Introdução
Muito antes de ter anunciado, em 2016, sua pretensão de candidatar-se à presidência do Brasil, o deputado federal Jair Bolsonaro já era tratado com ironia, quando não com desprezo, pelos principais meios de comunicação do país. Parecia haver um consenso na mídia de que um sujeito com perfil autoritário, jeito abrutalhado e sem um partido com alguma infraestrutura pudesse se tornar presidente do Brasil. O ex-militar provou o contrário no final de 2018. Utilizando um discurso binário e simplificador da realidade, ele prometeu às “pessoas de bem” acabar com a corrupção, a violência nas ruas e o fisiologismo, que, segundo ele, teria sido implantado no Congresso pelo Partido dos Trabalhadores (PT), do campo da esquerda.
Desde o início do seu governo, em 2019, Bolsonaro tentou enfraquecer o Congresso, acusando-o de não o deixar governar, e, por meio de declarações pelas redes sociais e carreatas, instigando a população a se manifestar contra os deputados e senadores que lhe faziam oposição. Após conseguir articular alianças que lhe garantiram controlar parte do Congresso, geralmente através de negociações de cargos políticos e de recursos do orçamento, conforme divulgado pela imprensa, o ex-capitão do Exército passou a direcionar suas críticas e acusações a alguns juízes do Supremo Tribunal Federal (STF), com os quais trocou insultos e acusações durante todo o ano de 2021.
Embora tenha chegado ao poder com o apoio ou omissão da mídia mainstream, Jair Bolsonaro tem sido denunciado por parte dessa mesma mídia por divulgar informações falsas, teorias conspiratórias, por fazer declarações consideradas irresponsáveis (como, por exemplo, seu questionamento à letalidade do vírus da Covid-19) e por desrespeitar as autoridade e instituições Ainda assim, o líder da extrema direita brasileira continua sentado na cadeira de presidente e mantém significativo apoio de uma parte dos que o elegeram em 2018, em que pese o difícil contexto vivido pelo Brasil, com o alto número de brasileiros mortos pelo novo corononavírus, desemprego, inflação crescente e crises diversas, como ambiental e hídrica.
A vitória em 2018 com mais de 57 milhões de votos e sua persistência no poder ao longo desse período mesmo depois da postura negacionista que contribuiu para a morte de mais de meio milhão de brasileiros na pandemia de Covid-19 e lhe rendeu a alcunha de “genocida”-, sugere que a representação do ex-capitão com um sujeito que age sem qualquer planejamento, construída pelos meios de comunicação e por analistas políticos, não esteja totalmente correta. Apenas recentemente, após diversos acontecimentos polêmicos envolvendo seu governo, começa a se formar um consenso de que seu comportamento controverso e provocador, mais do que a expressão de uma irracionalidade, teria uma função estratégica: desviar a atenção da mídia e da população de temas relevantes, funcionando como “cortina de fumaça” para as diversas crises enfrentadas pelo seu governo (Mendonça, 2021; Carvalho, 2020).
A hipótese que norteia esse artigo é a de que, para além do crescimento do populismo em nível mundial e nacional nos últimos tempos e do desgaste natural do Partido dos Trabalhadores (PT), após mais de treze anos no comando do Brasil, é possível que a vitória de Bolsonaro também se deva às estratégias que ele utilizou (e continua utilizando) para sugerir uma aparente atitude irracional e errática. Muito antes de serem identificadas as suas “cortinas de fumaça”, Bolsonaro e seus apoiadores já atuavam de maneira planejada para ampliar seu poder político e utilizavam o contexto nacional para realizar tal planejamento. Um conjunto de pesquisas recentes têm aportado importantes elementos nesse sentido, ao atentar, entre outros aspectos, para a campanha permanente desenvolvida por Jair Bolsonaro mesmo antes da eleição presidencial de 2018 (Joathan & Rebouças, 2020), a transformação ou persistência de seu discurso e sua agenda política em sua trajetória enquanto deputado, candidato à Presidência e presidente da República (Cioccari & Persichetti, 2019), o uso intensivo que fez de propaganda computacional, a hipermediação da comunicação política em ambiente eleitoral e os impactos para a democracia (Ituassu et. al., 2019).
O presente trabalho soma-se a esses esforços por observar, no percurso e na atuação de Bolsonaro, pistas para refletir e entender sua ascensão à Presidência da República. Acreditamos que analisar sua trajetória em direção à presidência pode ser útil para compreendermos melhor esse fenômeno, porque a distância no tempo nos permite um olhar mais apurado e menos emocional sobre esse ator político e suas ações, o que não tem ocorrido com frequência em análises de artigos e livros publicados sobre esse assunto (Carvalho, 2021; Mendonça, 2020; Nobre, 2020; Moura & Corbellini, 2019). Tal como bem assinalou Marcos Nobre no seu livro Ponto Final (2020), chamar Bolsonaro de burro ou de louco (ou os dois juntos) não ajuda a entender o que vem acontecendo no Brasil nesses últimos anos nem o que virá nos próximos, caso ele permaneça no poder após 2022.
Para verificar essa hipótese, que ainda tem uma aceitação tímida, mas, cada vez mais tem recebido adesão entre teóricos e comentaristas políticos, escolhemos analisar alguns acontecimentos relacionadas à sua trajetória, que acreditamos terem contribuído para seu sucesso em 2018. Tal análise tem o objetivo de refletir sobre a pertinência da ideia aqui defendida, usando para isso conceitos operadores adequados.
O artigo se constitui em três seções. Na primeira, discutimos como o contexto de ascensão do populismo no mundo e a operação Lava Jato realizada no Brasil a partir de 2014 contribuíram para a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Em seguida, apresentamos os conceitos operadores que utilizamos para refletir sobre as estratégias e o crescimento do poder do ex-capitão ao longo da sua trajetória política. Dentre eles, destacamos as noções de verdade e discurso em Foucault (2014) e de político em Laclau e Mouffe (2015, 2019), além dos conceitos de imagem pública desenvolvido por Wilson Gomes e enquadramento, baseado na abordagem de Erving Goffman (2012). É importante destacar que, apesar de utilizarmos a ideia de Laclau e Mouffe de que o social é politicamente construído e, portanto, tem grande centralidade na construção da lógica social (2015), não partilhamos da ideia defendida por esses autores de que o populismo não apenas pode ser uma forma legítima de ação política como seria a melhor estratégia para renovar e expandir a democracia (Mouffe, 2019). Para refletir sobre esse tema, aderimos à visão consensual que se estabeleceu nos últimos anos de que o populismo se constitui em uma grande ameaça à sobrevivência da democracia (Albuquerque, 2021).
Na terceira seção, analisamos os acontecimentos que selecionamos para a reflexão, apresentando uma síntese das estratégias mais relevantes utilizadas por Bolsonaro para ampliar e diversificar sua base de apoio social. Nessa parte, destacamos como ele se aproveitou do contexto político antipetista, o qual foi reforçado por ações da Operação Lava Jato, para convencer seus eleitores de que poderia resolver os principais problemas do Brasil. Também tratamos da importância do uso das redes sociais para divulgar sua imagem e ideias, acirrando assim a polarização política. Por fim, discutimos a forma como Bolsonaro utilizou o propagado atentado contra a sua vida alguns meses antes da eleição para legitimar a sua recusa a ir aos debates com os outros candidatos.
Ascensão do populismo no Brasil e a Lava Jato
Fosse outro o contexto histórico, talvez o militar reformado Jair Bolsonaro não tivesse chances reais de ser eleito presidente, como pareceu à maioria dos pesquisadores (e a ele próprio) quando decidiu-se candidatar à presidência ainda no início de 2015 (Oyama, 2020). Naquele momento, a economia mundial ainda se recuperava da crise de 2008 e havia uma sensação generalizada de pessimismo, agravada pelas guerras no Oriente Médio, o crescimento das migrações e dos refugiados na Europa, além de uma falta da confiança na classe política em todo mundo ocidental.
Como consequência, em muitos países da Europa e nos Estados Unidos, houve um deslocamento relevante de eleitores em direção a partidos com fortes programas anti-imigrantes, anti-refugiados e anti-islâmicos (Tormey, 2019), o que facilitou o surgimento de diversos líderes populistas autoritários como Donald Trump (EUA), Vladimir Putin (Rússia), Viktor Orbán (Hungria), Jaroslaw Kaczynski (Polônia), Erdogan (Turquia) e Rodrigo Duterte (Filipinas) (Fassini, 2019; Morelock; Narita, 2019).
Esses líderes instauraram em seus países uma forma autoritária de governo, embora geralmente afirmem defender a democracia. Suas ações tendem a enfraquecer o Estado de Direito e a separação dos poderes, sem os abolir completamente, muito semelhante ao que aconteceu no Brasil, no mesmo período. Sinteticamente, essa prática política se baseava em um antagonismo social entre dois atores (povo e elite), sob a liderança de uma figura carismática (Morelock & Narita, 2019; Tormey, 2019; Finchelstein, 2019).
O gráfico abaixo mostra como se alastrava pelo mundo o desencanto com a democracia naquele momento histórico segundo Abranches, a mediana da insatisfação com o funcionamento da democracia havia aumentado 19%, entre 2017 e 2018.
Outro aspecto que o Brasil partilhou com essas nações, além da crise econômica, foi uma grande insatisfação da população com o que se denominou “velha política”. Nesse contexto, “velha política” era expressão que já há vários anos vinha sendo sistematicamente acionada, a cada novo período eleitoral, para se referir à atitude dos políticos que utilizam seus cargos visando favorecer os próprios interesses, em detrimento do benefício coletivo. Tal percepção foi reforçada no Brasil a partir das ações da Operação Lava Jato, um conjunto de ações judiciais anticorrupção com um enorme impacto na vida política brasileira (Netto, 2016). Os desdobramentos dessa operação interferiram diretamente na imagem pública de diversos atores políticos importantes, bem como no resultado das eleições de 2018 (Albuquerque, 2021), a exemplo da exclusão do ex-presidente Lula do processo eleitoral, então vencido por Jair Bolsonaro.
Iniciada em março de 2014, a Operação Lava Jato, comandada no ãmbito do Judiciário pelo juiz Sérgio Moro, realizou uma série de prisões de empresários e políticos importantes, como nunca houvera sido feito no país, dando a sensação à uma parte da sociedade brasileira de que, finalmente, os corruptos ricos seriam punidos (Netto, 2016). Tal percepção foi construída e reafirmada com intensidade pelos principais meios de comunicação nacionais que atuaram de maneira a respaldar as ações da operação e dos responsáveis por ela. Em 2015, Sérgio Moro foi escolhido Homem do Ano pela revista Istoé; um dos 100 mais influentes do país, segundo a revista Época; e A Personalidade do Ano, segundo o jornal O Globo (Leite, 2015).
Outra parte da sociedade, próxima ao espectro político de esquerda, questionou a operação Lava Jato e a lisura do juiz, denunciando que suas ações eram seletivas e tinham como objetivo enfraquecer o PT e seus líderes, de modo a retirá-lo do comando do país, (Santos, 2017, p. 181). Como veio a ser comprovado mais tarde, após Sérgio Moro aceitar ser o Ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro e, posteriormente, com a sua suspeição no processo envolvendo a condenação e prisão do ex-presidente Lula da Silva, a Lava Jato foi seletiva na investigação e condenação dos réus (Albuquerque, 2021).
Naquele momento histórico, entretanto, a operação Lava Jato e os enquadramentos veiculados na mídia contribuíram para fragilizar o poder simbólico da então presidente Dilma Rousseff, do ex-presidente Lula e do PT. As primcipais lideranças do partido passaram a ser associadas à corrupção, sobretudo através de persistente agendamento do tema pela mídia, consolidando a forte onda antipetista que se constituia principalmente a partir do escândalo do Mensalão. A prisão coercitiva do ex-presidente Lula, o impeachment da presidente Dilma Rousseff, a condenação de Lula em primeira e segunda instância, seguida da sua prisão, se tornaram escândalos de grande impacto midiático, explorados com muita intensidade pelos meios de comunicação (Santos, 2017).
Não há dúvida que esses três atores foram bastante afetados em suas imagens públicas, perdendo imenso capital simbólico (Thompson, 2002) acumulado ao longo de anos de atuação reconhecidamente relevante na sociedade brasileira. O esvaziamento do poder simbólico desses atores facilitou a cassação do mandato de Dilma, em 2016, e a prisão de Lula, em 2018. A prisão impediu que ele concorresse à eleição presidencial naquele ano, na qual despontava como franco favorito, deixando o caminho aberto para Bolsonaro e seu discurso antipetista (Albuquerque, 2021).
Sem a concorrência de Lula, e embalado pelo antipetismo construído no período e por uma indústria de fake news atualmente sob investigação do Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro se elegeu em 2018 com 55% dos votos válidos. Sua eleição confirmava a tendência mundial de emergência de governos populistas de direita em diversos países do mundo, dando início a uma gestão autoritária que desde o primeiro dia procurou enfraquecer o Estado de Direito e a separação dos poderes (Matos, 2019).
A ordem do discurso
Ainda que os principais meios de comunicação tradicionais enunciem sua neutralidade e a verdade sobre os acontecimentos que narram, tal posicionamento tem sido há anos refutado por evidências empíricas da pesquisa da área. Epistemologicamente falando, se, por um lado, não compartilhamos da pressuposição positivista de que é possível ao sujeito separar-se do objeto para realizar uma análise neutra da realidade, também não chegamos ao extremo de afirmar, como Nietzsche, que existem apenas interpretações. Achamos mais adequado considerar que o acesso do sujeito ao objeto só é possível por meio da linguagem, o que torna impossível sustentar qualquer tipo de metafísica (platônica, cristã ou científica).
Afirmar que não há verdades universais não significa dizer que não existem consensos e discursos que são percebidos como verdadeiros por um grupo social. Tal como afirma Michel Foucault (2014), os discursos “verdadeiros” são aqueles que venceram a disputa na arena discursiva e formam a ordem do discurso, responsável por determinar quais discursos estão aptos a serem considerados legítimos e quais não devem ser considerados válidos para entrar na arena discursiva (Foucault, 2014).
Na mesma direção de Foucault, Ernesto Laclau e Chantall Mouffe transferem essas noções para a política. Segundo esses autores, toda sociedade é politicamente constituída e se baseia em uma ordem que determina o que é legítimo e o que não é. Nessa perspectiva, não há decisão política ou ordem estabelecida capaz de ocupar permanentemente o lugar da ordem, sendo esta precária e contingente. O estabelecimento da ordem pressupõe alguma forma de exclusão que, entretanto, não seria definitiva porque as possibilidades preteridas na formação da ordem dominante podem vir a ser reativadas, já que essa ordem que organiza o mundo social, longe de ser estável, é uma articulação temporária e precária (Mouffe, 2015).
Um aspecto importante dessa perspectiva escolhida é que a vitória de um discurso na arena discursiva não garante que haverá um consenso homogêneo e pleno sobre ele. Segundo esse entendimento da política, nos sistemas democráticos os grupos derrotados não estarão excluídos da disputa pela definição das verdades que formam o consenso legitimado pela ordem do discurso; eles continuarão tentando impor suas versões na arena política e discursiva. Para alcançarem seus objetivos, usarão estratégias, entre elas, a promoção de alianças com outros grupos cujos discursos também foram derrotados (Mouffe, 2015).
Essas alianças podem ser facilitadas pelo fato de que os processos de identificação, em uma sociedade, tendem a ser indeterminados e instáveis (Mouffe, 2015). Como se verá adiante, no Brasil de 2018, a aproximação de agentes tão diferentes como os conservadores e os neoliberais foi facilitada pela criação de uma identidade entre eles: o antipetismo.
A construção da imagem pública
Uma grande parte do sentimento antipetista foi consequência da destruição e reconfiguração da imagem pública dos principais líderes do PT no contexto da Lava Jato. A intensa cobertura da mídia aos chamados Mensalão, Petrolão e à Operação Lava Jato, ações de investigações e processos judiciais nos quais esses atores políticos foram incluídos como réus, contribuíram diretamente para o esvaziamento do capital simbólico acumulado ao longo dos anos, colaborando decisivamente para o fortalecimento de um sentimento antipetista na sociedade brasileira (Miguel, 2018).
A imagem pública de um ator político pode ser compreendia como “um complexo de informações, noções, conceitos, partilhado por uma coletividade qualquer, e que o caracterizam” (Gomes, 2004, p. 254). Conforme o autor, não se trata de algo fixo ou definitivo, mas algo que pode se modificar a partir dos posicionamentos e das relações dessa figura pública com outros atores. Como destacam Lima e Simões (2017, p. 3), a imagem pública de um agente social - seja um partido, seja um sujeito - é construída por uma associação de representações que emergem em diferentes discursos, entre eles os midiáticos. Ou seja, ela é formada por um conjunto de enquadramentos que, ao serem repetidos e aceitos por parte do grupo social a que pertencem, ganham adesão e estabilidade, sendo incorporados à ordem do discurso (Foucault, 2014). Essa imagem pública pode atribuir um grande capital simbólico ao sujeito e é um recurso fundamental no jogo político.
Tal como enfatiza Thompson (2002), o capital simbólico tende a exigir muito tempo para ser construído, mas pode ser destruído em um curto espaço de tempo por um escândalo midiático. Ao longo dos anos, Lula e o PT construíram um robusto capital simbólico associando sua imagem à ideia de justiça e lisura, “combatendo os vícios e os arcaísmos do patrimonialismo nacional” (Singer, 2012, p. 91) com um discurso que defendia a justiça e condenava a corrupção (Ricci, 2013). Essa postura deu grande projeção ao partido que, ao longo dos anos, se tornou o preferido dos eleitores progressistas. Até 2014, ano que marca o início da operação Lava Jato, o então deputado federal Jair Bolsonaro possuía um pequeno capital simbólico e o partido pelo qual concorria, Partido Liberal (PL), não tinha estrutura nem capital econômico relevantes. O ex-capitão do Exército era percebido por seus pares e pela imprensa como um político “do baixo clero” (Oyama, 2020; Viseu, 2019), ou seja, alguém com pouco poder político e econômico, sendo enquadrado pela cobertura jornalística como um player “excêntrico”, pelas suas posições radicais à direita, mas que não representava qualquer perigo (Nicolau, 2020). Como lembram Cioccari & Persichetti (2019, p. 36), Bolsonaro sempre apareceu na midia tradicional como um “parlamentar polêmico, agressivo, excêntrico, militar estatizante com uma pauta de costumes conservadora”; e nas mídias digitais busca trabalhar “uma imagem de quem defende os valores da família e da sociedade”.
Ao longo dos anos, ele fez uso de um discurso populista agressivo no qual convenceu “a gente de bem” (seus apoiadores) que acabaria com os corruptos, os destruidores da família e os comunistas, ou seja, aqueles que supostamente apoiavam o PT. O seu posicionamento como “inimigo” do PT contribuiu decisamente para sua vitória em 2018. Sempre que possível, ele marcava essa posição, como se pode ver no exemplo abaixo, quando, em 2017, ao final de um discurso contra a corrupção e o fisiologismo, na Câmara dos Deputados, Bolsonaro agradeceu a Lula por divulgar a ideia de que ele era um dos grandes inimigos do Partido dos Trabalhadores:
“Eu quero agradecer ao Lula que, em todos os seus movimentos tem citado o meu nome como um grande inimigo do PT. Eu fico muito orgulhoso disso, afinal de contas, sou o oposto do que o Lula é. Sou exatamente o contrário do que o PT fez e pregou até hoje” (Câmara dos Deputados, 2017).
Bolsonaro visto como o novo, autêntico e honesto
Na eleição de 2018, os partidos que dominaram a política brasileira nos últimos vinte anos (principalmente PT, PSDB e MDB) tinham lideranças citadas em escândalos de corrupção investigados pela Lava Jato. Jair Bolsonaro soube usar esse contexto a seu favor para construir sua imagem pública tentando projetar-se como sendo diferente dos outros políticos “tradicionais”, retratados como corruptos e hipócritas (Solano, 2019, p. 310). A imagem de político supostamente honesto foi reforçada com as declarações do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa (2012) e do doleiro Alberto Youssef (2015), dois extremos do espectro moral da sociedade brasileira. Barbosa, o juiz que ficou famoso por conduzir o julgamento do Mensalão, havia declarado que Bolsonaro fora o único parlamentar da base aliada que não havia se corrompido naquele escândalo, que veio a publico em 2005. Youssef, doleiro preso mais de uma vez pela Polícia Federal e personagem central no início da Operação Lava Jato, contou em delação premiada que Bolsonaro era um dos poucos parlamentares que nunca havia pego dinheiro com ele.
Enquanto o ex-capitão pregava sua honestidade, no período que antecedeu à eleição de 2018, as principais lideranças do PT eram investigadas ou condenadas por corrupção, principalmente no contexto da operação Lava Jato. Sem nenhuma contestação expressiva da mídia tradicional, da Justiça ou de outros políticos, Jair Bolsonaro acabou assumindo para um grande número de potenciais eleitores o lugar do político “novo”, no sentido de ser o contrário dos políticos tradicionais, enquadrados tradicionalmente pelos meios de comunicação como corruptos ou os praticantes da “velha política”. Ademais, Jair Bolsonaro consolida neste período uma imagem pública que, se para alguns segmentos é negativa, pois ele é enquadrado como um sujeito bruto e ignorante, para seus apoiadores essa mesma representação veiculada pelos meios de comunicação é percebida como um sinal de autênticidade, um político “raro” porque diz o que pensa, mesmo que de forma agressiva.
Enquadramentos
O conceito de enquadramento que utilizamos nesse artigo tem como referência o conceito de “frame”, desenvolvido por Goffman (2012) a partir da noção de “enquadre”, proposta por Gregory Bateson (2002). O objetivo de Goffman ao operacionalizar o conceito de enquadre no campo da sociologia foi investigar as pequenas interações cotidianas que organizam a experiência dos sujeitos no mundo. Pensar o enquadramento conforme a visada desses autores, é entendê-lo como a forma através da qual em nossas interações cotidianas acionamos quadros de sentido, ou quadros da experiência (Goffman, 2012), para definir ou interpretar uma situação ou acontecimento e poder atuar naquele contexto. Na abordagem que aqui utilizamos, o foco das análises não está na situação ou no contexto pragmático da interação, mas nas representações veiculadas pelos discursos (Mendonça & Simões, 2012). Essa forma de operacionalização do conceito de enquadramento se interessa pela análise dos discursos veiculados nas mídias, concentrando-se em compreender como os meios de comunicação enquadraram Jair Bolsonaro no período antes da eleição, bem como os sentidos e valores veiculados por esses discursos. Os enquadramentos colocados cotidianamente em circulação por meio de textos, fotografias, vídeos, entre outros produtos comunicacionais, ao serem sistematicamente reafirmados, contribuem para estabilizar representações na ordem do discurso. Mesmo que houvesse sincera intenção de uma emissora de televisão ou de um jornal diário de fazer uma cobertura isenta sobre qualquer assunto, inclusive a política brasileira, isso não seria possível. Se na mídia tradicional ainda há uma insistência em sustentar que os veículos de comunicação podem apresentar “a verdade” dos fatos, no universo acadêmico essa possibilidade está sub judice há alguns anos, como mostrado em trabalhos pioneiros como os de Gaye Tuchman (1978) e de Todd Gitlin (1980), que apontaram a impossibilidade de a notícia veiculada pelos meios de comunicação representar de forma isenta a realidade.
Tuchman e Gitlin argumentam que a notícia, antes de ser veiculada pela mídia, é enquadrada, ou seja, é submetida a diversos processos de seleção, construção e interpretação, de maneira que aquilo que é publicado não é mais do que um corte na realidade. Por essa perspectiva, o(a) jornalista não seria apenas alguém que comunica a outrem o conhecimento da realidade, mas também aquele que a produz, por meio de um enquadramento (Carvalho, 2009). Isso implica dizer que, assim como quaisquer outros atores e/ou organizações sociais, jornalistas e meios de comunicação nos quais atuam não apresentam ao leitor ou espectador a realidade sobre algo - por exemplo, o PT, Jair Bolsonaro ou qualquer outro ator político ou acontecimento. Apresentam, sim, uma representação sobre eles, uma imagem construída a partir da seleção e de recortes da realidade que, na maioria das vezes, são filtrados por interesses particulares e/ou institucionais. Apresentam, portanto, o modo como eles (agentes jornalísticos, midiáticos) definem ou interpretam aquilo que está acontecendo.
A partir do quadro teórico-conceitual antes esboçado, na sequência apresentamos e discutimos as ações praticadas por Jair Bolsonaro que o ajudaram a se projetar na política nacional.
Estratégias de Bolsonaro: agressividade e radicalismo
No início da sua carreira política, os primeiros apoiadores do ex-capitão do Exército eram militares e conservadores não religiosos que possuíam uma agenda moral interessada em “defender a família e os bons costumes” do que eles acreditavam ser ataques de grupos LGBTQIA+ e feministas (Nobre, 2020). Além desse aspecto conservador nos costumes, muitas dessas pessoas nutriam uma aversão ao comunismo ou a qualquer pauta política associada à esquerda, e identificavam o apoio do governo do PT aos governos da Venezuela, Bolívia e Cuba como uma predisposição de transformar o Brasil em algo similar (Lacerda, 2019). Completando o grupo, havia os eleitores com tendências reacionárias que consideravam as décadas de setenta e oitenta no Brasil, em pleno regime militar no país, um período de prosperidade e ausência de corrupção. Esses apoiadores do ex-capitão acusavam a esquerda de “glamourisar” o socialismo e construir uma narrativa negativa sobre a importância dos militares no Brasil. Os mais radicais defendiam a intervenção militar e a volta da ditadura como a melhor solução para viabilizar o país.
Nesse momento Bolsonaro possuía uma agenda conservadora e defendia predominantemente o direito dos militares, propondo uma política dura de combate à criminalidade que se baseava em um modelo policial “punitivista” e em uma justiça penal cada vez mais rígida. Ele também enaltecia a ditadura militar - algo que, segundo o cientista político Jairo Nicolau (2020), nem os políticos que apoiaram o regime militar ousavam fazer. Bolsonaro conseguiu a atenção da mídia, que passou a enquadrá-lo como um político polêmico (e até exótico), concedendo-lhe, paulatinamente, espaço na sua programação. No quadro abaixo, selecionamos uma série de frases ditas por Bolsonaro ao longo da sua carreira que causaram grande impacto. Muitas dessas frases foram proferidas em espaços comunicativos com significativa projeção nacional e que alcançaram grande repercussão pelo conteúdo e pela forma dura e agressiva como foram pronunciadas.
Aproximação dos grupos religiosos
Procurando ampliar sua esfera de poder político, na década de 2010, o ex-capitão passou a se dedicar com mais interesse à pauta dos costumes, que ganhou destaque no Congresso Nacional a partir do governo de Lula e se acentuou no mandato de Dilma Rousseff. Bolsonaro adaptou sua estratégia inicial, deixando de ser um deputado exclusivamente voltado aos interesses da corporação militar, para incorporar a pauta de costumes na sua agenda. Essa aproximação com os grupos religiosos foi facilitada pelas semelhanças ideológicas entre aqueles que pertenciam à base inicial e os novos eleitores pretendidos: ambos eram contra a legalização do aborto e a favor da manutenção “dos papeis tradicionais de homens e mulheres, ao combate das chamadas identidades de gênero e às orientações sexuais que não fossem cis ou hetero” (Lacerda, 2019, p. 73).
Em novembro de 2010, Bolsonaro consolidou sua imagem pública vinculada junto a esses novos interlocutores com seus esforços para impedir que um material educativo desenvolvido pelo Ministério da Educação para combater homofobia fosse distribuído nas escolas do país - à época, quem estava à frente da pasta era Fernando Haddad, do PT, seu futuro adversário no segundo turno da eleição presidencial de 2018. Segundo Bolsonaro e seus colegas de bancada no Congresso, esse material, por eles apelidado de “kit gay”, deveria ter sua distribuição proibida porque era um ataque à família tradicional (Bolsonaro, 2017). Esse confronto político e moral não ficou restrito ao Congresso, causando grande repercussão midiática e seus desenvolvimentos obrigaram o ministério da Educação, comandado por Haddad, a desistir do material pedagógico (Viseu, 2019; Passarinho, 2011). A vitória nessa polêmica aumentou a simpatia no ex-capitão por parte de eleitores que estavam insatisfeitos com a velocidade que as pautas progressistas ganhavam espaço no Congresso Nacional e fez com que o capital político de Bolsonaro aumentasse ainda mais (Messenberg, 2019).
Outra ação que impulsionou a atuação de Bolsonaro e seus colegas de Congresso foi o debate sobre a pertinência do ensino de gênero nas escolas, criticando-o. A temática de gênero fez parte da trajetória política de Bolsonaro desde que se tornou deputado federal pela primeira vez, em 1991, e ao longo de seus 27 anos como parlamentar na Cãmara. Neste período, notabilizou-se justamente por críticas e ataques ofensivos e desrespeitosos a mulheres e à comunidade LGBT+, questionando o debate nacional sobre a importância da igualdade de gênero no Brasil e rotulando-o de “ideologia de gênero” (Guazina, Leite & Santos, 2018). Confirmando sua habilidade para escolher temas polêmicos capazes de despertar interesse da população e da mídia, em 2014 o ex-capitão fez parte do grupo de parlamentares religiosos que se uniu para combater os debates sobre gênero nas escolas de todo país, durante a tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional (DIP, 2019, p. 101). Alegando que os “estudos de gênero” não passavam de “doutrinação e lavagem cerebral” (Ghiraldelli, 2019, p. 64), Bolsonaro e seus colegas conseguiram não apenas vetar essa parte do PNE, como também impulsionar o Programa Escola Sem Partido. Esse programa foi criado em 2004 pelo Procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, e pregava o fim da suposta doutrinação política e ideológica dentro de sala de aula (DIP, 2019, p. 102). O programa ganhou notoriedade em 2015, após receber o apoio da família Bolsonaro: o vereador Carlos Bolsonaro apresentou um projeto de lei redigido por Nagib na Câmara dos Vereadores enquanto o deputado estadual Flávio Bolsonaro fez o mesmo na Câmara dos Deputados. Desde então, o Escola Sem Partido apoiou muitas propostas inspiradas nas ideias do movimento em assembléias legislativas e câmaras municipais de todo o país, a maioria delas realizadas por parlamentares católicos ou evangélicos. Estima-se que até 60 projetos relacionados ao movimento projetos de lei inspirados no movimento começaram a ser debatidos em inúmeras câmaras municipais e assembléias legislativas pelo país, bem como no Congresso Nacional.
Apesar de terem sido duramente criticadas pelo Alto Comissariado para os Direitos Humanos e repudiadas por diversas organizações ligadas à educação, as ações do movimento Escola Sem Partido provocaram intenso debate na sociedade, levando à criação de um contramovimento na rede social Facebook em 2015, chamado de Professores Contra o Escola Sem Partido. Os membros desse contramovimento, eram professores da área de educação e estudantes da Universidade Federal Fluminense, se empenharam em combater as propostas do Escola sem partido, denunciando assédio moral em ambiente escolar e criando análises e reflexões sobre esse assunto1. Depois de beneficiar-se dessa polêmica para ser eleito, Bolsonaro retirou seu apoio político ao movimento em 18 de julho de 2019, ocasião em que Miguel Nagib decidiu encerrar o Escola sem Partido.
Aproximação dos liberais
Depois que Jair Bolsonaro decidiu ser candidato à presidência da República, no início de 2015, muitos acontecimentos marcaram o contexto social e político do país, sendo um dos mais significativos a prisão de Lula e seu impedimento para se candidatar a presidente, em 2018. O vácuo político deixado pela ausência do candidato do PT, que liderava as pesquisas de intenção de voto naquela época, ajudou a tornar real a possibilidade do ex-capitão se tornar presidente. Diante desse novo contexto, Bolsonaro buscou novos apoiadores, pois sabia que se contasse apenas com o seu “núcleo duro” conservador - algo em torno de 15% do eleitorado brasileiro, naquele momento - seria difícil alcançar a vitória. Ele investiu nos insatisfeitos com as políticas econômicas defendidas pelo Partido dos Trabalhadores: aqueles que apoiavam políticas liberais como a diminuição do tamanho do Estado, a flexibilização das leis trabalhistas e as privatizações.
O primeiro passo para atrair esse segmento foi dado em meados de 2017, quando, ao declarar-se candidato ao pleito, abdicou publicamente da posição de extrema direita, procurando divulgar uma imagem menos agressiva, na qual declarava ser um político “de direita”, mas também “um democrata e amante da liberdade”. Em seguida, publicizou que estava disposto a fazer concessões, deixando de lado o seu nacionalismo, de maneira a incorporar as privatizações às suas propostas de governo (Viseu, 2019). Esses acenos não passaram despercebidos ao grupo liberal e seu interesse pela candidatura de Bolsonaro aumentou a partir de novembro de 2017, depois que Paulo Guedes foi confirmado como o futuro Ministro da Fazenda, com plenos poderes para gerir a economia. Guedes era conhecido como um economista ultraliberal que acreditava em uma política econômica baseada em privatizações e enxugamento da máquina estatal.
A inclusão de Guedes na equipe bolsonarista, além de consolidar a confiança dos liberais, resolveu um grande problema para Bolsonaro, relativo ao seu programa de governo genérico, especialmente no que dizia respeito à área econômica. Sempre que questionado sobre o futuro do país, sobre as soluções que planejava implementar, Bolsonaro respondia que a pergunta deveria ser feita ao “futuro ministro” Paulo Guedes, que seria o responsável pela economia no seu governo. Com essa postura, ele reafirmava o discurso de que acabaria com o fisiologismo, considerada uma das marcas da “velha política”, na qual os cargos mais importantes eram negociados em troca de apoio político, em vez de ficarem a cargo de técnicos capacitados. Ao mesmo tempo, desviou-se de um problema importante: sua total ignorância sobre economia.
Essa face da imagem pública de Bolsonaro, aparentemente menos radical e com tons liberais, garantiu também a aproximação de outros grupos que se sentiam inseguros para associar sua imagem à de um político conhecido por posições extremas e falas irascíveis. Dentre esses, destacam-se a cúpula das Forças Armadas, que sempre teve restrições a associar-se ao ex-capitão, assim como as principais lideranças evangélicas, que só demonstraram publicamente o apoio a sua candidatura nos últimos meses de campanha (Viseu, 2019).
O uso da internet e das bolhas de informação
No primeiro turno das eleições de 2018, Jair Bolsonaro foi o candidato que mais engajou internautas e dominou as conversas virtuais, mesmo com o seu tempo mínimo de TV (apenas 1.09% do tempo total, contra 19,2% de Fernando Haddad (PT) e 44,4% de Geraldo Alckimin (PSDB). Apesar disso, Bolsonaro liderou a disputa entre os três principais meios digitais no conjunto dos 50 dias de campanha analisados pelo site G1. Segundo essa pesquisa, o então deputado dederal conseguiu 42,9% de todo o engajamento no Facebook, 60,4% das menções no Twitter e 69,3% das buscas no Google. Há relativa documentação, tanto em registros na imprensa (Moreno & Vidigal, 2018; Klein, 2018) quanto em pesquisas da área da comunicação (Joathan & Rebouças, 2020; Ituassu et. al., 2019) indicando que o desempenho nas redes sociais e também o uso de campanha computacional (Ituassu et al, 2019) foram fundamentais para a performance eleitoral de Jair Bolsonaro.
Boa parte dos eleitores de Jair Bolsonaro foi conquistada ou fidelizada por meio das redes sociais digitais. É certo que os meios de comunicação tradicionais contribuíram decisivamente para tornar Bolsonaro conhecido, difundindo seus posicionamentos ao longo de seus 27 anos como deputado (Cioccari & Persichetti, 2019). Como salientam Prior e Araújo (2020), o discurso populista reúne determinados aspectos da lógica das mídias, a exemplo da personalização, da dramatização de acontecimentos mundiais, do emocionalismo e da espetacularização da linguagem e de eventos políticos - o que acaba por garantir a políticos populistas uma considerável cobertura midiática e uma difusão das estratégias de comunicação populista. No entanto, a comunicação digital tem sido central para a ascensão de políticos populistas e das agendas que representam (Guazina; Leite & Santos, 2021).
Assim, no caso de Bolsonaro, foram as redes sociais que garantiram a consolidação da imagem pública. Estima-se que o intenso investimento na construção de redes sociais com intenção política começou no Brasil a partir de junho de 2013, ano das manifestações de diferentes segmentos sociais em todo o Brasil e da projeção de movimentos políticos conservadores como o #VemPraRua e o Movimento Brasil Livre (MBL), posteriormente, apoiadores de Bolsonaro na eleição de 2018. Foi nesse período que seu filho, Carlos Bolsonaro, começou o trabalho de criar e supervisionar estruturas de apoio ao seu pai, provavelmente, sem pensar ainda na possibilidade de uma candidatura à presidência. Ao refletir sobre a campanha eleitoral permanente realizada por Bolsonaro em seu último mandato como deputado federal (2015-2018), Ícaro Sousa (2019) mostra que já em 14 de junho de 2013 foi criada a página pessoal do então parlamentar no Facebook, onde passou a divulgar suas opiniões, ações do mandato de deputado e críticas ao governo da então presidente Dilma Rousseff (PT). Paralelamente, indica Sousa (2019), centenas de páginas no Facebook começaram a ser criadas por admiradores de Bolsonaro, que o representavam como um mito, um exemplo de político honesto e corajoso, esperança para a política e promessa de eliminar a esquerda, principalmente o PT.
Em 2014, Jair Bolsonaro já era o deputado federal do Rio de Janeiro com o maior número de interações no Facebook, rede social na qual ele chegou na eleição de 2018 já com um posicionamento consolidado (Ituassu et. al, 2019). Durante o contexto da crise econômica e política que resultou no golpe contra Dilma Rousseff em 2016 e as ações da operação Lava Jato envolvendo sobretudo figuras do PT, a hashtag #Bolsonaro2018 ganha força em redes digitais (Joathan & Rebouças, 2020). No pleito eleitoral de 2018, a campanha bolsonarista alcançou em apenas uma única transmissão 1,3 milhão de interações e 6,6 milhões de visualizações (Ruediger & Grassi, 2018). Também fez intenso uso de interações via grupos públicos de Whatsapp, vários dos quais distribuindo desinformação de forma evidente (Ituassu et al, 2019).
A reportagem da Folha de S. Paulo de 18 de novembro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno da disputa presidencial, revelou que empresários brasileiros estavam financiando ilegalmente uma campanha a favor de Bolsonaro no Whatsapp e contra o candidato do PT, Fernando Haddad, com contratos de até R$ 12 milhões (Melo, 2018). Como destacado também por Gallego (2019), ao longo dos anos, a rede digital bolsonarista teria sido ampliada de maneira consistente, articulando movimento espontâneo e conteúdos dirigidos de acordo com uma lógica estratégica previamente traçada em torno de uma forte retórica antipetista e no discurso anticorrupção.
Tal estratégia foi fundamental para eleição de Bolsonaro, não apenas porque nem o ex-capitão e nem seu partido possuíam mais do que alguns minutos de propaganda eleitoral na televisão, mas também porque ele não tinha estrutura ou dinheiro suficiente para pagar empresas de marketing político e fazer a campanha nos meios de comunicação tradicionais. Seu orçamento e o progressivo apoio de empresários anti-PT, entretanto, permitiu a contratação de robôs que foram responsáveis pela circulação de mensagens no WhatsApp, muitas delas falsas, que levou ao engajamento de milhões de usuários e impulsionaram a campanha bolsonarista.
A ação dos bolsonaristas nas redes sociais digitais foi facilitada pela popularização da internet, que trouxe a ampliação de discussões na esfera pública, mas também propiciou a formação das chamadas “bolhas de informação” (Rocha, 2019 p. 165). Segundo Eli Pariser (2010), criador do termo, o principal problema relacionado ao fenômeno seria a aversão com que os usuários poderiam passar a tratar pontos de vista contrários ao seus. Se isso ocorresse, a arena discursiva se resumiria apenas à disputa entre dois discursos antagônicos.
Em 2018, a divisão da sociedade entre apoiadores do PT e aqueles que eram radicalmente contra esse partido era espelhada nas redes sociais. Tal como previra Parisier (2010), esses dois grupos na internet, acabaram se tornando bem coesos e refratário um ao outro. Além disso, nessas bolhas, os enquadramentos veiculados e as verdades enunciadas eram vividos como “legítimos”, contribuindo para a homogeneização das opiniões. Nesse contexto, a instabilidade e indeterminação, que é comum nas democracias, deixou de existir, surgindo uma polarização intensa em que os atores sociais deixaram de se entender como adversários para se perceberem como inimigos (Mouffe, 2015).
Na eleição de 2018 diferentes grupos sociais que estavam afastados do centro das decisões políticas há mais de treze anos entenderam que o PT era “o inimigo” a ser combatido. Essa perceção - reforçada por escândalos de corrupção envolvendo nomes importantes do partido, somadas às dificuldades da política econômica do governo Dilma e ao avanço das ações progressistas no Congresso -, ajudou na aproximação de grupos políticos distintos, como os conservadores religiosos e liberais, e na aglutinação em busca de um líder capaz de derrotar esse “inimigo comum”.
A polarização foi útil ao ex-militar especialmente depois que o apoio de parlamentares do chamado Centrão 2ao então candidado do PSDB Geraldo Alckmin (26 julho de 2018) não teve o efeito desejado e ficou claro que Bolsonaro seria o único candidato capaz de derrotar o representante do PT, Fernando Haddad. Nesse momento houve considerável migração de votos para Bolsonaro, vindo dos eleitores que não desejavam um novo governo do PT. Mesmo no segundo turno, o ex-capitão insistiu em manter essa partição social, agindo contrariamente ao que mandava a “cartilha do candidato à presidência do Brasil”. Segundo essa cartilha, o candidato deveria adotar um tom menos radical e mais conciliador no segundo turno para agregar a seu nome aqueles que não o escolheram no primeiro turno (Nicolau, 2020). Bolsonaro apostou que não precisava de mais votos do que aqueles que possuía, concentrando-se em manter coeso seu grupo de apoiadores e fazendo, para isso, intenso uso da internet e redes digitais.
Um bom exemplo de como essa estratégia foi efetiva e combatida por alguns meios de comunicação foi a capa da edição 1.027 de “Carta Capital” na qual Bolsonaro é retratado ao telefone, ao mesmo tempo que é filmado por um celular, sugerindo que está sendo produzido um vídeo a ser veiculado em outro celular. Essa figura se refere à força da dispersão das imagens produzidas com a ajuda de um aparelho celular e o poder de comunicação desse dispositivo - amplamente utilizado na campanha eleitoral, imclusive para divulgar fake news.
em um discurso de ódio e que o leitor de Bolsonaro não está consciente do que faz. O conjunto de texto e imagem da capa de “Carta Capital” sugere que Bolsonaro vencerá graças às fake news divulgadas pela sua equipe e ao seu eleitorado que estaria, naquele momento, cego pelo ódio ao PT, de maneira que não lhes seria possível realizar uma análise sóbria da realidade (Mendes, Dornelas, 2020)
Certamente, não se pode atribuir o êxito eleitoral de Jair Bolsonaro e sua permanência no poder somente aos usos que fez e faz dos novos dispositivos de comunicação, desconsiderando as condições do contexto socio-político que o levaram à Presidência, entre as quais a própria deturpação do papel de instituições centrais na democracia, inclusive da imprensa, como destacado por Albuquerque (2017). Mas a performance de Bolsonaro ilustra bem a centralidade da comunicação digital e da mobilização permanente que ela propicia nas práticas de líderes populistas em ascensão. Como apontado por Guazina (2021, p. 51), Bolsonaro tornou-se popular e bem sucedido eleitoralmente “fazendo uso massivo da comunicacação digital focada em discursos personalistas de cunho autoritário, antistablishment e anti-esquerda, e na polarização nós versus eles” , que são caracteríticas marcantes da comunicação populista.
O atentado
Durante a campanha para presidente, fazia parte da performance de Jair Bolsonaro ser levado nos ombros pelos apoiadores antes e depois dos comícios. No dia 6 de setembro de 2018, em Juiz de Fora, estado de Minas Gerais, não foi diferente. Segundo relatos divulgados pela imprensa, enquanto Bolsonaro era carregado em um evento de campanha, antes do comício, um homem armado com uma faca teria se aproximado encoberto pela multidão e desferido um golpe na barriga do ex-capitão. O rápido atendimento no hospital local teria garantido sua sobrevivência, apesar das lesões nos intestinos e do rompimento de uma veia do abdômen.
Logo após a primeira cirurgia, mesmo abatido, Bolsonaro voltou a se comunicar com os seus apoiadores por meio de um vídeo postado nas redes sociais no qual afirmava estar bem. Durante sua recuperação no hospital, continuou em contato com seus simpatizantes por meio das redes sociais digitais, reforçando o elo com eles. Quase um mês depois do atentado, finalmente recebeu alta e voltou para casa, onde permaneceu a maior parte do tempo, até as eleições, concedendo entrevistas e fazendo publicações nas redes sociais, sem participar dos tradicionais debates eleitorais com outros candidatos.
O atentado, com ampla repercussão nas mídias, causou comoção nacional, ao mesmo tempo em que despertava (e desperta) suspeitas em segmentos sociais e políticos brasileiros, que ainda hoje questionam a veracidade do atentado. Mas Bolsonaro não perdeu a chance de capitalizar o acontecimento a seu favor. Alegava ser a recomendação médica o motivo de não ir aos debates eleitorais, assim como nos anos seguintes passa a relembrar o atentado em momentos da conjuntura nacional em que sofre certos reveses políticos. A condição de vítima do referido atentado lhe deu mais uma vantagem importante, não apenas porque seu estilo abrutalhado, e sua falta de experiência nesse formato de discussão poderiam trazer danos à sua imagem pública, mas também porque historicamente esses eventos são marcados por perguntas polêmicas e de difícil resposta. Sua ausência nos debates obrigou os outros candidatos a debaterem entre si os pontos polêmicos, expondo-se mais ao desgaste de suas imagens.
Ter sobrevivido ao controverso atentado também possibilitou a Bolsonaro alimentar a narrativa, sustentada por ele e seus apoiadores no início da campanha, de que fora escolhido por Deus para realizar uma missão: livrar o Brasil do PT e da corrupção. A narrativa começou a ser construída ainda em 2014, quando foi a Israel para ser batizado, no rio Jordão, pelo pastor Everaldo, presidente do PSC, então partido de Bolsonaro. A partir do atentado essa narrativa ganhou ainda mais força, principalmente entre seus apoiadores religiosos e o amplo espectro do eleitorado brasileiro de baixa escolarização e formação política, consolidando a sua imagem para esses públicos como um político diferente, honesto, conservador e abençoado por Deus.
Conclusão
A eleição de Bolsonaro em 2018 foi um acontecimento inesperado para muitas pessoas que não avaliaram corretamente as características e potencial do candidato nem o cenário histórico daquele momento, que favorecia a ascensão de políticos com perfil conservador e populista. Nesse artigo, procuramos rever o percurso de Bolsonaro, especialmente alguns anos antes da eleição, para entender melhor porque o ex-capitão foi vitorioso em 2018, apesar de possuir um orçamento relativamente limitado, estar filiado a um partido pequeno e ter sido enquadrado por diferentes segmentos e atores importantes, entre eles a mídia tradicional, como uma pessoa intelectualmente limitada e bruta.
Seu êxito eleitoral envolve, certamente, vários fatores e condições relativas ao contexto sócio-político pré-eleição de 2018, entre as quais a própria crise da democracia e de instituições encarregadas de protegê-la. Mas as análises apresentadas por esse artigo dão indícios de que Bolsonaro e/ou seus assessores criaram diversas ações estratégicas que contribuiram decisivamente para sua eleição a presidente do Brasil. Longe de ser alguém simplório, como a mídia procurou construir sua imagem pública e muitos ainda o representam, sustentamos que Bolsonaro deve ser considerado um ator social cujas ações têm grande chance de serem premeditadas por ele ou por sua equipe, inclusive sua performance de político irracional e tosco.
Posicionamento e imagem são pilares essenciais de uma estratégia bem-sucedida para vencer uma disputa eleitoral no Brasil, como destacam Moura e Corbellini (2019). Como foi visto, Bolsonaro possuía os dois bem definidos antes mesmo de começar oficialmente a campanha para presidente. Seu discurso sofreu modulações à medida que aumentavam suas chances de vencer o pleito e, mesmo mantendo sua agressividade e comportamento reacionário nos pronunciamentos, conseguiu reunir ao seu redor segmentos sociais distintos que não se sentiam representados na política naquele período. Este é outro aspecto fundamental: para além de estratégias eleitorais e/ou de marketing, Bolsonaro não surge no vácuo: seus posicionamentos e visões de mundo dialogam com expectativas, crenças e valores de tais segmentos da sociedade, que naquele momento encontraram nele expressão e identificação. Com a ajuda da mídia tradicional, inicialmente, e depois utilizando-se das redes sociais digitais de forma estratégica, Bolsonaro teve êxito em associar sua imagem pública à de um político irascível, mas espontâneo; “novo”, no sentido de honesto, aquele que representava os interesses ou as mudanças de caráter conservador que ele encarnava, quando pregava o fim da ideologia de gênero, da violência social e do comunismo, temas relevantes aos grupos que o apoiavam. A partir do momento em que ficou evidente certa coesão desse grupo, Bolsonaro continuou sustentando a polarização da sociedade, inclusive nas redes sociais, fazendo uso do fenômeno das bolhas de informação para acirrar ao máximo a partição e radicalização.
A hegemonia do PT na condução da nação brasileira nos últimos dez anos, consolidou uma ordem do discurso com base progressista e uma agenda reformista. Entretanto, com bem salientaram Mouffe e Laclau, nos sistemas democráticos essa ordem é precária e contingente, permitindo que os grupos derrotados não sejam excluídos da disputa pela definição das verdades que formam o consenso legitimado pela ordem do discurso. No contexto brasileiro das eleições de 2018, os conservadores (religiosos e laicos) se uniram aos liberais com a intenção de substiuir a ordem discursiva vingente desde que Lula iniciou seu primeiro mandato, em 2003.
Acreditamos que o presente trabalho contribui para um melhor entendimento de como se deu a rápida ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República, trazendo outros subsídios para entender as razões da sua vitória em 2018 e um conjunto de fatores, de atores e de interesses que impulsionaram o fortalecimento do populismo de direita no Brasil. Ao fazê-lo, o artigo se apresenta como um contraponto às análises de que a ascensão de Bolsonaro ao poder deveu-se ao acaso ou à sorte ideias que simplificam demasiado e não contribuem para a compreensão do complexo processo eleitoral brasileiro, da cultura política nacional e das capacidades estratégias que Bolsonaro e/ou seus aliados vêm utilizando nos últimos anos. Entendemos que somente a partir de uma melhor compreensão sobre a trajetória e as ações desse líder populista da extrema direita e do modo como ele dialoga com valores e visões de mundo compartilhadas por parcelas da sociedade brasileira, é possível combater com mais efetividade a agenda e as práticas autoritárias que ele representa e busca concretizar.