Introdução
As eleições presidenciais de 2018 no Brasil são um fenômeno à parte da história recente deste país. De um lado, pela vitória de um candidato do Partido Social Liberal (PSL), um partido com pouca expressão nacional na época e, de outro, pelo clima particularmente polarizado da sociedade brasileira, ilustrado pelo resultado acirrado do segundo turno da disputa. O vencedor, Jair Bolsonaro, dobrou sua popularidade em menos de um ano. Em uma pesquisa Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística) de março de 2018, o candidato do PSL aparecia com 20% das intenções de voto. Já um dia antes do segundo turno das eleições, em 27 de outubro de 2018, tinha 54% das intenções de voto. Tal tendência foi confirmada pelos 55,13% dos votos válidos que Bolsonaro obteve, contra 44,87% de Fernando Haddad (PT).
O então candidato Bolsonaro, representando uma pequena coligação, contava com apenas oito segundos de horário eleitoral gratuito na televisão brasileira durante sua campanha. Ele investiu então, entre outros, na sua visibilidade nas mídias ditas tradicionais, visto que elas são o principal espaço de produção da visibilidade política nas sociedades contemporâneas (Miguel & Biroli, 2010) e constituem, dessa forma, uma plataforma de divulgação para os candidatos em campanha. Este fato funda o nosso problema de pesquisa: como Bolsonaro recorre às mídias tradicionais on-line para ganhar visibilidade durante o período que antecede as eleições?
Partindo da hipótese de um uso da retórica populista de cunho polêmico, discutimos neste artigo como o discurso de Bolsonaro foi repercutido nos dois principais media on-line brasileiros. Para analisar o fenômeno, fazemos uma breve discussão teórica sobre as noções de polêmica verbal e sobre o populismo a partir de um quadro teórico de análise baseado nos Estudos sobre a polêmica (Amossy, 2011, 2014; Angenot, 2003, 2008; Kerbrat-Orecchioni, 1980) cujos pontos principais são apresentados no começo deste artigo, e nos Estudos sobre mídia e política (Charaudeau, 1997, 2005; Ringoot, 2014), que guiam nossa análise. Em seguida, apresentamos o resultado da análise das reportagens publicadas em dois portais de notícias brasileiros, G1 e UOL, no mês de outubro de 2018 que precedeu o primeiro turno das eleições presidenciais brasileiras.
2. Discurso informativo, o populismo e a polêmica
2.1. A retórica do populismo
Na literatura, a discussão sobre populismo é bastante ampla. A inexistência de uma definição única se dá principalmente porque o populismo aparece com distintas manifestações e características. Podemos, entretanto, defini-lo, como o faz Taguieff (1997) como um “estilo político” que pode se apresentar sob diversas formas ideológicas dependendo do contexto social em que se desenvolve. Tal contexto normalmente é o de uma crise política, pois o advento do populismo, seja de direita ou de esquerda, revela um questionamento profundo da democracia representativa, como apontam os autores de referência no assunto (Laclau, 2016; Lits, 2009; Taguieff, 1997). O caso “Bolsonaro” no Brasil nos parece revelador desta lógica, visto que ele repousou sua campanha presidencial na negação dos princípios democráticos, em um ambiente de forte desconfiança em relação às instituições republicanas1, como destacaremos na nossa análise. Bolsonaro se aproxima também do populismo quando se posiciona como um salvador que se diferencia dos discursos políticos tradicionais, um outsider, mecanismo que visa, entre outros, a construção de uma imagem de líder carismático (Lits, 2009). Acima de tudo, defendemos, como Ernesto Laclau (2016), que a construção de um populista é baseada em um discurso polarizante e que a retórica é a anatomia do mundo ideológico. Assim sendo, para entender o fenômeno Bolsonaro em seu caráter performativo, um estudo sobre a presença do discurso polêmico em seus atos de linguagem veiculados nos media on-line serve à explicitar as ligações entre o discurso populista e o polêmico que tratamos de definir.
Segundo Kerbrat-Orecchioni (1980), a palavra “polêmica” é originária do termo adjetivo grego “polemos” que significa “guerra” ou “arte da guerra”. A autora avança que o discurso polêmico é fundado pela refutação do discurso do oponente, o que implica uma situação dialógica em que dois ou mais atores discutem em torno de um tema social conflituoso. Mais do que a busca de um acordo entre dois pólos opostos, a polêmica é um ato performativo em que a própria atitude do polemista é um instrumento. Sobre isso, Foucault (1994, p. 592) comenta: “o polemista diz a verdade na forma de julgamento e segundo a autoridade que ele confere a si mesmo2”. Ou seja, o discurso polêmico é um discurso calcado mais no ataque ao adversário do que na construção de um consenso. Como o objetivo do polemista não é chegar a um acordo com o seu adversário, mas sim conquistar uma audiência, é necessário desqualificá-lo aos olhos de quem escuta a disputa. Como lembra Felman (1979), a polêmica não é uma situação de debate, mas sim de combate. A polarização extrema e a confrontação radical das posições opostas fazem com que o recurso aos argumentos ad hominem, ou seja, um argumento que visa diretamente a pessoa do adversário, seja uma marca da argumentação polêmica. Mesmo se, segundo Amossy (2014), o ad hominem não seja um critério sina qua non quando se trata de argumentação polêmica, a autora reconhece que a presença desse tipo de estratégia discursiva pode aumentar a distância entre os grupos opostos e, assim, reforçar a distância entre um “nós” e um “eles”. Esse tipo de estratégia argumentativa serve tanto para deslegitimar o adversário quanto a força dos seus argumentos. Neste movimento, o discurso polêmico colabora também para a construção do ethos de convicção, a imagem de si projetada à audiência que escuta as trocas polêmicas. Esta projeção é construída a partir da postura do polemista que apresenta suas ideias na forma de verdade absoluta, como pontua Foucault (1994). No contexto populista, tal operação retórica se articula também com a posição de vítima face a um sistema que coloca em margem, segundo o populista, a posição defendida por ele.
Assim sendo, a polêmica acentua a dicotomização das posições, convidando os espectadores da troca a um posicionamento em dois pólos opostos. Tal aspecto do discurso polêmico é trabalhado por Ruth Amossy, em seu livro l’Apologie de la polémique (2014) no qual ela descreve a polêmica como a criação de uma agora democrática de grupos que defendem ou denunciam uma certa causa ou grupo: “a polêmica seria então a manifestação discursiva na forma de choque, de afontamento brutal, de opiniões contraditórias que circulam na praça pública3” (p. 56, nossa tradução). Tal aspecto da polêmica constitui a fundação do discurso polarizante populista, que busca no seu oposto sua razão de existência.
Articulando os autores que teorizam o discurso populista e o polêmico, chegamos a três principais aspectos de convergência que interessam à nossa análise: (1) desqualificação do adversário, que se opera a partir principalmente dos argumentos ad hominem, (2) construção do ethos de convicção, que serve para dar valor de verdade às ideias do populista e construí-lo na ótica de uma vítima de seu adversário ou de atores externos, e (3) dicotomização das posições, que serve aos interesses populistas na medida em que acentua a relação nós versus eles. Diante dessas características, construímos a hipótese do uso do discurso polêmico como uma estratégia discursiva especialmente pertinente para um ator de retórica populista em um contexto de disputa eleitoral, que busca a visibilidade e a construção de um grupo engajado em torno de suas ideias. Para isso, o polemista usa da estrutura midiática de informação, particularmente receptiva a este modo discursivo, como veremos a seguir.
2.2 O discurso informativo e o discurso polêmico: um interesse mútuo
A polêmica se apresenta em diversos contextos enunciativos, mas Amossy (2014) comenta que uma simples disputa não configura uma polêmica. Ao contrário, ela necessita abordar um problema coletivo para que exista uma audiência a ser seduzida em prol de um dos campos em disputa.
Observamos de fato um interesse mútuo entre os dois discursos polêmico e informativo. Sendo o objetivo do polemista convencer o público que acompanha a disputa e não o seu adversário, o lugar de construção e propagação da polêmica é o espaço midiático. A imprensa tem um papel importante no contexto de uma polêmica pública, pois produz ou reproduz argumentos que permitem um posicionamento dos espectadores em um dos campos políticos rivais (Amossy, 2014). Por outro lado, para o discurso informativo, a divulgação da polêmica permite o desenvolvimento de duas de suas características principais: ser um veículo de informação, que se apresenta como um mediador do conflito social, e seduzir uma audiência (Charaudeau, 1997). Além disso, a construção de grupos opostos que disputam entre si, por meio do choque de opiniões, é uma estratégia valorizada pela escrita jornalística, como os trabalhos de Masasa (2011), Sponholz (2010), Yanoshevsky (2003), entre outros, já demonstraram. Como resume Amossy (2011), os meios de comunicação de massa expõem os argumentos dos grupos opostos, construindo um diálogo entre diferentes atores da polêmica e colocando em cena a polarização:
Embora seja verdade que a disponibilização de um espaço de comunicação onde ocorre o choque de posições opostas é suscetível de amplificar conflitos, a verdade é que os meios de comunicação social são o local por excelência onde as divergências substantivas são geridas na esfera pública, para o bem e para o mal4 (Amossy, 2011, p. 26, nossa tradução)
Ou seja, ao colocar em cena a polêmica, a empresa jornalística ganha prestígio e audiência, enquanto o candidato mais polêmico pode obter mais visibilidade ao seu projeto de poder, sobretudo em um contexto eleitoral. Diante desta exposição teórica, chegamos ao nosso postulado principal: uma das armas contemporâneas dos atores de retórica populista é o discurso polêmico, pois este permite um ganho de visibilidade nos media de discurso informativo. Atacar os adversários na busca de audiência para criação de uma identidade de grupo seduz o discurso midiático. A polêmica então configura uma estratégia especialmente interessante aos políticos populistas, que inclusive parecem acentuar suas ideias extremistas em busca de destaque na imprensa. Com efeito, na lógica de fluxo intenso de informações durante a campanha eleitoral, parece ser mais reportado o que é atípico, escandaloso e caótico, ao invés do programa dos candidatos, sobretudo no contexto dos meios de comunicação on-line. Verificamos esses postulados teóricos a partir da observação das estratégias de agendamento de Jair Bolsonaro na campanha 2018 junto aos dois principais canais de comunicação on-line do Brasil. Buscamos compreender como a argumentação polêmica e suas características foram usadas por esse ator de retórica populista para fins de persuasão política e, sobretudo, midiática, conforme apresentamos a seguir.
3. A visibilidade da candidatura “Bolsonaro” no processo eleitoral de 2018: o caso dos portais de notícias brasileiros
3.1. Critérios de análise e construção do corpus
Em um procedimento hipotético-dedutivo, nossa análise ganha corpo a partir da hipótese de que Bolsonaro usa o discurso polêmico como estratégia para ganhar visibilidade na media on-line durante o processo eleitoral de 2018. O corpus de trabalho é baseado nas reportagens dos veículos on-line dos principais grupos de comunicação do Brasil: G1, portal de notícias do Grupo Globo, e UOL, do Grupo Folha. A escolha se deu por conta da importância que os meios de comunicação on-line assumem no Brasil, já que a internet é a segunda fonte principal de informações dos brasileiros5. Além disso, os dois sites de informação escolhidos são os mais acessados do país6 e mantêm a tradição de uma intensa cobertura eleitoral, que se confirmou nas eleições 2018. A composição do corpus de análise foi elaborada a partir de três critérios de seleção: (1) reportagens relativas às eleições 2018 dos portais G1 e UOL,
notícias publicadas entre 7 de setembro de 2018 e 7 de outubro de 2018, ou seja, o mês anterior ao primeiro turno das eleições e (3) matérias jornalísticas cujo como protagonista era, o na época candidato, Jair Bolsonaro (PSL).
Segundo os preceitos de Rastier (2005), o corpus de trabalho foi selecionado com base nos nossos problemas de pesquisa, ou seja, na procura pelos aspectos do discurso polêmico discutidos acima. Trabalhamos assim com 11 reportagens do G1 e 18 do UOL que estão apresentadas em anexo, em duas listas segundo o meio de comunicação e data de publicação. O nome dos (as) autores (as) das matérias, quando creditados no texto original, foram especificados.
O estudo é centrado nas transcrições das falas de Bolsonaro no texto jornalístico, que nas notícias costumava aparecer como discurso direto ou indireto. Com o objetivo de entender como a argumentação polêmica de Bolsonaro aparece nesses dois portais de notícias, construímos nossa análise a partir de três pontos, desenvolvidos na parte teórica que buscou articular as estratégias da enunciação polêmica e populista.
a desqualificação do adversário;
o discurso polêmico a serviço da construção do ethos de convicção;
a dicotomização das posições.
3.2.1 A desqualificação do adversário
Como mencionamos na nossa introdução, o pleito de 2018 foi feito sob um ambiente polarizado. Por isso, ocupar a agenda das mídias tradicionais através do ataque a um adversário passa a ser um posicionamento na luta discursiva vigente. Nessa disputa retórica, o alvo principal foi o Partido dos Trabalhadores (PT), que esteve no poder executivo nacional durante 14 anos. O Brasil, na realidade, vivia um ambiente de polarização inflamado pelo processo que levou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à prisão em abril de 2018. O candidato do PT ocupou uma boa parte da agenda política antes das eleições, pois ele se apresentou como candidato do Partido dos Trabalhadores mesmo depois de preso. Assim, uma grande polêmica pública em torno da sua candidatura se cria, atraindo então a atenção midiática às questões sobre a validade ou não dessa ação.
Uma vez a candidatura de Lula inviabilizada pela Justiça Eleitoral, Fernando Haddad, antigo ministro da Educação, foi escolhido para ser o representante do PT como candidato à presidência do Brasil. O desafio de Bolsonaro foi então evitar que Haddad fosse favorecido pela herança discursiva de Lula. Era preciso deslocá-lo da posição de vítima de um processo jurídico injusto, e associá-lo, ao contrário, à ideia de corrupção. Nesse sentido, Bolsonaro adota uma atitude discursiva polêmica visando seu oponente principal como demonstra o trecho da reportagem a seguir:
a) “Não podemos deixar que um partido que mergulhou o Brasil na mais profunda crise ética, moral e econômica volte ao poder com as mesmas personalidades. Tudo é conduzido de dentro da cadeia pelo senhor Lula, que indica um fantoche seu chamado Haddad”, disse [Bolsonaro] já nos primeiros minutos de entrevista (Garcia e Bezerra, 04/10/2018)
Este ataque ad hominem lembra a privação de liberdade de Lula e associa a Haddad a figura de um fantoche, um ser sem vida controlado por um terceiro. Como o polemista procura um defeito do seu adversário que possa servir à sua causa, Bolsonaro lembra também que o partido governou o país desde 2002 e atribui descrédito às ações dos antigos governantes, que ele associa a palavras como “violência” e “corrupção” no trecho (b) abaixo. Bolsonaro ainda incita à violência física, convidando seus defensores a “fuzilar a petralhada” em (c), neologismo originário da sigla PT.
Ao atacar pautas importantes à oposição ao Partido dos Trabalhadores, como o antipartidarismo, anti-esquerdismo, anti-establishment (Santos, 2016), ele pretende se tornar um símbolo do antipetismo. O objetivo parece engajar valores comuns do público já oposto ao PT e passar a ser reconhecido como um representante dessas bandeiras oposicionistas. Destacamos assim que Bolsonaro adota uma atitude discursiva polêmica visando não somente seu oponente principal, mas também o Partido dos Trabalhadores em sua totalidade.
b) Também disse que quer “resgatar os valores perdidos há muito e retirar o Brasil da lama de violência e corrupção”. “Nosso país não aguenta mais 4 anos do que nos governa há décadas! Vamos dar o primeiro passo para resgatar nossa pátria!”, afirmou no Twitter. (G1 SP, 26/08/2018)
c) Em 1º de setembro, durante evento de campanha em Rio Branco (AC), Bolsonaro declarou: “Vamos fuzilar a petralhada toda aqui do Acre!”. Em razão das declarações, a coligação do PT entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) e pediu que Bolsonaro responda por injúria eleitoral, incitação ao crime e ameaça (Oliveira, 27/09/2018)
Além de oponentes políticos, Jair Bolsonaro ataca ainda a própria estrutura democrática nos fragmentos (d) e (e). Reagindo ao crescimento do candidato Fernando Haddad nas pesquisas de intenção de votos a pouco menos de uma semana antes do primeiro turno, ele aponta uma possível “fraude” eleitoral. Assim, ele constrói um ato duplo de deslegitimação do adversário: primeiro pela desqualificação do poder público e da democracia e segundo pela atribuição da responsabilidade desta possível infração ao Partido dos Trabalhadores.
d) Segundo ele, “o PT descobriu o caminho para o poder: o voto eletrônico”. Bolsonaro sugeriu a existência de programas que podem fraudar as urnas eletrônicas e que podem inserir “uma média de 40 votos para o PT” em sessões de votação em todo o Brasil. (UOL São Paulo, 16/09/2018a)
e) O candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro, afirmou no domingo (30) ao jornal “O Globo” que não tem “nada para fazer” em caso de derrota nas urnas. (...) “Um sistema eleitoral onde nós já tínhamos acertado uma maneira de auditá-lo, que é o voto impresso, lamentavelmente o Supremo Tribunal derrubou e também um sistema eleitoral que não é aceito em lugar nenhum do mundo. Então, a dúvida fica e não sou eu não. A maioria da população desconfia do voto impresso. Então, quer dizer exatamente isso aí. Eu vejo, aí que foi um absurdo o PT crescer, não existe isso. O que eu sinto nas ruas, o que eu vejo em manifestações, haverá uma grande amanhã na Paulista. É um sinal claro que o povo está do nosso lado e da forma como isso é demonstrado, não dá pra gente aceitar passivamente na fraude, na possível fraude a eleição do outro lado”, disse Bolsonaro no sábado. (G1 Brasília, 01/10/2018)
É interessante notar que Bolsonaro defende que sua eventual derrota na disputa presidencial seria ligada a um problema da estrutura eleitoral. O argumento de “fraude” ou de problema na estrutura democrática é justamente uma das ferramentas recorrentes do discurso de inspiração populista (Laclau, 2016). Bolsonaro reforça essa ideia através também da defesa da antiga ditadura militar brasileira (1964-1989), apontando que a solução autoritária foi benéfica para o Brasil. Em um mecanismo de reformulação orientada, o então candidato questiona o uso da palavra “ditadura” para se referir a esse período político, e atribui ainda a seus adversários, aqui não citados nominalmente, as mentiras em torno desse fato histórico, conforme observado em (f).
f) O candidato do PSL à Presidência da República, Jair Bolsonaro, disse nas redes sociais, na manhã desta quarta-feira (26), que o povo quer saber de emprego e segurança, e não de “falácias” sobre a ditadura. “Enquanto insistem em falácias, rótulos e na fixação pela palavra “ditadura”, são mais de 14 milhões de desempregados, cidadãos reféns em suas próprias casas, 60 mil homicídios e 50 mil mulheres estupradas por ano. É disso que o povo quer saber! É urgente! É daqui pra frente!” (G1 SP, 26/09/2018)
3.2.2 A polêmica a serviço da construção do ethos de convicção
Como discorremos na parte teórica, o polemista constrói sua imagem como um “ser de convicção” (Charaudeau, 2009) junto ao seu público e se coloca como um guardião de uma verdade absoluta. Na verdade, observamos no nosso corpus ao menos seis reportagens que difundem as ideias que Bolsonaro publicava em suas redes sociais particulares, como Twitter e Facebook ̧ principalmente pelo fato de serem polêmicas. Repercutindo as falas de Bolsonaro, sem nenhuma crítica ou filtro, os sites de notícias pareceram ajudar a difundir as ideias extremas do ator populista a um público mais amplo que o de seus seguidores e a conferir credibilidade, um valor de verdade, às suas afirmações. Tal dinâmica de construção de um ethos de ser de convicção é expressa principalmente pelas reportagens cujo título começa por “Bolsonaro diz que...”, vd. exemplos (g) a (k), ou então pela publicação integral dos textos que o candidato propagava em suas redes sociais (l).
g) Bolsonaro diz que princípios liberais serão a “bússola” em eventual governo (G1 SP, 20/09/2018)
h) Bolsonaro diz que ‘questão ideológica’ é grave como a corrupção e precisa ser combatida (G1 Brasília, 02/10/2018)
i) Bolsonaro diz que dá ‘para a gente levar’ no primeiro turno e anuncia criação de dois ‘superministérios’ (G1 Brasília, 02/10/2018)
j) Bolsonaro diz que está preparado para mudar o Brasil (Pakulski, 06/10/2018)
k) Bolsonaro diz que ‘não tem nada para fazer’ em caso de derrota nas eleições (G1 Brasília, 01/10/2018)
l) (...) o candidato Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal (PSL), usou sua conta na rede social Twitter para falar de sua campanha à Presidência e pedir apoio aos eleitores. “Estamos fortes, com poucos recursos, sem acordões (sic), sem tempo de TV e impossibilitado de fazer campanha na rua pela tentativa de assassinato que sofri” (Pakulski 06/10/2018)
Vemos nesses exemplos como os sites de informação contribuíram para a construção da imagem de seu ethos de convicção através das reproduções sem filtros de suas falas polêmicas que propagam uma ideia de competência (j) ou ainda de competência para combate às mazelas do país (l), (h). Nessas reportagens, o jornalista passa a ser apenas um reprodutor das falas argumentativas de Bolsonaro ao invés de expor um contraponto às suas falas políticas. Essas notícias conferem ainda distinção na medida em que tornam visíveis as ideias extremas de Bolsonaro em um ambiente legitimado, o espaço midiático, e dão assim um “certificado de importância legítima” à sua postura enunciativa (Miguel e Biroli, 2010).
O caso da repercussão dos materiais gravados por Bolsonaro dentro do hospital depois do atentado que ele sofreu em 6 de setembro de 2018 é ainda mais significativo dessa dinâmica. Em um comício eleitoral na cidade mineira de Juiz de Fora, o ex-deputado sofreu uma facada enquanto estava sendo carregado por uma parte dos participantes do evento. Neste momento da campanha, observamos que as notícias sobre Bolsonaro nos dois portais de notícias analisados são construídas principalmente por meio dos vídeos que ele publica direto de seu quarto hospitalar. Tal conteúdo não passa por nenhum filtro jornalístico e é apenas compartilhado pelos sites G1 e UOL. Neste local de fala, e aproveitando da repercussão do momento, o candidato defendia de maneira engajada propostas polêmicas, em uma tentativa de construir sua imagem como um mártir que foi vítima de um atentado por conta de seus ideais, numa tentativa de construção de ethos também de vítima. Como vemos no trecho abaixo, as falas de Bolsonaro são transcritas quase de maneira integral nas reportagens, recorrendo à citação direta, de maneira a reforçar o conteúdo dos vídeos, que
são também anexados sem cortes às matérias jornalísticas.
m) Ele falou também sobre a família. “A questão da família tem Deus e depois tem a família, e a família, com todo respeito aos profissionais, é importantíssima porque nesse momento é no que a gente pensa em primeiro lugar. O que nós podemos juntos é fazer e se garantir. Nesse momento em que meus filhos estão aqui, agradeço a vocês que estão aqui, minha esposa que está chegando. Obrigado Brasil. Estamos juntos!” (...) Bolsonaro lamentou não poder ir nesta quinta ao Rio, para o desfile de 7 de setembro. “Nesse dia, às vésperas do 7 de Setembro, infelizmente não vou poder comparecer amanhã (hoje) à Presidente Vargas, para o desfile do 7 de Setembro. Mas estamos com coração e mente, sempre tendo um Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. (G1, 07/07/2018)
n) Deitado em uma cama na unidade de cuidados semi-intensivos, o presidenciável falou pausadamente e em tom baixo por mais de 15 minutos, chorou, criticou o STF (Supremo Tribunal Federal) por derrubar a obrigatoriedade do voto impresso e afirmou que o candidato do PT, Fernando Haddad, libertará o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso desde abril, caso seja eleito. “O Haddad eleito presidente, ele já falou isso, e se não falou, vocês sabem, assina no mesmo momento da posse o indulto de Lula. E no segundo seguinte, o nomeia chefe da Casa Civil”, afirmou Bolsonaro. (UOL São Paulo, 16/09/2018)
3.2.3 A dicotomização das posições: a questão ideológica
Observamos na seleção (m) acima, a frase slogan da campanha de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Ela é representativa da questão ideológica em torno dos costumes cristãos que permeou as eleições 2018 e da posição no campo político que o candidato do PSL visou conquistar. Ao operar uma repetição “acima de tudo”/“acima de todos” a dicotomização das posições passa a operar um “eu”, representante de Deus, e um “todos”, aberto a diversas interpretações, mas que, no discurso de Bolsonaro, parece se reportar ao resto da classe política.
Como explica Garand (1998), a polêmica se funda na criação de uma consciência de grupo, elaborada a partir de um objeto odiado por todos. O autor comenta que:
Atacar um alvo não é o suficiente, é preciso ainda unir o Tiers à sua causa: o objetivo de um polemista não é que o leitor chegue simplesmente à conclusão que ele não ama ou não compartilha das ideias de um adversário, ele deve levá-lo a compartilhar sua opinião a fim que o Alvo se encontre em posição de isolamento7 (Garand 1998, p. 231, nossa tradução)
A dicotomização de posições trabalhada por Bolsonaro explora justamente vários aspetos do espectro político a fim de isolar o inimigo petista. Suas bandeiras passam pelo antipetismo e o combate à corrupção, mas também pelo ataque aos detratores da “família tradicional brasileira”. Trabalhando várias questões ideológicas que permeavam a cena política e social brasileira, ele conquista um público de movimentos de nova direita, passando por um movimento conservador cristão vindo especialmente das igrejas evangélicas. Sobre essa dinâmica de construção de um inimigo político e moral, Feres e Gagliardi (2019) escrevem:
A demonização do PT funcionou como motivo de unificação entre essas duas pautas, pois no partido elas encontram um inimigo comum perfeito, que pode ser usado na guerra cultural, mas, ao mesmo tempo, também serve muito bem para a disputa política e eleitoral (Feres e Gagliardi 2019, p.110)
Outro pilar da oposição ideológica de Bolsonaro é o questionamento do sistema democrático que, como já dissemos, é uma das armas do discurso populista. Podemos citar como uma questão ideológica a negação do candidato do PSL a dar valor às etapas já estabelecidas da ordem eleitoral. Na verdade, observamos no nosso corpus de trabalho como Bolsonaro negligenciou o modus operandi da campanha eleitoral ao negar sua participação no último debate televisivo entre os presidenciáveis, veiculado pela Rede Globo. Bolsonaro não participou do encontro e, no mesmo horário, deu uma entrevista a outro canal de televisão, Rede Record. Seus adversários reagem e tentam barrar a entrevista mobilizando a estrutura jurídico-eleitoral mas entre as incertezas das decisões judiciárias do Tribunal Superior Eleitoral sobre a legalidade ou não da ação do candidato, Bolsonaro ocupa o centro das notícias sobre o assunto:
o) Na petição encaminhada ao TSE, o PT classifica a transmissão da entrevista como desproporcional e absurda. “Ou seja, apesar de Jair Bolsonaro se negar a debater com seus adversários, pretende se utilizar do tempo de uma empresa concessionária de serviços públicos para, de forma privilegiada, expor ao público tudo aquilo que pensa.” O partido diz que, caso a emissora leve a entrevista ao ar, estará caracterizado a existência de abuso de poder econômico e poder religioso, “uma vez que o proprietário dono de 90% da emissora, que também é um líder religioso internacional, utilizará de seu meio de comunicação para conferir tratamento privilegiado ao seu candidato”. A peça foi distribuída para o ministro Carlos Horbach. (Mattoso, 04/10/2018)
Vemos que a decisão de Bolsonaro constrói uma polêmica pública e a mobilização midiática em torno da sua ausência no encontro se torna mais importante do que o próprio conteúdo do debate. Bolsonaro ganha tanta visibilidade que o debate da Rede Globo entre os presidenciáveis gira em torno dele, mesmo sem sua presença. As repercussões midiáticas do programa presentes em nosso corpus passam pelo nome de Bolsonaro, mesmo que ele não estivesse no programa como demonstram
e (q). Identificamos claramente nos exemplos como, ao negar sua ida ao debate, o candidato de retórica populista controla a máquina de produção midiática e política.
p) Sete presidenciáveis debateram ideias, apresentaram propostas e atacaram o candidato ausente, Jair Bolsonaro (PSL), no último debate do primeiro turno, na TV Globo. (G1, 05/10/2018)
q) O último debate do primeiro turno entre candidatos à Presidência na República, nesta quinta-feira (4), teve como protagonista um ausente: Jair Bolsonaro (PSL), que lidera as pesquisas de intenção de voto e foi criticado tanto por não ter comparecido, como por declarações polêmicas que ele e seu vice, Hamilton Mourão (PRTB), deram ao longo da campanha. O evento foi organizado pela TV Globo. (Bermúdez e Barbosa, 05/10/2018)
Ao final da análise, chegamos à conclusão de que o então candidato Bolsonaro investiu em postura polêmica, de ataque a diversos alvos, apostando em uma desconstrução mais do que uma construção de ideais políticos. Dessa forma, mesmo que aparentemente inúteis para o debate eleitoral, as posturas polêmicas deste homem político permitiram uma cobertura midiática em torno dele nos portais de notícias on-line aqui analisados. Tais frases polêmicas permitiram ainda uma tomada de posicionamento em um campo antagônico uma vez que a polêmica, neste contexto, serviu tanto para atacar o adversário como para construir uma identidade coletiva em torno de suas posições políticas, por meio da construção de um ethos de ser de convicção.
Todos esses conflitos nos interrogam sobre o papel da imprensa na divulgação das disputas políticas. Como escreve Lits (2003), “se a confrontação se constrói apenas com homens de partidos, a serviço de posicionamentos eleitorais (do partido ou de um indivíduo em particular), ela não contribui em nada para alimentar o debate público8” (p. 188). Ora, percebemos na nossa análise que essas repercussões serviram mais à visibilidade de Jair Bolsonaro do que a informar os eleitores sobre as propostas concretas dos candidatos. Ou seja, se essas polêmicas tivessem servido para solucionar um problema social, os meios de comunicação teriam cumprido seu papel dentro da democracia. Ao contrário, porém, esses conflitos reforçaram o projeto de poder de um dos candidatos conferindo legitimidade e visibilidade.
4. Conclusão
Com esta análise, mostramos que, do ponto de vista retórico, Bolsonaro usou do discurso polêmico como estratégia de captação, através principalmente de ataques a adversários e a dicotomização de suas posições. Por outro lado, os sites de informações difundiram as falas mais polêmicas de Bolsonaro sem nenhum filtro ou crítica, legitimando ou mesmo normalizando suas ideias extremas e o ajudando na construção de seu ethos. Através desse trabalho, que proporcionou a análise de dois portais de notícias brasileiros, fica claro como o discurso populista, através da argumentação polêmica, consegue atrair a agenda pública e política.
Em resumo, o trabalho explicita como Bolsonaro se aproveitou da capacidade que os meios de comunicação têm de transcrever as intervenções polêmicas para se autopromover usando estratégias oriundas deste tipo de discurso, como a desqualificação do adversário, construção do ethos de convicção e dicotomização de posições. Mostramos na análise que esses mecanismos visaram especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT), principal rival de Bolsonaro, mas passam também pela associação da sua imagem a ideais religiosos, principalmente evangélicos.
Tais posicionamentos foram integrados na agenda midiática dos portais estudados, sem questionamentos nem comentários nos textos, mostrando uma falha importante na gestão jornalística das falas populistas. Nesse sentido, este trabalho propôs ainda a reflexão sobre o papel das mídias tradicionais on-line na difusão de ideias publicadas nas redes sociais privadas dos candidatos. Conforme destacamos, Bolsonaro acabou ganhando mais audiência às suas ideias por conta da divulgação nos media tradicionais de seus posts polêmicos feitos nos seus perfis de redes sociais. Nesse sentido, G1 e UOL ajudaram o então candidato na dispersão das suas pautas que antes eram divulgadas somente a um público-alvo já engajado que os seguia nessas redes sociais.
Observamos que ele parece continuar, em seu mandato atual, a manipular a mídia ao desviar a atenção de outros assuntos mais importantes para o funcionamento da democracia através de falas polêmicas. Concluímos então que, se, de um lado, os meios de comunicação reforçam sua atratividade ao enfatizar os discursos polêmicos, pois estes compreendem acusações e conflitos, de outro lado, os atores de retórica populista aproveitam esta lógica para acentuar comportamentos extremos e assim conquistar a atenção midiática. Acreditamos que a associação entre a propagação de ideias populistas e o discurso informativo ganharia ainda a ser explorada em outros contextos políticos.