Introdução
As eleições presidenciais de 24 de janeiro de 2021 constituem um acontecimento singular na história da democracia portuguesa contemporânea. Sete candidatos apresentaram-se a escrutínio, entre eles o Presidente da República (PR) em funções, duas candidatas - uma independente afeta ao Partido Socialista (PS) e outra do Bloco de Esquerda (BE) -, e outros quatro candidatos apoiados, respetivamente, pelos partidos Chega, Iniciativa Liberal (IL), Partido Comunista Português (PCP) e Partido Reagir, Incluir e Reciclar (RIR).
O período de campanha oficial, iniciado a 10 de janeiro, coincidiu com o pico da terceira vaga de infeções por Covid-19 no país, o que determinou a declaração de um novo estado de emergência, a 15 de janeiro. Estas circunstâncias influenciaram não só as formas de organizar a campanha como a substância e o tom dos discursos dos/as candidatos/as. Ao mesmo tempo, o novo cenário pandémico colocou desafios inusitados à realização deste ato democrático e subverteu as habituais formas de comunicação e de “fazer política”. Com a mobilidade e os contactos pessoais reduzidos ao mínimo salvo exceções onde comícios, jantares e almoços se tornaram “manifestos ideológicos” -, os/as candidatos/as tiveram de inovar e criar factos e acontecimentos, com vista a adquirir visibilidade nos media e nas redes sociais. O contexto favoreceu a fermentação de discursos de cariz populista e a radicalização do debate político, não só entre os diversos candidatos, mas, também, na virulência dos ataques ao PR em exercício e às decisões do Governo.
O rótulo populista é quase sempre utilizado para descrever um leque vasto de ações, discursos, indivíduos, partidos e movimentos, da esquerda à direita, que estruturam a sua estratégia política em torno de uma conceção dualista e simplificadora da realidade, baseada em juízos e dicotomias fáceis, com vista a dividir a sociedade em grupos ou indivíduos categorizados, com base no Nós (“bons”) e nos Outros (“maus”). Pela sua amplitude e utilização, o termo aproxima-se, hoje, a um não conceito. Quer isto dizer que adquire aceções diversificadas, desde a ideologia, à lógica e estratégia política de organização, ao tipo de discurso e ao estilo de fazer política (Moffitt e Tormey, 2013). Inclui, assim, atores de muitos espectros e famílias políticas, assumindo aspetos diferenciados nos diversos contextos do Estado de Direito.
Na verdade, e por isso preocupante, é difícil discernir entre a dimensão “popular” e a “populista” de determinadas ações e discursos, na medida em que partidos e candidatos, quer democráticos, quer antissistema, participam e aceitam as regras da democracia formal, ao mesmo tempo que assimilam elementos próprios do infotainment e da comunicação populista. O contexto programático político constitui, por sua vez, uma diferença estrutural entre as mensagens de cariz “populista” e “popular”. Enquanto os atores políticos populistas se manifestam, ruidosamente, como antissistema e contra valores do Estado de Direito, nomeadamente os direitos e garantias fundamentais de determinados grupos de cidadãos; os atores políticos populares tendem a descomplexificar as mensagens, evocando valores e ações democráticas de forma emocional. As mensagens de ambos estes atores podem centrar-se em posicionamentos xenófobos, racistas, homofóbicos e sexualmente conservadores, mas os valores que presidem a esta discussão são antagónicos, bem como a perspetiva que têm relativamente aos media e à liberdade de expressão.
Ressalta-se, ainda, que as estratégias populistas no campo da economia e gestão, embora propaguem os interesses nacionais e a defesa do povo face às elites instaladas, tendem a reforçar os princípios do capitalismo neoliberal.
Neste artigo propomo-nos analisar a cobertura jornalística dos/as candidatos/as presidenciais nos jornais televisivos da noite da RTP1, SIC, TVI e CMTV, de 10 a 22 de janeiro de 2021, que corresponde à campanha eleitoral, com o objetivo de identificar os indicadores populistas nas imagens, com ênfase nos atores e nos elementos de comunicação política dos seus discursos.
O estudo empírico compreende as seguintes perguntas de investigação: 1) quais os temas abordados, preferencialmente, por cada candidato/a?; 2) qual o enquadramento visual dos/as candidatos/as nas peças televisivas, por exemplo cenários dominantes, mancha humana, símbolos e outros?; 3) que indicadores de comunicação política, verbal e não-verbal, se identificam nas peças televisivas?; 4) quais os atores e os discursos que incorporam elementos de comunicação populista?
Democracia e Populismos
Ao contrário do que se pensava há vinte anos (Teixeira, 2018), a Democracia é uma conquista quotidiana e não uma aquisição que, uma vez consolidada, advém definitiva. Capturada por interesses económicos nacionais e internacionais, a Democracia desacreditou-se no ocidente e o seu modelo, exportado para outras geografias, tem cedido perante o avanço de regimes autoritários e populistas, como mostram diversos relatórios, como os do Economist (Economist Intelligence Unit, 2020) e da Freedom House (2021). Em duas décadas, o avanço da globalização, que beneficiou indubitavelmente muitos trabalhadores no mundo, também criou em vários países ocidentais desindustrializados uma massa de cidadãos despossuídos e politicamente ressentidos. Manifestações de rua e graus elevados de abstenção em eleições são sintomas desse mal-estar social e político. Nos Estados Unidos, o bipartidarismo Democrata/ Republicano encontra-se numa encruzilhada dramática que, sendo anterior à eleição do presidente Trump, em 2016, adquiriu uma expressão inusitada no ataque às instituições democráticas após a sua derrota e assunção do presidente Biden (Levitsky e Ziblatt, 2020). Na Europa, o sistema político, dominado até meados dos anos 90 do século XX por partidos moderados e ideologicamente definidos, foi paulatinamente infiltrado por lobbies e defensores dos interesses instalados, assumindo a forma de catchall em cada eleição agendada (Krouwel, 2003). Este conceito, abrangente e impreciso, é importante para se perceber o estado da democracia no ocidente. A estratégia catchall implica flexibilidade, tanto na organização da estrutura partidária, como na incorporação/descarte de valores ideológicos, com o propósito de angariar o maior número de votantes em cada nova eleição. Ao atuarem desta forma, os partidos do centro promoveram a dispersão e a flexibilização de valores democráticos, abrindo portas aos discursos populistas.
Os partidos assumidamente populistas, e também nacionalistas, emergiram num caldo de desconfiança face aos partidos moderados de centro, situando-se, preferencialmente, à direita do espectro político. Esta tendência acentuou-se drasticamente na ressaca da crise financeira de 2007/2008, advinda do colapso da financeira americana Lehman Brothers, quando as instituições europeias optaram por uma abordagem economicista e não política à crise dos bancos europeus e das dívidas soberanas dos países do Sul da Europa (Innerarity, 2015). Com esta memória traumática, os partidos populistas declararam-se, maioritariamente, contra a União Europeia, o poder das instituições sediadas em Bruxelas, a moeda única e a perda progressiva de soberania nacional e internacional. Ao culpar as elites europeístas e globalistas por estes percalços e, paradoxalmente, ao se situar sobretudo na extrema-direita, preservam interesses afetos ao capitalismo neoliberal, sob as suas formas financeira e digital, almejando que os mesmos favoreçam os cidadãos nacionais. Na dicotomia que criam entre Nós, cidadãos de bem, e Eles, os Outros identificados como cidadãos corrompidos, leia-se as elites políticas tradicionais, os não-cidadãos e estrangeiros
-, apelam à luta anticorrupção e a posicionamentos tais como homofobia, misoginia, xenofobia e islamofobia. Neste sentido, favorecem políticas conservadoras que visam restringir os direitos das mulheres, a igualdade de género e estilos de vida não tradicionais, nomeadamente os direitos LGBT+. Defendem, ainda, maior intervenção do Estado na segurança pública, ameaçam a independência judicial, os direitos humanos, as liberdades civis e a liberdade dos media e do jornalismo, quando não sejam afetos à sua política (Casara, 2019). O viés autoritário destes movimentos (Mudde, 2016a; Mudde, 2016b) não impede que sejam pró-democráticos, mas contra a democracia liberal, pois rejeitam os direitos das minorias e pretendem questionar, ou contornar, convenções assumidas1.
Os movimentos populistas utilizam como estratégia de comunicação discursos polarizadores, com vista a moldar um certo imaginário de comunidade nacional fundado na ideia de um povo homogéneo, que partilha valores tradicionais, como a família e a religião (Norris e Inglehart, 2018). No ocidente estes movimentos apoiam-se, ainda, em fundamentalismos de diversa natureza, desde os que defendem uma ideologia anti ciência aos que aprofundam as tendências “puristas” religiosas, católicas e pentecostais. Observa-se, ainda, que há uma propensão, mesmo nos partidos e atores advindos de formações indubitavelmente democráticas, de mobilizar estilos de comunicação populista, dado o grau de mediatização das instituições políticas e os hábitos de consumo dos eleitores. Torna-se, assim, comum o recurso a discursos inflamados, assentes num estilo que privilegia o exacerbamento da emoção, o registo popular de linguagem, a gíria, a desconstrução de instituições, legislação e hierarquias, bem como do conhecimento estabelecido (Ostiguy, 2009). A expansão deste estilo político “populista” é impulsionada quer pelo ecossistema digital atual, quer pela mediatização do sentimento de se viver numa ininterrupta crise política, económica e social (Casara, 2019). Por outro lado, este estilo é assumido e manejado pelas instituições e pelos atores mediáticos e políticos em função de contextos sociais e culturais específicos (Moffitt, 2016; 2017).
A polarização da sociedade e dos discursos em torno do questionamento do Estado Democrático de Direito que adquire uma dimensão inusitada pela utilização das tecnologias de informação e comunicação é acompanhada pela crescente disponibilidade dos cidadãos em apoiar partidos e políticos autoritários e demagógicos (Mudde, 2014, 2016a). A ascensão de Donald Trump, a campanha que rodeou o Brexit (2016), as eleições presidenciais no Brasil de 2018 e nos Estados Unidos de 2020 são exemplos paradigmáticos deste processo, em que a desinformação, a atuação de empresas internacionais de trolls e especializadas na disseminação de má informação tiveram atuações determinantes.
O jornalismo e as campanhas eleitorais em pandemia
A pandemia criou uma disrupção no sistema mediático. A crise do jornalismo, declarada a partir do colapso financeiro global de 2008, em função da escassez de financiamentos às empresas, mas, também, do acelerado desenvolvimento das tecnologias, foi por meses esquecida, bem como os fatores que fizeram diminuir o número de consumidores finais e aumentar o ceticismo face à qualidade dos produtos informativos (Luengo, 2014). No espaço público atenuaram-se as críticas relativamente às empresas de media e aos seus profissionais, bem como as acusações de estarem subordinados aos grandes interesses económicos/financeiros e dependentes de poderes políticos instalados (Curran, 2010; Freedman, 2019).
Com a pandemia, nas sociedades ocidentais o jornalismo televisivo foi reconduzido ao centro da vida quotidiana. Os lockdowns sucessivos e a necessidade de obter informação mais credível face às redes sociais (Unesco, 2020) concederam um novo fôlego a este medium versátil. Como já foi constatado em outros estudos (Casero-Ripollés, 2020; Cabrera et al., 2020), a eclosão e os diversos picos da pandemia levaram os cidadãos a procurarem informação imediata e atual nas conferências de imprensa e nos boletins diários sobre a Covid-19 transmitidos na televisão e na Internet (Cunha et al., 2021).
A pandemia alterou igualmente as rotinas e os procedimentos nas redações, fazendo com que muitas das estratégias de bastidores na recolha de informação, tais como verificação de factos nas redes sociais e utilização de videochamadas para contactar fontes ou obter testemunhos, saltassem para o frontoffice da produção noticiosa. Nas televisões, os jornalistas confinados e impossibilitados de se moverem adotaram soluções in house possibilitadas pelas tecnologias digitais, abrindo espaços a formatos híbridos, de que são exemplo precisamente as videochamadas em estúdio, o crescente papel do design gráfico e as entrevistas com especialistas2. Este momento da televisão, no pico da crise pandémica, não significou o abandono de estratégias anteriores de mediatização, infotainment, enquadramentos que privilegiam o jogo e a competição entre agentes políticos, incluindo os da Saúde. A continuidade da mediatização dos eventos políticos e sociais, incluindo os sanitários, com subsequentes efeitos na descredibilização das instituições das sociedades democráticas, constitui uma das causas do crescimento dos populismos e dos autoritarismos (Aalberg et al., 2010; Ardèvol-Abreu e Zúñiga, 2017).
O processo de mediatização (Meyer, 2004; Strömbäck, 2008; Marcinkowksi e Steiner, 2014), em que os meios de comunicação adquiriram autonomia face a outras estruturas sociais, impondo, ou negociando, com aqueles procedimentos, regras, estilos, métodos ou mecanismos de atuação (Altheide, 2004; Hjarvard, 2013), está em consonância com muitas das estratégias e procedimentos de comunicação populista (Mazzoleni, 2008). Os processos de mediatização, ao expandirem-se a instituições e atores sociais, hierarquizam funções, temas e valores, promovem ritmos e estilos, formatos e géneros de produtos, dentro de uma lógica não só homogeneizadora, como valorativa. A comunicação política, de uma forma geral, tende a subordinar-se a estes princípios, incorporando orientações teóricas de marketing e publicidade, no sentido de garantir visibilidade e veicular as mensagens dos atores políticos no espaço público. É neste contexto que a comunicação política adquire um estilo popular, com vista a tornar-se apelativa aos cidadãos olhados como consumidores/audiências. As estratégias passam, fundamentalmente, por simplificar ideias e conceitos; excluir temas complexos e distantes; telenovelizar/ficcionar conflitos entre atores políticos (Mazzoleni, 2008).
Nas campanhas eleitorais, a relação entre media e política tem grande impacto, numa interação designada de push and pull strategies, em que o compromisso entre os atores políticos e os dos media, nomeadamente os jornalistas, resulta num constante jogo, em que se expõem conflitos e se promovem compromissos (Blumler e Esser, 2019) com vista a aliciar cidadãos-eleitores-audiências-consumidoras. Esta situação é tanto mais crucial quanto os atores políticos percecionam o poder que a cobertura jornalística tem de fazer ganhadores (kingmakers) ou derrotados (killer of the dreams), a partir da interpretação dos resultados das sondagens e dos comentários de jornalistas e líderes de opinião (Graber e Dunaway, 2010).
Os conflitos - entre candidatos, entre estes, os partidos e os correligionários, com os governos em exercício - constituem um tema com grande valor-notícia, explorado nas coberturas das campanhas eleitorais. Mais do que a substância da campanha, isto é, as temáticas de interesse programático, a conflitualidade é, tradicionalmente, um campo onde as lógicas políticas e mediáticas se sobrepõem, em busca de atingir objetivos específicos nos seus respetivos campos (Hepp e Krotz, 2014).
Mesmo em contexto pandémico os jornalistas não esmorecem o habitual clima de cobertura adversarial face aos partidos e aos políticos. Este comportamento adquire, sim, novas dimensões na medida em que as restrições provocadas pelo estado de emergência obrigam os jornalistas de diferentes órgãos de comunicação a partilhar informação e acessos a candidatos, diminuindo as hipóteses de originalidade do “furo jornalístico” e da “cacha”. Já os atores políticos, em função das circunstâncias adversas, reforçam, atualizam e improvisam estratégias de comunicação, com vista a sair do “confinamento político” e a criar eventos, ou melhor, pseudo-eventos, capazes de chamar a atenção dos jornalistas e de aumentar a visibilidade nos media, tendo como objetivo superar o vazio provocado pelas medidas sanitárias e a concorrência dos adversários em campanha.
No centro da tensão entre instituições e atores políticos e mediáticos está o poder de gatekeeper exercido pelos media, o grau da “visibilidade da mensagem” - verbal e visual - e a forma como esta é alinhada e editada, nos blocos televisivos, em função do valor-notícia, tendo em vista a apreensão final pelos eleitores (Harcup e O’Neill, 2016). As sondagens, ou melhor, a interpretação e a análise das sondagens, são um outro fator de controle e disputa entre os atores políticos e mediáticos, na medida em que contribuem para a perceção e declaração, antecipando o escrutínio eleitoral dos “ganhadores” e “perdedores”. Esses epítetos podem ser atribuídos, pelos media, a atores políticos e a partidos, independentemente das suas posições nas sondagens ou resultados eleitorais. Por exemplo, um pequeno partido, se fizer uma boa campanha na perspetiva dos analistas dos media, e obtiver em sondagens dois ou mais pontos percentuais, pode ser reportado como vencedor. Contrariamente, um partido ou um candidato, percecionado como bem posicionado na corrida eleitoral, que obtenha nas sondagens menor percentagem de intenções de voto, pode surgir como um perdedor. Trata-se, por conseguinte, de uma construção política analítica dos media e do jornalismo, no sentido de extrapolar vencedores e derrotados, a partir de dados voláteis recolhidos junto a uma amostra, antecipando os resultados finais das eleições. Esta tendência observa-se, também, no tratamento jornalístico das eleições presidenciais de janeiro de 2021 em Portugal.
Ressalta-se que o conflito é uma característica da democracia e constitui um fator de potencial mobilização para a cidadania e participação em eleições. Contudo, as coberturas centradas em notícias com elevado grau de conflitualidade, onde se acentuam os aspetos mais negativos, se acirram contradições entre candidaturas, se focam e instigam os insultos, em detrimento das temáticas estruturantes, constituem fatores de enfraquecimento e desqualificação das democracias (Jackson e Thorson, 2015). Processo mais distópico assume a comunicação política populista em campanhas eleitorais, uma vez que ela recorre a procedimentos, estratégias, ritmos e emoções caros aos processos de mediatização, reforçando, entre outros elementos, o emocional, o raciocínio simplista, a linguagem violenta, a manipulação de símbolos, a culpabilização indeterminada e a criação, aleatória, de “bodes expiatórios” (Stanyer et al., 2016).
É ainda de ter em conta que os jornalistas tendem a normalizar as estratégias de comunicação política populistas, não as distinguindo na sua forma e conteúdo das populares. Este processo de normalização decorre da lógica mediática de produção da notícia, onde se incluem jornalistas e comentadores que privilegiam a eficácia da mensagem e a performance dos atores políticos a partir do “potencial” de atenção suscitada nas audiências (Reinemann et al., 2019, pp. 34-50).
As presidenciais de janeiro de 2021
As eleições presidenciais de 2021 realizaram-se a 24 de janeiro, tendo a campanha eleitoral decorrido entre 10 e 22 do mesmo mês. Após um período de maior acalmia nos surtos e nos óbitos, Portugal entrou no pico da designada “terceira vaga” da pandemia, o que resultou na declaração, pelo PR, de um novo estado de emergência, a 15 de janeiro.
Sete candidatos apresentaram-se a escrutínio, cinco homens e duas mulheres. Nestas últimas está a independente Ana Gomes, afeta ao PS, ex-embaixadora de Portugal na Indonésia, que levou a cabo o processo de independência de Timor Leste (1999-2003) e foi deputada socialista no Parlamento Europeu (2004-2019); e Marisa Matias, do BE, também apoiada por este partido na corrida à presidência da República em 2016 e deputada no Parlamento Europeu desde 2009. Os cinco candidatos homens contam com o PR em exercício, Marcelo Rebelo de Sousa, que desempenhou diferentes cargos diretivos em governos e no Partido Social Democrático (PSD); André Ventura do Chega, atualmente deputado no Parlamento por este partido, antigo membro e candidato à Câmara de Loures pelo PSD (2001-2018); Tiago Mayan Gonçalves, da Iniciativa Liberal (IL), advogado e ex-presidente do Conselho de Jurisdição do seu partido; João Ferreira, do Partido Comunista Português (PCP), vereador da Câmara de Lisboa desde 2013 e ex-deputado no Parlamento Europeu; e Vitorino Silva, do RIR, ex-presidente da junta de freguesia de Rans, também candidato à presidência da República em 2016.
A campanha eleitoral contou com 21 debates nas televisões portuguesas3, que congregaram cerca de 12,5 milhões de espectadores. O debate mais visto foi entre o PR em exercício e André Ventura, em simultâneo na SIC e SIC Notícias, no dia 6 de janeiro de 2021; o segundo debate com mais audiências realizou-se nos mesmos canais, entre Ventura e a candidata do BE, Marisa Matias; em terceiro lugar, em número de espectadores, regista-se o debate entre Ana Gomes e Ventura, emitido na TVI e TVI24. Outros debates obtiveram valores em audiências superiores a um milhão de espectadores (tais como o realizado entre Marcelo Rebelo de Sousa e Ana Gomes a 9 de janeiro, na RTP1 e RTP3, bem como o que teve lugar entre Marcelo Rebelo de Sousa e João Ferreira, nos mesmos canais, a 4 de janeiro). No cômputo final é Marcelo Rebelo de Sousa o mais visionado em todos os debates e canais de televisão, e Vitorino Silva o que obtém índices de audiência inferiores.
O número de espectadores dos debates na campanha presidencial confirma a centralidade da televisão neste particular momento da pandemia em Portugal. À medida que a campanha avançava no calendário, regrediam os contactos, as deslocações pelo país, obrigando a que uma parte das ações de campanha se limitasse aos dispositivos online ou a atividades destinadas a ser emitidas pelos meios de comunicação social. Esta situação determinou a singularidade da campanha, pondo à prova a imaginação e a criatividade dos candidatos, assessores e demais staff. As sondagens apontavam Marcelo Rebelo de Sousa como o previsível ganhador, pelo que as oscilações entre as intenções de voto vão apontando para a segunda, terceira, quarta e quinta posições. Esta oscilação define a tensão e os conflitos entre os candidatos, que se congregam contra o incumbente e, simultaneamente, contra o candidato mais direto. São exemplos os confrontos entre Ana Gomes e André Ventura, ambos disputando o segundo lugar e ambicionando passar à segunda volta. Por outro lado, os conflitos entre candidatos determinam a luta no espectro ideológico e a expansão de um ideário político, como ilustram a agressividade machista de Ventura face a Marisa Matias e, em paralelo, a aliança entre Ana Gomes e Matias, no sentido de repudiar a discriminação sexual e apoiar e reforçar as lutas emancipatórias das mulheres (Martins et al., 2021). Ainda nesta perspetiva de conflito e afirmação, inclui-se o estilo de comunicação adotado pelos/as candidatos/as que, objetivando os mesmos temas tais como corrupção, minorias, igualdade de género ou direitos laborais -, assumem estratégias de comunicação política distintas.
Os resultados apurados no final da eleição presidencial, onde votaram 39,24% dos inscritos, confirmaram a vitória do candidato e PR em exercício, Marcelo Rebelo de Sousa, no primeiro sufrágio das eleições, com 60,7% dos votos contados.4 Os demais seis candidatos participantes obtiveram: Ana Gomes (12,97%); André Ventura (11,9%); João Ferreira (4,32%); Marisa Martins (3,95%); Tiago Mayan Gonçalves (3,22%); e Vitorino Silva (2,94%).
Estudo empírico
Metodologia
No contexto do crescimento dos regimes populistas, mas também do populismo como estilo político, a análise dos processos de comunicação utilizados para o sucesso de determinada mensagem política envolve duas abordagens possíveis: 1) uma centrada na identificação dos atores políticos populistas e nas suas estratégias, táticas e estilos de comunicação; 2) outra que parte da caracterização da comunicação populista e objetiva identificar elementos desta comunicação nos diferentes atores políticos (Stanyer et al., 2016). As duas perspetivas podem complementar-se quando se propõe identificar os atores e as estratégias populistas de comunicação, a extensão e penetração deste estilo de discurso.
O estudo empírico debruça-se sobre as peças dos serviços noticiosos da noite dos canais de televisão portugueses RTP1 (Telejornal), SIC (Jornal da Noite), TVI (Jornal das 8) e CMTV (CM Jornal 20h). O período de análise decorreu entre 10 de janeiro, dia do arranque oficial da campanha, e 22 de janeiro, quando a mesma foi encerrada. A constituição do corpus fez-se a partir da identificação de peças noticiosas relativas às ações de campanha das sete candidaturas.
Foi aplicada ao corpus recolhido a técnica de análise de conteúdo, metodologia que permitiu o registo e tratamento numérico dos conteúdos manifestos e teve como fim extrair indicadores capazes de suportar inferências sobre a temática em análise, com vista à compreensão da forma como se processou a cobertura. Esta é uma técnica de investigação aplicável a todos os meios de comunicação, visa a descrição sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto (Cunha e Peixinho, 2020), bem como a objetividade e a sistematização de dados, com a finalidade de apontar indicadores que permitam a sua generalização em contextos semelhantes (Bauer e Gaskell, 2002). O percurso envolve uma fase de pré-análise, a posterior formulação de categorias unívocas de análise, utilizando-se para tal um instrumento de codificação. Segue-se a recolha de dados, parametrizados pelas categorias, registados no programa Excel.
As categorias utilizadas fundamentam-se nos princípios metodológicos propostos no modelo de comunicação populista assumido nas crises. Segundo Moffitt (2014), a estratégia dos discursos populistas nestas circunstâncias passa por identificar a(s) crise(s) e ampliá-la(s), ao mesmo tempo conferindo-lhe(s) uma dimensão temporal e circunstancial. Em seguida, o mesmo modelo procura responsabilizar pela situação atores políticos e sociais, nomeando-os à exaustão nos processos comunicativos. Simultaneamente, visa opor a esses atores, fragilizados, lideranças fortes apresentadas, de forma convincente, em encenações produzidas para os, e nos media, onde a comunicação não-verbal adquire grande relevância (Seiter and Weger, 2020). O objetivo final dessa estratégia é aprofundar a(s) crise(s), criar ruturas no sistema político, polarizar a sociedade e fazer emergir, como alternativa única, credível e salvadora o líder populista.
Resultados e Discussão
O corpus empírico selecionado é constituído por 281 peças noticiosas. O Telejornal da RTP1 registou o maior número (84), seguido pelo Jornal das 8 da TVI (76), Jornal da Noite da SIC (65) e CM Jornal 20H da CMTV (56). Os canais televisivos tendem a apresentar em cada serviço noticioso uma peça por candidato/a, excetuando Vitorino Silva que, tendo decidido fazer campanha online a partir da sua casa, teve uma cobertura mais limitada.
Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias surgem com 40 peças (14,23%) cada um; André Ventura com 39 (13,88%); Tiago Mayan Gonçalves com 35 (12,46%); Marcelo Rebelo de Sousa, que entrou na campanha eleitoral apenas a 15 de janeiro, com 33 (11,74%); e Vitorino Silva com 24 (8,54%). Foram anotadas 30 peças (10,68%) que referem vários candidatos. Os canais diversificaram as rubricas sobre as presidenciais, nomeadamente a TVI com o programa “Respostas Imperfeitas”, e a CMTV, com as entrevistas aos candidatos conduzidas pelo jornalista Octávio Ribeiro.
Os temas dominantes são diversos e dispersos nas sete candidaturas. Embora se tenham codificado dois temas principais por cada peça noticiosa, estes foram agregados em quatro macro-temas: 1) temas mais diretamente relacionados com a pandemia que referem o contexto de estado de emergência e o confinamento;
temas indiretamente relacionados com a pandemia e o estado de emergência;
temas associados à campanha eleitoral e ao combate político; 4) temas específicos da agenda de campanha. Sublinha-se que nem todos os candidatos apresentam o mesmo número de peças televisivas e, por conseguinte, de temas. Por outro lado, nem sempre se justificou codificar dois temas dominantes por peça. Assim, Ana Gomes tem referenciados 76 temas; André Ventura 68; João Ferreira 76; Marcelo Rebelo de Sousa 57; Marisa Matias 78; Tiago Mayan Gonçalves 65; e Vitorino Silva 38.
Ao considerar a proporcionalidade entre o número de peças e os temas referenciados observa-se que Marcelo Rebelo de Sousa, seguido de Tiago Mayan Gonçalves, são os candidatos que mais referências fazem aos temas que compõem o primeiro macro-tema, tais como confinamento e crise pandémica. João Ferreira e Marisa Matias salientam-se no conjunto de temas indiretamente relacionados com o contexto de pandemia e estado de emergência, principalmente desemprego, precariedade e pobreza. No terceiro macro-tema, que integra a campanha eleitoral e o conflito político, destacam-se Ana Gomes e Vitorino Silva. No quarto bloco macro-temático, que elenca temas e situações específicas de campanha abordadas ou vividas pelos candidatos, André Ventura e Vitorino Silva são os candidatos com maior variedade e quantidade de referências. Entre estas destacam-se, no caso de Ventura, questões referentes ao populismo, insultos e manifestações e, no que se refere a Vitorino Silva, as referências “ao povo”, à democracia e aos riscos a que está submetida. De salientar que ambos os candidatos têm um percurso nos media, Ventura como comentador de futebol, Silva como participante em programas de entretenimento de grande audiência.
Os cenários onde estão ambientadas as campanhas dos candidatos são uma outra faceta a ter em conta em tempos de pandemia e confinamento. Nas peças noticiosas analisadas foram elencados os seguintes elementos distintivos, fundados em espaços físicos ou virtuais: ações de campanha (rua e espaço público e privado); quartéis de bombeiros; edifícios de assistência social; espaço fechado (não casa); espaço fechado (privado); estúdios; hospitais; mercados e sessões online. Com base nestes elementos, observa-se que André Ventura e João Ferreira desenvolvem um maior número de ações de campanha. O candidato apoiado pelo PCP é o que mais circula em espaços fechados (não casa), enquanto Vitorino Silva é o que mais faz campanha em espaço fechado privado. Os estúdios são topos utilizados de forma semelhante por Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto as ruas são os lugares de excelência de Ana Gomes e André Ventura, ao mesmo tempo que as sessões online são protagonizadas por Tiago Mayan Gonçalves e Vitorino Silva. A campanha de Marisa Matias é equilibrada entre os cenários considerados, físicos e virtuais.
Aprofundando a análise qualitativa, e assumindo que se trata de um exercício exploratório, observa-se entre os candidatos diferenças nos estilos de comunicação política que tendem a caracterizar a sua abordagem aos temas e orientação política. Para ilustrar esta afirmação, recorre-se à literatura científica sobre a crescente incorporação na política de um estilo de comunicação que oscila entre o estilo popular e o populista (Mazzoleni, 2009; Mudde e Kaltwasser, 2012). As categorias de análise adotadas na identificação dos fragmentos discursivos fundamentam-se nas propostas de Moffitt (2014), Stanyer et al., 2016) e Seiter e Weger (2020). Pretendese sinalizar que indicadores de comunicação política, verbal e não-verbal, se identificam nas peças televisivas e quais os atores e discursos que incorporam estratégias de comunicação populista. Numa perspetiva da comunicação não-verbal (Seiter e Weger, 2020), a descontração é uma característica de Marcelo Rebelo de Sousa, bem como de Marisa Matias, embora o primeiro exiba uma formalidade no vestuário que a segunda não assume. João Ferreira destaca-se pela formalidade, a que junta uma postura rígida, enquanto a tensão física e a agressividade emocional são percetíveis em André Ventura. A assertividade é uma das características de Ana Gomes, mas também de João Ferreira, notando-se em Vitorino Silva uma grande informalidade na forma de comunicar e se apresentar em público.
Nas peças do corpus analisado, os discursos de campanha dos/as candidatos/as mostram que a “crise” sanitária associada à Covid-19 está sempre presente, a que se soma a perceção de outras “crises”, tais como a económica e a social. Os candidatos, ao atribuírem as “culpas” das “crises” aos erros e à má governação do executivo, bem como ao presidente incumbente, também candidato, contribuem para a perceção das diferentes “crises”, ao mesmo tempo que promovem a conflitualidade e o extremar de posições entre os atores políticos. Deste modo, a conflitualidade e a atribuição de culpas pela “crise” sanitária estão patentes nas afirmações dos candidatos à direita (André Ventura) e à esquerda (Ana Gomes), e ambos visam o candidato incumbente. Este processo, apontado como um dos elementos do crescimento do populismo (Moffitt, 2014), vem acompanhado de manifestações discursivas que privilegiam os discursos simplistas e discriminatórios, assim como recorrem a um vocabulário impróprio. A caracterização destes discursos como populares e/ ou populistas nem sempre é clara (Mazzoleni, 2009; Mudde e Kaltwasser, 2012). Nesta campanha três grupos de atores sociais são visados, as designadas “Elites”, o “Povo” e os “Outros”, nomeados ora como “subsidiodependentes”, “ciganos” ou “não portugueses”.
As Elites
Telejornal, RTP1 (10.1.2021, 20:20)
Marisa Matias: “A razão pela qual eu enfrento o atual presidente é que ele fechou os olhos a este agigantamento dos privilégios, pela simples razão de que entende que esse é o destino do nosso país... sempre foi assim, sempre há-de continuar a ser. Há uma oligarquia poderosa que domina Portugal e que quer que o País não se mova, que o povo não fale e que o respeitinho continue muito lindo. Marcelo Rebelo de Sousa é a continuidade deste Portugal antigo”.
O Povo
Jornal das 8, TVI (11.1.2021, 20:56)
Vitorino Silva (entrevistado por Miguel Sousa Tavares): “Eu sou o político que tem o melhor assessor que é o povo. Sou assessorado por 10 milhões de portugueses. Sou um candidato ‘rurbano’ e acho que é necessário um candidato que conheça o país todo e que não conheça só o país ‘inclinado’”.
CM Jornal 20H, CMTV (21.1.2021, 21:05)
Vitorino Silva: “Esta é uma candidatura que vem do povo para atrapalhar os intelectuais. Eu não conheço nenhuma profissão chamada intelectual, e depois a terra e família são os dois ingredientes que eu sempre usei e nunca decorei”.
O Outro
Telejornal, RTP1 (20.1.2021, 20:57)
André Ventura (Leiria/Alcobaça): “Os subsidiodependentes que nos acompanham e nos perseguem, e protestam pelo país todo, levarão de nós o mesmo cartão vermelho que daremos a Marcelo Rebelo de Sousa e a Ana Gomes. Estas eleições tornaram-se a eleição do bem contra o mal, vejam o conflito, vejam a ordinarice, vejam a baixeza e o vil ataque contra nós”. “O Bloco de Esquerda está a meter a mão nos nossos eventos e estão a tentar boicotar a minha campanha”.
São também ilustrativas de uma agenda política, com tendências populistas, as inúmeras referências a casos de corrupção, envolvendo governantes e ex-governantes. A utilização desta temática promove a distinção entre cidadãos, atribui a pessoas concretas, integrantes de elites políticas e económicas, a responsabilidade pelas fragilidades sociais e riscos existentes na democracia. Em contrapartida, o candidato que assume este discurso apresenta-se como alguém externo ao processo e recolhe, por essa razão, legitimidade, enquanto reforça a sua posição de líder. Ao mesmo tempo, a abordagem repetitiva desta temática, sem a consequente inventariação de medidas que poderão reverter o fenómeno, aumenta a perceção da crise da democracia, instiga a desconfiança nas instituições democráticas, banaliza a assunção de que todos os políticos são corruptos, facilitando a eleição de líderes e de governos autoritários.
Corrupção
Telejornal, RTP1 (10.1.2021, 20:24) [Excerto do debate entre Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa]
Ana Gomes: “Eu sei que o Senhor Professor, até pelas suas relações de amizade com Ricardo Salgado, é das pessoas com mais interesse que o caso BES já tivesse sido esclarecido, que já se tivessem apurado responsabilidades, desse senhor e de muitas outras pessoas. Sete anos depois o julgamento ainda não começou e o caso BES está ligado ao caso Sócrates”.
Marcelo Rebelo de Sousa: “Há cinco anos atrás dizia-se ‘ele é amigo do Dr. Ricardo Salgado, vamos ver se não vai facilitar a vida ao Dr. Ricardo Salgado’. Passaram cinco anos: foi condenado em 3 proces- sos movidos pelo Banco de Portugal e foi finalmente acusado no processo BES. Portanto, não sei se percebe o quão ofensivo é aquilo que disse. Esse exemplo é dizer que eu tenho interesse especial. Eu não tenho interesses especiais, o que pretende é afetar a minha honorabilidade e integridade. Sabe, não vale tudo na política”.
Telejornal, RTP 1 (16.1.2021, 20:35)
André Ventura (Vila Real): “E enquanto o país se pinta de vermelho de norte a sul, homens e mulheres esquecem ambulâncias em lista de espera com pessoas a morrer lá dentro, com hospitais cheios de gente, deixando as estruturas de saúde à mercê de um colapso iminente e isto tem um responsável que é António Costa e dois rostos nestas eleições presidenciais que são Marcelo Rebelo de Sousa e Ana Gomes. Este é o governo mais corrupto de Portugal e não cai... porque é que não cai?”
A intenção paternalista poderá também situar os atores políticos entre o popular e o populista. Sobretudo em contextos de crise a preocupação com a vida e as dificuldades dos cidadãos comuns, a manifestações de afeto, familiaridade e proximidade carinhosa podem ser difíceis de discernir dessa atitude paternalista.
Paternalismo
Jornal das 8, TVI (15.1.2021, 21:25)
Marcelo Rebelo de Sousa (visita a uma mercearia social em Lisboa, ao dirigir-se a uma mulher, com uma criança ao colo): “‘O que vem aqui recolher é uma ajuda para toda a família? Que idade tem o menino? E diga lá... esta situação tem sido difícil?”.
Telejornal, RTP1 (18.1.2021, 20:29)
Marcelo Rebelo de Sousa: “As pessoas têm que perceber o seguinte: a eficácia das medidas depende muito dos próprios. O poder político deve contar a verdade toda e dizer, ‘olhe que neste momento esta- mos mesmo numa situação difícil’, mas não se pode substituir à vontade das pessoas, em democracia não. Isto não é uma ditadura”.
Conclusão
A pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2 marcou profundamente as eleições presidenciais de 2021, obrigando a uma reconfiguração dos modelos de campanhas tradicionais. Os debates frente-a-frente entre todos/as os/as candidatos/as e as audiências que mobilizaram, algo inédito em Portugal e facultativo na lei, constituíram uma situação original desta campanha. A televisão voltou a ocupar um lugar central na função de informar os eleitores. Muitos candidatos investiram em pseudo-acontecimentos para garantirem material técnico em imagens e declarações aos diversos canais televisivos.
Os jornalistas assumiram procedimentos adequados à emergência sanitária. Porém, o enquadramento adversarial acentuou-se nesta cobertura com ênfase em frames que demonstram contradições, competição e agressões no campo político. Neste sentido, do ponto de vista da noticiabilidade, foram valorizados as manifestações, os insultos e a agressividade, aspetos amplamente mediatizados, com valor de infotainment e potencial para atrair audiências.
Com programas políticos e elementos democráticos programáticos distintos, os atores políticos que assumem aquelas formas de comunicar a política tendem a simplificar a linguagem, a apelar à emoção, a identificar inimigos e a atribuir culpas pela situação de crise ao governo e à má gestão das instituições (Mazzoleni, 2009; Mudde e Kaltwasser, 2012). A estratégia de comunicação prosseguida aproxima as mensagens advindas de diferentes espectros e atores políticos, onde as diferenças só são discerníveis em função da identificação do campo político dos atores e dos seus programas, exigindo, deste modo, grande literacia informacional e política.
O estudo empírico apresentado, nas suas dimensões quantitativa e qualitativa, indicia que nestas eleições presidenciais ocorreu um deslizamento para uma comunicação política que oscila entre o popular e o populista, fenómeno que constitui uma tendência transversal às campanhas de todos os/as candidatos/as, com exceção dos apoiados pela IL e pelo PCP. Deste modo, retomando as perguntas de investigação inicialmente colocadas, observa-se que o atual PR e candidato Marcelo Rebelo de Sousa fez uma campanha parca em contactos mas, nas suas aparições, centrou-se nas habituais mensagens e manifestações de afetos, que caracterizam a sua relação com os cidadãos, sobretudo os mais frágeis e despossuídos (Lopes e Botelho, 2020). Em parte estas características de comunicação política podem explicar-se pela larga tradição em Portugal de paternalismo na gestão da coisa pública, seja durante o Estado Novo com o modelo salazarista ou em democracia, com acento na empatia e na aproximação aos cidadãos, como assumiram diversos governantes (eg., o ex-primeiro-ministro António Guterres ou o ex-Chefe de Estado Jorge Sampaio).
Ainda neste registo de proximidade, embora diferente do paternalismo do anterior candidato, situa-se Vitorino Silva, que apela ao povo e àquilo que é, comummente, identificado como o seu estereótipo. A partir da otimização da sua trajetória na televisão, associada a programas de grande audiência, este candidato utiliza e incorpora sound bytes de jornais televisivos, de campanhas dos seus concorrentes e de anúncios publicitários, recorrendo sempre a um vocabulário simplificado. O candidato faz, também, assentar a sua campanha e a sua legitimidade, como putativo representante do povo eleitor, numa lógica dicotómica (nós-outros) ao apresentar-
-se como “um do povo”, por oposição às elites, identificadas com os “intelectuais”. A candidata do BE, Marisa Matias, optou por um estilo de campanha assente, igualmente, na proximidade, apesar da pandemia. O alvo da campanha foram os mais frágeis e, entre estes, as mulheres, com especial atenção às trabalhadoras de fábricas, cuidadoras informais e mulheres vítimas de violência doméstica (Martins et al., 2021). A temática proporciou, no início da campanha, um deslize populista na comunicação política adotada, linha que foi, posteriormente, abandonada.
Contudo, o grande enfrentamento entre o registo popular e populista dá-se com os candidatos que disputam o segundo lugar nas eleições presidenciais: André Ventura do Chega e Ana Gomes, independente, na esfera do PS. O estilo de comunicação populista de André Ventura é rebatido, taco a taco, por Ana Gomes, no território do seu adversário. A candidata não se exime a utilizar a mesma linguagem e a focar os mesmos temas, mas enquadrando-os e explicitando-os num contexto democrático, com vista a desmontar as meias-verdades e a conferir credibilidade às instituições democráticas atacadas. Assim, Ana Gomes promove o que Ventura despromove, confere dignidade e protagonismo àqueles que são identificados como o Outro. Ao reagir à linguagem imprópria de André Ventura, que a apelidou de candidata cigana e contrabandista, Ana Gomes, em companhia de uma mulher de etnia cigana, e na presença das televisões, declara à porta de uma esquadra da polícia, em Santarém: “Eu estava a dizer a esta senhora que a mim me chamam a candidata cigana e eu, com muito gosto!” Batendo-se pelos valores da democracia, contra os extremismos da direita, avisa, igualmente, o candidato e presidente incumbente: “A ultradireita não é só mais uma corrente de opinião, como pretende Marcelo Rebelo de Sousa, é um perigo para a democracia e a democracia não pode ser tolerante com os intolerantes”.