Introdução: hibridismo na política e nos media
Só há duas formas de falar de política: é maravilhoso, ou é uma vergonha. A frase faz parte do universo simbólico-humorístico dos jornalistas e foi contada ao investigador britânico Andrew Chadwick (2013), cujo contributo para clarificar o conceito de sistemas mediáticos híbridos ajuda-nos a pensar a realidade de forma holística. Numa entrevista com Augusto Valeriani (2014, p. 124), Chadwick esclarece que o “pensamento híbrido é uma disposição académica. É sobre estudar a comunicação política, não em termos de ‘isto ou aquilo’, distinções rígidas e dualismos. É uma abordagem ´não apenas, mas isto também’”. Toda a política contemporânea é híbrida, no sentido em que se exerce nas fronteiras entre os novos e os velhos media, mobiliza várias lógicas mediáticas e se desenvolve em sistemas marcados pela instabilidade e pelo conflito1. São as relações entre os atores sociais que criam o sistema e definem o contexto para ações futuras. A ontologia do hibridismo privilegia a complexidade e a interdependência.
A reflexão académica sobre a comunicação política tende a relevar os aspetos estratégicos, isto é, o “comércio” implícito em discursos que visam fins persuasivos. Esta é uma visão crítica necessária, mas insuficiente para abarcar o transitório que (também) marca as relações de poder. Políticos e jornalistas são poderosos, mas também são frágeis, e a comunicação entre eles e os eleitores e os públicos é dinâmica. Este artigo procura captar esse fluxo em duas dimensões mediáticas: uma rede social (Instagram) e um meio tradicional (a televisão), explorando as intersecionalidades geradas por um ecossistema noticioso marcado pela permeabilidade entre discursos. A impureza que caracteriza a produção noticiosa contemporânea, e a distribuição e partilha de notícias no ambiente digital, força-nos a um olhar abarcante das várias dimensões em que ocorrem interações significativas. Considerando apenas o lado da produção, estas acontecem entre plataformas, mas também entre os vários partidos e os vários canais de televisão. Do lado da receção, originam uma rede neuronal de trocas e envolvimentos online e offline impossíveis de mapear na sua totalidade.
O incremento da intensidade e da complexidade das relações é típica de sistemas hipermediatizados, que transbordam as teorias clássicas da mediação. Já não se trata apenas de a política ser moldada pela lógica dos media, originando a plêiade de fenómenos político-comunicativos que fascinaram os cientistas sociais até ao fim do segundo milénio (aka, até ao início das redes sociais). As performances políticas e as narrativas mediáticas estabeleciam entre si relações de simbiose, cooperação, disputa ou antagonismo. As “figurações comunicativas” (Couldry & Hepp, 2013) contemporâneas atravessam todas as dimensões da vida social e são geradas por fluxos mediáticos supersaturados, contínuos e cumulativos.
No final da década de 70 do século XX, Altheide e Snow (1979) identificaram uma “consciência coletiva” forjada pela adoção generalizada de uma lógica mediática. Toda a gente pensava a política a partir dos media e como os media. A explosão de diferentes media multiplicou as lógicas em jogo. A política hoje acontece de forma imprevista, num território indistinto, onde podemos não conhecer os produtores das mensagens que nos interpelam e ninguém controla os seus efeitos. Hepp & Hasenbrik (2018, p. 16) referem que “já não parece apropriado falar de um tipo particular de media como uma driving force com capacidade para mudar a sociedade”. A questão de compreendermos como os media transformam a comunicação e a nossa perceção social permanece fulcral. Mas faz (mais) sentido pensá-la num ambiente “poli”, “multi” e “trans” media.
O artigo mantém um perfil conservador, visto que continua colocando “velhas” questões, designadamente: como é que os políticos comunicam (no Instagram)? e como é que os jornalistas reportam os políticos (nos noticiários televisivos)? Mas o foco são as relações geradas pela transmedialidade. A genealogia dos novos media assenta na ideia de remediação proposta por Bolter & Grusin (1999). A lógica da medialidade que ainda marca a cobertura jornalística da política realizada pela televisão, explorando o direto, o vívido, e procurando presentificar e contextualizar os acontecimentos, coexiste com a lógica da hipermedialidade que caracteriza a comunicação realizada pelos partidos e pelos líderes partidários no Instagram. Esta fabrica um tempo não linear, desvinculado de um território e constituído por fragmentos de materiais avulsos e sempre disponíveis para quaisquer usos. O jornalismo é sequencial e mantém protocolos de legitimação; as redes sociais criam um arquivo de dados prontos a serem usados “anytime, anywhere”. Os telespetadores, que em grande parte coincidem com os utilizadores das redes sociais, convivem bem com estes (e outros) regimes de verdade diferenciados e passaram a circular pelos dois universos.
A coexistência é reforçada pelos dados relativos aos consumos de media registados em Portugal. Segundo o Reuters Digital News Report 2020, a televisão continua a ser a principal fonte de notícias para 55,8% dos portugueses, seguida pela internet, com destaque para acessos indiretos, seja via motores de busca (25,9% dos acessos), seja via redes sociais (25,2% dos acessos) (Obercom, 2020, p. 25-26). Hepp & Hasenbrik (2018, p. 19) identificam 5 trends definidores do atual ambiente mediático: diferenciação na tecnologia, conectividade, omnipresença, inovação e datificação. Estas características possibilitam uma ligação permanente a diferentes espaços e tempos e criam uma disposição para acessos múltiplos, contínuos e híbridos. Geram também várias contradições, apontam aqueles autores. A capacidade de nos conectarmos a todo o instante, em qualquer lugar, utilizando vários media, não significa mais conexão social. O uso das redes sociais para aceder a notícias não implica mais confiança nesses meios. A omnipresença mediática tende a valorizar ambientes “media free”. A datificação incrementou as possibilidades de participação, mas opacizou as modalidades de agenciamento. O processo de mediatização profunda não permite que os media possam ser estudados como um domínio específico: pelo contrário, “são um fenómeno across domínios” (Hepp & Hasenbrik, 2018, p. 25). A consciência da totalidade do ambiente mediático não invalida a consideração de ensembles mediáticos usados em domínios sociais específicos, ou de repertórios mediáticos (Hasebrink & Popp, 2006), correspondentes a seleções de media que os indivíduos fazem e incorporam nas práticas quotidianas.
Bernard Manin (2013) destaca que, no modelo político representativo da “democracia de público”, os partidos mantêm um papel decisivo, mas não tanto quanto o tinham até finais do século XX. Segundo o autor, os partidos “não são unidades bem definidas dotadas de identidade duradoura” (Manin, 2013, p. 123). O fenómeno de constante mutação e crise das identidades sociais e pessoais, tratado por autores como Dubar (2006), reflete-se nas mais diversas dimensões da vida social, inclusive na política, e pode ser observado na comunicação feita diretamente com os públicos das redes sociais.
1 As transformações do jornalismo político televisivo
O jornalismo é um campo exposto ao processo de integração e fragmentação (Chadwick, 2013) que caracteriza os sistemas híbridos. O ciclo das notícias já não é movimentado apenas pela elite habitual: políticos, assessores e agências de comunicação, lobistas, jornalistas e outros influenciadores de opinião. A hibridização atingiu as relações de poder, multiplicando os pontos de acesso ao ciclo das notícias, alterando os seus conteúdos, temporalidades, protagonistas, visibilidade e modos de envolvimento, muitos dos quais passaram a ocorrer exclusivamente online. As notícias políticas e, consequentemente, a própria política, “assemblam” materiais diversos e integram um processo coletivo de produção cultural difícil de documentar com as categorias históricas tradicionais: fonte, autor, contexto, efeitos.
O jornalismo está hoje sujeito às lógicas impostas pela datificação. Loosen (2018) identificou quatro formas de jornalismo datificado: o jornalismo de dados, que reporta conjuntos de dados quantitativos anteriormente indisponíveis ou intratáveis; o jornalismo de algoritmos, que passou a selecionar, valorar e distribuir conteúdos em função de diktats algorítmicos, alterando o processo de “news judgment”; o jornalismo automatizado, cujos conteúdos são produzidos por inteligência artificial e integram indistintamente a produção noticiosa feita por humanos; o jornalismo de métricas, que procura capitalizar e responder a um conjunto de informações sobre a receção das notícias, com implicações na alocação de recursos e na predição de histórias.
A existência destas possibilidades, mesmo quando não são ativadas, modifica a integridade do jornalismo enquanto profissão. Loosen (2018) aponta três momentos específicos das rotinas produtivas que são afetados: o modo de observar o mundo, a circulação e a distribuição de outputs, e a performance. Iannelli (2016) sublinha os impactos abertos pelas novas práticas de participação das audiências na produção online cross media de conteúdos políticos. Estas tanto podem estar alinhadas com os enquadramentos noticiosos dos jornalistas e dos políticos, como resistir-lhes. Postagens, comentários e reações nas redes sociais são quotidianamente incorporadas na prática jornalística e monitorizadas pelas equipas de comunicação dos políticos. Como refere a autora (2016), estas tornaram-se lugares de manipulação e desinformação, que muitas vezes proliferam sob a aparência de uma genuína participação cidadã.
Os media tradicionais, sobretudo a televisão, orquestram a monitorização em tempo real do comportamento online das audiências. Estas são vigiadas e usadas como proxy da opinião pública, mesmo quando nada lhes é perguntado diretamente. Outros simulacros de democracia são gerados pela sobre exposição de “minorias vocais” (Ampofo, Anstead & O’ Loughlin, 2011) que, operando a partir das redes sociais, são alavancadas pelos media tradicionais ávidos de uma legitimação popular. Apesar disso, tal como podemos observar na análise feita a partir da recolha de dados empíricos sobre notícias televisivas relacionadas com os partidos políticos e cruzados com dados de suas publicações no Instagram, a televisão não iguala os níveis de capilaridade e de personalização que o Instagram consegue alcançar em termos de interação e identificação com o público. Independentemente das motivações e dos fins, jornalistas, políticos e cidadãos precisam de dominar “hybrid media skills” (Iannelli, 2016, p. 168), definidas como: apropriação (de conteúdo relevante a fim de produzir um remix inteligível; inteligência coletiva (colaboração com outros); juízo (sobre a credibilidade das fontes e das informações; navegação transmedia (seguir o flow das informações em diferentes plataformas); e networking (procurar, encontrar e disseminar informação). As pessoas que protestam ou reagem online não estão necessariamente a ser ouvidas, exceto se considerarmos que as suas vozes constituem uma espécie de jam session sempre em aberto.
1.1. A politização do Instagram
Um artigo recente (Hinsliff, 2019) no jornal britânico The Guardian assinala como o Instagram se transformou no playground dos políticos e no sítio favorito para mostrar o lado humano. Nas palavras irónicas da jornalista Gabby Hinsliff, as outras redes sociais tornaram-se tão tóxicas que é um alívio olhar para fotografias inofensivas, ternurentas e aparentemente despolitizadas, como as que habitualmente são publicadas. Enquanto o Facebook e o Twitter são hard, o Instagram é soft. As pessoas tendem a reagir com corações e sorrisos, em vez de ameaças racistas e sexistas. Os utilizadores do Instagram são mais jovens, mais mulheres, mais diversos nos backgrounds étnicos e mais sensíveis a uma comunicação estética. A positividade genérica das mensagens promove reações apaziguadoras. Mas o desinteresse inicial pela política parece estar a desaparecer. Com mais de 1 mil milhões de utilizadores em todo o mundo alcançados em 2020, já ultrapassou o Twitter e é a rede social com mais crescimento entre as elites políticas. Estas aprenderam a construir personas atrativas e poderosas através de uma combinação imersiva de fotografia, vídeo e texto.
Num estudo exploratório sobre os usos políticos do Instagram, Parmelee & Roman (2019) concluíram que os “Insta” Políticos são seguidos maioritariamente por jovens politizados, buscando informação e orientação, “algo sobre o qual falar”, e entretenimento. Ekman & Widholm (2017, p. 19) mencionam a política “porosa e celebritized” aberta pelas potencialidades técnicas e sociais do Instagram. O conceito chave é conexão visual. O Instagram propicia incontáveis momentos de foto-op. As práticas comunicativas constroem momentos de união, proximidade, estar juntos (togetherness), “displayed connectivity”. O Instagram convoca nos políticos uma performance diferenciada, e os utilizadores premeiam o que é percecionado como inovador, espontâneo, não estratégico, mas está sujeito às mesmas lógicas de disputa que marcam toda a comunicação política.
O estudo empírico que realizámos revela como as relações entre a comunicação no Instagram e a cobertura jornalística na televisão varia em função da representatividade do partido e da sua leitura estratégica acerca de maior ou menor necessidade de captação de atenção. Partidos mais institucionalizados, com presença forte e assegurada na televisão, fazem usos mais conservadores do Instagram e mantêm as suas contas menos permeáveis a aparições nos outros media. Partidos emergentes, como o Chega, investem em mensagens mais agressivas e importam mais conteúdo dos media e da produção comunicativa dos outros partidos. À semelhança de outros estudos (Ernst et al., 2019), a análise demonstra como os partidos ligados a temáticas polarizadoras apresentam um crescimento extraordinário em número de seguidores e reações de público no Instagram. A conclusão a retirar desta assunção é genérica: líderes underdogs ganham visibilidade quando as suas mensagens ressoam e são amplificadas em paisagens comunicativas híbridas, transformadas pela lógica do infotainment, da comercialização e da espetacularização da política. Ainda que o noticiário televisivo não seja o principal veículo de ressonância das manifestações populistas nas redes sociais, será pertinente considerar em novas análises o papel dos programas televisivos de debate e opinião que se alimentam da polémica em torno dos temas tratados por lideranças populistas. Os efeitos dos media na formatação do populismo são significativos, mas não podem ser desligados de fatores estruturais relacionados com as culturas políticas e as condições reais de existência (Mazzoleni, 2008).
Partidos Políticos na televisão e no Instagram
2.1. Metodologia
A fim de avaliarmos a relação entre a cobertura televisiva e a comunicação no Instagram feita pelos partidos e pelo líder de cada partido, foi realizada uma monitorização dos noticiários dos canais de maior audiência da TV portuguesa (RTP1, SIC, TVI e CMTV) e das publicações no Instagram das contas dos partidos que possuem representatividade na Assembleia da República e/ou apresentam expressivo crescimento nas sondagens para eleições presidenciais (PS, PSD-PPD, BE, PCP, CDS-PP e CH), bem como as contas de suas lideranças (António Costa, Rui Rio, Catarina Martins, Francisco Rodrigues e André Ventura). A exceção é o líder do PCP, Jerónimo de Sousa, que não possui uma conta no Instagram.
As observações das publicações no Instagram e do noticiário televisivo ocorreram entre os dias 15 e 28 de agosto de 2020 e resultaram num total de N=525 notícias veiculadas no intervalo de tempo da amostra e de N=157 posts, dos quais N=75 foram publicados no período de agosto de 2020, e N=82 foram publicações imediatamente anteriores a este período2. As peças do noticiário televisivo dos canais observados nas mesmas semanas de agosto foram acedidas a partir da base de dados da aplicação e-Telenews (gerida pelo grupo Marktest), que recolhe dados atualizados das audiências dos principais canais mediáticos. As notícias foram filtradas com base nos seguintes temas: partidos, governo, presidência, política, e protagonismo dos líderes partidários. As informações obtidas na base de dados da aplicação referem-se aos telejornais com maior audiência dos canais RTP1, SIC, TVI e CMTV, nomeadamente, o Telejornal (RTP1), o Jornal da Noite (SIC), o Jornal das 8 (TVI) e o CM Jornal (CMTV).
3 Análise dos dados
O primeiro fator relevante diz respeito ao nível de exposição televisiva dos partidos em relação ao nível de representação que mantêm na Assembleia da República.
A figura 1 permite fazer a comparação entre a proporção de representação dos partidos na AR e a proporção de sua exposição nos canais de TV, em valores percentuais. O tempo médio de exibição de notícias envolvendo o PS, o PCP, o PSD-PPD e o BE somados corresponderam a 86,4% do tempo médio diário total dedicado à temática política aferido nos canais e programas de notícias pesquisados no período em análise. Observamos que os partidos superavitários em termos de exposição televisiva no período observado foram o PCP, o BE, o CDS-PP e o CH. Já os partidos PS e PSD-PPD foram os partidos que apresentaram deficit quanto ao tempo de exposição no noticiário televisivo em relação ao percentual de representação que possuem na AR. Destaca-se que, no período em análise, o tema da Festa do Avante, promovida pelo PCP, esteve em evidência no noticiário devido à expectativa gerada pelo teor do parecer final da DGS sobre a autorização e as regras sanitárias a serem seguidas durante o evento. Este factor teve um grande impacto no nível de exposição do partido e do seu líder nos noticiários televisivos. Tal fenómeno foi considerado como um valor atípico ou outlier neste estudo. O partido do governo (PS), embora tenha sido o de maior exposição média diária no noticiário televisivo, foi também o maior deficitário em termos de comparação de exposição no noticiário televisivo com a proporção representativa na AR (-17,4%), seguido pelo PSD-PPD (-9,4%).
Fonte: Elaboração própria, com base em dados obtidos do sítio da Assembleia da República e da aplicação e-Telenews
Embora o PS apresente déficit na análise de temas associados ao partido, de outro lado, quando a pesquisa considera protagonistas de diferentes partidos ou instituições (governo, presidência ou lideranças políticas) observamos que os membros do governo (a maioria deles membros do PS) obtiveram considerável exposição no noticiário televisivo, conforme exposto na tabela 1 a seguir.
Na tabela 1 podemos observar que personagens ligados ao governo foram responsáveis por 42,3% do total de minutos atribuídos a um ou mais protagonistas da notícia veiculada pelos quatro canais de TV selecionados para o estudo, com destaque para António Costa (23,4%), Ana Mendes Godinho (4,3%), Marta Temido (3,9%), Graça Freitas (3,6%), António Lacerda Sales (2,8%) e Mariana Vieira da Silva (1,7%). O presidente Marcelo Rebelo de Sousa teve o segundo maior tempo proporcional individual de exposição (20,4%), atrás somente do primeiro-ministro. Entre os membros do Parlamento, os destaques individuais de percentual médio de exposição diária foram os de Catarina Martins, do BE (8,6%), Rui Rio do PSD (8,1%), Jerónimo de Sousa do PCP (6,1%), Francisco Rodrigues dos Santos do CDS (1,6%) e André Ventura, do CH (0,6%).
Ao observarmos a quantidade de tempo de exposição dada aos partidos ou às suas lideranças, observamos a seguinte distribuição em valores absolutos e em valores proporcionais por canal (percentual de colunas):
O nível de exposição dos partidos políticos e das suas lideranças nos canais de TV portugueses indicam que as percentagens de distribuição da exposição e da representatividade na AR são relativamente proporcionais, em especial quando considerados os níveis de exposição que os membros do governo e da oposição obtêm durante as atividades oficiais que recebem cobertura jornalística.
3.1. Caracterização dos canais do Instagram
A dimensão dos canais (ou contas) dos partidos políticos e dos líderes foram analisados tendo por base o tempo de existência do canal em semanas, o total de publicações do canal desde a sua criação e o total de seguidores no último dia da aferição, bem como os índices obtidos a partir da média de publicações por semana, média de seguidores por semana de existência e a relação entre o número de seguidores e o número de posts do canal. A tabela 3 a seguir apresenta esses dados por canal, com destaque para os índices mais altos.
Os dados na tabela 3 dão destaque aos canais5 @esquerda_net, utilizado pelo BE, e @partidosocialdemocrata, do PSD, como os que estão no ar há mais tempo, o primeiro tendo sido criado menos de dois anos após o lançamento da rede social Instagram em 2010. Apesar de sua criação precoce, em relação aos canais dos demais partidos, e de um ritmo significativo de publicações no primeiro ano, apenas em 2015 o @esquerda_net acelerou o seu ritmo de publicações. Nesse ano foi também lançado o canal de sua coordenadora nacional, o @catarina_smartins, que figura em terceiro lugar em número total de seguidores quando comparado com os demais canais analisados.
Os canais com maior número de seguidores pertencem às duas principais autoridades políticas do país: o do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa (87.700 seguidores), o segundo com menor média de publicações por semana; e o do primeiro-ministro António Costa (73.800), que publica num ritmo mais intenso, com cerca de 14 posts por semana. O elevado número de seguidores prende-se tanto com os cargos que ocupam, quanto com o nível consequentemente superior de exposição nos telejornais e restantes media noticiosos.
As contas do Instagram ativadas mais recentemente, ambas com aproximadamente um ano, foram as dos canais @pcp.pt e @partidochega. Embora o PCP seja o partido português mais antigo entre os que estão representados na AR, é um dos que mais tardiamente passou a utilizar o Instagram. Já o partido mais jovem avaliado - Chega - criou sua conta praticamente no mesmo momento em que oficializou a criação do partido. Na comparação de número de seguidores, chama a atenção o ritmo de crescimento deste canal, que em apenas um ano angariou no Instagram três vezes mais seguidores do que o centenário PCP, mesmo tendo publicado cerca de três vezes menos posts (490) do que os comunistas (1.393 posts).
Os canais do Instagram com ritmo de crescimento mais acelerado - @andre_ventura_oficial (510 seguidores/semana) e @partidochega (430 seguidores/semana) - são justamente os utilizados pelo partido com menor representatividade no Parlamento e também com menor tempo de exposição nos telejornais em relação aos demais partidos da amostra. Paralelamente a esse crescimento, o percentual das intenções de voto neste candidato o coloca em segundo lugar na corrida eleitoral presidencial de acordo com as sondagens realizadas no período destacado para esta análise6. No entanto, salientamos que a baixa exposição do partido Chega nos telejornais não significa uma correspondência idêntica noutros espaços, uma vez que as suas iniciativas aparecem como tema de discussão em programas de comentário político.
Nos posts dos canais do Instagram observados é possível perceber que o aproveitamento dos temas cobertos pelos telejornais não é exclusividade do Chega, como mostra a tabela 4 a seguir.
Fonte: Elaboração própria, com base em dados obtidos da rede social Instagram e da aplicação e-Telenews
A coluna “Notícia e post” da tabela 4 acima apresenta em que percentagem os temas apareceram nos telejornais e também nas publicações dos canais do Instagram. Enquanto o telejornal trata a notícia tendo que ater-se aos aspetos factuais, no Instagram as notícias são personalizadas, recebendo novos enquadramentos, seja por meio do recorte, do remodelamento feito com design gráfico, ou da legenda que dá um novo tom ao conteúdo e direciona a interpretação do público. A análise relacional de temas tratados tanto por posts quanto por notícias permitiu observar que aproximadamente um terço dos temas abordados no noticiário televisivo foi também objeto de publicação no Instagram dos partidos e suas lideranças.
Quanto às publicações dos partidos e lideranças políticas no Instagram, destacam-se os números do CDS que, de modo geral, apresenta baixa intensidade de atuação no Instagram, e que teve todos os seus posts observados no período deste estudo relacionados a temas abordados pelo noticiário televisivo. As atividades do Chega e de seu líder no Instagram indicaram que de cada 10 posts publicados, 6 deles estavam relacionados com temas abordados no noticiário televisivo. Estes números contrastam com os de partidos e lideranças como os do BE e PCP, cujos posts relacionados às notícias dos telejornais não chegaram a um terço do total de suas publicações naquela rede social. Estes partidos de esquerda associam publicações ligadas a temas da atualidade com propostas de governo e conteúdo informativo que remete para a própria atividade política. Uma especificidade é a de que duas em cada três publicações da conta do PM António Costa estão relacionadas com temas tratados no noticiário televisivo. No entanto, por ser líder do governo, suas publicações quase sempre remetem ao próprio fato ou evento que originou a notícia. A mesma proporção de publicações que remetem a notícias televisivas pode ser observada na conta do partido Chega.
A tabela 5 permite seguir a cronologia entre publicações de partidos e suas lideranças no Instagram em relação ao noticiário televisivo, demonstrando o hibridismo entre os dois media.
Os temas abordados pelo noticiário televisivo e pelos partidos e lideranças no Instagram foram agregados e comparados quanto à sincronicidade da cobertura dada pelos mesmos a tais tópicos. Na tabela 5 podemos observar que, quando a liderança partidária era a fonte geradora de notícia (por exemplo, se as contas de campanha foram aprovadas com sucesso, ou quando há cobertura da visita do PM a um determinado sítio), o post de tal personagem antecipa a notícia veiculada na TV. De modo previsível, as lideranças apenas divulgam na rede social as atividades que reforçam as suas narrativas e estratégias. Por outro lado, temas polémicos (como questões envolvendo os surtos de Covid-19 nos lares de idosos, a repercussão em torno da resposta da Ministra do Trabalho e Segurança Social sobre essa questão, e os níveis de desemprego em Portugal) provocaram reações imediatas às notícias televisivas por parte dos líderes e partidos políticos no Instagram. Na tabela 5 é possível observar que os partidos e lideranças políticas tendem a manifestar-se no Instagram sobre temas que estão diretamente relacionados com as suas identidades e estratégias políticas - um fato que, embora possa parecer óbvio, aqui nos é possível demonstrar com dados.
Na dinâmica de hibridismo entre os media tradicionais e os media digitais, as notícias jornalísticas são utilizadas não só no sentido de sustentar uma afirmação ou de reforçar alguma conquista do partido, mas também como base para a criação de novas narrativas. Um evento ou um dado é reinterpretado ou ressignificado de modo a encaixar numa estratégia de comunicação. Esta forma de atuação é mais visível no modo de operar do Chega, que assume que seus apoiantes não irão ler a notícia original usada como referência para a publicação, cujo sentido aparece com frequência distorcido7.
3.2. O desempenho dos partidos e lideranças políticas no Instagram
A análise do desempenho dos partidos e lideranças políticas no Instagram permite observar de que modo as suas ações de comunicação com o público se convertem em envolvimento. O nível de engajamento, a repercussão e a interação nas redes sociais podem proporcionar aos agentes políticos não só os ganhos imediatos de visibilidade na própria rede social mas, eventualmente, despertar a atenção de agentes dos media tradicionais. Um exemplo deste fenómeno é o vídeo publicado nas redes sociais e explorado pelas contas @andre_ventura_oficial e @partidochega em 23 de agosto de 2020, no qual o PM confrontava a atitude de médicos que atuavam no lar de idosos de Reguengos, no Alentejo, durante um surto de Covid-19. Posteriormente a essa publicação nas redes sociais, o vídeo foi veiculado amplamente nos noticiários televisivos e tornou-se tema de discussão sobre o qual os outros partidos e agentes políticos também se manifestaram.
Passamos então a fazer uma análise do desempenho dos partidos e de suas lideranças nas redes sociais. O gráfico 1 abaixo permite observar que os canais mais populares são os relacionados com o Bloco de Esquerda (@esquerda_net e @catarina_smartins) e com o Chega (@andre_ventura_oficial e @partidochega), que juntos correspondem a 84,7% do total de gostos (likes) da amostra de posts aferida. Estas lideranças são as que apresentaram maior sucesso em mobilizar o seu público no Instagram. O nível de envolvimento do respetivo público de cada canal por meio da interação em forma de gostos pode ser observada no gráfico 2. Destacam-se os canais @esquerda_net e @andre_ventura_oficial.
A tabela 6 permite observarmos o nível de envolvimento do público de cada canal. Os dados permitem constatar que o facto de um canal ter grande número de seguidores não se traduz necessariamente num alto nível de envolvimento do público. Esse envolvimento depende de outros fatores, como a regularidade de publicações, a qualidade do conteúdo, a afirmação de uma identidade visual e narrativa e o quanto cada post gera identificação no público do canal.
Cada canal mantém características próprias, ou o que pode ser chamado de uma identidade comunicacional, ao apresentar conteúdo para seus públicos. Este é o principal diferencial que o Instagram, como rede social digital, proporciona aos seus utilizadores: cada agente utiliza um repertório específico que é expresso por meio de diferentes estratégias argumentativas, narrativas e estéticas. Assim, logos, ethos e pathos são mobilizados em diferentes combinações e tonalidades resultando em maior ou menor êxito no envolvimento com o público.
Cada público, por sua vez, parece ser mais sensível a determinados conjuntos de estratégias que não funcionariam caso fossem utilizadas por outro canal com uma linha ideológica diferente. O tom crítico pode funcionar bem tanto para públicos do Chega, quanto para públicos do Bloco de Esquerda, mas o mesmo não se pode dizer sobre o uso de autoelogio. Este último é mais presente nas publicações do Chega enquanto que nos canais do BE quase nunca é utilizado. Da mesma forma, posts com caráter informativo, populares entre os canais de esquerda, praticamente não encontram ocorrência entre os canais pertencentes a partidos do centro para a direita.
Na tabela seguinte é ainda possível observar o que foi designado neste estudo como o “tom narrativo” do conteúdo escrito que acompanha cada post. Cada linha da tabela 7 a seguir corresponde a determinado tipo de característica da narrativa escrita do post. Podemos observar a quantidade de reações positivas (gostos) acumulados para o conjunto de posts que expressam diferentes características comunicacionais. O tom crítico foi o mais utilizado e também o que mais angariou gostos entre os posts analisados. Na área política, a crítica é utilizada para ampliar o espaço em disputa. Este quesito foi o menos utilizado pelo partido do governo que, por ser um agente da situação, tende a evitar situações de conflito que coloquem em risco a estabilidade. O tom motivacional foi utilizado por agentes de todo o espectro político. Por outro lado, os posts em tom informativo, explicativo ou mesmo em tom educativo, foram mais usados pelos partidos de esquerda como BE e PCP, que apresentam de forma didática suas propostas governativas, manuais de cidadania e textos que aludem a contextos históricos e sociais. Esta prática não foi observada entre os partidos de centro e de direita como CDS, PSD e Chega. O tom de acusação e de alerta apareceram associados aos canais de partidos de direita, como o Chega e o CDS. O tom de escárnio foi empregue em canais de direita e de esquerda (BE e CDS). Já os posts com tom de autoelogio, repúdio, moralismo, vitimização e ameaça foram constatados somente nas publicações do Chega e de André Ventura. Os posts da líder do Bloco de Esquerda apresentaram outras singularidades como tom de tristeza, desolação, intimista, feminista e homenagem, esta última relacionada a figuras públicas que faleceram. Sinteticamente, os agentes de todo o espectro político fazem uso da dimensão emocional típica da comunicação nas redes sociais, mas esta é marcada pela identidade construída por cada canal, e diferenciada pela narrativa estabelecida na relação com os respetivos públicos.
A figura 2 abaixo apresenta o conjunto dos 12 posts publicados pelos respetivos canais durante o período de acompanhamento das publicações dos partidos e das suas lideranças no Instagram em ordem decrescente de quantidade de gostos8. Podemos observar que não é incomum que um mesmo conteúdo seja veiculado tanto pelo canal da liderança política quanto pelo canal do partido no Instagram. Isso é observável pelo menos em duas publicações do Chega e de André Ventura. Os posts mais populares revelam o “lado humano”, a proximidade ou a sensibilidade do autor ou da autora, temas que têm apelo para o respetivo público. As críticas que remetem para temas identificados com a agenda de cada partido também geram mais interações. O conjunto de fotos e ilustrações reproduzidos abaixo são alguns exemplos de narrativas publicadas pelos partidos e líderes que se encaixam nestas duas categorias.
Conclusão
A comparação entre a comunicação partidária no Instagram e a cobertura jornalística televisiva dos partidos e dos políticos é uma via fascinante para aceder ao dinamismo dos fluxos comunicacionais que envolvem políticos, jornalistas e públicos. No caso português, são visíveis usos e estratégias narrativas diferenciadas entre canais da rede social e da televisão, políticos e partidos. O Instagram é a rede mais expressiva na tradução dessas diferenças ideológicas e narrativas, vertidas no tom, conteúdo e apresentação das mensagens. É também o canal mais articulado com as expectativas dos utilizadores, que são ativadas, despertadas, negociadas e mobilizadas com a integralidade dos recursos disponíveis numa sociedade marcada pela abundância mediática. Essa variação de usos, típica do combate político, é muito menos visível nos noticiários televisivos. Surpreende nesta análise o aspeto conservador do alinhamento televisivo sobre partidos e líderes políticos, (ainda) pouco permeável à atividade comunicativa dos seus sujeitos de notícia nas redes sociais. O material publicado no Instagram integra a seleção televisiva, mas apenas episodicamente e de forma ilustrativa.
Os noticiários televisivos apresentam variações no tempo de exposição diária dos partidos e das suas lideranças, mas esta variação é relativamente proporcional à representação dos partidos na AR e apresenta distorções muito inferiores à observada entre os níveis de popularidade dos canais de políticos e partidos no Instagram. Entre os canais de TV tampouco foi observada grande variação no tempo de exposição dado aos partidos políticos, embora seja possível indicar a predominância de atores políticos ligados ao governo, por serem protagonistas das ações noticiadas. Excecionalidades na cobertura televisiva podem ocorrer quando um fato abre a possibilidade de antagonismos políticos (como ocorreu com o debate sobre as condições de realização da Festa do Avante ou com o embate do Primeiro-Ministro com a Ordem dos Médicos). Os lados antagónicos acabam por capitalizar de modo relativamente equilibrado a exposição televisiva. A ideia instalada de que as lideranças associadas aos extremos do espectro político tendem a ocupar mais espaço na televisão não se confirmou nesta investigação. Esta questão fica em aberto e sugere-se que venha a ser desenvolvida numa análise posterior, que contemple a exposição em programas televisivos não informativos, de opinião, debate e comentário político.
Os canais do Instagram de lideranças políticas e partidos dialogam com os noticiários televisivos, seja porque os fatos noticiados ajudam nas suas estratégias de fazer críticas aos adversários, seja para destacar pontos positivos do próprio grupo político ou para externalizar argumentos, opiniões ou sensações sobre os temas que fazem parte da crónica política ou social. O uso das redes sociais é uma ferramenta de extrema valia para os partidos. Ao cultivar um público razoavelmente fiel ao seu canal, o partido ou agente político passa a criar uma "bolha" de sensações, mobilizações e reflexões que, em determinada circunstância, é captada pelos media tradicionais, incluindo as televisões. É neste contexto que a sinergia típica do hibridismo mediático se apresenta na sua plenitude. Quando um post, um vídeo ou um tweet se torna "viral", passa a ser notícia televisiva. Quando uma notícia serve de reforço à narrativa de um determinado partido ou liderança política, passa a ser encapsulada e veiculada nas redes sociais, em nova forma, edição ou contexto, para afirmar um ponto de vista junto ao seu público. Neste contexto, as notícias jornalísticas são utilizadas para reforçar as posições do partido, mas também como base para criar novas narrativas que são ressignificadas em relação às notícias originais.
Estas estratégias são simultaneamente comunicacionais e identitárias, pois estão sempre fundadas em características dos agentes que as colocam em marcha. O Instagram oferece aos políticos um meio altamente personalizado para acederem ao seu público, que apenas depende da sua própria capacidade performativa. Permite que desenvolvam uma voz própria para mobilizar e envolver o público, com potencial para atingirem um grau de visibilidade social e passarem a integrar os noticiários televisivos. Mas, por enquanto, na política portuguesa, ainda é a televisão que determina com mais regularidade os temas na agenda política.