Introdução
Inicialmente saudado em seu caráter inovador e democratizante (Quandt, 2018), o jornalismo digital passou a ser gradualmente discutido de modo mais realista pela literatura científica. Pouco a pouco esta bibliografia foi se dedicando a analisar como as novas tecnologias de informação e comunicação alteravam as rotinas produtivas nas redações e os valores profissionais dos comunicadores. Neste cenário, Bruns (2005) fala da desestabilização do papel de gatekeeping tradicionalmente atribuído ao repórter em meio à proliferação de sites de notícias na web; Trilling et al. (2017) discutem as mudanças nos valores-notícia decorrentes do monitoramento que os jornalistas fazem de tendências na web; Anderson (2011) e Nguyen (2016) analisam os impactos da incorporação dos softwares de metrificação do tráfego online nas decisões editoriais; e Tandoc Jr. e Jenkins (2015) debatem a popularização das manchetes “caça-cliques” em um ecossistema informativo em crescente disputa pela atenção da audiência.
Nos últimos anos, soma-se a esta literatura pesquisas enfocadas em examinar, em perspectiva sociológica, as transformações nos mercados de mídia decorrentes de seu ingresso na esfera digital. Tais estudos destacam que a crise enfrentada pelo setor decorre de desequilíbrios em seus modelos de financiamento, tradicionalmente baseados em subsídio publicitário indireto (Neveu, 2010). Afirma-se que o surgimento da internet e a popularização das mídias sociais teriam acarretado em um esvaziamento das fontes de receita que historicamente custeavam o jornalismo profissional (Anderson et al., 2013). A título de ilustração, dados da Associação Mundial de Jornais e Publishers até 2015 (WAN, 2016) sinalizam, de fato, um indicativo de queda nas receitas publicitárias de jornais impressos ao redor do globo (o levantamento reúne dados de 90% das publicações no mundo). As receitas com publicidade decresceram 1,2% em relação a 2014, com uma média de queda acumulada de 4,3% entre 2010 e 2014. O faturamento com anúncios em jornais declinou, por sua vez, 7,5%, compondo um decréscimo de 24% no mesmo período. Mais recentemente, as plataformas de tecnologia passaram a serem consideradas agentes fundamentais nesta acelerada reestruturação global dos mercados de mídia. A adequação da imprensa aos affordances das mídias sociais tem motivado diversos autores a refletir sobre a perda de autonomia do jornalismo em benefício aos novos mediadores da informação (Siapera, 2013; Bell & Owen, 2017). Na esteira, debate-se a aceleração dos regimes de publicação, a multiplicação dos canais de distribuição e a modularização do conteúdo noticioso às imposições comerciais das empresas de plataforma (Nieborg & Poell, 2018).
Não obstante, as incidências dessas reestruturações produtivas na atividade dos comunicadores são bem menos investigadas. Embora alguns estudos tenham tratado da extensão das jornadas de trabalho, da acumulação de funções e do aumento das demissões no jornalismo digital (Neveu, 2010; Deuze & Witschge, 2019), há uma escassez de investigações centradas nas incidências intersubjetivas destas novas dinâmicas laborais. O presente artigo busca contribuir para esta literatura averiguando as relações entre a aceleração dos regimes de publicação e o assédio moral sofrido por repórteres em portais de notícia com cobertura 24/7. Não desconsiderando a historicidade do assédio nas empresas de mídia, argumenta-se que a aceleração dos processos de trabalho em veículos digitais favorece a manifestação deste tipo de violência, especialmente entre editores e seus subordinados. Ademais, sustenta-se que recorrência de assédio nas redações decorre da naturalização da prática como intrínseca à cobertura em tempo real.
O argumento do texto está estruturado da seguinte forma: na primeira seção é oferecida uma revisão de literatura sobre as temporalidades do jornalismo digital e os efeitos da “comoditização” da notícia nos processos de trabalho. Adicionalmente, busca-se conceituar o assédio moral e indicar como o fenômeno tem sido tratado nos estudos em jornalismo. Na sequência, os métodos e instrumentos de pesquisa são apresentados. Por meio de entrevistas semiestruturadas com 15 jornalistas que atuavam em portais de notícia brasileiros com sede no Estado de São Paulo no ano de 2016, pretende-se analisar a incidência do assédio moral nas trajetórias desses profissionais e suas intersecções com os regimes de publicação 24/7 adotados pela imprensa.
Revisão de literatura
Temporalidades do jornalismo digital
Ainda no início dos anos 2000, as reestruturações produtivas no jornalismo digital passaram a ser objeto de análise. Nesta época, autores como Ramonet (1999) e Moretzsohn (2002) já discorriam sobre a “lógica da velocidade” como temporalidade hegemônica na imprensa. A periodicidade diária do jornalismo impresso estaria cedendo espaço a um regime de publicação ajustado à nova infraestrutura tecnológica. Na internet seria possível atualizar o leitor com ‘pílulas’ informativas publicadas em diversos momentos ao longo de um mesmo dia, à medida que novos aspectos de um acontecimento fossem apurados na redação.
Sob o imperativo da instantaneidade e da simultaneidade, a cobertura em tempo real atenderia a uma exigência do próprio mercado editorial. Isto é, a concorrência com outros veículos de informação sobre a divulgação primeira do fato (Renault & Cataldo, 2015). Tal disputa estaria, por sua vez, assentada em uma dinâmica de atração da audiência baseada no tráfego online, utilizado como recurso para comercialização de espaço publicitário nos portais de notícia. Doravante, as métricas quantitativas de alcance na web seriam levadas em consideração pelas agências de publicidade na hora de definir onde iriam promover suas campanhas.
A emergência das plataformas digitais intensifica esta adequação dos processos de trabalho jornalísticos às novas exigências dos anunciantes. As receitas publicitárias, agora concentradas em companhias como o Facebook e a Google, demandam que a produção cultural (Nieborg & Poell, 2018) (incluindo aqui a produção jornalística) se acomode em uma miríade de canais de distribuição. Neste processo, a notícia passa a ser modulada pelos affordances das mídias sociais, uma vez que o seu alcance é mensurado por métricas de engajamento quantificadas pelas próprias plataformas. O processo de distribuição das notícias se torna então gradativamente controlado por empresas de tecnologia, que submetem os processos de trabalho dos jornalistas às suas especificidades técnicas e comerciais (Bell & Owen, 2017).
Os efeitos dessas novas dinâmicas de circulação da informação na atividade dos comunicadores vêm sendo documentados por algumas pesquisas. Discute-se, por exemplo, a compressão dos processos de apuração em prol da consulta a fontes e documentos oficiais, mais facilmente acessíveis aos repórteres (Pereira, 2013); além da negligência de uma política de correção de erros nas redações. Matérias com diversos problemas gramaticais e inconsistências de apuração seriam toleradas em função dos imperativos da publicação em tempo real. Amiúde notícias veiculadas com graves erros não seriam corrigidas em tempo e frequentemente o leitor não seria notificado em casos de retificação do conteúdo (Vieira & Christofoletti, 2014).
Mais recentemente, alguns estudos têm analisado como as reestruturações no jornalismo digital impactam na própria cultura profissional dos comunicadores. Debate-se o surgimento de uma nova axiologia nas redações acompanhada de um incentivo à promoção de repórteres maleáveis a adaptarem seu trabalho às exigências comerciais das empresas de plataforma (Agarwal & Barthel, 2015; Bunce, 2019). A crescente “comoditização” do produto noticioso também fomenta a gestão de hierarquias laborais calcadas no trabalho desempenhado pelos jornalistas nas organizações: de um lado, um número cada vez menor de profissionais contratados para produzir reportagens investigativas de apuração densa; do outro, uma massa de trabalhadores precarizados alimentando ininterruptamente portais de notícia com matérias “caça-cliques” e pílulas de conteúdo de escasso valor informativo (Christin, 2020). Tais estudos reivindicam, consequentemente, que as pesquisas em jornalismo digital averiguem como a introdução de novas tecnologias nas redações se insere “no processo produtivo de maneiras específicas, geralmente no contexto de organizações de notícias capitalistas sendo reestruturadas para aumentar seus lucros e reduzir custos trabalhistas” (Cohen, 2018, p. 15)1. Logo, observar como repórteres que atuam em veículos digitais com regime de publicação 24/7 conferem sentido às atividades que desempenham pode enriquecer esta agenda investigativa preocupada com as repercussões laborais das reestruturações produtivas nos mercados de mídia.
Assédio moral
Apesar do assédio contra jornalistas na América Latina e no Brasil ser componente da cultura organizacional dos veículos de comunicação, ainda há certa escassez de investigações sobre o tema (a exceção das pesquisas desenvolvidas por Heloani (2005) e Nosty e García (2017)). Conforme Hirigoyen (2002, p. 65), o assédio no trabalho pode ser definido como:
qualquer manifestação de uma conduta abusiva e, especialmente, comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, pôr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho.
Isto é, o assédio moral seria uma conduta intencional abusiva, repetida e prolongada, perpetrada por um colega ou superior, que visa atacar à dignidade do trabalhador, com consequências negativas não só para a vítima, mas também para a organização e para a sociedade.
Em sua obra, Hirigoyen indica um vínculo indissociável entre assédio, ânsia pelo poder e a perversidade no ambiente organizacional, sobretudo no campo das interações verticais entre supervisores e subordinados; bem como acentua a novidade da discussão a despeito de ser um fenômeno, em suas palavras, “tão velho quanto o próprio trabalho” (Hirigoyen, 2002, p. 65). A autora indica como precursor das pesquisas sobre assédio moral o psicólogo sueco Heinz Leymann que, desde os anos de 1980, passou a desenvolver estudos de caso com trabalhadores de diversos setores, cunhando o termo mobbing para definir a prática. Para Leymann (1996, p. 168):
terror psicológico ou mobbing na vida laboral envolve uma comunicação hostil e antiética, a qual é dirigida de modo sistemático por um ou alguns indivíduos principalmente contra um sujeito que, em decorrência do mobbing, é empurrado a uma posição desamparada e indefesa2.
No Brasil, conforme Heloani (2004), as investigações sobre assédio moral se notabilizam a partir de um esforço de revisão das conceituações originais de Leymann e Hirigoyen: Franco et al. (2010, p. 239), por exemplo, ressaltam que é fundamental não tratar o assédio moral de um viés individualista, ou seja, “como expressão direta do sadismo e da insensibilidade de alguém em posição de chefia”, uma vez que o fenômeno recorrentemente se insere na própria cultura organizacional das empresas como meio de submeter os profissionais às imposições de produtividade ou provocar sua exoneração. Além disso, é importante ter em vista, conforme Barreto e Heloani (2014), que o assédio moral é em muitos casos entronizado em um campo profissional ao ponto de ser naturalizado como intrínseco a ele.
Internacionalmente, os estudos em jornalismo digital que examinam manifestações de assédio na imprensa o fazem em prisma extrínseco, isto é, circunscrevendo o fenômeno às interações entre comunicadores e audiências. Parte-se do pressuposto de que, ao passo em que a convergência multimídia ampliou os canais de participação do público e de interlocução com repórteres e editores, ela também aumentou o escrutínio sobre a atividade jornalística. Em contexto de crescente polarização política e descrédito às instituições nas democracias Ocidentais, jornalistas estariam sendo vítimas de campanhas de ataque e perseguição promovidas por grupos organizados (e.g., trolls, hackers, extremistas radicais) (Quandt, 2018; Waisbord, 2020) - campanhas estas que estimulam a autocensura profissional e ameaçam a liberdade de imprensa (Lewis et al., 2020). Esta literatura também tem se revelado sensível ao fato de que jornalistas pertencentes às minorias sociais são mais sujeitos a sofrerem abusos online, com consequências perversas não só para o desempenho de suas atividades, mas também para a sua saúde física e psicológica (Chen et al., 2020; Miller & Lewis, 2020).
Todavia, há uma preocupante ausência de estudos que tratem o assédio não só como manifestação externa de violência contra os profissionais da imprensa, mas como elemento intrínseco à cultura organizacional em veículos digitais. Isto é, a aceleração dos regimes de publicação somada à “comoditização” da notícia (Nieborg & Poell, 2018) em plataformas digitais pode fomentar uma cultura organizacional permeada por assédio moral, especialmente entre níveis hierárquicos distintos.
Métodos
Entre 11 de abril e 12 de setembro de 2016 foram realizadas 15 entrevistas semiestruturadas com jornalistas que trabalhavam em portais de notícia de abrangência nacional sediados no Estado de São Paulo, localizado na região Sudeste do Brasil. Estudos precedentes sobre o mundo do trabalho dos comunicadores enfatizam que o emprego desta técnica de pesquisa possibilita analisar as experiências dos entrevistados a partir de suas expressões verbais reflexivamente motivadas pelas indagações do pesquisador (Fígaro, 2014; Pereira, 2014). Dado o escopo qualitativo deste estudo, buscou-se construir um roteiro de entrevista que possibilitasse ao investigador tecer inferências sobre as condições de trabalho dos jornalistas a partir dos relatos de suas trajetórias individuais, contemplando também os sistemas de valores que configuram suas formas de interpretar o mundo.
O roteiro de entrevistas foi estruturado a partir de cinco subgrupos de indagações (formação; trajetória profissional; condições de trabalho; condições de saúde; percepções gerais sobre a área), visando fomentar depoimentos que articulassem as vivências particulares do indivíduo com suas impressões sobre o setor ocupacional em que se insere (Fígaro et al., 2013; Mick & Lima, 2013). Levando em conta que este artigo é excerto de pesquisa que resultou na tese de doutoramento do autor (Lelo, 2019), para este texto foram privilegiadas as respostas às interrogações que diziam respeito às jornadas e ao ritmo de trabalho nas empresas que adotam o tempo real como regime preferencial de publicação. As consequências das condições de trabalho para a saúde dos comunicadores foram avaliadas, neste estudo, a partir das experiências de assédio relatadas por eles nas empresas em que atuavam.
A decisão de privilegiar entrevistas com jornalistas provenientes do Estado de São Paulo se deve ao fato de que, entre 1980 e 2011, esta foi a região do Brasil que concentrou mais de 36% dos registros profissionais distribuídos em todo o país (Mick & Lima, 2013). Além disso, São Paulo abriga as sedes de alguns dos principais veículos de comunicação brasileiros, o que justifica a delimitação geográfica do corpus. A média de idade dos respondentes foi de 29 anos quando do contato. Na segmentação por gênero, foram entrevistadas 11 mulheres e somente quatro homens (Quadro 1). O perfil da amostra reflete os dados de investigações precedentes (Fígaro, 2013; Mick & Lima, 2013) que indicam que o perfil médio do jornalista que atua em São Paulo é de “jovens, brancos, de classes médias, mulheres (a maioria sem filhos), multiplataformas, vínculo de emprego precário, com curso superior completo e com especialização em nível de pós-graduação” (Fígaro, 2013, p. 8).
Os profissionais foram escolhidos a partir da técnica do snowball, delineada por Bernard (2006) como estratégia metodológica apropriada para inserção em um campo social no qual a população a ser estudada encontra-se espalhada por uma área geograficamente ampla (neste caso, toda a extensão do Estado de São Paulo). O contato com cada uma das fontes foi feito por meio de uma carta-convite encaminhada ao e-mail profissional do jornalista (quando disponível nas páginas dos veículos em que atuavam). Na correspondência eram explicitados em linhas gerais os objetivos da investigação e mencionadas as garantias de sigilo dos depoimentos. Após o agendamento da entrevista, era solicitado aos participantes que indicassem contatos de colegas que se enquadrassem no perfil da pesquisa.
Os diálogos ocorreram via Skype (média de uma hora de duração) e foram gravados por meio dos softwares iFree Skype Recorder e MP3 Skype Recorder para posterior transcrição e análise qualitativa. Os dados foram codificados pelo pesquisador de modo a extrair das respostas coletadas blocos temáticos que pudessem ser analisados transversalmente à luz das motivações centrais do estudo. Assim, foram identificados pontos de convergência nos depoimentos, refletindo experiências comuns de socialização ocupacional (Ruellan, 2001) nas redações que publicam conteúdo em tempo real. Tais experiências são averiguadas na sequência em duas dimensões: a) na percepção de decréscimo na qualidade do material produzido; b) na naturalização do assédio moral como componente intrínseco às rotinas laborais.
Resultados
Aceleração dos regimes de publicação
Os 15 entrevistados se revelaram preocupados quando perguntados sobre o impacto das temporalidades do ambiente digital em suas rotinas de trabalho. Em seus depoimentos, tal regime de publicação é frequentemente mencionado como um entrave à reflexão crítica e à apuração detalhada dos fatos. Nas palavras de Priscila, repórter com significativa experiência no setor:
Agora a gente tem a obrigação de publicar o que está acontecendo na hora em que está acontecendo. E a gente não tem tempo pra pensar. A gente não tem tempo pra questionar o que a gente tá publicando. A gente não tem tempo de produzir uma informação de qualidade pra quem vai ler. E é uma corrida que acontece assim, por segundos, é muito ridículo
Na sequência, ela arremata: “Quando a gente informa com muita rapidez, e preocupado com o tempo real, a gente perde em profundidade, em questionamento”.
Também ao ser indagada se a cobertura 24/7 provocara alterações em sua rotina de trabalho, Aline, que à época ocupava o cargo de editora de conteúdo, responde em afirmativo alegando que, atualmente, há uma miríade de ferramentas para postagem de textos e vídeos instantaneamente, gerando uma significativa sobrecarga de demandas. Ademais, salienta que há uma diversidade de plataformas digitais que precisam ser alimentadas e pensadas em suas especificidades de linguagem (e.g., Facebook, Twitter, Instagram e Snapchat). Em suas palavras, este excesso de tarefas cria uma recorrente sensação de que o trabalho não está sendo entregue com a qualidade necessária, além de reduzir os tempos de descanso:
Quem lida com o tempo real (...) é uma coisa sofrida assim, às vezes não dá tempo nem de ir ao banheiro. Às vezes tenho que fazer coberturas em tempo real que assim, já era almoço, ir ao banheiro, fazer pausa, isso não existe, é deixado de lado.
A entrevistada conclui que tal sobrecarga de trabalho acentua ainda mais o desafio da apuração - por vezes perdido em prol do “imediatismo” da publicação:
Às vezes, o que eu sinto e que muita gente sente é um trabalho muito mais automatizado (...) que você não consegue nem respirar, sabe, pra entender aquilo que você tá fazendo, se aquilo faz sentido no todo, você fica ali muito num texto só, por exemplo, ou num assunto só, muito pontual... se você fica só no factual também faz muita falta essa questão do olhar mais amplo. E nem os editores, que seriam as pessoas que teriam mais tempo para olhar o todo, para ver o que está acontecendo, muitas vezes eles não conseguem também, sabe. São tantas demandas, tanta coisa, tanta sobrecarga, que o factual se sobrepõe.
Repórter com passagem por alguns dos principais veículos digitais no Brasil, Priscila evidencia preocupação similar com as transformações no mundo do trabalho nos últimos anos:
O próprio trabalho do jornalista mudou, ele tá virando um trabalho de escritório. Você chega, você senta a bunda lá no computador. Fica dando F5 nas agências de notícias e repercutindo as notícias que todo mundo já tá dando. Fica todo mundo fazendo a mesma coisa (...) E a internet não dá esse tempo pro jornalista. Então as notícias tão ficando mais rasas, e o trabalho do jornalista consequentemente mudou. Agora ele fica na frente do computador fazendo vídeo, preocupando que as pessoas vão ter que assistir o vídeo dele (...) se você olhar os portais tá cada vez mais ficando assim.
A entrevistada ainda complementa sua avaliação da conjuntura reforçando a tese de que, em decorrência da aceleração dos regimes de publicação no jornalismo digital, os repórteres não disporiam do tempo necessário para realizarem a devida apuração dos fatos levantados em pauta.
Em síntese, os depoimentos indicam que não só a audiência (Molyneux & Coddington, 2020), mas também os próprios jornalistas percebem um decréscimo na qualidade do seu trabalho em decorrência da intensificação dos ritmos de produção em veículos com cobertura 24/7. Importante frisar que essa aceleração nos regimes de publicação é acentuada pelo processo de “comoditização” da notícia (Nieborg & Poell, 2018), conforme os próprios comunicadores salientam. Em outras palavras, o engajamento gerado pelo conteúdo (seja nos sites de notícias, seja nas mídias sociais) prima sobre o ineditismo e relevância da informação.
Isto não significa que as tecnologias digitais sejam intrinsicamente deletérias ao jornalismo, haja vista que a criação de manchetes “caça-cliques” e a republicação de material proveniente de agências de notícia são práticas comuns em diversos países Ocidentais ao menos desde o século XIX (Munger, 2019). Não obstante, os relatos dos entrevistados corroboram a tese de que a implementação dessas tecnologias nas redações reconfigurou não só as rotinas produtivas, mas também a percepção dos comunicadores sobre a qualidade do trabalho que oferecem ao público. Resta, portanto, observar como as coberturas em tempo real criam um ambiente organizacional propício às manifestações de assédio moral.
A naturalização do assédio na redação
A estafante jornada de trabalho experimentada pelos comunicadores que atuam em veículos com cobertura 24/7 se manifesta, de modo mais marcante, nas experiências de assédio moral relatadas: dentre os 15 entrevistados, 12 deles mencionaram já terem sido vítimas da prática nas empresas em que trabalharam. No entanto, percebe-se nos depoimentos uma tendência de naturalização e racionalização do assédio sofrido, tratando-o como uma tensão própria ao trabalho jornalístico. É o caso do repórter de economia Vinicius:
É uma linha tênue porque, por exemplo, eu lembro assim: você está num ambiente em que cinco segundos fazem diferença (...) então, eventualmente, tem algum momento assim, ‘alguém já deu isso?’, tem um momento de uma maior paixão ali, de uma tensão maior. Mas que eu não encarava em momento nenhum, essa exigência às vezes um pouco maior como (...) um assédio moral. Eu acho que assim: era dentro do limite necessário, porque assim, você estava numa redação que é grande, com pessoas sentando a três fileiras de você. Assim, não acho que chegava a esse limite assim. Não a tensão do tempo real.
A naturalização do assédio nas redações também se manifesta na relativização das condutas abusivas de chefes com seus subordinados. Tais atitudes são apreendidas pelos comunicadores como consequência da pressão inerente ao ritmo de trabalho, e não como manifestações gratuitas de violência e agressividade. Dentre os entrevistados, nove disseram trabalhar em ambientes permeados por grosserias e desrespeito entre os membros da equipe. Para a editora de conteúdo Aline, estas situações não se restringem a ocasiões em que o ritmo de produção se acelera dada a urgência da cobertura, mas sim se espraiam no dia-a-dia em explosões injustificadas de superiores que reagem agressivamente a quaisquer erros ou atrasos da equipe. Priscila confirma esta tendência em seu relato:
Eles gritavam assim, sabe? Chegava em seu ouvido e falava: ‘como assim você não tem tal informação, que absurdo’. O que quê você ficou fazendo a tarde inteira? (...) eles falavam assim, como se fosse um pai brigando com o filho.
Outros entrevistados também mencionaram o assédio como parte de uma “socialização perversa” do jornalista pelos seus editores - como um teste para avaliar a aptidão dos novatos à pressão organizacional. Márcia, uma das interlocutoras da pesquisa, revela ter sido vítima da prática na empresa em que atuava:
Na primeira semana que eu cheguei ao portal (...) o chefe gritou comigo de um jeito bizarro, bizarro, e eu fui ao banheiro chorar. Acho que foi a primeira vez que eu chorei assim porque alguém me destratou e me humilhou. Foi um assédio moral bizarro. Ele era uma pessoa que não aceitava dialogar, ainda não aceita (...) aquilo mexeu muito comigo, porque nunca ninguém gritou comigo.
Nathália também relata ter sofrido este tipo de trauma em sua primeira experiência em uma redação com cobertura 24/7:
Eu era muito nova, tinha 18 ou 19 anos, e minha chefe, ela um pouco aproveitava dessa minha inexperiência em lidar com a pressão para também me distratar, me coagir, gritar, gritou diversas vezes comigo, muitas vezes. Até que um dia assim, ela começou a gritar, e eu fui cerrando os punhos, e me segurando pra não responder, porque, poxa, é o chefe. Gritando, mas gritando muito, até o pessoal que estava na outra sala com a porta fechada se assustou, e ela virou assim e ‘e você, vai fazer o quê, vai chorar? Vai chorar?’, assim, sabe, provocando. ´
A entrevistada ainda relata que os impactos do assédio sofrido, somados a uma jornada de trabalho estafante, produziram danos físicos à sua saúde, gerando um princípio de úlcera detectado após sucessivos episódios de vômito acompanhados de sangramento.
É importante pontuar que os entrevistados relatam que a vivência silenciosa do assédio é dificilmente rompida nas empresas jornalísticas. Dos 12 participantes que afirmaram terem sido vítimas deste tipo de violência, somente duas entrevistadas (Márcia e Nathália) relataram terem reagido aos ataques em algum momento, seja respondendo rispidamente ao perpetrador ou levando o caso às instâncias superiores da empresa - ainda que a queixa não tenha resultado na punição do ofensor. Márcia relata que, quando reagiu a uma das agressões verbais que sofreu, também ficou traumatizada por ter sido hostil:
Teve uma vez que eu explodi com um cara que era da minha editoria (...) eu lembro que eu gritei com ele, eu falei assim: ‘ó, a hora que você falar comigo como um ser humano eu falo com você (...) tipo, enquanto você gritar comigo que nem um animal, não fala comigo’, sabe? Foi horrível, eu falei isso gritando.
Nesta conjuntura, a naturalização do assédio nas redações pode ser apreendida como um recurso adotado para amortizar o sofrimento experimentado pelos profissionais vitimados, retardando a emergência de transtornos psicológicos e permitindo que eles permaneçam em seus cargos por mais tempo. Mas a consequência dessa conduta, como os próprios entrevistados ressaltam, é a aquiescência em face de uma cultura organizacional insensível à sua saúde mental.
Ademais, como os depoimentos supramencionados permitem entrever, o circuito de assédios nos portais de notícia é beneficiado pela invisibilidade dos dramas dos profissionais e pela racionalização da prática como elemento intrínseco à própria urgência da produção para a web, acarretando em um “esvaziamento da expressão linguageira” na atividade (Heller & Boutet, 2006). O efeito mais nefasto deste fenômeno é a individualização do sofrimento, com danos salientes à saúde mental dos jornalistas.
Por fim, percebe-se que os regimes de publicação em tempo real e a ininterrupta alimentação de mídias sociais com pílulas de informação limitam os espaços de reflexão dos jornalistas em seu ambiente de trabalho. Os entrevistados se queixam da ausência de momentos para discutirem com seus colegas não só os sofrimentos vividos, mas também as limitações do tipo de cobertura que realizam. Por esta razão, veem cada vez mais sua profissão como uma atividade mecanizada, individualizada e pautada por jornadas extenuantes. Neste sentido, a reincidência do assédio moral nas redações pode também ser apreendida como indício do esvaziamento das relações intersubjetivas nas empresas de mídia - esvaziamento este beneficiado pela ausência de políticas capazes de coibir este tipo de violência no trabalho (Fenaj, 2020).
Conclusão
Os resultados deste estudo reforçam a importância de que as transformações nos mercados de mídia sejam averiguadas não somente a partir de seus aspectos mais estruturais (como a transição no modelo de negócios da imprensa) ou de suas reverberações no produto jornalístico. É preciso ter em vista que as mudanças nos regimes de publicação alteram as dinâmicas do próprio trabalho exercido pelos profissionais, com consequências significativas também para a saúde deles.
A pesquisa também reforça a necessidade de que estudos ulteriores confiram mais atenção às manifestações de violência entre os próprios comunicadores, e não só em suas interações com o público em portais de notícia e mídias sociais (já bem documentadas pela literatura). Se o assédio moral nas empresas de mídia não é propriamente uma novidade histórica (Heloani, 2004, 2005), não restam dúvidas de que as reconfigurações nos regimes de publicação e a consequente “comoditização” da notícia afetam significativamente as relações laborais e a própria cultura jornalística.
Acossados pela urgência da instantaneidade, os repórteres assimilam os assédios sofridos (especialmente quando provenientes de editores e chefes de redação) como inerentes à própria urgência da cobertura 24/7. Percebendo-se como “processadores de informação”, eles percebem seu trabalho como uma atividade cada vez mais automatizada e orientada para a entrega ininterrupta de conteúdo em diferentes plataformas. Neste sentido, confirma-se também o argumento proposto por Nieborg e Poell (2018) de que a adequação do jornalismo às exigências das empresas de tecnologia converte a notícia em uma commodity cultural contingente e sujeita a sucessivas atualizações e revisões.
Não obstante, o caráter situado desta investigação (circunscrito a repórteres de veículos de comunicação brasileiros com sede no Estado de São Paulo) limita o alcance dos resultados consideravelmente. Ainda que os entrevistados atuassem, em sua maioria, em jornais da grande imprensa, seria fundamental cruzar as descobertas aqui reportadas por meio de pesquisas comparadas em outros contextos geográficos, haja vista que em um país de dimensões continentais como o Brasil as condições de trabalho em grandes centros urbanos e no interior são consideravelmente distintas (Mick & Lima, 2013). Adicionalmente, seria importante também realizar uma análise comparada da incidência de assédio moral em veículos digitais com regimes de publicação distintos do tempo real, ou ainda contrastar as condições laborais da imprensa de referência com iniciativas de jornalismo independente e arranjos alternativos às corporações de mídia.
Por fim, o artigo evidencia uma reformulação preocupante nos modos de socialização dos novos repórteres nas redações. Historicamente, a pesquisa em jornalismo acentuou que a acomodação à cultura profissional decorria das relações estabelecidas entre os novatos e os profissionais mais experientes no setor, que transmitiam aos jovens os “saberes do ofício” (Breed, 1955; Ruellan, 2001). Os resultados deste estudo, contudo, sinalizam para a direção oposta, acentuando que as relações entre chefes e seus subordinados nas empresas de mídia são frequentemente permeadas por uma alarmante toxicidade. Em estudos futuros, seria indispensável averiguar como essas experiências traumáticas afetam negativamente as trajetórias dos jornalistas na profissão.