Introdução
A reflexão objetiva provocar a construção de uma narrativa da história do jornalismo brasileiro pela perspectiva inclusiva, suplementada pela participação feminina, com recorte no trabalho desenvolvido pela jornalista Clarice Lispector em quase 40 anos, descontínuos, na imprensa brasileira. Clarice Lispector nasceu na aldeia Tchetchélnik, na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920, durante a viagem de exílio de sua família para os EUA ou Brasil, decorrente da invasão alemã no seu país natal, no contexto da Primeira Guerra Mundial. Em março de 1922, seus pais, as duas irmãs e ela, desembarcaram do navio Cuyabá em Maceió, e em 1925 se mudaram para Recife, no Estado de Pernambuco. Quase dez anos depois e após a morte de sua mãe, em janeiro de 1935, Clarice, aos 14 anos de idade, com seu pai e suas irmãs deixaram Recife e se instalaram no Rio de Janeiro. E foi no Rio de Janeiro que Clarice ingressou no jornalismo, no início da década de 1940 (Gotlib, 2009). Mesmo com destaque como escritora, ela não teve o reconhecimento de mesma magnitude enquanto jornalista, a despeito de ter contribuído significativamente às práticas do jornalismo. Por essa trilha, o artigo apresenta a necessidade de uma revisão da historiografia do jornalismo brasileiro a partir da inclusão da atuação de mulheres jornalistas e seus feitos no exercício da profissão.
A provocação em uma reconstrução da historiografia pela perspectiva inclusiva compreende inserir a participação de mulheres, brancas, pretas, abastadas e pobres, com identidades de gênero diversas, que atuaram na imprensa nacional e contribuíram para a conformação do campo, a partir da epistemologia feminista (Farganis, 1997; Lerner, 1990; Butler, 2019; Saffioti, 1992) em intersecção com os estudos em jornalismo (Rocha; Sousa, 2008; Pinto, 2010; Veiga da Silva, 2010; Costa, 2013). Tem-se ciência da amplitude da proposição e do esforço teórico-metodológico na recomposição da narrativa e não se pretende aqui esgotá-la. O artigo traz parte dessa pesquisa em desenvolvimento que está sob a égide dos estudos sobre a feminização do Jornalismo. A escolha por discutir o trabalho da jornalista Clarice Lispector em diálogo com as fases do jornalismo nacional entre as décadas de 1940 e 1970 deve-se, justamente, às referências bibliográficas e pesquisas publicadas sobre ela. O conceito de historiografia adotado se apoia no entendimento de Torres (1996, p.56) ao reconhecê-la, não enquanto um processo ou somente como um conhecimento histórico, mas como sendo “o conhecimento situado na historicidade de seu acontecer, sendo historia-processo na dimensão de sua contemporaneidade”. A historiografia é a história da história, é um discurso produzido que explicita relações contextuais, ideológicas, os anseios de uma sociedade e as dinâmicas sociais existentes que podem ter base científica ou não. É importante pontuar que a construção da historiografia trata-se de um “fragmento para compreendermos - numa preocupação de totalidade - esse passado” (Torres, 1996, p. 56).
A construção da historiografia, para o autor, se encontra inseparável da relação entre tempo e espaço acerca de determinados temas. Se por um lado a historiografia é um arrolamento sistemático do conhecimento histórico produzido, isso não quer dizer que as considerações elaboradas são permanentes. Constantemente os modos de produção de história podem ser revistos, revisitados, criticados e, quando possível e necessário, reformulados. Quando reformulada, a historiografia traz à tona personagens, acontecimentos, discursos e reflexões que podem ter sido silenciados por uma questão de poder e dominação. Esse movimento de crítica historiográfica contempla outros olhares e reconfigura o conhecimento histórico a partir da visibilidade de outros feitos (Torres, 1996).
As considerações de Torres (1996) sobre historiografia tornam-se produtivas para analisar a vida profissional de Clarice Lispector sobre duas vertentes. Primeiramente, ao resgatar os registros de seus escritos na imprensa, é possível reconhecer a sólida carreira dela como jornalista. O segundo aspecto compreende o reconhecimento dela como jornalista e suas contribuições para as práticas e modos de produzir jornalismo. Oferecer outras reflexões ao desempenho de Clarice Lispector é abrir espaços para a contemplação de novos olhares. A proposta de Torres (1996) se aproxima do pensamento de Butler (2019) ao reconhecer a necessidade de oferecer visibilidade no espaço público a grupos e sujeitos que, muitas vezes, são silenciados por uma questão de poder e violência.
A narrativa histórica herdada do iluminismo versa uma construção social guiada por relações de poder, em movimentos dialéticos, imortalizando a voz dominante. É uma interpretação do passado a partir do viés do vencedor, mascarada pela objetividade positivista de uma identidade universal, que na nossa sociedade ocidental é personificada no homem branco.
Para ilustrar a seleção de pesquisas científicas, tendo como objeto a relação entre Jornalismo e Mulher, Almeida (2018) mapeou no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) 223 pesquisas, sendo 34 teses e 189 dissertações defendidas em programas de Comunicação e de Jornalismo no Brasil, no período de 1972 a 2015. A análise da autora aponta que poucas pesquisas tensionam o Jornalismo no processo de análise pela perspectiva feminista ou de estudos de gênero e encontrou apenas duas dissertações e três teses sobre Clarice Lispector desenvolvidas por pesquisadoras jornalistas.
Lerner (1990) coloca que apesar das mulheres constituírem uma parcela significativa da humanidade e atuarem como agentes históricos, com os homens, compartilhando a construção da civilização, os registros históricos recentes roubaram seus feitos e experimentações, e as colocaram em “um lugar único e à parte. As mulheres são a maioria e, em vez disso, somos estruturadas nas instituições sociais como se fôssemos uma minoria” (Lerner, 1990, p. 4). Elas foram posicionadas à margem da construção da civilização, em ocupações destituídas de importância histórica, assim os registros são parciais e omitem pelo menos metade da humanidade (Lerner, 1990) e da sua herança. E no jornalismo não foi diferente, o sujeito histórico também é representado pelo homem branco. Da Silva (2014, p. 78) utiliza os conceitos dos estudos de gênero para compreender “o imbricamento do jornalismo na cultura, com as normas sociais, bem como com as relações de poder nelas inseridas” e mostra que as relações desiguais entre os gêneros estão em todos os campos da vida social, incluindo nos discursos, nos conhecimentos e no jornalismo (Veiga da Silva, 2014). A cultura masculina contribuiu para o apagamento das jornalistas mulheres.
Ramos (2010) ingressou no jornalismo em 1952, em São Paulo, após se formar pela faculdade Cásper Líbero, e conta sobre a participação das profissionais no ambiente das redações e as relações entre os pares.
Cerca de três dezenas de mulheres jornalistas nesse tempo deram murro em ponta de faca, se expuseram, lutaram (mesmo às vezes sem saber que aquilo era uma luta), ralaram, ganharam pouco, aprenderam, sofreram injustiças e desconfianças e acabaram escrevendo uma parte da história da imprensa paulistana. E não uma parte sem importância. Quando se diz história da imprensa paulistana, diz-se também da imprensa brasileira. (Ramos, 2010, p. 17)
De acordo com o mapeamento de Almeida (2018), as mulheres jornalistas que atuaram no Brasil abordadas nas pesquisas são: Clarice Lispector, Eliane Brum, Adélia Prado, Martha Medeiros, Flávia Freire, Lilian Lima, Miriam Leitão, Patrícia Galvão, Marina Colasanti e Cecília Meireles. O curioso é que nenhuma é preta, grande parte tornou-se conhecida pelo trabalho literário e não jornalístico, são de gerações distintas e cinco delas iniciaram no jornalismo antes da década de 1960. “(...) as jornalistas escolhidas para serem estudadas são poucas e têm reconhecimento muito mais por sua produção literária do que jornalística. Quando se pensa em referências canônicas da Comunicação e Jornalismo, são nomes masculinos que surgem” (Almeida, 2018, p.135). Talvez isso se justifique pela facilidade de acesso a documentos, estudos e textos autorais sobre essa parcela de mulheres jornalistas. O que não ocorre com as outras profissionais que também implementaram o jornalismo, mas foram invisibilizadas na História da imprensa brasileira. Encontrar esses trabalhos exige uma pesquisa de garimpagem, em um país que culturalmente pouco valoriza seus acervos e passado.
Eliane Brum é escritora, jornalista e documentarista. Nasceu em 1966 e formou-se pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em 1988. Trabalhou no jornal Zero Hora de Porto Alegre, na revista Época, em São Paulo, e atualmente é freelancer no El País. Publicou sete obras literárias, dirigiu e roteirizou quatro documentários e recebeu 40 prêmios de reportagem, entre nacionais e internacionais. Adélia Prado é poetisa, contista, romancista, filósofa e professora. Mineira, nasceu em 1935. Recebeu cinco prêmios, entre eles o Jabuti de Literatura. Martha Medeiros é gaúcha, natural de Porto Alegre e nasceu em 1961. Escritora e poetisa. Formou-se em Comunicação pela PUCRS, publicou mais de 30 livros e desde 1994 escreve crônicas para o jornal Zero Hora. Recebeu quatro prêmios entre nacionais e internacionais. Miriam Leitão nasceu em 1951, é mineira e formou-se na Universidade de Brasília (UNB). Há 40 anos atua como jornalista e comentarista de economia no Grupo Globo (emissora de televisão e jornal). Foi presa política na ditadura militar em 1972 e torturada. Publicou sete livros e recebeu nove prêmios pela sua atuação como jornalista. Patrícia Galvão, também conhecida como Pagu, foi escritora, cartunista, jornalista, tradutora, desenhista e poetisa. Nasceu em 1910 e participou do movimento modernista. Foi militante comunista e presa política. Publicou romances, obras com seus desenhos, atuou como crítica de arte e jornalismo cultural no impresso A Tribuna de Santos (SP). Marina Colasanti nasceu em 1937, em uma colônia italiana. É jornalista, artista plástica, escritora, tradutora e contista. Emigrou para o Brasil em 1948 e fixou morada no Rio de Janeiro. Publicou mais de 70 livros, entre contos, infanto-juvenis, poesia e prosa. Recebeu nove prêmios, sendo seis Jabutis. Trabalhou como jornalista no Jornal do Brasil e na Revista Nova, da editora Abril. Cecília Meireles, carioca, nasceu em 1901. Poeta, jornalista, pintora, escritora, foi considerada uma das maiores poetas do Brasil, escreveu mais de 54 obras.
Flávia Freire é uma das mais jovens da lista. Nasceu em 1974, formou-se pela “UniverCsidade”, no Rio de Janeiro, trabalhou 19 anos na rede Globo e não atua mais no jornalismo. Lilian Lima formou-se em Comunicação, com habilitação em Jornalismo em 2011 pelo Instituto Superior de Ensino do Acre. Há sete anos trabalha na rede Amazônica de televisão (rede Globo).
O artigo estrutura-se em uma apresentação teórico-metodológica da ciência social pela perspectiva feminista, nos procedimentos utilizados para a coleta empírica da prática jornalística de Clarice Lispector, em seguida a costura analítica com demarcações de sua biografia atravessadas pelo jornalismo e a conclusão. Como fontes, a pesquisa se apoia em relatos biográficos de Nunes (1991, 2004, 2006, 2015) e Gotib (2009). No campo do Jornalismo, as biografias, quando escritas por jornalistas, contribuem de modo significativo para o jornalismo literário por ultrapassar as regras canônicas do discurso jornalístico (Pena, 2007), sendo uma prática do Jornalismo (Vilas-Boas, 2002). As biografias selecionadas para esta pesquisa não foram escritas por jornalistas, todavia, enquanto fontes, podem auxiliar na reflexão crítica da historiografia do jornalismo.
Epistemologia feminista e caminhos para uma construção teórico-metodológico
O ingresso das mulheres no jornalismo ocorreu no século XIX no Brasil via imprensa feminina, feminista e brasileira, esta última também conhecida como convencional, o que soa de forma enviesada e valorativa. Pinto (2010, p. 19-20) coloca que as denominações imprensa negra, imprensa brasileira, imprensa abolicionista, imprensa feminina ou imprensa operária são “expressões compostas em que o adjetivo sugere possibilidades de entendimento, às quais também se conectam questões relativas à autoria, ao público e aos objetivos - jornais feitos por negros; para negros; e veiculando assuntos de interesse das populações negras”. O mesmo pode ser aplicado às outras denominações. O interessante é tentar imaginar a correlação para imprensa brasileira: “feito por brasileiros; em solo brasileiro, direcionado a um público brasileiro” (Pinto, 2010, p.19). E as brasileiras - jornalistas, público e tema de interesse - estão contempladas enquanto sujeitos, agentes históricos e consumidoras na classificação imprensa brasileira? Ainda de acordo com Pinto (2010), uma das particularidades da origem da fundação da imprensa brasileira deve-se à confusão de seu marco inicial ter coincidido com o decreto de autorização do funcionamento da imprensa pelo príncipe D. João VI em 1808. Talvez a concomitância desses dois factos, leve à interpretação da imprensa brasileira como sinônimo de jornais caracterizados por pautas nacionais com viés e versões das vozes dominantes e colonizadoras, nos contextos jornalísticos dos paradigmas da opinião e da informação aplicados no Brasil.
A imprensa feminina configura-se como um capítulo da História do jornalismo brasileiro, como algo descolado. A idealização da imprensa brasileira perpetua as desigualdades de gênero e raça e desconsidera seu aspecto estruturante: o processo histórico, sócio e cultural, no qual as mulheres brasileiras (brancas e pretas) estavam inseridas, bem como a construção do jornalismo. No século XIX, as mulheres ocuparam a imprensa para manifestar críticas à situação social imposta e reivindicações do direito à educação, ao voto, ao trabalho remunerado e ao divórcio. Elas lançaram jornais em diferentes estados: Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul entre outros. Entre os veículos com participação feminina estavam: Jornal das Senhoras; O Belo Sexo, O Domingo, Eco das Damas, A Família; O Sexo Feminino; O corimbo, O quinze de novembro do sexo feminino (Buitoni, 1990; Duarte, 2003).
A imprensa feminista (liberal e libertária) sofre dos mesmos lapsos de tratamento pelo campo, sem inventariar todos os movimentos que emergiram anterior à primeira metade do século XX; e parte dos movimentos da segunda metade do século diluem-se na égide da imprensa alternativa, por exemplo, a imprensa lésbica, como coloca Barbosa (2019).
A História das Mulheres atuando na imprensa brasileira ainda é pouco difundida, sobretudo antes da criação dos cursos de formação em Jornalismo. A pioneira documentada foi Narcisa Amália de Campos, jornalista, tradutora, poeta e escritora, natural de São João da Barra, no estado do Rio de Janeiro, que fundou em 1884 o impresso quinzenal “A Gazetinha”, além de ter colaborado para outros jornais e revistas, sendo a maioria fluminense (Pietrani, 2020).
A provocação de Lerner (1990) é dar luz à história elaborada concomitantemente por homens e mulheres que coexistem em determinado espaço e tempo. Contar a história do jornalismo pela perspectiva inclusiva atende à proposição de Lerner (1990) de trazer a história do jornalismo brasileiro em minúscula, sem a exclusão das jornalistas. Isso demanda o exercício teórico-metodológico de se afastar da ciência exercida a partir do ideal cartesiano, por não levar “em consideração o papel que a política e a história desempenham nessa busca etérea da verdade; além disso, não leva em conta as formas através das quais a razão, a emoção e a paixão significam coisas diversas e são avaliadas diferentemente por pessoas diferentes” (Farganis, 1997, p. 224).
A epistemologia feminista contemporânea critica justamente o modelo cartesiano da ciência em sua compreensão objetiva da realidade a partir da razão, sem qualquer interferência de valores referentes a classe ou status. Para a epistemologia feminista, o fazer ciência não está blindado das construções sociais visto que o conhecimento é socialmente construído e utilizado para reiterar posturas dominantes, assim o gênero também influência a ciência. De acordo com Farganis (1997, p. 225), “tanto o conteúdo como a forma do pensamento, ou das ideias e processos através dos quais essas ideias são geradas e compreendidas, são afetados por fatores sociais concretos, entre os quais se inclui o gênero”. Nesse sentido, Saffioti (1992) coloca que as experiências vivenciadas por homens e mulheres são diferenciadas em sociedades onde “não há igualdade social entre os gêneros” e que como a ciência é um “processo social”, a compreensão dessas experiências distintas é um pré-requisito político e intelectual para a “construção de uma teoria feminista da ciência”. A autora propõe o resgate de uma ontologia relacional inserindo os seres humanos no objeto da ciência, visto que as tramas das relações sociais entre mulheres, entre homens e entre homens e mulheres tecem a história conjuntamente.
Por esse olhar, os estudos feministas sugerem a reconstrução da ciência social utilizando pressupostos feministas e metodologias diferenciadas que permitam observar e compreender a realidade de forma legítima, consciente da intencionalidade das suas pesquisas e do seu potencial transformador. Ao assumir tal norte, esta reflexão parte de quatro premissas: i) o trabalho das jornalistas mulheres no século XIX e em grande parte do século XX não foi reconhecido pela narrativa histórica sobre a conformação do campo do jornalismo no país e tampouco pelos pares profissionais, chefia e donos de mídia jornalística; ii) a História das mulheres no jornalismo brasileiro desse período está representada nas imprensas feminina e feminista; iii) a cultura profissional do Jornalismo brasileiro é masculina (Veiga da Silva, 2010) e oprime as influições femininas. Isso deve-se sobretudo a um período de prevalência masculina no ambiente público, no qual as redações eram pouco convidativas às mulheres (Rocha; Sousa, 2008); iv) a sujeição e o apagamento do trabalho das mulheres jornalistas segue a lógica dominante patriarcal de posicioná-las na instância privada, sobretudo no século XIX e nas primeiras décadas do século XX.
A instância pública, aqui representada pelo mercado de trabalho, era de domínio masculino. O sucesso e genialidade feminina era permissível apenas no campo artístico. Escritoras, poetas, jornalistas, artistas e musicistas eram postos aceitos socialmente para a mulher, por estarem ligadas às artes. Besse (1999) coloca que essas atividades eram aceites porque o horário de trabalho era flexível, podiam ser executadas em casa e eram associadas ao papel tradicional das mulheres, de recitar poesia, cantar e tocar piano em reuniões sociais particulares. A remuneração não era regular, logo não ameaçavam os homens (Besse, 1999).
No século XX, a visibilidade feminina na imprensa brasileira ainda não era satisfatória. Buitoni (1981) pontua que além de serem poucas ocupando os postos nas redações, principalmente até os anos 1960, ainda nas publicações femininas eram os homens que preenchiam parte das vagas. E para camuflar a presença masculina, eles adotavam pseudônimos femininos, com o propósito de desenvolver laços afetivos entre a publicação e o público feminino.
Por isso, a dificuldade em encontrar textos e registos de jornalistas mulheres brancas e pretas que atuaram no século XIX e na primeira metade do século XX, em especial antes da abertura do primeiro curso de graduação em Jornalismo no país que iniciou em 1947 e da lei de 1969, a qual passou a exigir a formação superior para o exercício da profissão. A escolaridade impulsionou o acesso às mulheres na profissão, sobretudo quando o diploma passou a ser obrigatório, em um contexto nacional caracterizado por um processo de maior ocupação das mulheres no mercado de trabalho e nos cursos de formação superior. A certificação não gerou reconhecimento no trabalho das jornalistas, elas passaram a ocupar os postos mais baixos que os pares masculinos e a receber salário inferior, mesmo quando exerciam a mesma função e apresentavam maior qualificação acadêmica (Rocha; Sousa, 2008). As desigualdades estruturais de gênero, raça e classe da nossa sociedade são replicadas na conformação do campo profissional, apesar dos embates enfrentados ao longo da sua trajetória.
As ideias apresentadas vão ao encontro do pensamento de Butler (2019) de que há vidas que estão mais suscetíveis ao silenciamento e, até mesmo, à morte. A autora traça suas considerações a partir das mortes e humilhações sofridas por pessoas (civis e militares) detidas em bases militares estadunidenses em países do Oriente Médio. Vidas desprovidas de sentido político e público e, por isso, os constantes rebaixamentos e ofensas. A percepção de Butler (2019) em situação de guerra também pode ser vista no cotidiano público quando ela apresenta que a vida de mulheres, população LGBTQIA+, pretos/as, imigrantes e outros segmentos são desprovidos de valor político, o que pode garantir, inclusive, a execução e o desdém pela vida e pelo luto dessas pessoas.
Grandes nomes como o de Patrícia Galvão que atuou na imprensa operária e no jornalismo cultural são mais lembrados. Mas, sempre tem um “se” sugerido pelo próprio campo que se ancora na objetividade positivista, mesmo para avaliar o ofício no passado. Era Jornalismo? Por que não está contido na História da imprensa brasileira? A desconsideração não seria uma falta de reconhecimento do próprio campo do legado das mulheres, por prezar a cultura profissional masculina? Podese acrescentar na lista das jornalistas anteriores à lei da obrigatoriedade do diploma outros nomes como: Helle Alves, Margarida Izar, Hellô Machado, Carmem Lour, Rosy de Sá Cardoso, Clycie Mendes Carneiro, Cecília Prada, Lucinha Fragata, Teresa Otondo, Maria Lúcia Sampaio, Cristina Duarte, Carmem da Silva, Neyde Garcia, Neusa Santana Pinheiro Coelho, Cremilda Medina (Ramos, 2010). Há uma maior facilidade em encontrar documentos e relatos sobre as jornalistas que trabalharam em capitais. Já aquelas que atuaram em cidades do interior demandam mais esforços e técnicas de pesquisa para localizar seus registros e documentos. Tais movimentos são decorrentes da relação entre a institucionalização do jornalismo com os domínios político, econômico, social e cultural, assim como sua documentação histórica.
Os procedimentos metodológicos para coletar informações sobre a atuação de Clarice Lispector como jornalista compreenderam em um primeiro momento o levantamento no catálogo de teses e dissertações da Capes, utilizando seu nome completo entre aspas como termo de busca. Há 933 trabalhos (700 de mestrado acadêmico, 213 de doutorado, 18 de mestrado profissional e 02 de programas profissionalizantes). Do total, 34 estão na área de Ciências Sociais Aplicadas (23 teses e 11 dissertações), sendo 27 da subárea da Comunicação e Informação (19 mestrado e 8 doutorado) e nenhum em programa de pós-graduação em Jornalismo. Três pesquisas foram desenvolvidas em Programas de Comunicação. O segundo passo foi a leitura dos resumos para aferir se o trabalho enfoca ou menciona a participação de Clarice no jornalismo. A discussão proposta utilizou os estudos de Vera Helena Saad Rossi (2006) e Aparecida Maria Nunes (1991). Posteriormente investigaram-se publicações em periódicos científicos e selecionaram-se os artigos publicados por Aparecida Maria Nunes (2004; 2015) e o livro de sua autoria Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas. Em seguida foram consultadas a biografia da jornalista e escritora (Gotlib, 2009) e suas crônicas (Lispector, 2018).
Era uma vez uma jornalista…Judia, nascida em solo ucraniano, naturalizada brasileira, Clarice Lispector, aos nove anos de idade, já se aventurou a escrever contos. Tradutora e escritora consagrada internacionalmente, Clarice representa aqui um grupo de mulheres jornalistas que ingressaram na carreira ainda na primeira metade do século XX, quando ela tinha 19 anos. As referências às jornalistas mulheres nesse período associam a narrativas carregadas de impressões e subjetividades, distanciando-as da objetividade que passou a conduzir e legitimar a prática jornalística do paradigma informativo, instalado no Brasil após a Segunda Guerra Mundial. Retratação similar aos movimentos das jornalistas americanas stunt girls (uso de disfarce) e municipal housekeeping que ocorreram no final do século XIX e na primeira década do século XX (Silveirinha, 2007; Costa, 2013), quando se implementou o jornalismo industrial nos EUA. Apesar do descompasso temporal entre os dois países, em ambos percebe-se a subjugação da atuação feminina.
O mesmo ocorreu com Clarice Lispector que não teve seus contos publicados na seção “O ‘Diário’ das Crenças”, no jornal Diário de Pernambuco, quando ainda era adolescente, como ela mesmo avalia anos depois: “Já na fase adulta, lança uma possível explicação para essa recusa: era porque não narra “fatos”, como os outros contistas, mas “sensações” (Gotlib, 2009, p.86). As características femininas são culturalmente associadas ao emocional e à subjetividade em sociedades machistas, como forma de opressão às mulheres, já o homem é o portador da razão. Razão e emoção, subjetividade e objetividade, fragilidade e força são símbolos culturais impressos nas relações de poder entre gêneros como coloca Scott (apudSaffioti, 1992, p.198) que evocam representações expressas sob a forma de “oposições dualistas categorizando o masculino e o feminino”. No discurso jornalístico, tal narrativa ecoa como um desmerecimento do trabalho das jornalistas e de falta de profissionalismo. É pertinente lembrar que ser escritora e atuar na imprensa como forma de sustento e de publicização da obra literária não era exclusivo às mulheres.
Clarice Lispector começou a trabalhar como jornalista antes da abertura do primeiro curso de Jornalismo. Em 1939, ingressou no curso de Direito, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas após a morte do seu pai, ocorrida em agosto de 1940, ela resolveu percorrer as redações de revistas da cidade para publicarem seus contos, pois estava insatisfeita com o emprego que tinha. Até deparar-se com a revista Vamos Ler! direcionada ao público masculino de classe alta (Nunes, 1991; Gotlib, 2009). Nesse período o formato de redação jornalística no Brasil, seguia o estilo literário francês (Rocha; Sousa, 2008).
A prática jornalística na época era censurada pelo governo do então presidente Getúlio Vargas que criou o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), dirigido por Lorival Fontes (Chefe da Casa Civil e censor), e fechou alguns jornais no país. O DIP permitia a circulação da revista Vamos Ler!. O primeiro texto não ficcional que Clarice publicou, aos 19 anos, foi “Eu e Jimmy”, em 10 de outubro de 1940, antes mesmo de ter publicado seu primeiro livro. Trata-se de um conto com temática feminista centrado na relação amorosa entre um homem e uma mulher (Nunes, 1991). E foi nessa revista, Vamos Ler!, que Clarice desenvolveu o exercício da entrevista, com a particularidade de se colocar na formulação das perguntas em formato pingue-pongue e trabalhar a edição com uma introdução e com comentários sobre o entrevistado ao longo do texto, antecedendo o que anos depois viria a ser uma de suas marcas no jornalismo. Sua primeira entrevista foi com o poeta Tasso da Silveira em 19 de dezembro de 1940 (Rossi, 2006):
Para mim, entrevistar Tasso da Silveira era continuar uma daquelas palestras tão profundas, nas quais eu assistia atenta o poeta resolver os grandes problemas do pensamento. Quando, na redação do Pan, sua mesa não estava muito atulhada de papéis e seu cigarro não queimava rápido demais, eu puxava uma cadeira e, assim como quem nada quer, dizia uma palavra, uma simples palavrinha. E em breve discutíamos a gênese do mundo, a significação da arte, a explicação do tempo e da eternidade... Eram problemas para mim, certezas para ele. (...) - Vim lhe fazer algumas perguntas indiscretas: alguns “comos” e “porquês”, digo-lhe. (Lispector apud Nunes, 2006, p. 47-48)
Após publicar contos e crônicas, ela parte para um novo desafio nas redações, o de exercer a função de repórter. Entrou em contato com Lorival Fontes, que a contratou para trabalhar como tradutora na Agência Nacional, órgão oficial de notícias do governo. Ocupou a vaga de editora e repórter, sendo a única mulher a ocupar tal cargo naquele momento, e passou a cobrir os eventos do Governo pelo país. Seus textos eram publicados em jornais de cidades diversas que replicavam o conteúdo da Agência Nacional. Ainda em 1941, ela foi transferida para a redação do jornal A Noite para continuar trabalhando como jornalista. O jornal compartilhava o mesmo prédio com a revista Vamos Ler! na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, separados apenas por um andar. A redação do primeiro ocupava o terceiro andar e a revista o quarto. O jornal era uma extensão do órgão governamental Agência Nacional (Gotlib, 2009). Em 2 de março de 1942, Clarice teve seu primeiro registro profissional, trabalhan-
do oficialmente como redatora durante dois anos e meio. Segundo seu filho Paulo Gurgel Valente, ela era a única mulher da redação do jornal. Clarice dizia que trabalhava como jornalista por necessidade financeira (Nunes, 2006):
Na praça Mauá, n.º 7, 3.º andar, vamos encontrar Clarice Lispector repórter. Ali, no jornal A Noite, obtém o primeiro registro na carteira profissional, como repórter do periódico que levava o mesmo nome da empresa à qual também pertencia a revista Vamos Ler!, que funcionava no andar de cima.
(...) é admitida em 2 de março de 1942; (...) Mas no Serviço de Identidade Profissional, Clarice Lispector será registrada apenas anos mais tarde. Sob o número 2.416, é considerada jornalista profissional em 10 de janeiro de 1944. (Nunes, 2006, p. 64)
Clarice cobria todos os assuntos, passou por várias editorias, menos polícia e nota social, e desempenhou as funções de repórter e entrevistadora. Como jornalista escreveu matérias relacionadas à situação social do país, problemas de intolerância governamental e questões ligadas ao desenvolvimento infantil (Nunes, 2006). Em sua biografia ela menciona que as desigualdades sociais do país a incomodavam desde sua infância em Recife (Gotlib, 2009).
André Carrazzoni, então diretor de A Noite, endereça uma carta ao ministro das Relações Exteriores, Osvaldo Aranha, em 4 de setembro de 1942, elogiando a atuação de Clarice Lispector como repórter e sua identidade com o Brasil, apesar de ser natural da Ucrânia. “Essa jovem não é apenas inteligente. Além de jornalista brilhante, a srta. Clarice Lispector está perfeitamente integrada nos hábitos brasileiros” (Waldman, 2003, p. 25).
O teor da carta expressava uma preocupação naquele contexto. Ser estrangeira era um problema, pois de acordo com a normatização do Decreto-Lei 910, 30 de novembro de 1938, estabelecido pelo Governo Getúlio Vargas, era necessário ser brasileiro nato ou naturalizado para exercer o ofício de jornalista no país. Trata-se da primeira legislação sobre a profissão de jornalistas no Brasil, a qual determinou que a jornada de trabalho seria de cinco horas, tanto de dia como de noite, e que poderia ser contratualmente prolongada para sete horas, ocorrendo compensação financeira. Dizia ainda que o jornalista não poderia ter antecedentes criminais, nem estar respondendo a processos na Justiça (Rocha; Sousa, 2008). Em 12 de janeiro de 1943 Clarice Lispector é naturalizada brasileira em documento assinado pelo presidente da república Getúlio Vargas e onze dias depois ela se casa com o diplomata Maury Gurgel Valente.
Escrever para a imprensa não foi apenas um momento na vida de Clarice, assim como seu envolvimento com o jornalismo. Após o seu casamento, a família se mudou para Belém do Pará. Na visita ao Brasil de Anna Eleonor Roosevelt, então mulher do presidente americano Franklin Delano Roosevelt, em março de 1944, Clarice foi à coletiva, fez a entrevista e mandou para o jornal A Noite, por telefone, mesmo já afastada do veículo (Gotlib, 2009). Apesar de não abrir mão da notícia e estar sempre atenta aos fatos, ela, por sua vez, nem sempre se considerou uma jornalista. Em 1967, quando o jornalista Alberto Dines a convidou para trabalhar no Jornal do Brasil como cronista, ela disse que não sabia fazer crônica da forma que era feita no Brasil, mas que como precisava trabalhar ela resolveria esse problema a seu modo: contando histórias (Nunes, 2006). Ela atuou como cronista de 1946 até ao ano de sua morte, em 1977, mas naquela ocasião, recorreu a Rubem Braga para se aconselhar:
Nota: um dia telefonei para Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: “Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” E ele disse: “É impossível na crônica deixar de ser pessoal.” Mas eu não quero contar a minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiências e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia. (Lispector, 2018, p. 676)
E deu certo. Somente no Jornal do Brasil ela produziu crônicas de agosto de 1967 a dezembro de 1973 (Lispector, 2018). Entre as definições de jornalista está justamente a de ser contador/a de histórias. Talvez esse seja um dos fortes elos de Clarice com o jornalismo brasileiro, com a prática ela aprendeu a dominar a técnica de escrever para jornal e os diferenciais do romance:
Escrever para jornal não é tão impossível: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial: o leitor em relação ao jornal não tem vontade nem tempo de se aprofundar. Mas escrever o que depois se tornará um livro, exige às vezes mais força do que aparentemente se tem. (Lispector, 2018, p. 298).
Apesar do aparente dilema da escritora e jornalista, Clarice conduziu bem as duas profissões e tinha a percepção de que escrever para jornal precedia um compromisso com o público. É interessante que um dos seus nortes era justamente ter um público definido, ou seja, ela sabia para quem estava escrevendo no jornalismo. Algo que no paradigma informativo regido pelo modelo industrial e para um público de massa, essa identidade do público aproximava-se da abstração e não de algo concreto. Como se observa nos trechos abaixo em que ela responde ao questionamento de um jornalista mineiro sobre a razão das pessoas acharem seus textos em jornais mais fáceis e compreensivos do que os livros:
Respondi ao jornalista que a compreensão do leitor depende muito de sua atitude na abordagem do texto, de sua predisposição, de sua isenção de ideias preconcebidas. E o leitor de jornal, habituado a ler sem dificuldades no jornal, está predisposto a entender tudo. E isso simplesmente porque “jornal é para ser entendido”. Não há dúvida, porém que eu valorizo muito mais o que escrevo em livros do que o que escrevo para jornais - isso sem, no entanto, deixar de escrever com gosto para o leitor de jornal e sem deixar de amá-lo. (Lispector, 2018, p.514-515)
Com o fim da Segunda Guerra, o modo de fazer jornalismo americano passou a ser adotado no Brasil, e aos poucos se absorveu a cultura do lead e do formato notícia. Em 1946, foi criada a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), entidade que participa de lutas em benefício do jornalista e congrega os sindicatos nacionais. Entre suas bandeiras estavam a criação do salário mínimo, a democratização dos meios de comunicação, a manifestação contra a censura e a ditadura, e a obrigatoriedade do diploma para o exercício da profissão (Rocha; Sousa, 2008). Nesse contexto, após voltar da Europa em passagem pelo Brasil, Clarice aceitou o convite de Rubem Braga de integrar a equipe do semanário Comício, jornal que fundara em 1952 junto com Rafael Correa e Joel Silveira. Clarice teria uma página feminina para escrever crônicas. Ela assinaria com o pseudônimo Tereza Quadros, na coluna “Entre Mulheres”. O jornal parou de circular no mesmo ano (Gotlib, 2009). E assim, ela entrou na empreitada da Imprensa Feminina, quando não tinha mais tempo para trabalhar em período integral. Embora, a jornada de trabalho no jornalismo determinada pela legislação eram cinco horas mais duas contratuais, na prática, se trabalhava muito mais nas redações, para além de oito horas (Rocha; Sousa, 2008), o que era inviável para mulheres mães ou que assumiam a dupla jornada com o trabalho de cuidar da casa. Os acordos trabalhistas e as políticas públicas não atendiam às mulheres:
Voltando ao jornalismo feminino. Quando eu trabalhava em redações de jornais, era repórter e redatora, fazia de tudo, menos a parte de polícia e a parte de notícias sociais. Depois, não podendo na ocasião dar horário integral, fiz páginas femininas para dois vespertinos. (Lispector, 2018, p.306)
Clarice era uma mulher que viveu na Europa no pós-Guerra e nos EUA durante a onda do consumismo. Ela passou a escrever para o público feminino em três momentos, com pseudônimos diferentes e em veículos distintos. Após 8 anos nos EUA, ela volta para o Brasil com os dois filhos e separada do marido. Entre 1959 e 1961, fez a coluna “Correio feminino” para o Correio da Manhã, assinando como Helen Palmer; e a coluna “Só para mulheres”, para o Diário da Noite, como Ilka Soares, a convite de Alberto Dines (Nunes, 2015):
Clarice volta a escrever matéria jornalística para o público feminino: colabora nesse jornal às quartas e sextas-feiras, de agosto de 1959 a fevereiro de 1961. Ao mesmo tempo mantém a colaboração na revista Senhor. Os rendimentos provenientes dessa matéria na imprensa complementam a pensão que recebe do marido após a separação. (Gotlib, 2009, p. 330)
Ao retornar, ela precisou se instalar em um Brasil do final da década de 1950 e início da década de 1960. Pela perspectiva feminista deve-se considerar o ser mulher, separada, com dois filhos no contexto brasileiro da época, mesmo sendo uma escritora conhecida internacionalmente. E de certa forma, as colunistas interpretadas por ela, trazem posicionamentos diferentes para enxergar o ser mulher na sociedade, traçando suas demarcações na História da imprensa feminina (Gonçalves; Hoffman; Teixeira, 2010).
Entre seus textos jornalísticos está o Mineirinho, publicado em 1962, na revista Senhor que conta sobre o assassinato de José Miranda Rosa pela polícia com 13 tiros de metralhadora numa emboscada na estrada Grajaú-Jacarepaguá (RJ), em um domingo de abril, na frente de uma garagem de uma empresa de transporte. Mineirinho era considerado criminoso, foragido da prisão, com mais de cem anos de pena a cumprir. Os jornais da época Diário Carioca, Diário de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Brasil e O Dia, fizeram a cobertura seguindo o formato factual, pautado nas fontes oficiais como rege o paradigma informativo, com manchetes como: A morte do maior criminoso do Rio de Janeiro ou Mais de duas mil pessoas tinham se concentrado na Pedra do Gambá para ver o corpo, na segunda-
-feira (Nunes, 1991).
A forma como Mineirinho foi morto chocou a opinião das pessoas. Trezentos policiais se envolveram na operação. A revista Senhor não era de atualidade, o que naquele momento não justificava uma reportagem. Então pediram para Clarice escrever sobre o ocorrido. Das 13 balas, uma foi na perna esquerda, 3 nas costas, uma no braço esquerdo, uma no pescoço, uma no punho direito, uma no braço esquerdo, quatro no peito e uma no coração (Nunes, 1991).
No texto, Clarice fala de uma sociedade excludente, implacável e de uma justiça que não atende o homem vitimado. Era o Brasil dois anos antes de deflagrar o golpe civil-militar que instaurou a ditadura militar, em 1964:
“Me deu uma revolta enorme”. O primeiro tiro me espanta… o décimo segundo me atinge e o décimo terceiro sou eu. Eu me transformei no Mineirinho, massacrado pela polícia. Qualquer que fosse o crime dele, uma bala bastava, o resto era vontade de matar. Era prepotência. (Lispector, 2014, s.p.)
Talvez esse seja outro de seus elos com o jornalismo: além de contar história, é refletir em como contá-la. O texto de Clarice não fala apenas do acontecimento em si, traz conhecimento, contextualiza, humaniza o “criminoso”, descreve os detalhes da crueldade do assassinato, leva o leitor a se colocar no lugar do outro, a questionar a violência policial e sua normalização. Denuncia a política de higienização implantada no período colonial com a bandeira de garantir a não violência com a prática da violência:
Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro. Essa justiça que vela meu sono, eu a repúdio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais... (Lispector, 2014, s.p.)
Ela continua o texto abordando a segurança sonsa de nós em casa, o medo, o medo do Mineirinho, o medo da sociedade, o justiceiro e, por fim, questiona a justiça:
Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato. (Lispector, 2014, s/p).
Em 1968, Clarice assume na revista Manchete o trabalho de realizar entrevistas, ocupado pela então seção “Diálogos Impossíveis” - entre duas pessoas de ofícios diferentes para um bate-papo. Com o seu ingresso o nome da seção muda para “Diálogos Possíveis com Clarice Lispector”. Ela gostava de entrevistar, pois dizia-se curiosa. Mas não de ser entrevistada. “Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente as minhas palavras” (Lispector, 2018, p. 59).
Ela não gravava as entrevistas e manteve o seu estilo da década de 1940, quando iniciou essa técnica no jornalismo: pessoal e perceptivo. Fazia de forma que ambos eram notícia: o entrevistador e o entrevistado, com tons de humanização. Uma estratégia para não deformar o entrevistado. Ao todo fez 83 entrevistas para a revista Manchete; 59 entrevistas, no período de maio de 1968 a outubro de 1969 para Fatos; 27 entrevistas para Fotos/Gente, realizadas entre dezembro de 1976 e outubro de 1977. Clarice redigia em primeira pessoa, não seguiu o cânone do jornalismo, mas elaborou o texto jornalístico (Nunes, 2015).
O texto editado, era apresentado em forma de pergunta e respostas, com uma entrada marcada com as impressões da entrevistadora, entretítulos e observações captadas no momento da entrevista ou sobre a pessoa, colocadas ao longo do texto. Um breve perfil, com recortes: fosse características da fisionomia, estado mental ou profissionalismo. Se colocava na entrevista com perguntas articuladas. A entrevistadora e o entrevistado faziam parte do conteúdo veiculado. Não bajulava. Não se preocupou com o factual e sim em abstrair o lado mais humano: descreve o local da entrevista e os gestos do entrevistado ou da entrevistada. Aqui destacam outros elos com o Jornalismo: a observação e a humanização, usualmente presentes na reportagem e na grande-reportagem. A humanização e observação são técnicas que Clarice absorve nas suas produções ao longo do exercício na imprensa, antes mesmo da instalação do paradigma do jornalismo de informação no Brasil. A apuração, outro procedimento jornalístico, antecede cada entrevista e é perceptível na formulação das perguntas e no texto editado por ela. Um exemplo é sua entrevista com o então jogador de futebol Mário Jorge Lobo Zagallo:
- Sendo você bicampeão mundial e bicampeão carioca, Zagallo, eu, se dependesse de mim, se não tivesse admiração que tenho pelo Saldanha, escolheria você para técnico da seleção brasileira.
(...) Zagallo é moço, fino de corpo, as pernas não são deformadas por uma musculatura violenta, como a de certos jogadores profissionais. É o tipo do homem bom e do bom colega. (...)
(...) Estávamos sentados no banco do Jardim Botânico, conversando às pressas porque o treino já ia começar. (Lispector, 2018, p. 287)
Clarice entrevistou músicos, escritores, poetas, artistas, atrizes, atores, cantores, jogadores de futebol, políticos, paisagistas, médicos, matemáticos, economistas, mulheres de políticos e da alta sociedade. Bibi Ferreira, Tereza Souza Campos, Lígia Fagundes Teles, Oscar Niemeyer, Vinícius de Moraes, Millôr Fernandes, Roberto Burle Marx, Nelson Rodrigues, Zagallo, Pablo Neruda, Fernando Sabino, Rubem Braga, Carlos Scliar, Érico Veríssimo, Hélio Pelegrini, Chico Buarque, Tom Jobim, entre outras personalidades. Uma variedade de temas, especialidades e contribuições. Ela dominou a técnica de entrevistar e a tatuou no jornalismo brasileiro. A sua estratégia era se expor nas perguntas, assim os entrevistados sentiam-se à vontade para também se exporem. Ainda com Zagallo:
- Eu era esposa de diplomata e por isso, não só viajei muito como morei em vários países do mundo. E como você, acho, sem ser isso dito apenas por patriotismo, que, de um modo geral e em qualquer campo, não ficamos atrás de ninguém em matéria de grande material humano. O Brasil poderia ser uma beleza de país. Bem, mas voltando a você, Zagallo... (Lispector, 2018, p. 288).
Na década de 1970, Alberto Dines novamente contratou Clarice Lispector para escrever uma coluna no Jornal do Brasil (JB) - no Caderno B, sobre as mazelas do cotidiano. Mais uma vez ela entrou em cena para abordar temas de relevância social com uma bagagem de mais de 30 anos no jornalismo (Gotlib, 2009). Entre contos, crônicas, entrevistas e reportagens, em sua trajetória no jornalismo Clarice abordou os problemas da educação no país, do aborto, da fome, da reforma agrária, da matança de índios, da violência, da política, de desigualdades sociais, da maternidade, além de outros. Antes de sua morte, em 9 de dezembro de 1977, Alberto Dines foi demitido do JB e logo em seguida ela também. “Bom, agora eu morri... Mas vamos ver se eu renasço de novo... Por enquanto eu estou morta... Estou falando do meu túmulo…” (Lispector 1977 apudGotlib, 2006, p. 443).
Conclusão
A reflexão parte da perspectiva da epistemologia feminista de que o conhecimento e a ciência têm um caráter social (Bordo, 1986; Saffioti, 1992; Farganis, 1997) e as palavras têm uma história. A história do jornalismo estrutura-se em um discurso politizado e reitera posturas dominantes e desiguais, com protagonismo do viés masculino. Não reconhece a participação das mulheres na conformação do campo, tampouco suas contribuições na construção dessa história. Elas são apagadas e deslocadas para atuações secundárias: imprensa feminina, ou imprensa feminista, ou imprensa lésbica, ou imprensa negra. O campo e a cultura profissional reproduzem a sujeição das mulheres jornalistas. E contam uma história com fissuras e vazios. Para além de contar a História das mulheres ou a História dos homens, o propósito não é fortalecer uma hierarquia, mas uma costura dialética com essas vivências e práticas jornalísticas. Nesse sentido, o objetivo é trazer a historicidade do trabalho das mulheres com a inclusão do seu legado para a história do jornalismo brasileiro. Esse primeiro movimento inicia com o recorte no trabalho de Clarice Lispector.
Procurou-se mostrar que o jornalismo não foi apenas um momento localizado e datado na vida de Clarice Lispector, mas uma profissão a que ela se dedicou anos: com coberturas oficiais na Agência do Governo, como entrevistadora, repórter e colunista, ao trazer em suas crônicas e contos os problemas sociais estruturantes da nossa sociedade. Sua participação no jornalismo dialogou com quatro décadas da história do campo, com algumas ausências. Introduziu suas técnicas de entrevista, desenvolveu a observação, humanização, descrição e contextualização nos seus textos e denunciou as mazelas sociais e políticas. Todas essas técnicas são ministradas nos bancos da faculdade para a produção de reportagens. Articulou suas inquietações com o exercício do jornalismo. Clarice praticou a apuração e a expôs nos conteúdos publicados, prática hoje comum sobretudo em reportagens investigativas. Clarice trabalhou em jornais ao lado de outros escritores e escritoras que também atuavam na imprensa, antes e durante a instalação do paradigma informativo no Brasil. Exerceu diferentes funções na redação e acompanhou as transformações e inovações dos jornais de forma atuante. Foi repórter, editora, entrevistadora e colunista. E mesmo com tais atividades desempenhadas com êxito, o mérito da sua atuação como jornalista permanece distante frente à atuação de figuras masculinas dentro da mesma área. Ela é pouco presente nos cursos de jornalismo. Por isso, o resgate pela leitura historiográfica torna-se necessária e fundamental para que a história do jornalismo, bem como o seu ensino nos
bancos acadêmicos, seja revista.
Entende-se a documentação da imprensa feminina e feminista como a História das mulheres no jornalismo que visibiliza os movimentos históricos das mulheres no campo. Assim conclui-se que tais registros devem ser inseridos na história do jornalismo, não como capítulos, mas integrando a conformação do campo em diálogo com os movimentos dialéticos e combativos que coexistem na sociedade pelo enfrentamento das desigualdades estruturantes e opressões de gênero.
E isso não se afasta da Clarice jornalista. Porque parte dos estudos é sobre o período em que ela atuou como colunista nas décadas de 1960 e 1970, para secções femininas. Os estudos sobre Clarice Lispector como colunista ponderam isso, na medida em que analisam o discurso, o contexto histórico do país (o cenário político, social, cultural) e do próprio Jornalismo.