Introdução
Durante as últimas duas décadas, o termo “populismo” converteu-se em uma das palavras-chave mais comuns, mas também ambíguas e polissémicas, entre o vocabulário dos cientistas políticos e sociais. Existem, pelo menos, quatro abordagens centrais ao populismo, como “ideologia” (Mudde and Kaltawasser, 2017), lógica/discurso (Laclau, 2005), estilo de comunicação (Jagers and Walgrave, 2007), e estratégia de mobilização (Weyland, 2001; Jansen, 2011), embora todas estejam de acordo quanto a um conjunto de características relevantes que o fenómeno apresenta. No contexto europeu, o populismo surge, habitualmente, associado a políticas e partidos xenófobos de extrema-direita ou de direita radical (Mudde, 2017). Como consequência, vemos frequentemente o termo “populismo” ser usado como sinónimo de extrema-direita, ou mesmo de extrema-direita neonazi, uma associação que ignora tanto a diversidade global dos fenómenos populistas (que na América Latina se situam, historicamente, mais à esquerda) como a paisagem política cada vez mais diversificada da própria Europa (Stavrakakis, 2017). O populismo converteu-se em uma questão proeminente do mundo ocidental e supõe-se que os meios de comunicação têm sido fundamentais para a sua omnipresença nas democracias contemporâneas. Para pesquisar elementos populistas na cobertura mediática, académicos e pesquisadores centram-se, especialmente, nos períodos eleitorais, ou no populismo mediático de tipos específicos de meios de comunicação, sobretudo, os media tablóide. Considera-se que o jornalismo de referência mantém uma relação mais estreita com o establishment político, enquanto a imprensa tablóide depende mais do público de massas e das suas visões comuns, bem como de valores informativos próximos ao discurso populista, tais como conflito, a negatividade e a ruptura (Mazzoleni 2008; Krämer, 2014).
Com efeito, neste artigo analisamos enquadramentos de notícias publicadas nos jornais portugueses, Público e Correio da Manhã, sobre a campanha do candidato populista de direita radical, André Ventura, durante o período da campanha eleitoral das Presidenciais de 2021. André Ventura é presidente do partido Chega, um partido populista de direita, nacionalista e anti-sistema, fundado em 2019. O partido conseguiu eleger um deputado nas Eleições Legislativas de 2019, tendo sido o sétimo partido mais votado, com 1,29 por cento, pouco mais de 67 mil votos.1 Porém, nas Eleições Presidenciais de 2021, vencidas pelo candidato incumbente Marcelo Rebelo de Sousa, reeleito para um segundo mandato à frente do Palácio de Belém, André Ventura alcançou um resultado mais expressivo, ultrapassando os 497 mil votos, estabelecendo-se em terceiro lugar, com 11,9 por cento dos votos, atrás de Ana Gomes, e de Marcelo Rebelo de Sousa, que obteve mais de 60 por cento dos votos.2
Em termos ideológicos, o Chega faz parte da aliança europeia Identidade e Democracia, um grupo de partidos políticos nacionalistas e de far-right3, fundado em 2014, e onde se incluem partidos nacionalistas como o La Lega, de Itália, o Partido da Liberdade, da Áustria, o Partido pela Liberdade, dos Países Baixos, a Alternativa para a Alemanha, ou o partido nacionalista e protecionista francês, Frente Nacional. O partido Chega apresenta uma divisão dicotómica da sociedade, já que o seu discurso polarizado divide simbolicamente a sociedade entre povo e elite. O partido também é conhecido por apresentar políticas de Lei & Ordem fortes, defendendo a castração química para pedófilos e o endurecimento das penas de prisão para crimes de corrupção. Sustenta, ainda, um discurso nacionalista, contra as políticas de imigração da União Europeia, e um discurso nativista, atacando determinados grupos sociais, sobretudo a comunidade cigana. O Chega estabeleceu-se, assim, como o representante português dos partidos populistas de far-right, partidos e movimentos políticos que têm crescido nas democracias liberais, especialmente em contextos de crise e erosão dessas democracias:
O CHEGA está aqui para mobilizar os muitos descontentes. Já pouca gente espera dessa oligarquia organizada em torno dos chamados ‘partidos do sistema’ que leve a cabo as reformas imprescindíveis que os portugueses reconhecem como necessárias mas às quais a oligarquia não mete ombros porque essas reformas representariam, como é evidente, o fim do seu poder. Poder moribundo, mas ainda actuante. Mas a gritante incapacidade para lidar com a crescente insegurança sentida nas grandes metrópoles, o sentimento de impunidade amplamente vigente, a desigualdade social extensiva, a carga fiscal confiscatória, constituem iniludíveis sinais de que algo está prestes a mudar. É para dar voz ao descontentamento e meter ombros a essa mudança que aqui estamos (Chega, 2021).
2. A comunicação populista
Do ponto de vista da Comunicação Política, o foco do estudo do populismo desloca-se para o modo como a ideologia do populismo é comunicada e articulada discursivamente, quer pelos atores populistas, quer pelos meios de comunicação. Neste sentido, e a partir de um ponto de vista centrado no fenómeno comunicativo, “a ênfase é colocada nas mensagens populistas” enquanto objecto de estudo, independentemente da família partidária ou da ideologia dos movimentos populistas (de Vreese et al. 2018). Com efeito, o estudo do populismo enquanto fenómeno comunicativo centra-se na delimitação de determinados enquadramentos-chave, como o anti-elitismo, a centralidade dos apelos ao povo, a retórica anti-sistema, o nacionalismo e o nativismo, ou o messianismo. Do ponto de vista discursivo, as mensagens que expressam a ideologia populista estão frequentemente associadas à utilização de um conjunto característico de elementos estilísticos do ator populista. São os estratagemas linguísticos que ajudam a construir ideias ou projetos políticos que apelam ao povo no desafio às elites ou ao establishment político. Autores como de Vreese, Esser, Aalberg, Reinemann e Stanyer (2018), ao considerarem o populismo a partir da abordagem comunicacional, identificam níveis ou graus de populismo na comunicação dos dirigentes políticos. Na perspectiva dos autores, podemos, por conseguinte, identificar “populismo completo”, “populismo exclusivo”, “populismo anti-elitismo” e “populismo vazio”.
O Populismo Completo inclui referências e apelos ao povo, anti-elitismo, e exclusão de grupos externos. O Populismo Exclusivo inclui apenas referências e apelos ao povo e a exclusão de out-groups, enquanto que o populismo anti-elitismo inclui referências e apelos ao povo e anti-elitismo. Finalmente o Populismo Vazio inclui apenas referências e apelos ao povo (de Vreese, et al. 2018, p. 426).
Por outro lado, ao enfatizar a dimensão comunicativa do populismo, é possível distinguir três atores do processo de construção da comunicação populista: 1) os partidos políticos; 2) os meios de comunicação; 3) os cidadãos - analisando como os diferentes atores se relacionam com o populismo na dimensão comunicativa. No estudo do populismo como fenómeno comunicativo, amplia-se a ênfase sobre as funções e expressões que entram em jogo na elaboração e distribuição de mensagens, os fóruns em que estas aparecem, e os seus efeitos potenciais no sistema político, mediático ou social (de Vreese et al. 2018; Hameleers and Vliegenthart, 2020). Na comunicação populista que se manifesta discursivamente, três elementos são centrais: 1) a referência ao “povo”; 2) a luta contra a elite “corrupta”, com uma possível extensão para 3) a identificação de um out-group que também deve ser combatido. Tais elementos definidores têm sido enfatizados por vários estudiosos do populismo (Mudde and Kaltwasser, 2017; Laclau, 2005; Aalberg et al., 2017; Jagers and Walgrave 2007).
3. Conceitos nucleares e definidores do populismo
A referência ao povo é a característica central, mínima e definidora, da comunicação populista. Trata-se de um “significante vazio” (Laclau, 2005), já que as pessoas podem ter significados diferentes, o povo como “soberano”, como “pessoas comuns”, ou como “nação” (Mudde and Kaltawasser, 2017, p. 22). Esta vagueza discursiva permite aos atores populistas unir públicos diversos sob um só rótulo, “o povo”, geralmente interpretado como uma entidade homogénea, “pura” e impoluta (Canovan, 1999; Mudde and Kaltawasser, 2017). Deste modo, os populistas constroem um conceito que eles próprios afirmam representar. Interpretam o povo como uma espécie de “maioria silenciada” (Taggart, 2000) e ignorada pelas elites que se encontram no exercício do poder. Neste sentido, o populismo visa devolver o poder ao povo comum que é capaz de decidir sobre o seu próprio destino. Ao fazer do povo o elemento central da tomada de decisão política, o populismo pretende expressar a vontade geral do povo. “Tendo o populismo a capacidade de enquadrar o povo de um modo que apela a diferentes eleitorados e articula as suas exigências, consegue criar uma identidade partilhada por diferentes grupos e facilitar o seu apoio a uma causa comum” (Mudde and Kaltawasser, 2017, p. 22).
Recorrendo aos conceitos “povo”, “vontade geral” e “interesse comum”, os atores populistas aludem a um conceito de política próximo da crítica do filósofo iluminista, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), ao governo representativo. Para o filósofo, este tipo de governo é encarado como uma forma aristocrática de exercício do poder, sendo que o povo é visto como uma entidade passiva que apenas é mobilizada de tempos em tempos em processos eleitorais. Os atores populistas apelam, assim, às noções de vontade geral e de auto-governo, propostas por Rousseau, para defenderem que a política deve estar nas mãos dos cidadãos, já que estes possuem a capacidade de decidir sobre os seus próprios interesses.
O populismo não é apenas uma reação contra as estruturas de poder, mas um apelo a uma autoridade reconhecida. Os populistas reclamam legitimidade com o fundamento de que falam pelo povo: ou seja, afirmam representar o soberano democrático, e não um interesse seccional como uma classe económica (Canovan, 1999, p. 4).
A construção da elite, em oposição ao povo, é o segundo elemento definidor do populismo. Refere-se à comunicação que condena explicitamente o sistema político, os detentores do poder, os titulares e proponentes do sistema existente e em mau funcionamento. O anti-elitismo e a retórica que remete para sentimentos anti-sistema, implicam a construção de uma elite, normalmente apelidada de “corrupta”, que impede a persecução dos desígnios do povo. As elites são vistas como corruptas e interessadas em si mesmas porque não colocam o povo que deveriam representar em primeiro lugar. As elites dão prioridade às suas próprias necessidades e interesses parciais, em detrimento das necessidades e demandas do povo, o que as torna incapazes de representar a maioria silenciada (Hameleers and Vliegenthart, 2020).
O aspecto determinante da distinção entre o povo e a elite é moral, já que o povo é caracterizado como uma entidade impoluta, ao contrário das elites, definidas como corruptas e interessadas nos seus próprios propósitos. Normalmente, a elite “é definida com base no poder, ou seja, inclui a maioria das pessoas que têm lugares destacados na política, na economia, nos media e nas artes” (Mudde and Kaltawasser, 2017, p. 25). Os populistas mesmo quando estão no poder, conseguem excluir-se das elites, mantendo a retórica anti-sistema e anti-elite, geralmente contra os adversários políticos e contra os meios de comunicação, mobilizando incessantemente os seus apoiantes. Um outro elemento definidor do populismo inclui a exclusão de grupos que se encontram fora da categoria “povo” e que, comummente, são interpretados como uma ameaça para o equilíbrio social. Por conseguinte, as mensagens dos líderes populistas incluem referências ao “povo puro”, apelando a valores identitários, históricos e nacionalistas. Elites corruptas, minorias problemáticas ou imigrantes, são apresentados como ameaças ao equilíbrio social (out-groups). A identificação de um out-group claro não é uma característica definidora de todos os tipos de populismo, uma vez que, dependendo do contexto, essa mobilização pode ser feita contra inimigos internos ou externos. Porém, a retórica out-group é frequentemente utilizada por populistas de esquerda, geralmente contra os inimigos “capitalistas”, e por populistas de direita, habitualmente contra imigrantes (de Vreese et. al, 2018, p. 428).
4. O Populismo e a tensão com o campo dos Media
A relação dos atores populistas com os meios de comunicação é apontada como tradicionalmente tensa (Krämer, 2014; Mazzoleni, 2003; de Vreese et al, 2018). Por um lado, os dirigentes populistas precisam do “oxigénio da publicidade” proporcionado pelo campo dos media, sobretudo, pelos meios de comunicação de massas. Por outro lado, os dirigentes populistas recebem, tendencialmente, uma cobertura crítica dos media de referência e uma cobertura favorável da imprensa popular, conforme demonstrado por Mazzoleni e Stewart (2003). De outro modo, uma das tendências da comunicação populista tem sido a de identificar os meios de comunicação hegemónicos como parte integrante da “elite corrupta”, tal como os sucessivos ataques à imprensa proferidos por Donald Trump, nos Estados Unidos da América, ou por Jair Bolsonaro, no Brasil, demonstram. Estes atores populistas ficaram conhecidos por sucessivas críticas aos meios de comunicação tradicionais, que acusam de difundir falsidades e de estar interessados na manutenção do statu quo corrupto.
A relação do campo dos media com o populismo baseia-se no pressuposto que os jornais sensacionalistas são mais receptivos à retórica e aos pontos de vista populistas, em comparação com a imprensa de referência (Mazzoleni, 2008). Acredita-se que o jornalismo de referência mantém uma relação mais próxima com o establishment, enquanto a imprensa tablóide depende mais do público de massas. Assume-se que os media tablóide dedicam mais atenção quer à visão do mundo dos cidadãos comuns, quer à retórica polémica e conflituosa dos atores populistas. Já os media de referência tendem a aderir menos aos valores do entretenimento, da dramatização e novelização, e mais à objetividade jornalística. De outro modo, estes jornais privilegiam as fontes especializadas de informação (as elites políticas, artísticas, culturais e intelectuais), em detrimento das opiniões e das experiências do cidadão comum (Esser and Umbrich, 2013).
Na relação do populismo com os meios de comunicação social, é geralmente feita uma distinção quando se considera o populismo pelos meios de comunicação social, ou o populismo mediático (populism by the media), e o populismo através dos meios de comunicação social (populism for or through the media) (Esser et al., 2017). No primeiro caso, os media participam explicitamente na construção do populismo, assumindo uma atitude crítica em relação aos detentores do poder e representando o “homem da rua”, o povo comum contra as elites políticas e económicas. Assume-se que os meios de comunicação propensos ao infotainment se empenham, de modo mais ativo, num estilo de comunicação populista. Estes meios adoptam os enquadramentos populistas de oposição entre “povo comum” e “outros”, normalmente as elites e o establishment, responsabilizados, mediante uma cobertura mais crítica, por problemas sociais. Este enquadramento foi definido como “master frame” da comunicação populista (Caiani e della Porta, 2011). Ao utilizarem este frame, os jornalistas podem definir os outros verticalmente, como as elites corruptas, ou horizontalmente, como os out-groups da sociedade, como, por exemplo, os imigrantes (Hameleers et al., 2017). No segundo caso, o populismo através dos meios de comunicação, o foco é menos nos meios de comunicação social como atores em si mesmos e mais nos conteúdos e programas que transmitem. Nesta abordagem, os atores e ideias populistas recebem uma atenção desproporcionada dos media, uma vez que a predominância na negatividade, no conflito e na dramatização, valores explorados pela comunicação populista, ressoa bem com a atual lógica dos media comerciais (Hameleers and Vliegenthart, 2020), focados mais em capturar a atenção pública da audiência como moeda de troca com os anunciantes e menos nos valores da responsabilidade social dos media.
5. Notas Metodológicas
O artigo analisa os significados atribuídos ao populismo mediante uma análise qualitativa dos enquadramentos de dois influentes jornais portugueses, Público e Correio da Manhã. O principal desafio do estudo é encontrar novas perspectivas na discussão sobre populismo e media, analisando a construção do populismo na imprensa de referência e na imprensa sensacionalista no contexto português. O seguinte estudo também é relevante porque os significados atribuídos ao populismo no debate mediático têm efeitos reais no espectro político e no sucesso dos respectivos movimentos populistas. O estudo está, deste modo, centrado, nos enquadramentos dos media portugueses na atribuição de significados ao populismo e à candidatura de André Ventura, representante da direita radical portuguesa. Referimo-nos às estratégias e técnicas retóricas presentes nas notícias através das quais o jornalismo atribui significados aos acontecimentos e fenómenos, salientando certos aspectos da realidade e desconsiderando outros (Gitlin, 1980; Entman, 1993). O termo framing surge, inicialmente, na obra de Gregory Bateson (1954), particularmente nos seus estudos sobre esquizofrenia e psicologia cognitiva. O conceito tem sido utilizado para entender a comunicação desde uma multiplicidade de abordagens, como a psicologia, a teoria discursiva, a sociologia, o jornalismo ou a comunicação política (Hallahan, 1999). Na perspectiva de Bateson, os enquadramentos fornecem ajudas aos receptores, instruções, na sua tentativa de compreender as mensagens nele incluídas (Bateson, 1972, p. 188). Recorrendo à analogia das molduras, Bateson considera que o enquadramento inclui os elementos que estão no seu interior e exclui aqueles que se encontram fora da moldura, organizando a percepção do sujeito. Após os trabalhos pioneiros de Gregory Bateson enfatizarem a natureza psicológica do enquadramento, nos anos 70 autores como Goffman relevam a sua natureza sociológica. Em Frame Analysis, o autor retoma o estudo das interacções sociais iniciado em A Apresentação do Eu na vida de todos os dias, procurando discorrer sobre o modo como os indivíduos organizam e compreendem a experiência quando estão sujeitos aos olhares uns dos outros. Para Goffman, os quadros da experiência estabelecem formas de ação através de “representações mentais” que auxiliam os indivíduos a “localizar, compreender, identificar e classificar um número infinito de acontecimentos aparentemente semelhantes” (Goffman, 1986, p. 21). Na teoria do jornalismo, é relevante o contributo de Gaye Tuchman que considera o framing como um procedimento de conversão de acontecimentos em “relatos de acontecimentos” (notícias). Para a socióloga, que se inspira nos trabalhos do Goffman, ao utilizar frames os jornalistas oferecem definições da realidade social através de ideias organizadoras que não apenas visam refletir a realidade, mas que também a constroem na medida em que atribuem sentido aos acontecimentos do mundo da vida.
Neste sentido, para analisar o discurso da imprensa acerca de um determinado tema ou assunto, faz-se necessário destacar as ideias de seleção e saliência, ideias sublinhadas quer por Tod Gitlin (2003), quer por Robert Entman (1993). Isto é, para Gitlin, frames são “padrões pré-existentes de cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, pelos quais os comunicadores (symbol handlers) organizam rotineiramente o discurso, seja ele verbal ou visual” (Gitlin, 2003, p. 7). Já Robert Entman, em “Framing: Towards the Clarification of a Fractured Paradigm” (1993), aponta pistas metodológicas para o estudo dos enquadramentos nas notícias. Nas palavras do autor, “enquadrar é selecionar certos aspectos da realidade percebida e torná-los mais salientes no texto da comunicação de tal forma a promover a definição particular de um problema, de uma interpretação causal, de uma avaliação moral, e/ou a recomendação de tratamento para o tema descrito. Enquadramentos, tipicamente, diagnosticam, avaliam e prescrevem” (Entman, 1993, p. 5), sublinha o autor. Após os trabalhos pioneiros de Tuchman, Gitlin e Entman, o estudo do enquadramento na comunicação jornalística popularizou-se e acabou por se consolidar na investigação académica. De entre um conjunto de trabalhos recentes, é importante, para o nosso estudo, realçar o contributo de de Vreese, Boomgaarden e Semetko (2011), autores que introduziram o conceito “enquadramentos de valência” para se pensar a cobertura dos media. Isto é, na perspectiva dos autores, os assuntos podem ser salientados e apresentados ao público de modo positivo ou negativo mediante enquadramentos de valência que têm efeitos concretos na percepção e nas atitudes dos indivíduos.
Com efeito, no seguinte empreendimento analítico analisamos a cobertura informativa dos jornais Público e Correio da Manhã no período oficial da campanha eleitoral para as eleições Presidenciais de 2021, justificando a nossa amostra das fontes por ambos serem os jornais diários com maior circulação em Portugal. Já a nossa amostra temporal, é constituída por edições publicadas entre o dia de véspera do início oficial da campanha eleitoral (09/01/21) e o dia seguinte às eleições (25/01/2021). No total, foram analisadas 17 edições do Público e 17 edições do Correio da Manhã.
Ao analisarmos os enquadramentos dos jornais no período eleitoral, colocamos as seguintes perguntas de investigação: p1 como é enquadrado o populismo no seu retrato mediático pela imprensa portuguesa analisada? p2 que enquadramentos do fenómeno populista são mobilizados pelos media? p3 os enquadramentos diferem tendo em conta os tipos de jornais? As nossas hipóteses preliminares de pesquisa assumem: h1) a imprensa tablóide (Correio da Manhã) é mais receptiva às mensagens populistas do que a imprensa de referência (Público), sendo mais permeável aos enquadramentos polémicos, conflituosos e dramatúrgicos, enquanto a imprensa de referência demonstra um preconceito de negatividade em relação ao populismo; h2) os media de referência tendem a aderir menos aos valores do entretenimento, da dramatização e novelização, e mais à objetividade jornalística; h3) o populismo é encarado pelo campo jornalístico como uma ameaça à democracia.
6. Análise aos enquadramentos do jornal Público
Ao analisar a cobertura do jornal Público, é possível traçar, em linhas gerais, o posicionamento do veículo informativo acerca da candidatura de André Ventura. Tal posicionamento é, desde logo, visível na edição de 10 de Janeiro, quando o jornal classifica o discurso do candidato presidencial de “populista”, com “traços de xenofobia e racismo”, um discurso que tem levado os adversários políticos de André Ventura a classificá-lo de candidato da “extrema-direita” (p. 3). Verifica-se uma associação do populismo com posições xenófobas e racistas, muito próprias dos movimentos extremistas europeus próximos à família política do partido Chega. Essa associação surge, de modo mais visível, na edição seguinte, quando o jornal faz a cobertura do comício de abertura da campanha eleitoral, que contou com a presença de Marine Le Pen, da Frente Nacional. Ao analisar o discurso de André Ventura durante o comício, o Público destaca os ataques proferidos contra a comunidade cigana, acusada de “viver à margem dos cidadãos que cumprem com os seus deveres” (11/01/21, p. 11). Efetivamente, o nativismo surge como um dos principais enquadramentos utilizados durante a cobertura informativa. Refere-se à exclusão de out-groups da população, articulando discursivamente uma divisão entre bem e mal, entre “portugueses de bem”, na terminologia do candidato do Chega, e entre aqueles que vivem à margem das leis da sociedade. O jornal sublinha a insistência de André Ventura na “ideia da “subsídiodependência de algumas minorias”, deixando em evidência outra das principais artimanhas da retórica populista, a polarização discursiva e a divisão da sociedade em grupos antagónicos. Tal enquadramento polarizado da realidade política, que na realidade se trata de uma simplificação característica do populismo, é novamente visível na edição de 19 de Janeiro, em uma reportagem sobre um comício do candidato em Leça da Palmeira, em que voltou a criticar a comunidade cigana que acusou de “viver à custa de subsídios” (Público, 19/01/21, p. 14).
Os enquadramentos do nativismo e da polarização surgem, de forma explícita, nas edições de 21 e 22 de Janeiro. Na reportagem sob o título “a chuva que abençoa o combate de Ventura na luta do bem contra o mal”, o jornalista utiliza o enquadramento da divisão da sociedade entre grupos antagónicos, que anteriormente identificámos como uma das principais características do populismo, para categorizar o discurso do líder do Chega:
Mesmo antes tinha dito que estas se tornaram nas eleições do bem contra o mal, dos portugueses de bem contra a minoria que pretende impor as suas regras, dos portugueses que trabalham e pagam impostos que sentem que há 46 anos que tudo é dado a alguns e que tudo é tirado a quem contribui para Portugal. Os de bem são os seus, os de mal são os subsídiodependentes que não querem fazer nada (21/01/21, p. 14).
O enquadramento do nativismo está de acordo com a interpretação de Mudde e Kaltawasser sobre a direita radical populista europeia, já que os autores consideram que os partidos populistas de direita radical conjugam nativismo e populismo na sua agenda económica (Mudde and Kaltwasser, 2017, p. 51). Este aspecto evidencia-se na edição seguinte no texto “Uma conversa improvável com palavras incómodas”, em que o candidato assume responsabilidades pela polarização do debate político, ao mesmo tempo que volta a criticar a comunidade cigana e a identificá-la como
out-group da sociedade portuguesa.
A comunidade cigana tem muita culpa da auto-exclusão social a que se impõe, afirma, defendendo um censo nacional sobre a população de etnia cigana, para conhecer a dimensão da comunidade, e legislação mais dura, com sanções penais, em relação ao abandono escolar e a casamentos de jovens sem idade legal para o matrimónio (Público, 22/01/21, p. 18).
Esta exclusão da comunidade cigana, que André Ventura posiciona como um “inimigo interno” dos “portugueses de bem”, é acompanhada por uma posição anti-imigração em relação às políticas da União Europeia. O candidato considera que a imigração, sobretudo da comunidade islâmica, deturpa os valores dos europeus nativos. Esta visão está de acordo com a noção de Paul Taggart de heartland, uma comunidade imaginada pelos populistas, autêntica e incorruptível, que, neste caso, é ameaçada por políticas de imigração. De acordo com André Ventura “existe um problema de matriz cultural civilizacional”, já que a Europa “tem uma matriz cristã e, se tiver mais de 80 por cento de população islâmica, deixa de a ter”, sublinha. (Público, 22/01/21, p. 18).
A ideia de heartland e o frame do nativismo surgem associados ao enquadramento do nacionalismo, isto é, a exaltação de valores e de símbolos da nação relacionados com um passado grandioso e nostálgico. As ênfases nacionalistas do populismo de André Ventura surgem nas edições de 20 de Janeiro e 21 de Janeiro, quando o jornal dá conta de duas ações de campanha junto a símbolos históricos do passado português, o túmulo do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, e a estátua de D. Nuno Álvares Pereira, militar responsável pela manutenção da independência portuguesa frente ao exército espanhol nas batalhas de Atoleiros e Aljubarrota: “Em Coimbra, na Igreja do Mosteiro de Santa Cruz, onde assistiu a meia missa, comungou e visitou o túmulo de D. Afonso Henriques” (Público, 20/01/21, p. 12) e, no dia seguinte, falou aos jornalistas após “depositar uma coroa de flores na estátua de D. Nuno Álvares Pereira, junto ao Mosteiro da Batalha” (Público, 22/01/21, p. 14).
Nas edições de 21 de Janeiro e 22 de Janeiro, o Público sublinha o messianismo do candidato do Chega, ao destacar que o candidato “apresentou-se em Leiria como salvador do país, a voz do património silencioso, dos pensionistas com 160 euros de reforma, dos empresários com negócios fechados, das famílias sem dinheiro para as despesas, dos polícias humilhados pelos bandidos (Público, 21/01/21, p. 12), o “salvador de uma pátria destruída pelos socialistas, a alvorada de que o país precisa, o sinal do céu, não se coibindo de usar um discurso evangélico (Público, 22/01/21, p. 19). De referir que Marine Le Pen, no comício da inauguração da campanha do candidato do Chega, já havia apresentado Ventura como “um grito que vem do coração, um sinal do céu”, capaz de “secar as lágrimas do povo” (Público, 11/01/21, p. 11).
Ao longo da campanha, André Ventura procurou apresentar-se como “a voz do povo”, “um sinal do céu”, conforme proferiu Marine Le Pen, um político “capaz de provocar um terramoto no sistema político português”, assumindo-se como “a salvação” de um povo traído pelo sistema político (Público, 17/01/21, p. 17). Ao longo de várias edições, o jornal critica o discurso do líder do Chega, acusado de empobrecer o debate público com uma linguagem “sem travões”, “chegando ao insulto direto a Jerónimo de Sousa (o avô bêbado), e a Marisa Matias (os lábios vermelhos e a quem todos ficaram a dever) - e que o tornaram o centro da campanha, exatamente aquilo que pretende” (Público, 17/01/21, p. 17), sublinha o jornal. Este aspecto discursivo foi contundentemente salientado por Margaret Canovan (1999), quando a autora enfatiza o tom coloquial, “ofensivo” e “politicamente incorreto” dos atores populistas, uma estratégia discursiva que aumenta a visibilidade dos populistas nos meios de comunicação. Para o Público, o candidato do Chega foi um dos vencedores das Presidenciais, já que André Ventura conseguiu afirmar o seu espectro político e aumentar a sua visibilidade, “algo que deve ter consequências na reconfiguração da direita” portuguesa (Público, 25/01/21, p. 2).
7. Análise dos enquadramentos do Jornal Correio da Manhã
Do ponto de vista da estrutura, as notícias publicadas no jornal Correio da Manhã seguem um padrão editorial bastante conhecido dos leitores portugueses. Regra geral, o veículo privilegia enquadramentos disruptivos e tende a destacar o desvio da norma, com ênfase em declarações polémicas e acontecimentos que causam ruptura, como crimes, escândalos e intrigas envolvendo figuras públicas e dirigentes políticos. Diversos autores têm enfatizado a relação dos media tablóide com os movimentos populistas, sublinhando que a lógica dos meios de comunicação mais propensos ao infotainment combina com a lógica populista, sobretudo com o enfoque no conflito, na polémica, na dramatização e na negatividade (Mazzoleni, 2008; de Vreese et al, 2018; Hameleers and Vliegenthart, 2020). Ora, durante o período analisado, verificamos a publicação de três notícias sobre André Ventura na secção Vidas, secção mais sensacionalista do jornal que se dedica à publicação de conteúdos sobre a vida privada das celebridades. No dia 9 de Janeiro, o jornal dá destaque a uma querela entre o candidato do Chega e uma figura pública, sob o título “Guerra”, em cor-de-rosa, dedicando uma página inteira à polémica. Em causa, críticas do candidato do Chega ao socialite, José Castelo Branco, através da rede social Twitter: “se eu ganhar as eleições, não te safas neste país”, escreveu o candidato presidencial. André Ventura criticou o “estilo pindérico” de José Castelo Branco, conhecida personalidade do jet set português. O jornal explora o tema ao contactar o visado, que afirmou que André Ventura é “um populista, um Trumpista em pobrezinho” (CM, 09/01/21, p. 42). Na página seguinte, é publicada outro texto sobre considerações de celebridades acerca de Ventura, a propósito do apoio de Cinha Jardim, outra celebridade do mundo da televisão, a André Ventura: “Revejome nas lutas do André” (p. 43). O mesmo enquadramento do conflito é visível na edição de 20 de Janeiro. O Correio da Manhã publica mais uma matéria na secção Vidas do jornal, desta vez a propósito das críticas da modelo, Sara Sampaio, ao candidato do Chega. Sob o título “Polémica. Modelo arrasa André Ventura”, o jornal dá destaque ao repúdio da modelo a um gesto de André Ventura, que comparou a uma saudação nazi. A peça refere que Sara Sampaio foi insultada na rede social Twitter após a publicação, apelidando os apoiantes de André Ventura de “machistas, racistas e fascistas” (CM, 20/01/21, p. 41). Na edição de 12 de Janeiro, André Ventura volta a ser protagonista do Correio da Manhã, que publica uma reportagem sobre a campanha e uma entrevista de duas páginas com o candidato. Na notícia evidencia-se o enquadramento da polarização: “o candidato presidencial do Chega, André Ventura, apelou ontem àquilo que designou por “a revolução da maioria de bem” (CM, 12/01/21, p. 24). André Ventura voltou a criticar a comunidade cigana, os out-groups, sublinhando que “os ciganos têm direitos, mas há um problema que o País não quer ver. É um problema da comunidade. Na minha perspectiva, estamos numa comunidade que, em termos de padrão, se recusa a cumprir regras do Estado de direito, como no caso do casamento com menores”, sentenciou em declarações ao jornal (p. 24). Para além da retórica nativista e polarizada, que André Ventura utiliza para dividir os “portugueses de bem” daqueles que vivem à margem das regras da sociedade, o candidato recorre ao discurso messiânico, alem de defender políticas de Lei & Ordem, como “a castração química e o aumento de penas contra a corrupção e nos crimes sexuais”:
Sou muito religioso e acredito que o que me aconteceu a mim e ao Chega na história de Portugal, desde o meu percurso de comentador até ao Parlamento, é um milagre. É contra todas as probabilidades que alguém sem meios passe do zero a conseguir um deputado e ter um crescimento que permitiu roubar o governo nos Açores. Foi um sinal de Deus (CM, 12/01/21, p. 25).
Já na notícia publicada na edição de 15 de Janeiro, acerca do comício dos candidatos Ana Gomes e André Ventura, dois enquadramentos da comunicação populista são evidenciados: o discurso anti-sistema e a retórica anti-corrupção. Pronunciandose sobre os insultos proferidos contra a candidata Ana Gomes, André Ventura defendeu-se, sublinhando que apenas “caracterizou o sistema político que temos” (frame anti-sistema). A matéria destaca, ainda, que André Ventura voltou a insistir no agravamento das penas de prisão para crimes que lesem o estado, sobretudo crimes de corrupção, A notícia salienta, ainda, a existência de uma manifestação contra o candidato do Chega, que foi recebido com a frase “fascismo nunca mais!” por um grupo de manifestantes: “André Ventura voltou ontem a defender no comício realizado no centro da cidade de Castelo Branco o agravamento das penas de prisão para crimes económicos que lesem o Estado” (CM, 15/01/21, p. 24). A cobertura do jornal Correio da Manhã enfatiza, em várias edições, os acontecimentos controversos que envolveram a campanha, sobretudo, as declarações de André Ventura sobre os seus adversários, e as manifestações conta o candidato que marcaram a campanha do líder do Chega. Assim, na edição de 16 de Janeiro, o Correio da Manhã destaca o tom jocoso que André Ventura utilizou para se referir a Marisa Matias, candidata presidencial pelo partido Bloco de Esquerda. Em um comício em Portalegre, André Ventura ridicularizou o aspecto da adversária, sublinhando os “lábios muito vermelhos que até parece de brincar”. A frase de Ventura foi interpretada por algumas figuras públicas da sociedade portuguesa, inclusive atores, músicos, atletas, mas também pela generalidade dos demais candidatos presidenciais, como uma ataque machista e misógino por parte do líder do Chega, gerando uma corrente de solidariedade nas redes sociais que o Correio da Manhã apelidou de “A Brigada do batom vermelho”, já que várias personalidades publicaram vídeos e fotografias com os lábios pintados de batom (CM, 16/01/21, p. 23). Na mesma edição, é noticiada uma ação de campanha de André Ventura junto a uma esquadra de polícias, em que o candidato se defende referindo: “queria era batom vermelho contra a corrupção e contra esquadras abandonadas” (p. 25).
Com efeito, durante as ações de campanha, várias foram as manifestações que acompanharam o candidato do Chega por todo o país. Na edição de 17 de Janeiro, o Correio da Manhã dá conta de mais uma dessas manifestações sob o título: “Dezenas protestam contra fascismo”. Na matéria, o candidato é qualificado como “candidato do partido de extrema-direita”, sendo reportado que André Ventura teve de abandonar o local onde se encontrava numa viatura que seguiu em “contramão para fugir aos manifestantes”. Na edição seguinte, o Correio da Manhã enfatiza mais protestos contra o líder do Chega, após um comício na cidade de Guimarães, onde André Ventura voltou a assumir um discurso messiânico. “Deixem-nos em paz, porque eu quero salvar Portugal”, contestou o candidato (CM, 18/01/21, p. 23).
O Correio da Manhã enfatiza, frequentemente, os acontecimentos agonísticos da campanha presidencial do líder do Chega. No dia 21 de Janeiro, o jornal noticia mais protestos desferidos contra o candidato, desta vez em um comício em Leiria. Ao ser confrontado com as manifestações, Ventura respondeu com o enquadramento da polarização social entre o “povo de bem” e os out-groups, que André Ventura, durante a campanha, apelidou de “subsídiodependentes”, numa tentativa de desqualificar as manifestações. “Se protestam é porque se habituaram a viver à sombra de esquemas que temos de acabar em Portugal. São subsídiodependentes que nos seguem pelo País” (p. 24), referiu o candidato durante o comício. No mesmo evento, Ventura associa a chuva que se fez sentir a um “sinal divino” de bênção e o enquadramento do messianismo acaba por dar título à reportagem: “chuva é sinal que estamos abençoados”, titula o jornal. No dia seguinte, e muito próximo das eleições, o Correio da Manhã dá destaque às manifestações contra a campanha de André Ventura que aconteceram na cidade de Setúbal. Sob o título “Violência física chega à campanha. André Ventura apedrejado”, o jornal dá conta de um conjunto de manifestantes que terão “arremessado pedras ao candidato do Chega” durante o comício. Todavia, Ventura não foi atingido por nenhum artefacto. O Correio da Manhã dedica uma página inteira ao tema, mostrando várias imagens da manifestação contra o líder do partido Chega, explorando o assunto com evidente alarmismo.
Na última edição analisada, publicada no dia seguinte às eleições, o Correio da Manhã destaca os 500 mil votos obtidos pelo candidato do Chega, referindo que “meio milhão de votos dão uma força inédita a um partido anti-sistema”. O jornal vislumbra perigos para a democracia ao referir que “a direita e o regime têm um problema sério por resolver” (CM, 25/01/21, p. 5). Posteriormente, o jornal destaca o discurso do candidato proferido na noite eleitoral. Sob o título “Ventura saca 500 mil votos”, o Correio da Manhã qualifica o candidato como “rosto da extrema-
-direita”, em um texto em que recorre às metáforas do xadrez, da corrida e do futebol para sublinhar “a goleada” e a “vitória” de Ventura no “campeonato nacional dos segundos” (p. 9). O jornal destaca, ainda, o messianismo do “deputado único da extrema-direita, que afirmou que Deus lhe confiou uma missão”, além de sublinhar a reconfiguração da direita política devido à “força anti-sistema” do projecto político do Chega.
8. Conclusões
Em um momento histórico em que partidos de direita radical e de extrema-direita emergiram em muitas democracias europeias, o presente trabalho procurou articular a teoria do populismo com o fenómeno comunicacional, focando-se na relação do campo dos media com a emergência do populismo de direita radical no espectro político português. O nosso trabalho pretendeu perspectivar os modos de compreensão e articulação do populismo de dois jornais portugueses, Público e Correio da Manhã, antevendo como o populismo é enquadrado pelos meios de comunicação, os tipos de enquadramentos utilizados e as diferenças existentes entre veículos informativos de referência e de infotainment. De entre os aspectos que a análise empírica evidenciou, ficou claro que, durante o período da campanha eleitoral para as Eleições Presidenciais de 2021, o jornal Correio da Manhã deu mais proeminência aos aspectos agonísticos da campanha eleitoral do candidato do Chega, como as controvérsias em que o candidato se envolveu com adversários políticos e até com celebridades, bem como as várias manifestações de rejeição a André Ventura por parte de movimentos progressistas da sociedade portuguesa. Por outro lado, o jornal Público realizou uma cobertura mais objetiva da atividade eleitoral do candidato, focada mais na agenda da campanha, nos temas propostos e nas declarações proferidas durante os comícios e menos no conflito, na novelização e dramatização dos acontecimentos que permearam a campanha eleitoral. Um outro objetivo de investigação que permeou a nossa análise relaciona-se com os enquadramentos utilizados pelos meios de comunicação nos processos de framing do populismo. Neste ponto, ao invés de partirmos de categorias de análise construídas a priori, optamos por deixar que o objeto de estudo se revelasse. Assim, de entre os enquadramentos perspectivados na análise à cobertura noticiosa dos jornais, sistematizamos os seguintes: polarização, frame anti-sistema, nacionalismo, nativismo e messianismo:
Polarização - Refere-se à divisão da sociedade em dois grupos homogéneos e antagónicos, o povo puro, que reside numa espécie de “comunidade imaginada” (heartland/motherland), e os out-groups, os inimigos do povo puro. A retórica populista é geralmente articulada como uma batalha do bem contra o mal, dos “portugueses de bem” contra grupos marginais da sociedade portuguesa, no caso da comunicação populista de André Ventura.
Frame Anti-sistema - O populismo é, essencialmente, anti-sistema e envolve sempre uma crítica ao establishment (Laclau, 2005; Mudde and Kaltawasser, 2017). Os populistas procuram legitimar-se apresentando-se como entes oriundos de um espaço não político, fora da política tradicional, constituindo-se como outsiders. Os populistas invocam com frequência sentimentos anti-establishment para criticar as instituições do modelo democrático liberal.
Nacionalismo - O frame do nacionalismo refere-se a um populismo que enfatiza as tradições, história, língua e cultura nacionais. Através deste enquadramento, o populismo é identificado como um anseio nostálgico por um passado glorioso. O frame do nacionalismo está intimamente relacionado com a ideia de “heartland” como a dimensão central do populismo (Taggart, 2000). NativismoO enquadramento do nativismo é semelhante ao enquadramento do nacionalismo, mas em vez de se identificar positivamente com a nação, o enquadramento está centrado na exclusão negativa dos “outros”. Surge estreitamente vinculado às definições de neopopulismo contemporâneo associado à direita radical, que atribui ao populismo conotações xenófobas, racistas e anti-imigração (Herkman, 2020).
Messianismo - Candidatos messiânicos são uma das essências do populismo. O discurso de natureza messiânica é utilizado como elemento de fabricação da legitimação do ator populista enquanto representante legítimo e autêntico do povo. A ideia do messianismo-político está ligada ao messianismo religioso, ao messianismo-redentor (Jesus Cristo) e ao messianismo-guerreiro (David). Consiste na crença da chegada de um grande líder que livrará o povo da opressão e das injustiças.
Importa, por fim, referir que os dois jornais qualificam André Ventura como um político populista de direita radical, vislumbrando riscos e desafios para o sistema político português relacionados com o crescimento eleitoral do dirigente do partido Chega.