Introdução
O objetivo deste artigo é analisar as estratégias argumentativas de Donald Trump (EUA) e de Jair Bolsonaro (Brasil), durante o período eleitoral de 2016 e 2018, respectivamente, buscando identificar elementos do populismo no discurso dos dois líderes. Nosso foco é na despolitização e nos valores mobilizados na retórica populista e sua relação com o movimento conservador atual. Nos alinhamos a Guazina (2021) que discute uma interpretação do populismo centrada na comunicação populista e na sua relação com o autoritarismo. Analisar o discurso de Bolsonaro e Trump sob a perspectiva da comunicação populista é importante devido ao uso midiático que ambos fazem nas redes sociais para se comunicar diretamente com apoiadores, além de possibilitar a identificação das estratégias e retóricas utilizadas para a manutenção de valores defendidos por esses líderes.
Apesar de estilos distintos de liderança e ideologia, Donald Trump e Jair Bolsonaro estão localizados em um espectro político próximo quando se discute o populismo (Aggio & Castro, 2019; Almeida, Ferreira, Abelin & Pereira, 2019; Chueri, 2018; Mudde & Kaltwasser, 2013; Nai, Coma & Maier, 2019; Norris & Inglehart, 2019; Souza & Penteado, 2019). O populismo, quase como senso comum, é usado para definir políticos que defendem os interesses do povo e para líderes carismáticos. No entanto, deve-se ter em mente que essas características podem ser observadas nos líderes populistas, mas com um acréscimo: a ideia de que o populismo trabalha com uma disputa político-discursiva que coloca as pessoas (puras) contra elites (corruptas) ou instituições. Considera-se também que a ideologia que permeia o populismo é fraca, justificando a agregação a outros valores, como liberalismo, nacionalismo e socialismo (Laclau, 1977; Mudde, 2004).
Argumentamos, assim, que os discursos populistas dos líderes políticos em questão, Trump e Bolsonaro, despolitizam o debate público ao naturalizar os problemas sociais e isentar a responsabilidade da esfera governamental e pública. Em vista dessa discussão, questionamos sobre as estratégias argumentativas acionadas nos discursos dos atuais presidentes dos EUA e do Brasil, na altura dos cenários eleitorais dos quais saíram vitoriosos. Nos interessa discutir os valores mobilizados nas comunicações de ambos líderes políticos, contribuindo para entendermos o movimento conservador e autoritário que acompanha essa onda populista, marcada também pela despolitização de questões progressistas, que dizem respeito a garantias de direitos de grupos minorizados.
Este artigo está organizado em quatro seções. Na primeira delas, apresentamos um percurso da literatura que nos orienta em relação ao populismo no século XXI, trazendo as principais correntes a respeito, e a questão dos valores sociais que norteiam essa discussão. E abordamos a ideia da despolitização que motiva o estudo comparativo entre os discursos de Trump e Bolsonaro. Na seção seguinte, apresentamos a metodologia empregada na realização deste estudo. A terceira parte é dedicada à descrição dos resultados e à discussão dos achados da pesquisa. Na quarta e última seção trazemos a conclusão do trabalho e apresentamos agendas futuras de pesquisa.
A onda populista do século XXI: os valores sociais e a despolitização
Uma importante consideração a ser feita sobre o populismo tem relação com sua comum vinculação à esquerda no espectro ideológico. Entrementes, não se pode fazer dessa a única associação possível. A onda populista de direita que se tem registrado nas democracias liberais ocidentais vem remodelando a cultura política. Mesmo presente nas agendas de pesquisa, não se tem um conjunto de certezas sobre os fatores que desencadeiam o populismo, tampouco seus impactos e consequências. Duas características presentes no populismo e que independem da localização no espectro ideológico são: a referência ao povo e o anti-establishment.
O populismo tem sido analisado, na teoria democrática, sob um aspecto normativo da democracia liberal e representativa (Arditi, 2004; Canovan, 1999). Em algumas abordagens, o populismo assume um caráter de ameaça à democracia (Mudde, 2010; Müller, 2016), por outra visão, admite um sentido de correção das falhas identificadas nas recentes democracias representativas (Arditi, 2004; Laclau, 2005). No prisma da teoria da modernização, os movimentos populistas são, em geral, pensados como um acontecimento antimodernista (Inglehart & Norris, 2017). Por esse ângulo, o populismo pode ser entendido como uma resposta ou uma reação aos problemas decorrentes dos níveis de desigualdade econômica (Milanovic, 2016), ou como uma “reação cultural” por estratos sociais que não acompanharam as mudanças sugeridas pela modernização, na orientação por valores liberais cosmopolitas (Norris & Inglehart, 2019). As óticas analíticas, apesar de distintas, se complementam e fornecem subsídios necessários para pensarmos os recentes movimentos populistas e suas implicações nas democracias. Convém mencionar, ainda, que o populismo pode assumir para alguns um aspecto, de fato, ideológico e para outros, pode ter uma relação mais superficial e ser usado como um estilo de comunicação (Jagers & Walgrave, 2007). “A ideologia populista reduz a democracia ao seu cerne: o princípio da soberania do povo. O populismo considera ‘governo do povo, para o povo’ literalmente e rejeita todos os freios e contrapesos à vontade popular.” (Jagers & Walgrave, 2007, p.332). Para Inglehart (1997), as mudanças de valores caminham para uma vertente pós-
-materialista, na qual questões relacionadas com a qualidade de vida e a realização profissional assumem grande importância. Esses valores se traduzem em movimentos como ambientalistas e feministas, por exemplo -, que não encontram lugar nos partidos tradicionais. Entre os materialistas, as instituições mais tradicionais da política, como os partidos, ainda são importantes atalhos cognitivos. Por outro lado, entre os pós-materialistas, a mídia ganha mais saliência; e tendem a ser mais críticos ao sistema político e mais participativos. Partidos e candidatos seguem essa mudança a partir da demanda.
A partir dos conceitos, os materialistas se aproximam dos mais tradicionais e os pós-materialistas, dos secularizados. Em lugares como a América Latina, porém, essa orientação pode não ser tão direta, pois as condições materiais básicas de grande parte da população ainda não foram conquistadas (Ribeiro, 2011). Uma possibilidade de se explicar a mudança nos valores, embora existam diferenças culturais entre as nações, é pela via econômica, ou seja, pelo desenvolvimento da economia. Assim, essas nações que passam por mudanças econômicas sentem, também, as variações no campo religioso, nas relações de trabalho, nas questões de gênero e na própria atividade política (Inglehart, 1997; Ribeiro, 2008).
No Brasil, o número de pós-materialistas vem crescendo gradualmente (mas em número menor que em outras nações mais desenvolvidas economicamente), mostrando que as pessoas, após garantirem as condições básicas e estruturantes, passam a ter condições de se preocuparem com outras questões, como a discussão e a participação mais ativa no debate político (Inglehart, 1997); os valores pós-materialistas estão relacionados a ações políticas não convencionais, como manifestações, boicotes ou ocupações (Ribeiro, 2011). Muito atrelado ao populismo está a noção conservadora de nativismo e nacionalismo, ambas características comumente relacionadas à extrema-direita. Mudde (2007, p. 16) explica o nacionalismo como:
[...] o nacionalismo foi redefinido como uma doutrina política ao invés de uma atitude [...] uma doutrina política que busca a congruência da unidade cultural e política, ou seja, a nação e o estado, respectivamente. Em outras palavras, o objetivo central do nacionalista é alcançar um estado monocultural. Como Koen Koch (1991) elaborou, um processo-chave para alcançar isso é a homogeneização interna, que garante que o estado inclua apenas pessoas de sua “própria” nação. A homogeneização interna pode ser alcançada por (uma combinação de) várias estratégias, incluindo separatismo, assimilação, expulsão e, em última instância, genocídio.
Essa nova agenda política populista assume contornos bastante conservadores. Após um período em que diversos países experimentaram líderes progressistas, as pautas ligadas à justiça e à emancipação social perdem espaço para o ultraconservadorismo moral, fundado no fundamentalismo religioso (Burity, 2018; Norris & Inglehart, 2019). Questões como aborto, porte legal de armas, processos migratórios, violência de doméstica, etc., são ressignificados e disputados na arena política em vigor. Como estratégia, muitas vezes os políticos delegam a agenda a arenas menos politizadas, a fim de onerar o Estado de sua responsabilidade com o bem-estar social. O processo de migração das demandas do governo para outras esferas pública e/ou privada envolve o processo de despolitização (Buller, Dömnez, Standring & Wood, 2019; Hay, 2007, 2014; Wood, 2016; Wood & Flinders, 2014). Esse processo pode ser entendido como uma estratégia recorrente nos discursos de líderes populistas, que naturalizam demandas para aliviar suas responsabilidades. Apesar das singularidades de cada caso, há uma aproximação quanto ao potencial despolitizante que os discursos de Trump e Bolsonaro apresentam. O processo de despolitização foi operacionalizado por Colin Hay (2007), no livro Why We Hate Politics, que identifica três diferentes tipos. A primeira despolitização, tipo 1, é caracterizada pela delegação das funções do Estado para instituições, atores sociais e mercado financeiro (como no caso das privatizações). Nesse processo, questões que antes eram responsabilidade dos governantes acabam sendo delegadas e os políticos se desresponsabilizam pelas consequências das tomadas de decisões. Seguindo esse raciocínio, o tipo 2 de despolitização diz respeito a questões antes politizadas na esfera pública, mas que não estão sujeitas a deliberação pública porque foram deslocadas para a esfera privada. A retirada ou apagamento de questões relevantes da mídia ou a recusa de pronunciamento são exemplos do Tipo 2 de despolitização. Por último, o tipo 3 mostra o deslocamento de questões do âmbito privado para o reino dos fatos. A recusa da tomada de decisões justificada em “vontades divinas” e naturalizadas são exemplos do último nível de despolitização.
Para Foster et al. (2014, p.226, tradução nossa) “a despolitização está emergindo como um dos mais, se não o mais, importante dispositivo para a compreensão contemporânea de governança através de sociedades industriais avançadas”. A literatura sobre crise democrática e ruptura cívica coloca os processos de despolitização como uma das principais características de governos autoritários. Isso ocorre porque governantes deslocam questões que antes eram sua responsabilidade - delegando-as a arenas menos politizadas, “assim políticos ficam isolados de terem que responder pelas consequências políticas que podem continuar inalteradas e pelas quais, anteriormente, teriam reivindicado e assumido a responsabilidade” (Hay, 2007, p.219, tradução nossa). Neste sentido, os processos de despolitização podem ser incitados e desencadeados por governos populistas.
Metodologia
Argumentamos, assim, que os discursos populistas dos líderes políticos em questão, Trump e Bolsonaro, despolitizam o debate público ao naturalizar os problemas sociais e isentar a responsabilidade da esfera governamental e pública. Em vista dessa discussão, questionamos sobre as estratégias argumentativas acionadas nos discursos dos atuais presidentes dos EUA e do Brasil, na altura dos cenários eleitorais dos quais saíram vitoriosos. Nos interessa discutir os valores mobilizados nas comunicações de ambos líderes políticos, contribuindo para entendermos a despolitização e o movimento conservador que acompanha essa onda populista.
Para tanto, coletamos os tweets de Donald Trump, em 2016, e Jair Bolsonaro, em 2018, durante a campanha de ambos. A opção de coleta de dados no Twitter encontra lugar na importância da plataforma como ambiente de campanha e discussão política já que ambos candidatos a utilizam para expor suas agendas e opiniões e, ainda, por apresentar menos limitações em termos de coleta se comparado a outras mídias, como o Facebook.
Para coleta, usamos a técnica de webscrapping, operacionalizada através de um driver de emulação programável, chamado de Ltweet1 (Santos, 2019). Apesar de ser uma plataforma com interface aberta2, o Twitter permite apenas a raspagem de dados simultâneos ou com o máximo de sete dias retroativos. A coleta para esse artigo foi realizada após o período cedido pela plataforma, o que implica assumirmos que o Twitter pode omitir dados durante a coleta. O script executou rotinas que simulam um usuário comum navegando em um website. Essas ferramentas se aproveitam das estruturas de marcação de linguagem (HTML) para navegar e extrair informações, o que nos possibilitou a coleta retroativa no Twitter, considerando apenas os dados visíveis no site.
Ao todo nosso corpus possui 1256 tweets. A conta oficial de Jair Bolsonaro @JairBolsonaro -, totalizou 661 tweets e compreendeu os meses de agosto, setembro e outubro de 2018. Já a conta de Donald Trump @realDonaldTrump -, totalizou 595 tweets coletados durante os meses de setembro, outubro e novembro de 2016. Realizamos uma análise qualitativa interpretativa (Yanow & Schwartz-Shea, 2015) dos tweets de Trump e Bolsonaro para identificar padrões na retórica e valores populistas que dialogam com a discussão de despolitização.
Descrição e discussão dos resultados
Na leitura dos tweets, observamos diferentes temáticas, sendo os que chamam mais atenção o processo eleitoral, caracterizado pela presença de assuntos inerentes às eleições, como prestação de contas da campanha, agendas de visitação, e tweets apenas de saudação, como bom dia e agradecimentos, em detrimento a temas que seriam mais relevantes, como propostas para saúde, educação e cultura, por exemplo. É importante ressaltar que nossa coleta é durante o período eleitoral, então, invariavelmente, todos os tweets dizem sobre a disputa à presidência, mesmo que indiretamente. Nas referências mais diretas identificamos tweets em que os presidenciáveis expõem informações que fazem parte desse processo, como agenda de campanha, o que inclui, por exemplo, debates, entrevistas e comícios, divulgação de pesquisas eleitorais, além de ataques aos opositores que não se encaixem em um tema específico. Contudo, nossos resultados indicam que tanto Bolsonaro quanto Trump pouco apresentam e discutem propostas de governo em suas contas oficiais no Twitter. Em contrapartida, a retórica comum à comunicação populista está presente de diferentes formas. Sistematizamos elementos que caracterizam a comunicação populista de Bolsonaro e Trump em quatro eixos: a) Comunicação direta; b) Ataques; c) Nacionalismo; d) Despolitização. Tais eixos estão relacionados entre si e foram separados apenas para melhor organizarmos a discussão dos resultados, uma vez que cada um deles possui aspectos específicos, embora sejam convergentes em algumas características.
a) Comunicação direta
A comunicação direta está presente na própria plataforma na qual os discursos de Bolsonaro e Trump foram analisados. O uso do Twitter para se comunicar diretamente com cidadãos, apoiadores e possíveis eleitores tem sido cada vez mais frequente entre políticos de diferentes posições no espectro político. Contudo, ao observarmos os temas e conteúdos mais frequentes publicados por Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos Estados Unidos, essa comunicação direta se torna ainda mais reforçada pela alta ocorrência de cumprimentos e agradecimentos. O que chamamos de saudação, por exemplo, foi identificado quando os presidenciáveis cumprimentaram e agradeceram seus apoiadores, como nos tweets de Bolsonaro “Muito obrigado pela linda homenagem, Waynna!” e “Nossa missão agora é unir o Brasil! Missão dada é missão cumprida! Boa noite a todos”. No caso de Trump, os agradecimentos são, principalmente, direcionados aos apoiadores nos estados por onde ele passou e saiu vitorioso nas parciais, como “Obrigado à grande multidão de apoiadores em Newtown, Pensilvânia. Saia e VOTE em 8/11/16. Vamos #MAGA!” (tradução nossa3) e “Obrigado por seu apoio Greensboro, Carolina do Norte. Próxima parada Charlotte! #MAGA” (tradução nossa4).
Os dois então candidatos à presidência se comunicam diretamente com seus apoiadores, em uma estratégia discursiva comum a líderes populistas: o personalismo. Por meio do personalismo, há um reconhecimento do poder do povo, que reconhece no seu líder populista o poder sem intermédio de partidos ou mídias tradicionais, por exemplo. Essa comunicação direta de Bolsonaro e Trump focada, sobretudo, em seus apoiadores e se colocando como representantes legítimos de um povo homogêneo (Abts & Rummens, 2007; Bangs & Marsh, 2018), de certa forma, pressupõe como certa e óbvia o que o povo deseja e, talvez, ajude a explicar a ausência de propostas concretas sobre os diferentes temas de interesse público. Afinal, os dois líderes já sabem muito bem o que o povo deseja para a nação: nos dois casos, salvar e resgatar o país, acionando, nesses casos, valores nacionalistas. Tweets como os abaixo exemplificam bem essa estratégia discursiva comuns a líderes populistas:
Se for da vontade de Deus, amanhã será o dia de nossa nova independência. Vamos derrotar o partido dos maiores escândalos de corrupção da história, do Petrolão, do Mensalão, do Foro de SP, dos inimigos da liberdade e da Constituição! Devolveremos o Brasil aos brasileiros de bem! (Jair Bolsonaro)
Obrigado Greeley, CO! Mudança REAL significa restaurar a honestidade para o governo. Nosso plano vai END govt. corrupção! (Donald Trump, tradução nossa5)
Esses dois tweets são representativos da estratégia populista de líderes que representam a vontade e a salvação do povo, que supõem também a existência de inimigos a serem enfrentados (Abts & Rummens, 2007; Solano, 2018). Os dois presidenciáveis recorrem, assim, à estratégia discursiva de reforçar uma oposição do “nós” (povo homogêneo, representado por um líder) contra “eles”, os inimigos do povo e da nação (Abts & Rummens, 2007; Bangs & Marsh, 2018).
b) Ataques
O líder, por meio da comunicação direta, também se coloca como representante do povo sem intermediários. Sem intermediários, nesse caso, também inclui as chamadas mídias tradicionais. Tanto o brasileiro quanto Trump, não só buscam essa comunicação direta com o cidadão, mas também se colocam como os detentores da verdade em contraposição à uma mídia que mente. Os ataques à mídia são diretos e explícitos, como nos tweets de Bolsonaro: “A Folha de São Paulo está praticando um desserviço à informação. Mais uma Fake News sendo desmentida, dessa vez internacional” e “O papel de boa parte da grande mídia vem sendo DESINFORMAR e ENGANAR as pessoas! É um desserviço aos brasileiros, a serviço do sistema corrupto!”. Donald Trump também ataca de maneira direta profissionais da imprensa estadunidense e os media de maneira geral, que fizeram reportagens com críticas ao então candidato, como nos exemplos: “@ JoeBowman12: @jeffzeleny apenas mais um aspirante a jornalista genérico da CNN em meio período! @CNN ainda não entendeu. Eles nunca aprenderão!” (tradução nossa6) e “A mídia e o establishment me querem tanto fora da corrida NUNCA IREI ABANDONAR A DISPUTA, NUNCA IREI ABANDONAR MEUS APOIADORES! #MAGA” (tradução nossa7). Esse último exemplo de tweet de Donald Trump é bastante representativo da retórica populista que se coloca em oposição ao establishment e fiel ao povo.
Além da mídia tradicional, opositores políticos também são constantes alvos de ataques dos dois presidenciáveis. Alinhados ao tema processo eleitoral, os ataques aos candidatos adversários foram bastante recorrente na campanha de Donald Trump, que dedicou boa parte de seus tweets para atacar a candidata democrata Hillary Clinton, como no exemplo: “Hillary Clinton não tem força ou resistência para TORNAR A AMÉRICA GRANDE NOVAMENTE (tradução nossa8) ” e “Hillary é a pessoa mais corrupta que já se candidatou à presidência dos Estados Unidos. #DrainTheSwamp” (tradução nossa9). No caso de Jair Bolsonaro, os tweets que têm como tema o processo eleitoral variaram entre divulgação (e crítica) de pesquisas de opinião, como “Instituto de pesquisa prepara terreno para possível fraude” e divulgação de participação em programas e entrevistas, como “Última live pré-segundo turno. O futuro está nas mãos dos brasileiros”. Tanto a crítica direcionada aos institutos de pesquisa quanto a divulgação das lives indicam certa oposição às mídias tradicionais e uma valorização das redes sociais, que permitem uma comunicação direta com os eleitores. Assim como Trump, Bolsonaro também fez ataques diretos ao seu opositor Fernando Haddad, como no exemplo: “Haddad diz que sou responsável pela campanha mais baixa da história. Logo ele, que é orientado por um presidiário, esconde as cores do partido, finge ser religioso, joga bíblia no lixo, esconde apoio à ditadura venezuelana e espalha um monte de porcaria mentirosa ao meu respeito”. Nesse exemplo, Bolsonaro também se comunica diretamente com o antipetismo de seus apoiadores, utilizando o termo presidiário ao se referir ao ex-presidente Luis Inácio da Silva (Lula) e também ao se colocar como defensor da religião, algo caro aos bolsonaristas.
c) Nacionalismo
Por meio do eixo nacionalismo, identificamos formatos, narrativas e discursos que contenham sintomas de práticas nacionalista. No caso de Trump e Bolsonaro, valores nacionalistas foram expressos, sobretudo, por retóricas que valorizam a liberdade, a independência, a autonomia da nação e a soberania nacional. Ao recorrerem às estratégias populistas de comunicação direta e ataques a opositores, tanto Bolsonaro quanto Trump acionam também valores sociais ligados ao nacionalismo, como união do povo, independência e soberania da nação, além de discursos vazios de valorização de Deus e de combate à corrupção. A agregação desses valores, sobretudo ao nacionalismo, não é uma surpresa. Como discutem Laclau (1977) e Mudde (2004), a ideologia que permeia o populismo é considerada fraca, justificando a agregação a outros valores, como liberalismo, nacionalismo e socialismo.
A ideia de um país que precisa de correção de rumo após a atuação de governos corruptos é comum nos discursos de Bolsonaro e Trump. Trump, inclusive, usa com frequência a hashtag #draintheswamp (no português, drenar o pântano) ao se referir a Hillary Clinton e Barack Obama, em uma clara referência ao combate à corrupção, que tem como raiz os opositores democratas, como nos tweets: “Obamacare é um desastre. Devemos REVOGAR E SUBSTITUIR. Cansado das mentiras e quer #DrainTheSwamp? Saia e VOTE em #TrumpPence16 e deixe #MAGA!” (tradução nossa10) e “ObamaCare é um desastre total. Hillary Clinton quer salvá-lo tornando-o ainda mais caro. Não funciona, vou REVOGAR E SUBSTITUIR!” (tradução nossa11).
No caso de Bolsonaro, além desse discurso de combate à corrupção para atacar o que considera os “inimigos do povo”, representados pela esquerda e governos petistas, ele acusa esses mesmos “inimigos” de dividir o povo, se colocando aquele que vai salvar a nação, unindo o povo, como nos exemplos abaixo:
Acomodados com a velha política suja, muitos duvidaram de nossa seriedade numa disputa presidencial. Hoje temos um respeitável e crescente time, cujo centro das ideias une conservadores, liberais, cristãos, ateus e outros muitos, visando um bem comum: o Brasil e nossa liberdade! Cotado para ser presidente da Comissão de Direitos Humanos em 2014, deixei claro: se escolhido, seria “daltônico”, todos teriam a mesma cor! Devemos lutar para que sejamos iguais perante a lei. Com um governo comprometido com o Brasil, não com partidos, todos terão oportunidade!
O último tweet também exemplifica bem o que abordaremos no próximo eixo, a despolitização. Ao se colocar como “daltônico”, Bolsonaro, de certa forma, retira da esfera política o enfrentamento ao racismo, além de não reconhecer a importância de levar em consideração as diferenças no acesso aos direitos na formulação de políticas públicas.
d) Despolitização
O eixo despolitização busca identificar nos tweets de Donald Trump e Jair Bolsonaro tentativas de silenciar o debate sobre questões que deveriam ser discutidas publicamente e objeto de políticas públicas, como no caso do enfrentamento ao racismo citado acima. Ou seja, são tentativas de apagar da esfera pública ou colocar na esfera privada questões de interesse público. Para identificar esse eixo nos nos tweets é preciso contextualização - ao contrário dos outros, ele dificilmente ocorre explicitamente nas falas de Trump e Bolsonaro. A despolitização se faz presente nos tweets dos dois então presidenciáveis em um aspecto comum da retórica populista de direita: a homogeneização do povo e consequente apagamento das diferenças e em posicionamentos contrários a pautas progressistas.
Posicionamentos contrários a pautas progressistas, como o enfrentamento às desigualdades raciais e de gênero não estiveram fortemente presentes nos discursos de Donald Trump no Twitter, ele não fez nenhuma menção a essas questões. A despolitização aparece de maneira indireta, exatamente na tentativa de homogeneizar o povo em um discurso que valoriza a “unificação da América”, como no exemplo: “Donald Trump: um presidente para todos os americanos” (tradução nossa12) e “A todos os americanos, eu os vejo e os ouço. Eu sou sua voz. Vote em #DrainTheSwamp comigo em 11/8” (tradução nossa13). No caso brasileiro, embora essa unificação do povo também esteja presente, é possível, de maneira contextualizada, identificar outros aspectos da despolitização. O principal deles é o enfrentamento ao que Bolsonaro e apoiadores chamam de “ideologia de gênero” e “doutrinação ideológica”, ao negarem a importância de se discutir sexualidade e violência de gênero nas escolas, por exemplo. Junto a manifestações explícitas que repudiam o que considera ser “ideologia de gênero”, Bolsonaro defende o projeto Escola Sem Partido, como nos exemplos: “O brasileiro desta vez tem a opção de escolher um Presidente que pegue FIRME CONTRA A BANDIDAGEM que apavora a população; Contra saidinha nas prisões; A favor do LIVRE MERCADO; Contra ideologia de gênero e doutrinação ideológica nas escolas; CONTRA O DESARMAMENTO” e “EDUCAÇÃO: ideologia de gênero e escola sem partido”. Por trás da ideia desses dois tweets está a intenção de retirar da esfera pública e colocar na esfera privada discussões sobre sexualidade e, consequentemente, o não endereçamento público de questões que envolvam violência de gênero, inclusive a sexual, contra a população LGBTQI+, mulheres e crianças. De maneira geral, os quatro eixos dialogam entre si e têm como ponto de interseção as características da retórica populista, sobretudo, aquelas referentes a oposição nós versus eles, que pressupõe uma união e homogeneização de um povo, representado pelo seu líder, contra inimigos comuns. Apesar de os ataques diretos e explícitos à esquerda e a grupos minorizados, por exemplo, não serem recorrentes, essa tentativa populista de homogeneizar o povo, a partir do discurso de unir a nação e de “somos todos iguais”, ignorando as diferenças é uma clara disputa política e discursiva com os defensores dos valores pós-materialistas, que vinham crescendo no país nos últimos anos. À medida que direitos e condições básicas estruturante são conquistados, as pessoas têm mais condições de lutar por mais direitos e participar mais ativamente do debate político (Inglehart, 1997), a partir de ações não convencionais, como manifestações, boicotes ou ocupações (Ribeiro, 2011, Norris & Inglehart, 2019).
Os tweets estabelecem um enfrentamento direto às pautas identitárias, que levam em consideração as desigualdades raciais e de gênero, por exemplo. É também uma forma de se colocar ao lado das pessoas que se sentem ameaçadas por essas mudanças de valores da virada pós-materialista (Norris & Inglehart, 2019). Ao mesmo tempo em que aproveita essa insatisfação de parte das pessoas, sobretudo as conservadoras, diante dessa variação, Bolsonaro também se apropria e joga, de certa forma, com os discursos pós-materialistas para refutá-los. Como nos exemplos, ao citar as diferenças entre as pessoas apenas para negá-las e diminuí-las, Bolsonaro faz um movimento para despolitizar as pautas identitárias. Ao tirar da responsabilidade do Estado o tratamento atencioso para as minorias para se chegar, de fato, às relações mais igualitárias. Segundo Vimieiro e Maia (2017, p. 16), a despolitização da esfera pública pode ser apreendida quando há “a retirada ou o apagamento de uma importante questão política do ciclo noticioso da mídia” e quando há um “enquadramento sistemático de uma opção política específica como “senso comum” (como a noção de austeridade fiscal frequentemente aparece em momentos de crise do capitalismo)”. Assim, as tentativas de apagamento das diferenças podem ser encaradas como processos de despolitização, já que tendem a naturalizar ou silenciar o debate público, o que contribui de forma negativa para a democracia.
Essa despolitização ocorre, no discurso bolsonarista, em nome de um “bem comum”, novamente recorrendo à estratégia de união do povo e homogeneização da vontade popular. Bolsonaro utiliza o conceito de bem comum para justificar as tomadas de decisões em uma tentativa de legitimação junto à esfera pública. Bem comum, neste caso, foi ressignificado e conduzindo para dentro de uma agenda conservadora, contribuindo para despolitização do Estado, ao passo que onera às responsabilidades dos governantes e atribui a resolução dos problemas políticos e sociais à esfera pública e privada.
Considerações finais
Neste artigo analisamos as estratégias argumentativas de Donald Trump (EUA) e de Jair Bolsonaro (Brasil), nas mensagens de campanha em suas contas oficiais no Twitter, nos anos de 2016 e 2018, quando foram candidatos à presidência em seus respectivos países. Nas comunicações de ambos líderes, buscamos identificar elementos do populismo tendo como foco a despolitização e os valores mobilizados na retórica populista, tendo em vista sua relação com a atual onda conservadora
Para orientar a análise, a retórica populista foi sistematizada em quatro eixos: a) Comunicação direta; b) Ataques; c) Nacionalismo; d) Despolitização. Apesar de convergirem, os eixos organizaram a discussão para que pudéssemos explorá-los a partir de suas especificidades. De forma geral, identificamos narrativas que são comuns à comunicação populista de Trump e Bolsonaro. A comunicação direta, os ataques a alvos específicos (opositores), a retórica nacionalista e a despolitização recorrentes nos discursos de ambos os presidenciáveis são indicativos de uma comunicação populista direcionada a grupos específicos da sociedade (os apoiadores incondicionais), o que se torna mais forte se observarmos a baixa ocorrência de propostas concretas do programa de governo. Tudo isso contribui também para entendermos o movimento conservador que acompanha essa guinada populista, marcada também pela despolitização de questões pautadas por grupos progressistas no que diz respeito a garantias de direitos de grupos minorizados o que não deixa de ser um aceno também aos apoiadores de Bolsonaro e Trump.
Agendas futuras de pesquisa provocam novos questionamentos em relação à continuidade de um discurso mais conservador e despolitizante por líderes políticos, sobretudo, em função dos recentes acontecimentos, como crises políticas e econômicas ocasionadas pela pandemia do novo Coronavírus.