hugo Ferreira; o grande flashback que explicita o nascimento do projeto de parentalidade; e, finalmente, a luta recente de AF contra a lei e o sistema.

Os momentos de maior tensão emotiva são simbolicamente sinalizados por trilhas sonoras ou através de certas imagens devidamente escolhidas cuja recorrência é significante e simbólica (por exemplo, o misterioso livro que acompanha a protagonista desde o início da minissérie, que só no último episódio se percebe ser um diário do falecido marido; ou o relógio de parede do hospital que simboliza a luta contra o tempo; as ruas da cidade do Porto ao anoitecer que integram a protagonista no seu quotidiano comum; ou o som e imagens de uma ambulância que intensificam o dramatismo da situação oncológica de HF).

Para além destes recursos, trata-se aqui de contar a história de pessoas comuns, geralmente afastadas das agendas mediáticas, vítimas não só do “destino”, mas também de um sistema legal que coarta os seus sonhos e projetos de parentalidade. A centralidade e tipificação das personagens é um dos recursos desta ‘reportagem’, promovendo, desse modo, um envolvimento emocional do espectador, através de procedimentos de identificação e familiarização. Esta é, aliás, uma característica das histórias de interesse humano usadas em produtos jornalísticos populares (Langer, 2001), que colocam em cena pessoas anónimas tornadas personagens dos dramas da sua própria vida, que mais facilmente suscitam o sentido de comunidade.16 Em Amor sem Fim, as personagens são trabalhadas de uma forma rudimentar, cumprindo funções clássicas e paradigmáticas, o que permite criar enquadramentos e modelos facilmente apreendidos pelo espectador. O modelo actancial de Greimas (1979) pode ajudar a perceber a esquematização prototípica destas figuras:

Quadro I Esquema actancial 

Fonte Greimas, 1979

No plano discursivo, cada um destes actantes é individualizado e cumpre diferentes funções na narrativa. Por um lado, o conjunto de amigos do par protagonista assume a função caucionante e testemunhal, credibilizando a história e caucionando a luta de AF. Os seus testemunhos são também aproveitados para adensar a atmosfera emotiva da narrativa, pois são diversos os momentos de comoção e de choro. Em oposição, o papel desempenhado pelos especialistas - médicos e juristas - permite servir de contrapeso à carga emocional, enquadrando e contextualizando o problema. Contudo, é claro o desequilíbrio do espaço discursivo ocupado por estes dois grupos: os especialistas são ouvidos apenas no último episódio e sempre rebatidos pelo jornalista; utilizam, como seria expectável, uma linguagem especializada e respaldam as opiniões na lei e em argumentário racional. O grupo de amigos e AF ocupam um espaço discursivo muito mais extenso e respondem a questões do foro privado que dizem respeito à construção de um amor excecional dos protagonistas cuja perpetuação seria o tão desejado filho.

Conclusões

Não tivesse ocorrido a pandemia COVID 19 e a Assembleia da República poderia ter correspondido ao anseio de AF, veiculado nesta minissérie, e que deu origem a duas petições públicas com este intuito17. A lei não foi ainda alterada18, mas, mesmo que o venha a ser, dificilmente permitirá a concretização do seu projeto, já que é de prever que seja definido um limite temporal para a utilização de material criopreservado, mesmo na existência de um projeto parental prévio, necessariamente interrompido na sua forma inicial (pelo menos) pelo falecimento do homem. O tempo da justiça não é o tempo das pessoas nem dos media (como aliás o próprio jornalista comenta no final do último episódio) e decorreriam anos até AF ter uma decisão de um tribunal administrativo a qual lhe poderia permitir receber uma indemnização, mas provavelmente não poderia concretizar a inseminação, a não ser que a decisão ou instrumento legal se viesse a revestir de retroatividade.

Reguladores e especialistas dividem-se, uns afirmando estarem em causa questões de ordem ética (Carla Rodrigues, presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida), outros negando que estas existam (Sérgio Soares, especialista em Medicina Reprodutiva). Esta questão, que é central e tem interesse público, foi secundarizada nesta “reportagem”. Não deixa de causar estranheza que nunca o jornalista se tenha referido à existência prévia de um filho(a) do HF, de quem nada se sabe. Naturalmente que se entende a proteção da identidade deste filho(a), mas estranha-se que esta situação seja apenas marginalmente presente (“quero voltar a ser pai”). E não é despiciendo, até por razões de direitos patrimoniais.

A vontade de ter um filho e de perpetuar um ‘grande amor’ é compreensível num momento de grande sofrimento, e não parece haver dúvida de que, neste caso, haveria um projeto parental comum, a avaliar pelos diálogos (reconstruídos e/ou simulados) e pelos testemunhos de amigos. Porém, a experiência mostra-nos também que, num processo de luto, não devem ser tomadas decisões irreversíveis. A existir uma alteração da lei portuguesa que contemple a possibilidade de utilizar os gâmetas de indivíduos já falecidos, para concretizar um projeto de parentalidade, afigura-se-nos essencial exigir um adequado aconselhamento psicológico que permita antecipar todas as consequências futuras de uma decisão tomada em contexto de vulnerabilidade emocional.

Em conclusão, a exposição/mediatização, sob a forma de drama/espetáculo, de uma situação do foro clínico e íntimo pode ser uma forma eficaz de mobilização da opinião pública para uma situação de alegada injustiça, com o intuito de pressionar o legislador no sentido de mudar a lei a favor de uma pretensão individual (independentemente do facto de esta pretensão poder ser moralmente legítima). Noutros contextos (por exemplo, a petição para a disponibilização de um tratamento altamente oneroso, mas eficaz para a hepatite C) o recurso aos meios de comunicação social, para tornar pública uma situação de “injustiça” e mobilizar a sociedade civil, pode ser aceitável. Neste caso particular, as consequências da exposição de terceiros, designadamente a criança que pudesse vir a nascer, assumem uma dimensão cuja complexidade não é de todo beneficiada pelos procedimentos de simplificação, dramatização e ficcionalização da ‘reportagem-folhetim’.

O sucesso desta narrativa, traduzido nas audiências alcançadas19 e nas consequências públicas daí decorrentes,20 deveu-se precisamente à hibridização de géneros: informação atual, mas também espetacularização; interesse público, mas exploração de um drama pessoal; procedimentos jornalísticos associados a estratégias dramáticas e ficcionais. Trata-se de um produto dificilmente enquadrável nos géneros canonicamente estabelecidos, que vive num território de fronteira entre dois universos. Simultaneamente, contém marcas claras de trabalho jornalístico - apelando a valores profissionais como a credibilidade e a autoridade, utilizando fontes e referentes documentais, promovendo o contraditório, abordando um tema atual de interesse público - e de trabalho ficcional, quer em termos de construção da narrativa, quer em termos discursivos, ostentando uma trama cheia de anacronismos, que prende o espectador, ao criar suspense e momentos de grande tensão emocional.

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1 Sobre esta questão, veja-se Silva, 2012, pp. 65-75.

2Segundo Lia Seixas, em trabalho que aborda precisamente a evolução dos géneros jornalísticos, Bakhtine foi o responsável pela adaptação da teoria genológica (relativa aos géneros discursivos) a práticas discursivas fora do âmbito da literatura: “Seu conceito de dialogismo, ao colocar o berço dos gêneros na esfera prosaica da linguagem, seduziu todos aqueles que queriam trabalhar com o discurso cotidiano, precisavam compreender a esfera do reconhecimento, ou ainda, analisar o hibridismo e a pluralidade. Os mais diversos gêneros da comunicação cotidiana, além da comunicação cultural organizada, ganham o estatuto de gêneros da linguagem, tipos que merecem ser analisados” (Seixas, 2009, p. 41).

3Foi Gerard Genette que, partindo do conceito de dialogismo textual de Bakhtine e de intertextualidade de Kristeva, organizou os fenómenos de diálogo textual em categorias. A arquitextualidade é a relação que existe entre o texto e o código que lhe deu origem, seja um género de discurso ou um período cultural (Genette, 1987).

4Por hibridismo entende-se o resultado de um processo de contaminação entre géneros, em que certas propriedades - semânticas, estruturais, locucionais - formas e conteúdos são reabsorvidas e miscigenadas, originando géneros mistos. Como têm observado alguns autores (Marcuschi, 2011), este não é um fenómeno novo, tendo sido explicado já em meados do século XX, no âmbito da genologia literária, por autores como Bakhtine, 1984 ou Kristeva, 1969.

5Géneros como o blog ou os antigos diários, as autobiografias ou a “nonfiction novel” são exemplos de tipologias que vivem entre dois universos cujas fronteiras são nebulosas.

6“A narrativa natural descreve acontecimentos que ocorreram realmente (ou que o locutor crê ou pretende fazer crer, mentindo, que tiveram realmente lugar). Exemplos de uma narrativa natural são a minha descrição do que me aconteceu ontem, uma notícia de jornal ou até a History of Decline and Fall of the Roman Empire de Gibbon. A narrativa artificial seria representada pela ficção que tão só faz de conta que diz a verdade sobre o universo real, ou afirma dizer a verdade sobre um universo ficcional.” (Eco, 1997, p. 126).

7O 1.º episódio tem a duração de 25 minutos; o 2.º de 26 minutos; o 3.º de 30 minutos e o último de 32 minutos.

9Relativo à teoria dos géneros discursivos.

10“Artigo 22.º Inseminação post mortem. 1 - Após a morte do marido ou do homem com quem vivia em união de facto, não é lícito à mulher ser inseminada com sémen do falecido, ainda que este haja consentido no acto de inseminação. 2 - O sémen que, com fundado receio de futura esterilidade, seja recolhido para fins de inseminação do cônjuge ou da mulher com quem o homem viva em união de facto é destruído se aquele vier a falecer durante o período estabelecido para a conservação do sémen. 3 - É, porém, lícita a transferência post mortem de embrião para permitir a realização de um projecto parental claramente estabelecido por escrito antes do falecimento do pai, decorrido que seja o prazo considerado ajustado à adequada ponderação da decisão.”

11Estes documentos têm sofrido modificações e a versão que está atualmente no site do CNPMA não é a que HF terá assinado. A versão mais recente data de julho de 2020 (https://www.cnpma.org.pt/CNPMA%20Modelos%20de%20Consentimento/CI_13.pdf).

12A lei 32/2006 refere no artigo 22º nº1: “ Após a morte do marido ou do homem com quem vivia em união de facto, não é lícito à mulher ser inseminada com sémen do falecido, ainda que este haja consentido no acto de inseminação” e no nº 2 “O sémen que, com fundado receio de futura esterilidade, seja recolhido para fins de inseminação do cônjuge ou da mulher com quem o homem viva em união de facto é destruído se aquele vier a falecer durante o período estabelecido para a conservação do sémen.”

13No 1.º episódio, uma das amigas de HF, ouvida pelo jornalista, utiliza a expressão “Era um amor sem fim”.

14“The structure of audiovisual narration in television infotainment news consists of organizing and articulating the various technical elements and editing techniques that provoke sensory and emotional reactions among viewers. Various audiovisual techniques defining infotainment news have been explored in studies conducted in both American and European TV news programs (Alencar e Kruikemeier, 2018, p. 1537).

15Showing e telling são dois modos de narração: a primeira, é “uma técnica de representação dramatizada” que mostra mais do que narra; na segunda, ao contrário, “o narrador manifesta a sua presença quando, aumentando a distância em relação ao que conta, opera uma operação que elabora (resume, elide) a história”. (Reis, 2018, pp. 280-281).

16“We are fascinated by true stories because we are citizens of the same world as their participants, because we experience a sense of community with all human beings, and because real events may impact our personal life; on the other hand, we are attracted to the madeup stories of narrative fiction because they fulfill formal and thematic patterns that engage the imagination” (Ryan, 2004, p. 64).

17Uma primeira petição iniciada por AF, protagonista da minissérie, que chegara às 20 mil assinaturas, tinha uma irregularidade, tendo sido anulada e substituída por outra petição pública que colheu, até agosto de 2020, 111182 assinaturas: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT95931 (acesso a 10 de agosto de 2020).

18A 25 de março de 2021 foi votada e aprovada na AR a proposta de texto final apresentada pela Comissão de Saúde relativa à sétima alteração à Lei 32/2006, de 26 de julho, permitindo a inseminaçãopost mortempara realização de “projeto parental claramente estabelecido”. Deve salientar-se a retroatividade da lei que estabelece no seu artigo 3º “A presente lei é ainda aplicável às situações em que o projeto parental foi estabelecido em data anterior à data da entrada em vigor do presente diploma”, viabilizando assim a realização do tratamento pretendido por Ângela Ferreira.

19“A reportagem ‘Amor Sem Fim’ da TVI conquistou o seu melhor resultado nesta quarta-feira. A minissérie documental termina nesta quinta-feira. Com início pelas 21h15, o espaço de Alexandra Borges marcou 11.1 de audiência média e 21.1% de share com 1 milhão e 47 mil telespectadores. O seu melhor momento foi registado pelas 21h43 com a TVI a bater nos 11.9 pontos de rating, o que corresponde a 1 milhão 125 mil telespectadores. A reportagem conseguiu liderar contra o intervalo da SIC.” (https://www.zapping-tv.com/amor-sem-fim-da-tvi-bate-recorde-de-audiencia/)

20Refira-se a petição pública iniciada por Ângela Ferreira, protagonista da minissérie colheu, até agosto de 2020, 111182 assinaturas: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT95931 (acesso a 10 de agosto de 2020).

Recebido: 24 de Agosto de 2020; Aceito: 04 de Março de 2021

Ana Teresa Peixinho é professora associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20), onde co-coordena o grupo de investigação Comunicação, Jornalismo e Espaço Público. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4533-7921 Ciência Vitae: https://www.cienciavitae.pt/portal/BA1F-98B6-867D Endereço institucional: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Largo da Porta Férrea, 3004-530 Coimbra, Portugal

Teresa Almeida Santos é professora auxiliar com agregação da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e diretora do Departamento de Ginecologia, Obstetrícia, Reprodução e Neonatalogia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7423-2996 Ciência Vitae: https://www.cienciavitae.pt/portal/3F10-47C8-F00F Endereço institucional: Serviço de Medicina da Reprodução, Edifício São Jerónimo, Praceta Mota Pinto, 3000-075 Coimbra, Portugal

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