A história do jornalismo tem “paradoxos”, como escreveu Martin Conboy (2010). Talvez até mais do que os cinco apontados pelo professor emérito da Universidade de Sheffield, na tentativa de “extirpar” a história do jornalismo da história mais geral dos media. Essa tarefa exige um esforço contínuo para situar historicamente as práticas jornalísticas, conceptualizar os seus discursos e, acolhendo a sua diversidade cultural, encetar o recorte teórico que sinalize a distinção do jornalismo. O jornalismo é uma miscelânea de práticas muitas vezes dissonantes com as visões e os ideais que sustentam o seu imaginário. Essa distância é a principal causa da ansiedade com que vivemos o estado do jornalismo no presente e projetamos o seu futuro. O jornalismo que temos não pode ser igual ao jornalismo que imaginamos? pergunta ironicamente Barbie Zelizer (2009). A história do jornalismo oferece o olhar compreensivo que, não resolvendo a indecisão do futuro, permite compreender muitas das tensões que atravessam o nosso mundo hipermediatizado.
John Nerone (2005) visualiza a disciplina histórica como a dupla face do deus romano Janus, uma olhando para o passado, a outra contemplando o futuro. A história do jornalismo não se confunde com “as histórias do jornalismo”, relatos memorialísticos de pessoas envolvidas com a profissão que deixaram vestígios preciosos sobre os modos de fazer e pensar o jornalismo. Mas um campo disciplinar só pode emergir a partir da articulação sistémica de múltiplas dimensões: as tecnologias, a cultura das notícias, as técnicas de regulação, a teia de relações complexas que ligam o jornalismo e os jornalistas aos seus públicos, às elites, aos sistemas políticos e económicos. A história do jornalismo não pode deixar cair nenhum destes fios, e tem crescido no alargar progressivo dos seus objetos de estudo, abarcando até o estudo do antijornalismo, designadamente os modos de produção e disseminação de informação falsa, violentamente afastada do património de valores éticos e cívicos que estruturam historicamente a centralidade social do jornalismo. É um projeto grandioso, que procura abarcar o jornalismo enquanto campo de mediação sensível que constrói relações relevantes com a totalidade do universo social. Mas também é um projeto sensato, que inclui o parcelar e o micro, desde que encetados enquanto contributos situados dentro de uma problemática histórica mais transcendente.
Neste número da revista Media & Jornalismo acolhemos um conjunto de autores conscientes destas meta-dimensões da história do jornalismo. Nem tudo precisa de ser dito. Mas tudo precisa de estar previsto. São leituras que enriquecem uma visão do jornalismo e dos jornalistas, ou que permitem olhar para parcelas da realidade (a literatura, a política, a história da comunicação, por exemplo), destacando as profícuas relações mantidas com o jornalismo. O artigo de João Miranda leva-nos numa viagem que atravessa quatro décadas de lutas e reivindicações dos profissionais de informação portugueses, tal como foram discutidas nos congressos de jornalistas (1982, 1986, 1998 e 2017). Por aqui vemos o regresso do “eterno retorno” das lamentações dos jornalistas, herdeiros e continuadores de uma profissão sempre em crise, mas também o emergir de novas temáticas que passam a integrar o conjunto de discursos sócio-laborais: questões éticas, técnicas e políticas que testemunham a maioridade do jornalismo. Carla Cardoso e Pedro Marques Gomes trazem-nos a memória de um nome grande do jornalismo português, Artur Portela Filho, recordado enquanto fundador e mentor de um projeto singular, a revista Opção (1976-78), a primeira revista de informação semanal a nascer depois da queda do Estado Novo. Cheia de imperfeições, mas também de inovações, deixa-nos uma reflexão sobre o papel do jornalismo em períodos de transição política.
Felisbela Lopes, Clara Almeida Santos, Ana Teresa Peixinho, Olga Estrela Magalhães e Rita Araújo refletem sobre o papel do jornalismo na estruturação da perceção pública de riscos durante a pandemia de Covid-19, entre março de 2020 e fevereiro de 2021. As conclusões são baseadas num inquérito a jornalistas, cujos resultados foram combinados com uma extensa análise de conteúdo à imprensa durante o período da análise. Trata-se de um trabalho robusto do ponto de vista metodológico, que abre novos debates sobre o lugar do jornalismo enquanto instrumento primordial de comunicação de saúde. José Guilherme Victorino traz-nos a evocação de um “breve fenómeno de rebeldia perante o salazarismo”, a revista Almanaque (1959-61). Foi breve, porém cheio de estilo, esse espaço de irreverência e humor que atraiu a nata dos intelectuais portugueses da oposição: Cardoso Pires, Sttau Monteiro, Augusto Abelaira, Alexandre O’Neill, Vasco Pulido Valente, José Cutileiro e outros. O programa, como escreveu a jornalista Joana Stichini Vilela num texto comemorativo dos 60 anos da fundação da Almanaque1, era simples: não respeitar ninguém.
Do Brasil, e pela mão de dois conceituados professores de jornalismo e especialistas em história dos media, Marialva Barbosa e Eduardo Medistch, chegam-nos dois artigos fundamentais para um voo picado sobre o jornalismo brasileiro e a história da comunicação na América Latina. A professora da Universidade Federal de São Paulo articula com grande densidade a história do jornalismo no Brasil durante a década de 80 do século XX e a história do tempo presente, e o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (hoje pesquisador permanente) escreve sobre as ligações (forçadas e instrumentais) entre a história da comunicação e a comunicação política. A institucionalização do campo das ciências da comunicação só pode compreender-se plenamente através do desvelar de processos sociais e discursivos que ocultam até hoje a sua natureza construída, ao serviço de governos e projetos persuasivos em larga escala.
Assunção Gonçalves Duarte traz um contributo para a história da infografia digital a partir do seu momento inaugural - os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque. Foi breve, mas intensa e grandiosa, essa explosão gráfica digital que abriu novos horizontes de leitura e fruição, mesmo se hoje parecem enfraquecidos na maioria dos jornais, fruto do empobrecimento de recursos que afeta a maioria das redações. Olívia Pestana inaugura nesta revista uma reflexão importante sobre os modos de pesquisa em coleções de imprensa digitalizadas, com implicações nas temáticas, formas de colaboração e resultados obtidos pelos pesquisadores. Cândido Oliveira Martins olha para o jornalismo como fonte de inspiração e memória para a (grande) literatura, neste caso o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago. Com a trama romanesca situada em 1936, no contexto de ascensão do Estado Novo, o escritor recorreu a inúmeras fontes de imprensa para construir o seu retrato de época, embora no estilo críptico e não realista que caracteriza a brilhante ficção saramaguiana.
Isabella Gonçalves e Carla Procópio trazem-nos uma reflexão sobre o potencial do jornalismo imersivo na produção/expiação de memória traumática a partir da análise de um estudo de caso: as quatro reportagens 360.º publicadas pelo New York Times em 2017. Paula Melani Rocha e Muriel Emídio Pessoa do Amaral evocam o legado jornalístico da grande escritora Clarice Lispector que durante 40 anos, embora descontínuos, colaborou em inúmeros jornais brasileiros, procurando resgatar um olhar feminista sobre a história do jornalismo. Finalmente, Ariana Pinto Correia e Sofia Neves escrevem um artigo para a secção Varia, ou seja, fora do âmbito do dossier temático, que analisa as narrativas mediáticas sobre o femicídio, a partir da comparação da cobertura do jornal Correio da Manhã e jornal Público, entre 2000 e 2007. São, sem dúvida, contributos que vão enriquecer o conhecimento sobre os mundos do jornalismo e da sua história. Obrigada aos autores e aos revisores que connosco colaboraram, e desejamos aos nossos leitores, excelentes leituras.