A cobertura jornalística do cinema
O jornalismo cultural, enquanto especialização das práticas jornalísticas, cobre e reflecte sobre o vasto campo das artes e da cultura. Envolve uma grande variedade de questões, desde as artes à vida quotidiana, ou desde a cultura, entendida estritamente como expressão estética, à cultura enquanto “estilo de vida” (Kristensen N. N., 2019, p. 2). Nas últimas décadas, tem sofrido transformações, não tanto no objecto em análise, mas na escassez da promoção das discussões em torno das práticas artísticas e culturais. Se, por um lado, tem sido decretada a crise e o declínio do seu sentido crítico e analítico (Baptista, 2017a; 2017b), por outro, tendo vindo a orientar os seus conteúdos para o entretenimento, para o seguimento quase exclusivo de uma agenda de eventos e para o esbatimento das fronteiras entre o domínio do consumo e do jornalismo (Santos Silva, 2015, p. 43). É claro que estas novas orientações não são consideradas por todos como uma crise ou um declínio. “Em vez disso, expandiu-se naturalmente e desenvolveu o foco, a interpretação e apresentação de cultura de acordo com uma cultura em modificação e indústria de consumo e contexto mediático altamente competitivo e profissionalizante” (Kristensen N. N., 2010, p. 69). Como se as recentes transformações no jornalismo cultural resultassem das transformações nos próprios objectos que são analisados. Vivendo, como vivemos, em contextos altamente competitivos, também o jornalismo cultural parece ter cedido à tendência de facilitar o consumo mais do que promover a reflexão crítica sobre as práticas artísticas e culturais que servem a paisagem mediática. Deste modo, o facto de o jornalismo cultural ter ampliado o seu foco não pode servir de desculpa pelas opções editoriais pobres ou a aplicação de géneros jornalísticos superficiais (Santos Silva, 2015, p. 310).
O Jornalismo de Cinema, enquanto subgénero do jornalismo cultural, possui as mesmas características, mas com a actividade cinematográfica enquanto objecto central, adoptando conceitos e códigos linguísticos próprios da área, relacionando fontes (realizadores, produtores, actores, distribuidoras, exibidores, etc.) e exercendo um papel ativo no campo da actividade cinematográfica.
Apesar de, em Portugal e desde as suas primeiras manifestações, os media sempre terem dado atenção ao cinema, a investigação académica em torno deste tópico tem-se revelado escassa [ao contrário, por exemplo, da investigação sobre o jornalismo de música (Baptista & Flores, 2014; Nunes, 2003; 2004; 2011; Torres da Silva, 2013a; 2013b; 2014a; 2014b)].
A propósito do ciclo “Jornalismo & Cinema”, inserido nas comemorações do 20º aniversário do semanário Expresso, em 1993, o seu fundador, Francisco Pinto Balsemão, referia que “os homens dos jornais sempre manifestaram, por seu lado, um interesse quase anormal pelo cinema” (Balsemão, 1993, p. 9).
Este subgénero possui as mesmas características distintivas do jornalismo cultural, mas aplicadas ao contexto cinematográfico. Algumas dessas características são a democratização do conhecimento, ao dar a conhecer e tornar acessíveis determinadas obras, bens e pensamentos; o carácter reflexivo que se traduz no formato por excelência do Jornalismo de Cinema (e do cultural), a crítica; e a dimensão performativa em que o jornalismo contribui para que o leitor/ouvinte/espectador desencadeie uma acção (por exemplo, ir ver um filme ou comprar um DVD).
Balsemão defendia, já em 1993, que o cinema era parte integrante do jornalismo, pois existiam “cada vez mais publicações escritas, a televisão, a própria rádio ocupam-se do cinema, precisam do cinema, noticiam o cinema, usam o cinema” (Balsemão, 1993, p. 9).
Sendo o papel do jornalismo “fornecer aos cidadãos a informação de que precisam para serem livres e se autogovernarem” (Kovach & Rosenstiel, 2005, p. 16), no que diz respeito à especialização em Jornalismo de Cinema, essa função não é deixada de lado. Para Mário Mesquita, referência incontornável dos Estudos de Jornalismo em Portugal, “a informação especializada deve ser ‘divulgação contextualizada’, sem se confundir com uma ‘vulgarização’ que signifique ausência de rigor e caricatura do saber, a reboque das estratégias e dos interesses do ‘marketing cultural’” (Mesquita, 2001). Deste modo, o Jornalismo de Cinema deve também ir além do objecto central e, através dele, ler aspectos da actualidade: recorrer, neste caso, a um filme, como meio de interpretação da realidade. Por exemplo, através do filme Contágio1 (2011) de Steven Soderbergh, olhar para a pandemia da Covid-19 de outra perspectiva. O que vai ao encontro de Pedro Alves (2018) quando refere “o cinema pode ser um contributo importante para potenciar codificações e descodificações significativas do(s) nosso(s) mundo(s)” (Alves, 2018).
De forma geral, é neste sentido que Balsemão referia que “há que acompanhar a vida dos realizadores e dos actores. Há que noticiar os filmes em preparação. Há que dar relevo aos lançamentos comerciais das grandes produções, normalmente americanas, mesmo que não sejam grandes filmes” (Balsemão, 1993, p. 10). Assim sendo, a divulgação dos filmes, nomeadamente as grandes produções (como os blockbusters2) que constituem fenómenos culturais, enforma notícias culturais: seja devido a factores económicos (onde se insere a actividade empresarial dos estúdios), à presença de grandes celebridades, à inovação tecnológica que é aplicada nos filmes, ou até às campanhas de marketing que os acompanham (Kristensen & From, 2013, p. 53).
Além da componente informativa (inerente ao jornalismo), o Jornalismo de Cinema tem um papel fundamental na formação do público, nomeadamente através de um formato jornalístico específico: a crítica. É, deste modo, que o Jornalismo de Cinema se constitui como um elemento fulcral na promoção de uma literacia fílmica, na abertura e consolidação do discurso da cinefilia, fazendo uso de uma dimensão pedagógica. Elsa Carneiro Mendes, coordenadora do Plano Nacional de Cinema3, refere que “é essencial aliar a importância pedagógica das narrativas audiovisuais ao papel formativo que o jornalismo de cinema pode assumir, quer como ferramenta privilegiada para eliminar fronteiras entre cultura e educação, quer como mediador singular da divulgação de fenómenos provenientes da cultura popular e massificada, intrínsecos à cultura do cinema e audiovisual , quer ainda como instrumento que possibilita cabalmente a democratização nesta área específica da cultura” (Carneiro Mendes, 2021, p. 72).
O Jornalismo de Cinema detém uma lógica discursiva própria que se apropria de conceitos e códigos linguísticos do seu objecto, o cinema. Uma vez que, à semelhança do que acontece no jornalismo de música, “a utilização de termos técnicos facilita a compreensão daqueles que sabem, enquanto aliena aqueles que não estão familiarizados com a terminologia” (Torres da Silva, 2013, p. 2).
Entendemos assim que o Jornalismo de Cinema, enquanto subgénero do jornalismo cultural, versa sobre o cinema enquanto manifestação artística e indústria cultural com objectivos informativos, promove a reflexão sobre a produção e cultura cinematográficas (independentemente da sua origem e destino), o discurso da cinefilia e o consumo de filmes.
A actividade cinematográfica tem-se intensificado nas últimas décadas, o que contribui para o facto de também a cobertura jornalística do cinema ter aumentado (Kristensen & From, 2013, p. 491), tornando-se numa das principais manifestações artísticas a marcar presença nos media quer nacional, quer internacionalmente. No entanto, na última década, ao aumento do número de filmes em estreia nas salas e plataformas de streaming não tem correspondido um aumento no número de peças sobre cinema. Tal está, em certa medida, relacionado com o advento das plataformas de streaming e dos filmes produzidos exclusivamente para elas, uma vez que se o filme não está em exibição nas salas, então os media tradicionais raramente o irão cobrir (Harlow, 2020, p. 42).
Em Portugal, as poucas investigações sobre Jornalismo de Cinema apontam algumas tendências do jornalismo português de cinema (Lourenço & Subtil, 2017). Desde logo, o domínio do cinema na imprensa, tal como vários estudos nacionais indicam (Baptista, 2014; 2017a; 2017b; Carmo, 2006; Lourenço, 2016; Santos Silva, 2012; 2014; 2015; Sobreira, 2019); a relação de dependência em relação às organizações da indústria a nível de conteúdos e agenda; a ausência da crítica de cinema no contexto televisivo; a constante presença das celebridades; a forte aposta na proximidade com o cinema português e a quase inexistente extensão ao digital (Lourenço & Subtil, 2017).
Os géneros e formatos jornalísticos na cobertura do cinema
Tal como Santos Silva (2012) afirma, “estudar os géneros jornalísticos nos media culturais ou nas secções de cultura é essencial para perceber se a sua tendência é mais informativa ou opinativa” (Santos Silva, 2012, p. 74). Podemos considerar o mesmo para o caso concreto do Jornalismo de Cinema. Os géneros jornalísticos, em matérias culturais como o cinema, adoptam a mesma classificação que em qualquer outra secção (como economia, sociedade, desporto, etc.), mas com uma componente criativa que o jornalista pode aplicar (Pastoriza, 2018, p. 75). Desde uma linguagem mais próxima à literária, ou a apropriação de elementos da linguagem cinematográfica na edição de peças para jornalismo televisivo. Esta tendência reflete-se não apenas no Jornalismo de Cinema, mas em todas as práticas jornalísticas já que têm sido adoptadas diversas formas de expressão para a apresentação de informação, como o fotojornalismo, o design gráfico, a infografia, a ilustração, entre outros (Postema & Deuze, 2020). Esta adopção tende a enriquecer não só os conteúdos, mas a forma e a estrutura dos próprios géneros jornalísticos, uma vez que o jornalismo é um processo dinâmico e sistémico que permite que os géneros se desenvolvam, transformem e que surjam novos géneros e subgéneros (Lopes, 2010, p. 10). Além disso, no jornalismo cultural, e consequentemente no de cinema, existem formatos que não são aplicados noutras secções, como é o caso da crítica, do perfil, do obituário ou da efeméride (Santos Silva, 2012, p. 74). De acordo com Pastoriza (2018), no âmbito da informação cultural, podem ser encontrados dez formatos: a notícia, a crónica, a reportagem, a entrevista, o perfil, o obituário, a efeméride, a crítica, a resenha e o comentário (Pastoriza, 2018). Por sua vez, Fontcuberta (1999) refere que os formatos jornalísticos são essencialmente quatro: a notícia, a reportagem, a crónica e o comentário (Fontcuberta, 1999). Já para Fátima Lopes Cardoso (2012), são três os formatos nobres do jornalismo: crónica, reportagem e entrevista.
Para Paula Lopes (2010), os géneros jornalísticos ‘ordenam’ o material informativo, produzem discursos sociais mais ou menos diferenciados e funcionam como categorias que estão intrinsecamente ligadas à expressão da mensagem jornalística, à sua forma e estrutura.
Para Marques de Melo & Assis (2016), os géneros jornalísticos agrupam diferentes formatos e possuem uma função social (quadro 1). Cada formato possui características próprias que o tornam único (Marques de Melo & Assis, 2016, pp. 49-51).
Âmbito, corpus e metodologia de análise
O presente artigo propõe identificar e problematizar os géneros e formatos jornalísticos da cobertura do cinema, através de uma análise de conteúdo aos artigos publicados pelos órgãos de comunicação social portugueses ao longo do ano de 2019. Actualmente, não existe, em Portugal, nenhuma publicação dedicada exclusivamente ao cinema; a informação sobre cinema surge apenas nas páginas (impressas e online) da imprensa generalista, ainda que o cinema seja uma das manifestações artísticas e culturais com maior presença (Baptista, 2014). Neste sentido, o corpus deste estudo é composto pelos artigos que se referem ao cinema nas versões em papel e online dos principais jornais portugueses (Público, Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Expresso e Observador) e as páginas dos programas especializados em cinema Cinemax da Antena3 e Cinebox4 da TVI24. No total, foram analisadas 1306 peças impressas e 1859 online.
Notícia, Reportagem e Entrevista
Como referido por Pastoriza (2018), a notícia, a reportagem e a crítica são considerados três dos principais formatos jornalísticos da informação cultural e, no que diz respeito à cobertura do cinema em 2019 pelos media portugueses, não foi diferente. A notícia e a crítica, tanto nas páginas impressas como online, são os dois formatos com maior presença, seguidos da reportagem (figura 1).
Notícia
Nas páginas impressas, o formato com maior presença é a crítica, seguido das notícias que abordam maioritariamente as estreias e os festivais de cinema (nacionais e internacionais). O jornal que mais notícias publicou sobre cinema é o Jornal de Notícias e normalmente a notícia ocupa um espaço de meia página. Por sua vez, nas páginas online, a notícia é o formato mais utilizado. Abordam, maioritariamente, temas como os prémios da indústria cinematográfica, os festivais internacionais e as estreias5. Focam-se na actualidade e o estilo discursivo é maioritariamente descritivo. É a notícia o formato que mais recorre à aplicação de hipertexto, nomeadamente no jornal Público, o que revela uma construção da notícia pensada e estruturada para o meio online. A hipertextualidade permite uma vasta diversidade de itinerários de leitura, oferecendo uma multiplicidade de informações como complemento, impossível de conceber na imprensa tradicional (Canavilhas, 2014). As opções multimédia mais utilizadas nas notícias são vídeos (regra-geral trailers) e galerias de imagens (maioritariamente fotogramas de filmes).
No meio online, o suporte que mais notícias sobre cinema publicou é o Observador, com mais de 350 notícias sobre cinema publicadas em 2019, seguido do Público com quase 300. Contudo, verificamos que, embora o Observador seja o jornal que mais notícias publica, não são os seus jornalistas os autores da maioria das notícias. Isto deve-se ao grande número de peças publicadas com a assinatura da Agência Lusa.
Alargando o espectro de análise para toda a cobertura online do cinema, 18,7% dos conteúdos publicados tiveram a assinatura da Agência Lusa e 18,2% não foram assinados6. Podemos, portanto, entender que, nos artigos online, a Agência Lusa é o principal autor de peças sobre cinema em Portugal, uma vez que nenhum jornalista de qualquer jornal soma tantas peças quanto as da Lusa. O que nos leva a questionar: será que o investimento que a agência Lusa faz demite os restantes órgãos de o fazerem? Tentando responder, acreditamos que, apesar do contributo da Agência Lusa, os vários órgãos de comunicação social não se devem demitir da responsabilidade jornalística e cultural em noticiar a actualidade cultural, bem como dar a conhecer artistas, obras e pensamentos e produzir uma reflexão sobre os mesmos.
Na imprensa, a notícia breve surge a seguir à reportagem, com 9,5%. Este é um formato adoptado, em grande medida, por jornais como o Jornal de Notícias ou o Correio da Manhã para abordar vários temas como a entrega de prémios, os rankings de bilheteira ou os filmes em antevisão. Regra geral, as notícias breves não têm nenhuma autoria associada.
Reportagem
Com maior presença na imprensa do que no online, a reportagem é um dos formatos nobres do jornalismo, uma vez que parte de um determinado acontecimento para fazer uma interpretação complexa, utilizando a voz dos intervenientes na acção, encandeando-o com uma linguagem que pode ser literária, narrativa e descritiva (Lopes Cardoso, 2012, p. 66). O Público é o jornal que mais reportagens publica, nomeadamente a propósito de estreias e festivais internacionais, em que, normalmente, um jornalista é enviado para a cobertura dos principais festivais europeus, como Berlim, Cannes, Veneza ou Locarno. Regra-geral, a reportagem ocupa mais de uma página nos jornais portugueses. Foca-se na actualidade e o estilo discursivo é maioritariamente descritivo. No jornal Público, entre o caderno principal e os vários suplementos, mais de 30 reportagens sobre cinema mereceram destaque de primeira página em 2019.
O panorama da reportagem é semelhante nas páginas online, sendo maioritariamente sobre estreias e festivais internacionais. Centrada na actualidade, e com um estilo discursivo descritivo, o realizador é a principal figura nas reportagens dedicadas ao cinema. Estas reportagens não costumam contar com elementos multimédia e o recurso ao hipertexto não é significativo, sendo, no entanto, o Público o jornal que mais recorre ao hipertexto. Sendo assim, a reportagem online, de forma genérica, ainda não recorre às técnicas de redacção hipertextual.
Um dos aspectos verificados é a duplicação das peças das versões impressas para as versões online dos jornais, o que nos leva a entender que, no caso concreto do cinema, se encara a versão impressa como o espaço primordial de publicação sem um investimento em conteúdos adaptados para o meio online.
Entrevista
Sendo a entrevista também considerada um dos formatos nobres do jornalismo, decidimos olhar para a sua aplicação no contexto do cinema. As entrevistas surgem por ocasião da estreia de filmes e costumam, por norma, ocupar mais de uma página nos jornais. Nos suportes (cadernos principais e suplementos) analisados, 10 entrevistas sobre cinema tiveram direito a chamada de primeira página em 2019. Na versão impressa é o jornal Público que mais recorre à entrevista, enquanto na versão online são o Jornal de Notícias e o Público os títulos onde a entrevista tem maior presença. Tal como na notícia, os elementos multimédia aplicados no formato entrevista são o vídeo e a galeria de imagens. Em muitas situações verificou-se que a própria entrevista era em formato vídeo. Já a aplicação do hipertexto, à semelhança da reportagem, é escassa nas entrevistas online.
O principal protagonista das entrevistas sobre cinema em 2019 é o realizador. Esta figura é transversal a todos os formatos que abordam o cinema. Os actores são a figura que surge em segundo lugar.
A crítica de cinema
Tal como Penafria (2009) afirma, o discurso sobre cinema mais visível é a crítica de cinema7 publicada em jornais e revistas (Penafria, 2009, p. 1). A crítica é considerada o formato por excelência do jornalismo cultural (Baptista, 2014, 2017a, 2017b; Faro, 2012; Kristensen & From, 2015; Lourenço, 2016; Melo, 2010; Pastoriza, 2018; Piza, 2003; Santos Silva, 2012, 2014, 2015) e, por consequência, do Jornalismo de Cinema (Lourenço, 2016; Lourenço & Subtil, 2017). É também considerada um dos formatos de maior exigência no campo jornalístico (Lourenço, 2016; Santos Silva, 2014), uma vez que “a crítica envolve um conhecimento profundo das obras e dos seus autores, e uma reflexão sobre os seus conteúdos, de modo a ser feito um juízo de valor” (Santos Silva, 2012, p. 77).
Apesar de a crítica não se encontrar no modelo classificatório de Marques de Melo & Assis (2016), inserimos a crítica no género opinativo, atendendo ao seu papel educativo e esclarecedor. Tito Cardoso e Cunha (2004) define-a como uma “operação de um juízo de valor sobre a obra, uma argumentação fundamentada e justificada sobre o valor estético ou outro” (2004, p. 87). O autor descreve as funções da crítica como as de um “árbitro das artes” (configurando ao crítico um papel de representante do público perante a obra e o seu autor), em que os críticos têm uma função pedagógica: “ensinar a ver, informar sobre o que se vê, contextuar, ensinar, e pôr as questões pertinentes a propósito de um filme, fazer saber interrogá-lo” (Cardoso e Cunha, 2004, p. 88).
Neste sentido, a crítica é também prática na acepção jornalística do termo, quando procura informar e interpretar o cinema (Barroso, 2008, p. 48).
Em 2019, a crítica foi o principal formato jornalístico da cobertura do cinema realizada pelos jornais impressos portugueses, com 36,6% (figura 1) do total. O Expresso é o jornal com o maior número de críticas publicadas, nomeadamente no suplemento, revista E, seguindo-se o Público. A crítica, tanto impressa como online, aborda essencialmente os filmes em estreia. É neste sentido que, todas as semanas, os suplementos (nomeadamente a revista E do Expresso e o Ípsilon do Público) apresentam críticas às várias estreias da semana. O que nos permite concluir que a crítica de cinema se orienta pelo calendário de estreias e tenta manter-se o mais actual possível.
Verificámos que a crítica, ao contrário da reportagem e da entrevista, não ocupa muito espaço nas páginas dos jornais, preenchendo maioritariamente apenas um quarto de página.
Nas páginas online, a crítica também se orienta de acordo com as estreias e é o principal formato a abordá-las. Ao contrário da imprensa, na versão online, a crítica é o segundo formato jornalístico com maior presença, mas com apenas 12,6% (figura 1). Verificamos, portanto, que há um maior investimento na crítica nas páginas impressas e que, apesar de a tendência na cobertura do cinema ser duplicar conteúdos de uma versão para a outra, com a crítica isso não acontece, nomeadamente no jornal Expresso, cuja versão impressa é a que oferece o maior número de críticas em 2019. A aplicação de soluções multimédia não é significante, enquanto a utilização de hipertexto é frequentemente utilizada nas críticas online.
Contudo, no que diz respeito ao estilo discursivo presente nas críticas, observamos que predomina o descritivo, presente em 83,3% das críticas nas versões impressas e 64,5% nas online. Ou seja, verifica-se que a grande maioria das críticas de cinema publicadas nos jornais é descritiva, em que praticamente se relata a narrativa do filme e são esquecidas as bases da análise e as orientações pelas quais a crítica se rege, nomeadamente a produção de juízos de valor, tal como Tito Cardoso e Cunha (2004) enuncia.
A crítica, enquanto formato jornalístico, tem revelado um empobrecimento discursivo e argumentativo, tendo passado a sustentar consensos em vez de questionar as obras e os autores (Baptista, 2017a; 2017b). Esta tendência vai ao encontro daquilo que Dora Santos Silva (2014) realça, quando diz que a crítica está a perder o seu espaço e a ser substituída por formatos híbridos como a review8, cujas fórmulas estão assentes numa lógica de consumo, de serviço, de entretenimento e de lifestyle (Santos Silva, 2014, p. 41).
De facto, o debate em torno da crítica portuguesa de cinema já é longo e vários agentes da actividade cinematográfica para ele têm contribuído; o cineasta João Botelho numa conversa com João Mário Grilo (2006) refere que “os críticos hoje falam em função dos best-sellers e dos sucessos. Não falam em função da história do cinema. Não aprenderam o cinema a ver... Eu sou do tempo em que os críticos falavam de cinema porque o tinham visto e sabiam a história do cinema. Falavam de ideias e de formas. Hoje em dia falam de metáforas e de conteúdos” (Grilo, 2006, pp. 42-43). Também o cineasta Miguel Gonçalves Mendes (2016) se posiciona nessa linha quando afirma que “em Portugal, salvo honrosas excepções, a crítica não faz crítica, ou fá-la como uma criança de cinco anos: ama ou odeia. E nesta falta de consistência, confundida com o exercício de poder, o crítico sente-se crítico apenas no momento em que determina a selecção daquilo que deverá integrar o corpus cultural do país” (Gonçalves Mendes, 2016).
Para Tito Cardoso e Cunha (2017), muito do que hoje é publicado sobre cinema nos jornais é assente num cariz noticioso que se distancia da crítica em termos retóricos (Cardoso e Cunha, 2017, p. 48), limitando-se a uma fórmula forçada pela influência televisiva que se “limita a um estendal imagético em detrimento do texto ponderado e bem argumentado” (Cardoso e Cunha, 2017, p. 50).
Os guias de consumo
Os guias de consumo na área do cinema são constantes nos jornais portugueses. Todas as versões impressas, à excepção do Diário de Notícias e da revista E do Expresso, apresentam, em todas as edições, um guia de consumo sobre os filmes em estreia nas diversas salas de cinema ou os filmes que irão ser exibidos nos vários canais de televisão9. Este formato enquadra-se no género utilitário, orientado de acordo com a lógica do consumo e que auxilia o leitor na tomada de decisões, como que filme ver e onde o ver. Esta tendência vai ao encontro do que Dora Santos Silva (2014) enuncia quando refere que os bens culturais, neste caso os filmes, são apresentados como bens de consumo pelos jornais e suplementos, criando no leitor a necessidade de os consumir (Santos Silva, 2014, pp. 40-41).
No entanto, esta aposta leva-nos a questionar se, actualmente, num período em que o número de páginas dos jornais tem diminuindo e com as vastas possibilidades online onde este tipo de informação está presente, continua a fazer sentido os jornais ocuparem, todos os dias no caso dos diários, pelo menos uma página com estas informações, sendo que a lista de estreias é semanal.
Conclusões
Através da análise à cobertura jornalística impressa e online do cinema pelos principais media portugueses no ano de 2019, é possível identificar e caracterizar os principais formatos jornalísticos adoptados. Verificámos que os três principais formatos aplicados ao tratamento jornalístico do cinema são a crítica, a notícia e a reportagem e que as estreias se constituem como o principal momento de cobertura noticiosa do cinema.
A Agência Lusa é o principal autor das peças sobre cinema nas versões online, o que revela, por um lado, desinteresse das estratégias editoriais por matérias de cinema dos principais jornais portugueses, e, por outro, uma escassez de jornalistas especializados destacados para tratar este tema.
Observamos que a crítica, à semelhança do que já vem sendo apontado por outras investigações (Baptista, 2014; 2017a; 2017b; Santos Silva, 2014), tem vindo a revelar um empobrecimento discursivo e argumentativo, limitando-se a descrever a narrativa do filme em questão e aproximando-se mais da review do que propriamente da crítica em termos argumentativos e retóricos. Revela ainda, como já observou Tito Cardoso e Cunha (2017), uma hibridez entre os dois formatos em que “essas diferenças se vão dissolvendo num estilo jornalístico generalizado que não suporta mais de poucas linhas por cada texto numa fórmula” (Cardoso e Cunha, 2017, p. 50).
Esta transformação vai ao encontro daquilo que Paula Lopes (2010) enuncia quando refere que os géneros jornalísticos se desenvolvem e transformam, surgindo novos géneros e subgéneros (Lopes, 2010, p. 10). Contudo, na cobertura do cinema no ano de 2019, tal só se verifica na fusão entre a crítica e a review, uma vez que os outros formatos, como a notícia, a reportagem ou a entrevista se situam no seu quadro tradicional. O mesmo se verifica quanto à aplicação de outras formas de expressão (Postema & Deuze, 2020) na construção destas peças, uma vez que, por exemplo, o fotojornalismo, regra-geral, não existe (as peças são ilustradas, em grande medida, com fotogramas dos filmes), bem como as infografias. Contrariamente ao que seria uma das características do jornalismo cultural e mais especificamente do de cinema, a linguagem adotada pela cobertura realizada em 2019 não é próxima da literária, ainda mais quando a fusão entre crítica e review faz com que o estilo discursivo dominante seja o descritivo, para promover o consumo e um determinado lifestyle, em detrimento do estilo interpretativo.
Neste sentido, o género dominante da cobertura portuguesa do cinema é o informativo (que inclui as críticas transformadas em reviews com o propósito de informar), deixando de lado o género opinativo e a sua função promotora de uma participação cultural ativa, que se encontra na génese do jornalismo cultural e consequentemente do Jornalismo de Cinema. Esta tendência vai ao encontro do que Kristensen & From (2012) já haviam indicado na realidade dinamarquesa quando afirmaram que as fronteiras entre o jornalismo de lifestyle, o jornalismo cultural e o jornalismo de serviços se estavam a esbater, tratando como equivalentes manifestações culturais distintas como a música e a gastronomia e articulando-as como expressões tanto da cultura, do lifestyle ou do consumo (Kristensen & From, 2012, p. 26). Se a cobertura portuguesa do cinema no ano de 2019 cumpre os objectivos informativos e promove o consumo de filmes, peca por não reflectir sobre a produção e cultura cinematográficas, o que deixa em aberto a possibilidade de uma reconfiguração deste tipo de prática jornalística. Verificamos ainda que as versões em papel dedicam grande espaço às reportagens e entrevistas, ao mesmo tempo que também o dedicam aos guias de consumo que disponibilizam o cartaz dos filmes em sala. Além disso, a aposta em opções multimédia que enriqueçam as peças online é escassa e a inversão desta situação representaria, certamente, um maior investimento a nível de tempo de trabalho para os jornalistas e, necessariamente, de recursos humanos para os órgãos de comunicação.
Entendemos, portanto, que ainda há um caminho a percorrer no âmbito do jornalismo de cinema em Portugal no que diz respeito aos formatos e discursos utilizados. Esse caminho passará, certamente, por uma crítica que, como Tito Cardoso e Cunha (2004) defende, “ensine a ver”, que contextualize o filme na actualidade e que seja construída com um estilo discursivo maioritariamente interpretativo. Passará também por um maior investimento na elaboração de peças para o meio online, onde desejavelmente deixasse de existir uma duplicação de conteúdos das versões em papel e um aumento na produção de conteúdos criados e estruturados para o meio online, fazendo uso das possibilidades de storytelling que o meio digital oferece.