Introdução
No seu célebre estudo Comparing Media Systems, Daniel Hallin e Paolo Mancini, inserem Portugal, Grécia e Espanha no que designam de Modelo Pluralista Polarizado, argumentando que, dada a “transição tardia e contestada para a democracia”, houve “distintos padrões de relacionamento entre o mundo dos média e o político”. E acrescentam: “Os media de circulação maciça nos países mediterrâneos estavam assaz envolvidos nos conflitos políticos que marcam a história desta região”, existindo “uma forte tradição para os considerar como um meio de expressão ideológica e de mobilização política” (Hallin & Mancini, 2010, pp. 101-102).
Com o derrube de uma ditadura que vigorou em Portugal durante quase cinco décadas, o fim da censura prévia e a possibilidade de os jornalistas passarem a escrever em liberdade significaram uma alteração fundamental no exercício da profissão. Mas no processo revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, os jornalistas não deixaram de se empenhar profundamente, de tomar partido, enquanto atores políticos, na aceção de Héctor Borrat (1989), relacionando-se, muitas vezes de forma conflituosa, com muitos outros atores, em particular com políticos e militares (Mesquita, 1994; Figueira, 2007; Gomes, 2021).
A compreensão do jornalismo e das práticas jornalísticas num período tão complexo como o da construção da democracia em Portugal é indissociável do estudo dos próprios jornalistas enquanto categoria profissional. Num tempo de profundas mudanças no país, analisar as principais características socioprofissionais dos jornalistas e respetivas transformações permite-nos uma visão de conjunto acerca dessa realidade. Por sua vez, quando olhamos para aspetos singulares, para as biografias, em concreto, dos jornalistas, encontramos, nos detalhes das suas características e dos seus percursos pessoais, traços que nos permitem clarificar múltiplas outras questões: desde escolhas e opções tomadas, contiguidades, até ruturas e conflitos que passariam despercebidos nas abordagens globais.
Neste sentido, mais do que analisar a “comunidade interpretativa”, de que fala Barbie Zelizer (1993) ou a “tribo jornalística”, como lhe preferiu chamar Nelson Traquina (2004), neste artigo propomo-nos focar no estudo de um jornalista que regressa às redações depois do 25 de Abril de 1974 - Artur Portela Filho -, num período específico do seu percurso profissional, entre 1975 e 1978, para assumir a direção de duas publicações inovadoras. A escolha deste jornalista e deste recorte cronológico justifica-se, desde logo, porque nos permite responder à questão de partida desta investigação: qual a influência de Artur Portela Filho na matriz de dois projetos jornalísticos de que foi fundador e diretor, e que surgem em períodos contíguos, mas distintos, o Jornal Novo durante o processo revolucionário (1975) e a Opção no período da consolidação democrática (1976)? Ao procurarmos responder a esta questão ficamos também a conhecer aquela que era a sua visão acerca do jornalismo e, em concreto, da prática jornalística a partir de 1975, numa altura em que existia uma “quase unanimidade dos diretores e jornalistas quanto ao seu papel de protagonistas políticos” (Maxwell 1980, p. 15). Assim, iniciamos o artigo com uma síntese biográfica de Artur Portela Filho, centrada no período em análise, seguida de uma contextualização histórico-mediática referente a 1975-1978, passando depois ao estudo das características principais das duas publicações, destacando a ação de Artur Portela enquanto fundador e diretor de ambas. Por fim, apresentamos as principais conclusões desta investigação.
Em busca de respeito, mas com horror ao “respeitinho”
Que fazer quando se nasce filho de um jornalista renomado e respeitado, que pisou palcos de guerra e entrevistou as maiores figuras políticas nacionais e internacionais do seu tempo? Artur Portela (Filho), diretor do Jornal Novo e da Opção, teve de enfrentar esta questão ao longo da vida. O pai, Artur Portela (1901-1959), ingressou aos 20 anos na equipa editorial fundadora do Diário de Lisboa, em 1921. Ao longo de quase quatro décadas fixou o seu lugar na história do jornalismo português como repórter de guerra, cronista e através das entrevistas que realizou a personalidades tão diversas como Winston Churchill, o papa Pio XII, o rei Afonso III de Espanha ou o General Francisco Franco, para além de também ter desenvolvido obra literária.
A 12 de março de 1959, o Diário de Lisboa ocupa quase metade da primeira página com a notícia da morte de Portela. Nas duas longas peças, que continuam na totalidade da página 15, o tom é emocionado e não se poupam elogios. “Com a sua morte, o «Diário de Lisboa» perde o mais brilhante, o mais completo e o mais antigo dos seus redatores. E o jornalismo português perde um dos mais notáveis profissionais de todos os tempos” (1959, p.1). A família não é esquecida e o jornal afirma estar a acompanhar a dor da viúva e dos “dois filhos que eram todo o seu orgulho, um dos quais continuará nesta Casa a honrar a memória e a trilhar os passos do seu pai” (1959, p. 15). A referência diz respeito a Artur Portela Filho, à época com 21 anos. Por “diferenciação” e também por “homenagem” ao pai, Artur Portela, nascido a 30 de setembro de 1937, acrescentou “Filho” no final do nome e assim assinou quase até aos 40 anos (Portela, 2014). Segundo o jornalista Gonçalo Pereira Rosa, Portela Filho “podia ter sido o sucessor natural de Norberto Lopes” à frente do Diário de Lisboa. Mas, para isso, teria de aceitar “o exercício da paciência e da subserviência ao doutor Norberto, virtudes (ou defeitos) que Artur Portela cedo demonstrou não ter” (Pereira, 2020). E que também não adquiriu ao longo da vida. “Acho detestável o respeitinho. Acho que não há lugar ao respeitinho, há lugar ao respeito. O respeitinho é uma coisa pequenina, cultural e moralmente medíocre”, declarou em entrevista ao Público, em 2018, no seu último testemunho a um órgão de comunicação social (Ribeiro, 2018). Caracterizava-o a “irreverência e a virulência das críticas contundentes a tudo o que se lhe afigurava mesquinho e oportunista”, testemunha também o amigo e companheiro de aventuras jornalísticas José Sasportes (2021).
Artur Portela não viria, de facto, a tornar-se diretor do Diário de Lisboa. Deixa o jornal em 1961, apenas dois anos após a morte do pai, acompanhado de outros jornalistas, entre os quais José Sasportes, por se terem incompatibilizado com a direção de Norberto Lopes e Mário Neves. Conta que, na altura, “estávamos inocentemente convencidos que passaríamos rapidamente para outro jornal”, mas “fecharam-nos as portas” (Portela, 2007). Assim começam quase 15 anos de interregno na profissão, reduzido a pouco mais do que colaborações regulares com o Jornal do Fundão. Artur Portela leciona no ensino secundário e vai consolidando a carreira de escritor, iniciada ainda na adolescência e fortemente influenciada por Eça de Queiroz, publicando seis obras, entre romances e compilação de crónicas. O livro O código de Hamurabi, em 1962, retrata satiricamente, recorrendo a nomes fictícios, os meandros do Diário de Lisboa. Em paralelo à literatura, inicia-se já depois de 1970 na publicidade, uma área em que trabalhou com gosto e que viria a considerar, a par do jornalismo, um contributo para o seu percurso como escritor, pois “permite tornar a palavra muito mais certeira e a ideia muito mais penetrante e mais clara” (Portela Filho, 1976b). O slogan inicial “Expresso, o jornal dos que sabem ler”, do semanário fundado por Francisco Pinto Balsemão, em 1973, é da sua autoria.
O regresso às redações acontece já depois da Revolução de 25 de Abril. Seria fugaz, cerca de três anos, mas de tal forma marcante, que lhe garantiu um lugar na história do jornalismo português. Começa com a fundação do Jornal Novo, em 1975, como veremos, o primeiro jornal português lançado em democracia. A liberdade e a qualidade da escrita de Artur Portela Filho, aliadas à sátira traduzida nas fotomontagens inseridas na primeira página, garantiram ao vespertino, quase de imediato, tiragens elevadas. Em fevereiro de 1976, menos de dez meses após ter assumido a direção, Artur Portela é afastado, tal como José Sasportes, novamente por posições opostas, mas desta vez às dos proprietários do jornal. Recordando esse período, Artur Portela afirma que “O patronato em geral e o patronato da comunicação social, em particular, estavam verdadeiramente aterrados, concordavam com tudo, absolutamente «cordeirinhos»” (Portela, 2007).
A 13 de março de 1976, Artur Portela é entrevistado pelo jornalista Fernando Assis Pacheco para o programa “Escrever é lutar” da RTP. Pouco mais de um mês depois do afastamento do Jornal Novo, Portela é implacável quando se refere ao vespertino:
Se a revolução devia produzir homens culturais e morais de determinada qualidade, não os produziu com tanta felicidade como isso. E vamos encontrar pessoas que procedem de uma forma muito pouco revolucionária e sem essa capacidade moral que se esperaria de jornalistas, de homens de combate, de lutadores, porque escrever e fazer jornalismo é lutar. (Portela Filho, 1976b)
Nessa entrevista revela estar a preparar um romance inspirado na sua experiência no Jornal Novo, (que publicará em 1978, com o título Fotomontagem). Também explica que escreve “de jato”, mas depois emenda muito, o que lhe valeu críticas de todos os chefes de tipografias dos jornais por onde passou. A esse propósito, o entrevistador recorda a colaboração de Artur Portela com o jornal República, onde Assis Pacheco trabalhara, confessando-lhe que o escritor e jornalista era considerado “um «traste» que aparecia uma vez por semana e que deixava perfeitamente apopléticas duas ou três pessoas na tipografia”. Isto devido a exigências como a inserção ou mudança de lugar de um hífen, ou de uma vírgula. Portela admite a importância dada às vírgulas, mas justifica-se pelo facto de ser um sinal de pontuação “quase psicológico”, da qual depende o ritmo de um texto e pela necessidade que sente de “oralizar” o que escreve1. Desvela, também, a técnica por trás das crónicas contundentes: escrever, depois gravar-se a ler, e a seguir corrigir em cima do que ouvia, emendando até que a pontuação “corresponda àquilo que eu pretendo em termos de ritmo oral, em termos de ritmo musical” (Portela Filho, 1976b). Tão interessante quanto o que é dito é aquilo que fica por dizer na entrevista a Assis Pacheco. Não há uma palavra sobre a revista Opção, o que parece indiciar que, a pouco mais de um mês de ser publicado o número zero, o projeto se mantinha secreto. Todavia, Portela faz uma caracterização do momento político que motiva o lançamento da nova publicação. Diz que “o avanço e o cerco das forças de direita” começam “a tornar difícil, pouco cómodo, o papel do chamado «independente de esquerda»” (Portela Filho, 1976b), um papel que sempre assumiu ao longo da sua existência. Apesar deste silêncio, Artur Portela contaria mais tarde que a ideia de lançar a revista surgiu “logo após o desentendimento entre a administração, a direção e a chefia da redação do Jornal Novo e o consequente despedimento de José Sasportes e de quem escreve estas linhas” (Portela, 2014b). É na revista Opção que Artur Portela deixa cair o “Filho” que o distinguia do pai homónimo. O facto de ambos partilharem o nome “implicou durante décadas o ónus da comparação”, afirma Gonçalo Pereira (2020), mas Artur Portela quis sempre trilhar o seu caminho, a começar na escolha do percurso académico, que o pai desejava que fosse em Direito, mas que passou pela Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas (Portela Filho, 1976b). A primeira news magazine pós Estado Novo nasce em abril de 1976, financiada por ele e mais três jornalistas, três meses após o afastamento do Jornal Novo, como veremos mais à frente. Começa a assinar apenas Artur Portela, a dois meses de completar 40 anos e um ano antes de a Opção fechar, em setembro de 1978, devido a problemas financeiros.
Apesar disso, Portela diz que o fracasso da Opção não matou a sua relação com o jornalismo, embora a tenha posto em causa (Ribeiro, 2018). Manteve colaborações com a imprensa ao longo dos anos e também com a rádio TSF e a televisão pública, mas nunca mais voltou a integrar uma redação ou a dirigir um jornal ou uma revista. De 1980 a 2005 fez parte de órgãos reguladores dos média, primeiro o Conselho de Comunicação Social, que chegou a presidir, depois a Alta Autoridade para a Comunicação Social, da qual foi vice-presidente. Morreu aos 83 anos, a 10 de novembro de 2020.
Da revolução à normalização democrática: o agitado contexto das publicações
Um ano após o derrube da ditadura pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em abril de 1975, Portugal vivia um período de acentuada tensão político-militar. Na sequência dos acontecimentos do 11 de Março há uma alteração na “correlação das forças em presença” e uma “nova dinâmica revolucionária” (Rezola, 2007, p. 135) com a criação do Conselho da Revolução, o crescente protagonismo da fação militar próxima do primeiro-ministro Vasco Gonçalves (os chamados “gonçalvistas”), e do Partido Comunista Português (PCP). Isso verifica-se, desde logo, na constituição do IV governo provisório, em que “a deriva comunista tinha alcançado o ponto máximo, depois de ter invertido por algumas semanas o crescente peso do setor moderado, visível desde janeiro de 1975” (Telo, 2007, p. 128). Acrescem medidas emblemáticas como a nacionalização da banca e dos seguros, que significavam, sem dúvida, um posicionamento à esquerda, às quais outras se vão seguir.
Mas as referidas nacionalizações terão reflexos imediatos no setor da Informação. Grande parte das empresas jornalísticas pertencia ao setor bancário e acabam, por essa via, por passar para o domínio do Estado. Da imprensa de âmbito nacional, apenas se mantêm privados os jornais República, Primeiro de Janeiro e Expresso. A partir desta conjuntura avolumam-se as acusações de aproveitamento político da situação dos jornais. O relatório do Conselho de Imprensa, que faz uma análise detalhada do setor naquele período, refere “a influência e a manipulação partidária na imprensa, designadamente por elementos afetos ao Partido Comunista e a organizações de extrema-esquerda” (1979, p. 43). A luta política era intensa, e os jornais e os jornalistas participavam ativamente nela, tomando posição e intervindo. Por isso, não era de estranhar que a política dominasse as páginas dos periódicos, num tempo de “impossível neutralidade jornalística”, como sustenta Mário Mesquita. O objetivo era “agitar e mobilizar”. Eram recorrentes “a prosa oratória e triunfalista, a repetição dos chavões doutrinários, o silenciamento de acontecimentos relevantes, a transformação de boatos em notícias…” (Mesquita, 1994, p. 364).
Ainda que tudo isto já se viesse a verificar nos últimos meses, o novo contexto político-militar potenciou estas práticas e posicionamentos, acentuando-os. Portugal confronta-se com múltiplos projetos políticos apontando caminhos distintos para o futuro do país (Reis, 1993). O clima extremara-se e polarizara-se, atingindo o ponto mais crítico no chamado «verão quente». O setor dos média, atravessa profundas convulsões (Mesquita, 1994; Cádima, 2001; Figueira, 2007; Lima, 2012; Gomes, 2021), de que os casos do jornal República (Mesquita, 1987; Figueira, 2014) e da Rádio Renascença (Ribeiro, 2002) são exemplos paradigmáticos, tal como os saneamentos políticos que ocorreram praticamente em todos os órgãos de informação (Gomes, 2014; Rezola, 2019). São múltiplos os acontecimentos que vão ocorrer até ao 25 de Novembro, consensualmente considerado o final da revolução portuguesa de 1974-1975. Algo, porém, é evidente, viveram-se meses de “escalada da desordem”, como afirma António Reis (1993, p. 43).
Após o 25 de Novembro tornou-se urgente resolver a crise político-militar em que o país se encontrava e, sobretudo, clarificar qual seria, a partir daí, o efetivo papel do poder militar. Porém, como sustenta Maria Inácia Rezola, era “inegável a «derrota» da linha gonçalvista, que perde não só as posições que ainda detinha na estrutura do Estado e nos meios militares, como sobretudo qualquer possibilidade de fazer vingar o seu projeto político” (2007, p. 271).
Nesse contexto, o conselheiro da revolução Melo Antunes, da ala militar moderada, propõe a construção do socialismo, tendo por base a proposta do MFA, mas com a colaboração de todos os partidos, procurando evitar a ilegalização do PCP. A partir daí “todas as alavancas do poder militar ficavam concentradas na mão deste setor” moderado do Conselho de Revolução (Reis, 1994, p. 37). Em fevereiro de 1976, a Plataforma de Acordo Constitucional MFA - Partidos é revista, traduzindo-se numa substancial redução dos poderes dos militares e do Conselho e na atribuição de maior relevância aos partidos políticos. Concomitantemente, António Ramalho Eanes leva a cabo, habilmente, uma profunda reestruturação das Forças Armadas, tendo sido dado passos decisivos para a necessária normalização democrática, com a aprovação da nova Constituição, a 2 de abril, e a realização das primeiras eleições legislativas livres, a 25 de abril (o PS é o partido mais votado). Tratava-se, no fundo, da “ratificação eleitoral do modelo de democracia pluralista que assim se consagrava” (Reis, 1994, p. 39). O início de 1976 é, também para os média, de grandes mudanças. Depois do 25 de Novembro e das consequentes alterações político-militares, tinham mudado praticamente todas as administrações e direções dos jornais estatizados, e suspensos mais de uma centena de jornalistas. A pouco e pouco, os periódicos tinham regressado às bancas e às suas rotinas, mas continuam marcados, por um bom período, por estes acontecimentos tão duros e profundos. Como sustenta José Luís Garcia, os títulos propriedade do Estado “sofrem várias complicações no processo de ajustamento à nova situação, devido às pesadas estruturas burocráticas herdadas do passado”, mas também “ao repto que representa o surto de liberdade política no contexto da economia de mercado (ainda frágil) entretanto aberto, entre outras razões” (Garcia, 2009, p. 67). Assiste-se, então, ao “declínio dos vespertinos”, mas também, segundo Mário Mesquita, à “reconstituição do setor privado”. Um setor que continua, sem dúvida, agitado, com títulos a encerrarem e outros a nascerem, numa altura em que o país enfrentava uma situação económica delicada e se preparava para novos sufrágios: eleições legislativas (25 de abril) e a primeira eleição de um presidente da República em democracia, a 27 de junho de 1976 (é eleito Ramalho Eanes). Seguem-se as autárquicas no final do ano, vencendo, uma vez mais, o Partido Socialista.
Com Mário Soares enquanto primeiro-ministro do 1.º e do 2.º governos constitucionais (1976-1978), este é também o período em que Portugal solicita formalmente a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE). Já em 1978 inicia-se uma nova fase, de grande instabilidade política, com uma sucessão de governos de iniciativa presidencial. É também em 1978 que a revista Opção encerra portas e se fecha o período em análise neste artigo.
Jornal Novo e o renascer para o jornalismo em revolução
Oito dias antes das primeiras eleições livres, por sufrágio direto e universal da democracia portuguesa, nasce o primeiro jornal diário do pós-25 de Abril de 1974, pioneiro de uma vaga de outros títulos privados que se seguiriam. Pertencia à Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), que havia sido criada em maio de 1974 e era, à época, a estrutura patronal com maior relevância. Presidida por Vasco de Melo, defendia a iniciativa e atividade privadas, o que, no contexto do pós-11 de Março, de “euforia nacionalizante”, constituía, desde logo, um traço distintivo e polémico. A sua sede chegou, inclusivamente, a ser assaltada e saqueada. Num livro que publica décadas mais tarde, Marcelo Rebelo de Sousa, então diretor-adjunto do semanário Expresso, recorda que lhe coube “indicar a António Vasco e Melo e José Manuel Morais Cabral (da CIP) o nome de Artur Portela Filho e sondá-lo para diretor” (Sousa, 2000, p. 305). Portela Filho, por sua vez, diz ter sido ele a sugerir a criação do jornal e proposto para diretor, primeiro, Eduardo Lourenço e, depois, Vitorino Magalhães Godinho (Figueira, 2007, p. 208).
A verdade é que é com o apoio de figuras ligadas à CIP que se avança na preparação do projeto, que se chamará Jornal Novo. A redação é escolhida por Portela Filho, que é, desde o início, o diretor, e José Sasportes, chefe de redação. Ingressam na redação inicial jornalistas vindos de diferentes periódicos, como Mário Mesquita, Diogo Pires Aurélio, José Manuel Barroso, António Mega Ferreira, Carlos Pinto Coelho, Carlos Ventura Martins, Maria Guiomar, entre outros. Ao longo do ano entrarão nomes como Torquato da Luz, Carlos Veiga Pereira, Alexandre Pomar, Mário Bettencourt Resendes. O novo jornal unia, assim, várias figuras com o objetivo assumido de ser uma alternativa à imprensa estatizada e, sobretudo, aos apelidados “porta-vozes” do comunismo e do gonçalvismo. Foi, desde o início, um instrumento para o combate político de então e defensor da chamada “legalidade democrática” para o futuro do país. Para o diretor, era óbvio que o contexto revolucionário determinava os objetivos do periódico, ao mesmo tempo que justificava a sua criação. “O Jornal Novo nasceu numa e de uma revolução. Estavam em causa valores democráticos essenciais, bem como o jornalismo e os órgãos de comunicação social”, pelo que “a intenção era levar ao limite a razão de ser de um jornal”, recorda Portela (Silva, 2013, p. 157).
Assim, a 17 de abril é publicado o primeiro número do Jornal Novo. Ainda a tempo de cobrir alguns dias da campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte, o vespertino não esconde, aliás, a importância que confere a esse sufrágio. No seu primeiro editorial, cujo título aponta, desde logo, para a ideia de combate por algo novo (“Lutar é criar”) são clarificados vários aspetos que estão na base deste novo projeto e da sua postura no panorama político-mediático. Assume a sua vocação socialista (“Jornal Novo é um jornal de vocação socialista. Não sendo partidário, Jornal Novo toma partido”); a ideia de jornalismo que está na sua base (“Para Jornal Novo, o rigor, a verdade, a crítica, são a própria condição do avanço seguro, e definitivo, da revolução democrática. (…) Jornalismo de ação, de intervenção, de esclarecimento (…)”); e a afirmação da sua independência (“Somos e queremos continuar a ser um jornal independente”) (Portela Filho, 1975a, p. 1)
O Estatuto Editorial do jornal é igualmente publicado nesta primeira edição. Um texto que remete, também ele, para a ideia de participação ativa na construção de um regime democrático em Portugal, estando em total consonância com o primeiro editorial. Surgindo “para participar na construção da democracia política e económica, pluralista, de sentido socializante”, apoiando “as forças progressistas”, o jornal assume as suas pretensões quanto ao exercício de uma “crítica saudavelmente vigilante” e à apresentação de “propostas concretas de ação”. Quanto aos conteúdos do vespertino, fica expresso que estes são definidos, em exclusivo, pela direção e chefia de redação (1976, p. 60). Ou seja, a administração estaria arredada dessas decisões. Artur Portela Filho, enquanto diretor, vai imprimir um estilo ao jornal que, efetivamente, acaba por distingui-lo dos títulos da época, assegurando que não se afasta desse rumo (Gomes, 2021). Cria um jornal agitador e provocador do poder político-militar, sendo as suas manchetes disso exemplo, com fortes e polémicos editoriais e fotomontagens que fizeram história. O ritmo de trabalho na redação era de grande intensidade, tendo em conta a quantidade de acontecimentos que se multiplicavam a toda a hora, e que era necessário cobrir. “Quantas diretas eu fiz ali [na redação]? Quantas diretas alguns fizeram?”, questiona anos mais tarde o então diretor (Portela, 2018).
Juntam-se o grafismo, que, efetivamente, o diferencia dos outros títulos, o formato tabloide e os vários exclusivos que consegue naqueles meses de “brasa”, de que, porventura, a publicação do “Documento dos Nove” numa edição extra (a terceira daquele dia) preparada para o efeito é o mais emblemático (1975, p. 1). Como recorda Artur Portela Filho, houve, de facto, “uma intervenção sonora, polémica e insubmissa” (Silva, 2013, p. 156). As próprias mesas-redondas, que eram organizadas pelo jornal e reproduzidas nas suas páginas, foram, por vezes, provocadoras nas afirmações dos convidados e nos temas escolhidos.
Para João Figueira, não restam dúvidas de que o periódico “marcou de forma indelével” o Verão de 1975, tendo sido “uma das vozes mais irreverentes, mas, ao mesmo tempo, mais escutadas fora dos campos extremados e pouco dialogantes da esquerda e da direita” (Figueira, 2007, pp. 160-161). Mas, de facto, a existir uma “imagem de marca” associada ao Jornal Novo, é, sem dúvida, os editoriais e fotomontagens publicados nas primeiras páginas. “Notáveis peças jornalísticas” (Mesquita, 1994, p. 379), destacavam-se pela enorme criatividade, fina ironia e, claro, por se referirem às grandes questões da atualidade.
Os editoriais contavam com a qualidade de escrita e de pensamento de Artur Portela, que, frequentemente, dava também o mote para as montagens de fotografias de Luís Vasconcelos. A sua elaboração contava com uma boa dose de improviso, tendo em conta os poucos meios existentes, conta o próprio Artur Portela:
Eu telefonava-lhe [ao fotógrafo Luís Vasconcelos] e dizia: «precisamos de fotografias, a ideia anda à volta de…». Ele saía, fotografava, chegava lá, estendiam-se as fotografias (…) e com uma tesoura e um frasco de cola, «este aumenta a cabeça…». Nós tínhamos uma fórmula que era a cabeça tinha de ser sempre maior que o tronco para dar a ideia de cabeçudo, da sátira. (Portela, 2018)
As fotomontagens eram publicadas sempre na primeira página e apresentavam-se como um espaço de humor que caricaturou e criticou figuras de proa dos meios político e militar. As consequências de um e de outro caso foram, não raras vezes, controversas, originando confrontos com figuras e órgãos de Poder. Portela Filho aproveitava ao máximo tudo isso, respondendo, nas páginas do periódico, às críticas que os artigos suscitavam: foi assim com Mário Soares, Almeida Santos, Otelo Saraiva de Carvalho e outros. Entre as dezenas de fotomontagens publicadas, ficariam célebres as múltiplas caricaturas dos rivais Soares/Cunhal e do ministro da comunicação social, Correia Jesuíno, igualmente alvo de vários editoriais bastante duros, particularmente devido ao projeto de lei que o Jornal Novo publicou em primeira mão e que provinha do seu ministério2. “Obviamente, demita-se”, chega a escrever Portela Filho, num editorial dirigido a Jesuíno, utilizando a histórica frase de Humberto Delgado acerca de Salazar (Portela Filho, 1975b, p. 1).
Outro momento marcante e que deu origem a mais uma tomada de posição do diretor do Jornal Novo foi o discurso do primeiro-ministro realizado em Almada. Entre os vários assuntos abordados, Vasco Gonçalves refere-se à “libertinagem” que impera em “certa imprensa” e, mencionando o Expresso, Jornal Novo e Tempo, chama-lhes “pasquins”, “libertinos da informação”, acusando-os de estarem “interessados em isolar a classe trabalhadora” e não no “socialismo” (1975, p. 1).
Portela Filho não perde oportunidade de responder, à letra, ao primeiro-ministro e logo coloca em manchete “Eu pasquim me confesso”, juntamente com várias imagens de Vasco Gonçalves. E escreve: “o que há de grave nesta passagem do discurso do Sr. Vasco Gonçalves não é que ele não nos estime, não nos leia, não nos queira, é que ele considere insuportável a imprensa independente, crítica, viva na vontade popular” (Portela Filho, 1975c, p. 1).
Em suma, como sustenta João Figueira, durante o “Verão Quente”, o Jornal Novo foi “um ator político sem equívocos: socialista, defensor de uma unidade de esquerda e suporte principal do Documento dos Nove”. Definira “o PS e Mário Soares como as traves-mestras pelas quais passaria a solução política do país, ao mesmo tempo que criticava Vasco Gonçalves e procurava desligar das posições dele o PCP” (Figueira, 2007, p. 190). Referindo-se às principais fontes do jornal, Artur Portela lembra que eram, sobretudo,
pessoas ligadas ao Grupo dos Nove, algumas pessoas do PS, mas esses menorizados. Nós estávamos mais próximos do Melo Antunes, designadamente, mas não havia, digamos, organização e reuniões… Eram mais eles que nos procuravam do que nós os procurávamos a eles. (Portela, 2018)
Foi igualmente um jornal marcado pela prosa e pelo estilo combativo do seu diretor. O 25 de Novembro, porém, vem introduzir profundas alterações no vespertino ao fim de escassos sete meses de existência.
De acordo com Portela Filho, um dos motivos que levou às mudanças na direção do diário foi a posição que esta assumiu perante os acontecimentos. Ou seja, “a oposição muito clara do jornal às forças que apoiavam a ilegalização do PCP e que aclamavam a destruição da Rádio Renascença à bomba” (Silva, 2013, p. 159). De facto, o que verificamos ao ler as suas páginas logo a seguir ao 25 de Novembro é a defesa de um “projeto viável de esquerda”, fundamentado nas declarações então proferidas pelo conselheiro da revolução Melo Antunes e que o vespertino publica (1975, pp. 1,21).
No entanto, nem todos estariam de acordo com essa via. Afastado que estava Vasco Gonçalves e reduzida a influência do PCP na cena política, o Jornal Novo poderia agora encaminhar a sua linha editorial num outro sentido, afastando-se da “esquerda moderada” onde se havia instalado? É uma das questões que se pode colocar.
A 30 de janeiro, um editorial de Artur Portela revela, embora sem nunca se referir a aspetos concretos, o conflito que estaria a ocorrer entre a direção e a administração do jornal:
Mas há vozes que fazem a incomodidade do fascismo. Quando uma dessas vozes é um jornal, e quando esse jornal não está bem suspenso, meio travado, meio expectante, quando esse jornal é, ainda, a liberdade plena da crítica, a liberdade lúcida da advertência, a liberdade criadora da revolução socialista, essa voz tem de ser calada. Por alguns daqueles que, há uns meses, juraram ser propriedade regenerada, ser apoio isento, ser democracia, ser liberdade, ser socialismo. (Portela Filho, 1976a, p. 1)
No dia seguinte, José Sasportes reforça as palavras do seu diretor escrevendo que lhes foi montado um “cerco”, baseado na “chantagem direta sobre os trabalhadores, aos quais se diz, claramente, que têm de escolher entre a reorientação do jornal e o desemprego”. Para o jornalista, a “manobra” de controlo do jornal era apoiada pela “ala direita de um partido que assume, no seu rosto oficial, o sorriso da liberdade, mas que, no âmago da sua militância confusa, encerra o desejo do revanchismo, que deverá calar também quem insista em ser singular, não-arregimentável” (Sasportes, 1976, p. 1),
A opção, para a administração, era “a demissão do diretor, dentro de breves dias por nele ter perdido a confiança” ou ainda outras duas hipóteses: “saída da administração e correspondente entrega do jornal aos acionistas” ou “reorganização do jornal”. Segundo a ata da reunião que ocorreu entre administradores, diretor e chefe de redação, publicada no Jornal Novo, a decisão a ser tomada pelos administradores teria como fundamento duas razões. Uma que se prendia com “o agravamento da situação comercial do jornal” e outra, “a noção de que a parte editorial do jornal traiu o estatuto, substituindo a sua inserção numa via socializante, através de uma democracia pluralista, por uma opção nitidamente socialista” (1976, p. 1).
No dia seguinte, o jornal já não se publica, regressando apenas duas semanas depois (16 de fevereiro), tendo como diretor interino o antigo subchefe de redação, Torquato da Luz. Artur Portela Filho tinha sido definitivamente afastado de um projeto que criara e no qual deixou a sua impressão digital.
Opção, o sonho maior de final traumatizante
Apesar do êxito meteórico, os princípios ideológicos de Artur Portela fizeram-no entrar em rota de colisão com os proprietários do Jornal Novo. Aos 38 anos, estava decidido a não voltar aos bastidores do jornalismo e começou a pensar num novo projeto. Nas suas palavras, um dos seus defeitos era “ser, talvez, excessivamente rápido” (Portela Filho, 1976a), mas essa característica foi certamente útil para menos de três meses após o afastamento do jornal da CIP estar a lançar, com alguns dos jornalistas que o acompanharam, o número zero da revista Opção, a 22 de abril de 1976, ou seja, precisamente quando o Jornal Novo completava o primeiro ano de vida. Um facto que diz muito sobre a personalidade determinada e aguerrida de Portela como motor da primeira e até agora única newsmagazine portuguesa classificável como “militante” (Cardoso, 2021).
Os objetivos ideológicos da revista eram claros, implícitos na data de lançamento, e alinhados com os perseguidos no título de onde a maior parte do corpo redatorial vinha: “Queríamos debater Portugal. Queríamos debater Portugal no Mundo. Queríamos contribuir para a criação de um espaço de diálogo à esquerda”. A escolha do formato semanal não foi inocente, mas relacionada com o desejo de “aprofundar
o nosso tipo de intervenção jornalística, agora com uma periodicidade que permitia outra variedade e outro alcance” (Portela, 2014b).
A responsabilidade na Opção, contudo, era outra. Com o amigo de sempre, José Sasportes, acompanhados de Carlos Veiga Pereira e José Manuel Teixeira, todos vindos do Jornal Novo, Artur Portela constituiu a FRENTE - Sociedade de Publicações Lda., e tornou-se proprietário para além de diretor do novo meio de comunicação social. O modelo de gestão por jornalistas na imprensa tinha um precedente à época com êxito, o semanário O Jornal, lançado a 2 de maio de 1975, com direção de Joaquim Letria. Apostar numa revista foi diferenciador, e a Opção torna-se a primeira newsmagazine a nascer em democracia, tendo como fontes principais de inspiração a francesa L’Express, a americana Newsweek e a italiana L’Espresso (Portela, 2014b). Para além dos fundadores, vieram com Portela do Jornal Novo Alexandre Pomar, Maria Guiomar Lima e Mário Bettencourt Resendes. A redação era pequena, mas reforçada com 14 colaboradores efetivos.
O percurso de Artur Portela na publicidade sensibilizara-o para a importância dos títulos. A escolha do nome da revista é explicada no primeiro editorial que assina, intitulado “Opção qual, por quem, como?”. A publicação assume-se como um semanário que “pretende ser a voz que a Esquerda pode e deve ser - a voz forte da razão, da competência, do futuro”. Voz essa que “se quer criativa, e não apenas defensiva, o que é na informação de Esquerda, lamentavelmente raro” (Portela Filho, 1976b, p. 15). O diretor clarifica no editorial o posicionamento ideológico da equipa, afirmando “somos socialistas independentes”, que respondem apenas “aos interesses da maioria esmagadora do povo português - os trabalhadores”. Os parágrafos finais do primeiro editorial sintetizam e respondem de forma final às perguntas do título, ao mesmo tempo que dão conta do espírito do tempo e do estado de espírito dos jornalistas/proprietários:
Aqui estamos todos nós, jornal e leitores um pouco mais ameaçados, mas mais experimentados, mais doridos mas mais fortes, mais graves mas mais decididos. «Opção», pois, por um socialismo libertador, fecundo e original. «Opção», pois, por um jornalismo, renovador, analítico e claro. (Portela Filho, 1976b: 15)
O Estatuto Editorial tem apenas quatro pontos e consagra os princípios da nova revista, o seu espírito de missão e de instrumento ao serviço da consolidação da democracia. Sublinha a independência do jornalismo que se pretende desenvolver semanalmente, o apego a “uma política de esquerda convergente, realista, criativa e eficaz” (1976, p. 60), e a vontade de ter sempre a redação envolvida nos destinos da revista.
Com 68 páginas e desenho gráfico assinado pelos pintores Isabel Laginhas e Luiz Duran, a Opção aposta numa capa com um tema único, ilustrado apenas por uma imagem, muito semelhante ao estilo da francesa L’Express, à época, e que demonstra a confiança no assunto escolhido para destaque, responsabilidade da direção. Mas a irreverência de Portela traduz-se logo no logótipo que recorre a uma fonte inusitada, pouco formal, em minúsculas, sem qualquer tipo de fundo. As vogais são inclinadas, o til foge do A, a caminho do O. As duas consoantes juntas, se retirarmos a cedilha, têm como leitura PC, a sigla abreviada do Partido Comunista Português. O logótipo da revista vai variando de cor ao longo das semanas, algo que, por norma, só acontece em títulos instituídos e muito raramente (Cardoso, 2015), numa lógica oposta à da moldura da imagem de capa, sempre vermelha, remetendo para a Time, a revista americana fundadora do conceito moderno de newsmagazine. O mesmo tipo de letra informal é usado no interior da revista para designar as cinco grandes secções: “Portugal”, que corresponde a dois terços da revista, “Colunistas”, “Mundo”, “Cultura” e “Documento Opção”, de grande reportagem. O papel brilhante e colorido da capa contrasta com o absolutismo do preto e branco nas páginas interiores.
Uma das grandes apostas da Opção foi na relação de transparência com os leitores, a quem promete manter-se atento, realizando regularmente sondagens para auscultar as suas opiniões e necessidades. Assim, no número zero, publica uma cópia integral da escritura de constituição da FRENTE - Sociedade de Publicações Lda. Afinal, a revista era uma “empresa de jornalistas, órgão de jornalistas. Todos alérgicos à manipulação” (Portela, 2007), por isso, havia que prestar contas de tudo, até financeiras, algo até hoje pouco usual no tecido empresarial português. Ficamos assim a saber que os quatro jornalistas fundadores da FRENTE eram proprietários de quotas iguais que somavam 160 contos, cerca de 20 mil euros a valores de fevereiro de 20213.
A proximidade com o leitor viria a desenvolver-se em espaços próprios de diálogos semanais, em tom informal, paralelos ao editorial, na sondagem anual (“Por uma «Opção» melhor”), assim como em variados concursos e passatempos.
Regressando ao número zero, na secção “cartas ao director”, Artur Portela resolve ir para lá dos habituais testemunhos elogiosos e votos de confiança na nova publicação que recolhe junto de personalidades diversas - o ministro do Comércio Interno, Macaísta Malheiros, Henrique de Barros, ex-Presidente da Assembleia Constituinte, o maestro António Victorino d’Almeida, e a escritora Maria Velho da Costa, à época, Presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Misturado com a realidade, surge um leitor fictício, mas bem conhecido do universo literário de eleição de Artur Portela. Trata-se do personagem Fradique Mendes, que assina uma missiva comemorativa do “1.º centenário da revista «Opção»”, que termina dizendo que “a cultura portuguesa no século XX se divide em dois períodos: um triste e morto (ressalvada uma certa época do extinto «J.N.» anterior à «Opção»; e outro, brilhante, que acompanha a carreira fulgurante da «Opção»” (1976, p. 64). O humor, a irreverência e a crítica de Artur Portela Filho brilham com a intensidade da crença no êxito da aposta. Está lançado, assim, o estilo que pontua a vida da revista. A partir do número um, a Opção passa a contar com duas páginas semanais de “Conde de Abranhos”, a crónica ficcional assinada por Portela, que mistura ironia e crítica política, campos prediletos do jornalista e escritor.
A sátira ganha espaço discreto, mas fixo, também na capa a partir do número 1. No rodapé da moldura vermelha passa a ser inserido um pequeno comentário cifrado. No primeiro lê-se “Ah! Senhor, vede bem o partido que tomais”, atribuído a Molière, que se percebe ser uma mensagem para Mário Soares, o protagonista da capa. Como líder do PS, o partido vencedor das primeiras eleições democráticas do país, mas sem maioria, Soares preparava-se para escolher aliados. Ainda na capa, ficam célebres as múltiplas ilustrações assinadas pelo pintor António Alfredo, muitas delas caricaturas de políticos.
Em termos de mistura entre factos, ficção, ironia e sátira política, o momento mais icónico da breve vida da revista acontece para assinalar o primeiro ano da publicação, sublinhado com um “Parabéns a “nocês”!” que cruza o canto superior direito da edição de 21 de abril. Nesta capa e nas quatro semanas seguintes o tema e a imagem satírica dizem respeito às entrevistas ficcionais apelidadas de «tipo “Play Boy”». Estes espaços alargavam-se por várias páginas e eram “diálogos” hilariantes com os principais protagonistas políticos da época, os líderes dos quatro maiores partidos - Diogo Freitas do Amaral (CDS), Francisco Sá-Carneiro (PPD-PSD), Mário Soares (PS), Álvaro Cunhal (PCP) -, entrevistados por esta ordem, sendo a última com o Presidente da República, General António Ramalho Eanes (Cardoso, 2021). Mas imediatamente antes deste período de quase delírio, no editorial de 7 de abril, Artur Portela anunciara uma novidade de mau augúrio, o aumento de 25% no preço de capa, uma “consequência inevitável” para uma revista que “não vive à custa do Estado” e não “faz parte de nenhum grupo de empresas”. O mais preocupante Artur Portela escreve a itálico, em jeito de alerta: a subida de preço “não cobre o aumento dos custos de produção deste semanário” (Portela Filho, 1977, p. 16). O apogeu da ironia coincide com o agravamento das condições financeiras da publicação.
Quando a Opção surge no mercado, não havia outra revista semanal de informação geral em circulação, uma vez que a distribuição da Vida Mundial, que existia no formato newsmagazine desde 1967, tinha sido interrompida. A solidão dura apenas duas semanas, mas regressa de vez em fevereiro de 1977, com o encerramento da Vida Mundial, dois meses antes do primeiro aniversário da Opção. Logo após o fecho da única concorrente direta, a tiragem média da revista de Portela sobe três mil exemplares, atingindo os 23 mil em março. O facto tem eco no Editorial de aniversário (Portela, 1977, pp. 18-19) que refere vendas e tiragens em crescimento. Contudo, uma leitura mais atenta mostra bem que o primeiro ano de vida, não tinha sido apenas ou maioritariamente de alegrias, mas sim de luta constante. Após o obrigatório balanço e o elencar de conquistas e batalhas num espaço de opinião excecionalmente alargado a duas páginas e em que a designação “Filho” abandona o nome de Artur Portela (na ficha técnica só desaparece três meses mais tarde), fazem-se referências a obstáculos relacionados com o aumento de preço do papel, associado à progressiva escassez deste recurso essencial. Adianta-se a possibilidade de ser necessário reduzir a qualidade do papel, garantindo-se que, a registar-se, não haverá implicações na qualidade da publicação. A alteração acontece logo três semanas depois, a meio das entrevistas «tipo “Play Boy”», menos de um mês depois da subida de preço. A capa mantém a sua luxuosa imponência, mas no interior a textura e a qualidade das páginas assemelham-se às de um jornal.
O esforço para manter a Opção em circulação torna-se cada vez mais evidente com o avançar dos meses e um sinal dramático é o segundo aumento de preço do ano, repentino e não anunciado, a 15 de dezembro. No espaço de nove meses, a Opção passa a custar mais 50% e, pela primeira vez, não dá justificação aos leitores dos seus atos, quebrando o laço de confiança que tanto alimentara. Cinco meses depois, o segundo aniversário, em abril de 1978, comemora-se no espaço não assinado “Dois dedos de conversa com o leitor”, e não no editorial. O título, “Entramos no 3.º ano”, lê-se como um sinal de esperança, mas a voz da revista explica que “a crise económica retrai o público e os anunciantes”, deixando ainda a nota de que em Portugal “os jornais são em número excessivo” (1978, p. 16).
Mais cinco meses volvidos, a 21 de setembro de 1978, também em espaço sem assinatura, a publicação dá conta de que está a analisar, através de uma sondagem, o interesse que os seus leitores podem ter “em participar no capital social de uma nova empresa proprietária desde semanário”, em virtude da “crise generalizada da imprensa, consequência da crise económica” que assola o país (1978, p. 21). Uma semana mais tarde, há novo ponto da situação que nada acrescenta. A capa retrata o então presidente da República, Ramalho Eanes, e indica duas datas diferentes, 29 de setembro, à esquerda, e 14 de setembro, à direita. Ambas estão erradas, tal como a numeração da revista (125 em vez de 127). Tudo especialmente estranho numa publicação dirigida por um perfeccionista como Portela. Na habitual discreta frase em rodapé é deixada uma pista: “Não pedimos desculpa por esta interrupção”, assinada “Anónimo”. Sem outras explicações, a edição de 28 de setembro de 1978 é a última Opção publicada, um ano e meio depois de estar no mercado como única representante das newsmagazines portuguesas (Cardoso, 2021).
Sobre o desfazer daquele que parece ter sido o seu maior sonho, Artur Portela confessa o que sentiu:
jornalista e escritor, filho de jornalista e escritor, neto de escritor e publicista (…) o fim, forçado, financeiro, do projecto de um semanário de jornalistas, pelo qual lutámos arduamente, só podia ser, para mim, uma grande perda e um fortíssimo trauma. (Portela, 2014a)
Ainda não era desta que tinha chegado o tempo da newsmagazine triunfar na história da imprensa portuguesa, mas também é verdade que a Opção sempre se autodenominou como “semanário” e até como “jornal”, negando a natureza híbrida que é a essência deste tipo de publicação. Uma newsmagazine apresenta vários pontos de contacto com um jornal semanário, mas é uma revista. Isso obriga a um conjunto de regras de design e imagéticas que a Opção ignorou, posicionando-a como o título mais difícil de classificar no conjunto das 15 newsmagazines de que há registo conhecido em Portugal (Cardoso, 2015).
Conclusões: dois projetos distintos, a mesma irreverência
De 1975 a 1978, Jornal Novo e Opção assinalam o regresso de Artur Portela ao jornalismo para dirigir o primeiro jornal e, logo de seguida, a primeira newsmagazine pós-25 de Abril. Tanto o diário como a revista são pensados e estruturados à imagem da sua personalidade combativa, irreverente, temerária e livre, assim como pela sua crença no poder transformador do jornalismo e dos jornalistas. Jornal e newsmagazine apostam num amplo protagonismo da política nacional e regem-se ideologicamente por um “socialismo independente”, que Portela advoga em prol de uma democracia pluralista e de uma absoluta liberdade de Imprensa e independência dos média. Ainda no campo das semelhanças, os editoriais interventivos dos dois títulos primam pela qualidade literária, o apelo à ação em permanente diálogo com os leitores, fomentando o debate público, assim como a crítica política e o envolvimento em polémicas. Outro traço que atravessa as duas publicações, fruto da influência do seu diretor, é o recurso ao humor, quase sempre envolvendo políticos ou militares, ficando célebres as fotomontagens nas primeiras páginas do Jornal Novo e os cartoons nas capas da Opção.
Apesar da proximidade destes dois projetos, algumas diferenças estruturais os separam. A começar pela estabilidade e desafogo financeiro que uma estrutura administrativa sólida (CIP) garantia ao Jornal Novo, quando comparada com a instabilidade de uma publicação propriedade de quatro jornalistas como a Opção. Outro elemento diferenciador tem que ver com a responsabilidade pelos conteúdos editoriais, assumida pela estrutura de direção no caso do diário e envolvendo também a redação no caso da Opção. Em termos de impacto público, enquanto Artur Portela esteve à frente do Jornal Novo, este foi absolutamente marcante durante o PREC, enquanto título alternativo à imprensa estatizada, atingindo tiragens expressivas, e dando protagonismo a outros atores políticos e militares. Na revista iniciou um percurso mais discreto, que se foi tornando progressivamente mais reduzido à medida que as dificuldades financeiras se avolumaram.
Na Opção, Artur Portela Filho não conseguiu reunir as condições para explorar as potencialidades da newsmagazine sonhada, mas também é verdade que enquanto a Opção esteve nas bancas foi sempre nomeada, pensada e sentida como jornal semanário, totalmente alheio à natureza de uma revista, como se tivesse nascido noutro corpo. Essa alma de jornal era visível nas páginas interiores permanentemente a preto e branco, quando a cor é uma marca distintiva de uma revista, tal como a qualidade do papel, que empobrece na fase final. Por outro lado, Artur Portela transporta para a Opção a lógica dos jornais e dedica cerca de dois terços da revista à política nacional, contrariando o espírito original de uma newsmagazine, que pretende ser síntese do que de mais importante se passa ao longo da semana, dentro e fora de fronteiras, em todas as áreas da informação. E se o jornalismo de newsmagazine pode ser classificado como interpretativo, não é engajado, ideológico, como foi o da Opção, o que a tornou uma experiência sui generis, até hoje irrepetível, justificada pelo momento histórico em que se insere, mas difícil de arrumar na história da news magazine em Portugal.
O trabalho desenvolvido na primeira página do Jornal Novo, que granjeou reconhecimento público a Artur Portela, vivia da justaposição das fotomontagens satíricas com os Editoriais acutilantes na primeira página, de grandes “caixas” jornalísticas, de títulos expressivos e controversos, caminho que o diretor não conseguiu continuar a trilhar na Opção. A prosa apaixonada de Portela tornou-se oculta, interior, longe do olhar nas bancas, ao mesmo tempo que nas capas, o instrumento de venda mais importante de uma revista, a forma abafava o conteúdo. E, assim, a irreverência única, às vezes genial, de Artur Portela (Filho) perdeu o seu lugar privilegiado e acabou ofuscada entre paredes de papel de jornal a preto e branco, embrulhadas numa magnífica capa de papel couché.