Introdução
A convergência mediática convoca a hibridez dos canais (Chadwick, 2017), o que sustenta o argumento de que os públicos são inerentemente cross-media (Schrøder, 2011). Efetivamente, as gerações mais jovens vivem numa realidade tendencialmente híbrida em que o consumo se tornou um processo coletivo (Jenkins, 2006), a tecnologia tem usos cada vez mais individualizados (Livingstone et al., 2007) e performativos, e a relação com conteúdos e aplicações funciona numa lógica multitarefa (van Dijck, 2006). Neste sentido, as escolhas mediadas (Hepp, 2013) e as práticas de usos e apropriações da tecnologia por parte das gerações mais jovens são diferentes de outras gerações (Pacheco et al., 2017).
A investigação tem mostrado que as interações e os processos narrativos coletivos que delas decorrem em plataformas baseadas em aplicações móveis (m-apps) reforçam as relações sociais de poder, perpetuando masculinidades e feminilidades hegemónicas ancoradas à heteronormatividade (Amaral et al., 2021). As masculinidades e as feminilidades representam um ideal (Simões & Silveirinha, 2019), tanto imaginado culturalmente, como transmitido semiótica e discursivamente, do que significa ser e comportar-se como homem e mulher (Amaral et al., 2019). Sendo o género uma construção social (Butler, 1990), as masculinidades e as feminilidades não são naturais, espontâneas, fixas ou imutáveis. Resultam antes de processos sociais e culturais dinâmicos, sendo suscetíveis de serem desafiados, (re)construídos e transformados (Boni, 2002). Daqui decorre que a forma como as pessoas se envolvem com a tecnicidade e os imaginários das aplicações móveis, incorporando-os nas suas práticas do dia a dia, potencia uma (re)negociação das suas identidades sexuais e de género. A forma como as pessoas utilizam as m-apps, se envolvem com a sua tecnicidade e interagem com outros utilizadores tem sido uma questão constante com a emergência de novos meios de interação social (Ohme, 2020). A utilização massiva de m-apps de diferentes categorias, desde plataformas sociais a encontros e jogos, saúde, fitness e aplicações de self-tracking, sugere que as pessoas estão cada vez mais tempo a utilizar aplicações para se ligarem com outras e interagirem com conteúdos multiplataforma. Estas tecnologias móveis tornaram-se uma parte indispensável da vida como uma extensão do self (Zhang et al., 2018). Neste sentido, a utilização que as pessoas fazem e as diferentes apropriações de aplicações móveis são essenciais para compreender como desafiam ou constrangem as suas experiências pessoais, nomeadamente no que concerne à forma como (re)negoceiam as suas identidades sexuais e de género.
A utilização de m-apps por jovens adultos tem sido estudada principalmente a partir da teoria dos usos e gratificações ou da abordagem dos riscos e vantagens. Este artigo assume uma perspetiva crítica dos meios digitais contemporâneos, baseada numa compreensão da tecnologia como produtora de significado, subjetividade e agência. Adotando uma perspetiva crítica dos média digitais contemporâneos e ancorada a uma nova abordagem feminista materialista, esta investigação visa compreender como é que jovens adultos portugueses percecionam os seus usos e apropriações de aplicações móveis para aferir como são negociadas e imaginadas as identidades de género nas experiências dos utilizadores. Por conseguinte, visa compreender se as interfaces mediadas reproduzem ou desafiam imaginários normativos de género. Neste sentido, o estudo parte das seguintes questões de investigação:
1) As m-apps interferem diretamente com as identidades de género e as práticas sexuais de jovens adultos portugueses?; 2) Como são negociadas e imaginadas as identidades de género nas experiências mediadas dos utilizadores?
A abordagem metodológica deste estudo é quantitativa, operacionalizada através de um inquérito a uma amostra representativa de jovens adultos portugueses (1830 anos). Este artigo enquadra-se num projeto mais amplo que visa compreender a relevância das aplicações móveis na vida dos jovens adultos portugueses e as formas como a sua utilização dialoga com os seus contextos e experiências pessoais. As próximas secções discutem a dimensão simbólica das apropriações das interfaces mediadas, as construções sociotécnicas de género e como os jovens se envolvem com o panorama dos media digitais e incorporam as aplicações móveis na sua vida quotidiana. Finalmente, as secções seguintes apresentam a metodologia
do estudo empírico, os resultados, a sua discussão e conclusões finais.
A natureza simbólica das interfaces mediadas
Nas sociedades info-incluídas, o acesso generalizado à tecnologia está diretamente relacionado com a utilização de aplicações móveis. Segundo um relatório do Statista (2021), no ano de 2020 foram descarregadas 218 mil milhões de aplicações do Google Play e da Apple Store. Portugal não é alheio a esta realidade. Em 2021, 87% dos agregados familiares tinham acesso à internet (Eurostat, 2021) e 83,7% às redes sociais (DataReportal, 2022), sendo que se registavam 16,07 milhões de telemóveis. Este último dado traduz-se em 158,3% da população total do país. Logo, as implicações da utilização extensiva e crescente de diferentes tipos de aplicações móveis devem ser consideradas, procurando identificar o impacto da tecnologia sobre as pessoas enquanto sujeitos sexuais e de género.
As utilizações tecnológicas têm lugar e provêm de terrenos culturais e ideológicos específicos, (re)produzindo diferentes tipos de estruturas e hierarquias sociais (Simões & Amaral, 2022). A maioria das m-apps convida os utilizadores a darem sentido aos seus dados de acordo com ideias de masculinidade e feminilidade normativas, dando origem a práticas ancoradas aos tradicionais papéis de género e a relações de poder que criam verdadeiros espaços sociais de género.
Estudos sobre a forma como as pessoas se envolvem com a tecnicidade e os imaginários das aplicações móveis, incorporando-os na sua vida quotidiana, têm demonstrado que as gramáticas e as políticas das plataformas de aplicações móveis podem limitar os desempenhos de identidade dos utilizadores, uma vez que as tecnologias digitais regulam e controlam as apropriações que delas são feitas (Correa et al., 2010). Neste sentido, importa sublinhar que a análise dos impactos destas aplicações deve ser considerada numa dupla perspetiva: a partir da natureza simbólica das m-apps como ambientes de comunicação digital, e sobre a sua dimensão experiencial enquanto ferramenta tecnológica. A partir de uma nova perspetiva materialista feminista (Lupton, 2019), a dinâmica do envolvimento das pessoas com outras pessoas e objetos é considerada profundamente produtiva (Bennett, 2010). Quando as pessoas utilizam tecnologias digitais não estão apenas a consumir modos de pensar comuns, mas estão também a sentir e a incorporar conjuntos afetivos de matéria, pensamento e linguagem (Lupton, 2019), e a gerar capacidades e raciocínios agenciais para dar sentido ao que significa ser e comportar-se como um homem e uma mulher. A partir desta abordagem, o género é entendido como uma construção interligada com aspetos sociais específicos e com as relações de poder que estes estabelecem.
Construções digitais de género: usos e apropriações das m-apps
O estudo da importância do género na vida das pessoas contribui indubitavelmente para uma compreensão da sua natureza socialmente construída. Quando se enuncia a palavra “género”, há a referência implícita a um conjunto de componentes como identidade de género, orientação sexual, ou papéis de género, que se cruzam com questões de raça, sexo, classe, etnia e religião de identidades discursivamente construídas e que se legitimam como um sistema de relações sociais de dominação e subordinação (Simões & Amaral, 2022). Daqui decorre que as identidades de género podem ser até contraditórias (Connell & Messerschmidt, 2005) e, por isso, as masculinidades e feminilidades subalternizadas podem influenciar as formas dominantes através de relações de poder (Santos et al., 2021).
Como a tecnologia produz significado, subjetividade e agência, as práticas digitais estão ligadas à tecnicidade e ao imaginário dos ambientes sociais onde são utilizadas e têm implicações para as decisões pessoais nas práticas quotidianas das pessoas (Boyd, 2015). A complexa interação entre as ferramentas tecnológicas e os seus usos e apropriações implica uma compreensão mais profunda das práticas digitais como artefactos socioculturais, moldados pelas relações de poder (Lupton, 2019). É neste contexto que os estudos feministas dos media desafiam o carácter naturalizado das diferenças de género, na medida em que todas as características sociais significativas são ativamente criadas e não são nem biologicamente inerentes nem permanentemente socializadas ou estruturalmente predeterminadas (Silveirinha et al., 2019).
As tecnologias digitais facilitam novas formas de envolvimento em políticas de género, uma vez que os usos tecnológicos podem gerar contextos sociais, práticas e relações mais emancipatórias (Simões & Amaral, 2022). Além disso, os ambientes digitais podem oferecer novas possibilidades para desempenhos e subjetividades de identidade. Considerando que a internet produz e reproduz papéis sociais, práticas, identidades e atos de opressão, a investigação feminista digital está numa posição única para analisar os complexos efeitos e mecanismos do ambiente digital. As m-apps têm de ser reconhecidas como interfaces mediadas para desempenhos de identidade de género. No entanto, os estudos sobre os usos, apropriações e impactos são variados e raras vezes assumem a lente de género.
A maioria das investigações sobre m-apps centra-se nos usos de redes sociais e representações visuais (Berry, 2017). A partir da teoria dos usos e gratificações, vários estudos têm investigado as apropriações que jovens adultos fazem de plataformas específicas como redes sociais (Khadir et al., 2021), media sociais (Moreno & Whitehill, 2016; Ash et al., 2020; Song et al., 2021), aplicações de media noticiosos (Antunovic et al., 2018) e homebanking (Prom Tep et al., 2020).
A partir do olhar dos estudos feministas dos media, as tecnologias de vigilância têm sempre desempenhado funções disciplinares. Daqui decorre que a investigação sobre desigualdades, relações de poder e mercantilização se tem focado na forma como a tecnologia digital está a produzir certas práticas e entendimentos de identidade e subjetividade, remetendo para a premissa de que as tecnologias digitais são (re)produzidas dentro de ambientes sociais moldados por expectativas e normas de género que estruturam o envolvimento das pessoas (Simões & Amaral, 2022).
Extensões do self: práticas mediadas de jovens adultos
A investigação científica sobre a incorporação de aplicações móveis na vida quotidiana dos jovens adultos está interligada com a utilização de tecnologias de informação e comunicação e de media sociais. Contudo, as m-apps são muito mais diversificadas e incluem várias esferas da vida dos jovens adultos. Dos jogos às compras, dos encontros à saúde e nutrição, do fitness ao autocontrolo, há uma miríade de aplicações móveis utilizadas regularmente por jovens adultos. Danah Boyd (2015) refere que a comunicação móvel está a operar uma reconfiguração das práticas sociotécnicas, o que se traduz na construção e reconstrução da cultura de sociabilidade (Amaral, 2012; Amaral, 2016), estruturas e hierarquias sociais, facilitando o envolvimento da tecnologia em diferentes aspetos da vida quotidiana (Simões & Amaral, 2022).
Atendendo à hibridez do novo ecossistema mediático, a literatura científica tem examinado a forma como os jovens utilizam as tecnologias digitais, interagem com os outros, utilizam os dispositivos digitais na sua vida quotidiana, transformam as suas perspetivas e comportamentos com base nas suas práticas em rede, participam e se associam a movimentos cívicos e políticos (Ohme, 2020), consomem notícias, seguem tendências e influenciadores, fazem amigos, e têm intimidade digital numa lógica multiplataforma que promove experiências ativas (Gerlich et al., 2015).
Considerando a centralidade do digital na vida dos jovens (Jenkins et al., 2016) e a forma como se assume uma extensão do self (Zhang et al., 2018), riscos e oportunidades têm sido linhas de investigação com particular destaque. Os riscos são frequentemente referidos quando se consideram os usos por jovens. Os riscos associados ao vício, cyberbullying, discurso do ódio, exploração sexual online, estilos de vida sedentários, depressão e suicídio são frequentemente elencados na investigação sobre jovens e tecnologias (Sinkkonen et al., 2014; Gerodimos, 2017; Twenge, 2017; Thulin & Vilhelmson, 2019; Amaral & Simões, 2021). Outra linha de investigação centra-se nos aspetos positivos da utilização dos media digitais, enfatizando o ativismo digital, o envolvimento público e cívico, e a participação social e política (Lee et al., 2013; Ekström et al., 2014; Boulianne & Theocharis, 2018).
Atendendo aos diferentes padrões de consumo mediático promovidos pelo ecossistema digital (Gurevitch et al., 2009) e à sua permanente mutação (Thulin & Vilhelmson, 2019), as várias teorias sobre os efeitos dos media sociais (Boulianne, 2015) consideram que estes podem afetar a participação cívica e política (Boulianne & Theocharis, 2018), criando novos repertórios de envolvimento (Cammaerts et al., 2014), promovendo a chamada exposição incidental a notícias (Gil de Zuñiga et al., 2017; Boczkowski et al., 2018) e reforçando a criação de laços sociais (Amaral, 2016). Outras vertentes da investigação olham para a imersão da juventude nos meios digitais na sua vida quotidiana considerando que, embora as tecnologias promovam a interação social, também favorecem o isolamento e a solidão (Thulin & Vilhelmson, 2019). A investigação sobre a juventude também se tem centrado nas identidades sexuais em rede e na internet como lugar de intimidade digital (De Ridder & Van Bauwel, 2015).
No que concerne a jovens adultos, há ainda um campo de investigação muito amplo que se tem dedicado a estudar usos e apropriações de m-apps por homens que fazem sexo com outros homens (Blackwell et al., 2015) abordados em estudos sobre saúde e riscos relativos aos comportamentos sexuais, frequentemente apresentados como patologias. No entanto, estes estudos têm vindo a ser alargados a questões centradas nas culturas sexuais digitais a partir da abordagem da “cultura de dados” (Albury et al., 2017). Esta perspetiva refere-se à mediação digital da intimidade e à forma como os algoritmos registam os dados de utilizadores, monitorizando hábitos e rotinas para “oferecer” sugestões de outros utilizadores e atividades (Light, 2016; Albury et al., 2017). Neste sentido, as negociações e renegociações que os jovens adultos vivem e fazem das identidades de género e sexuais nas aplicações móveis interferem diretamente nas suas culturas de intimidade e sexualidade a partir de uma declarada intrusão tecnológica na vida quotidiana das pessoas (Gillespie, 2014; Mollen & Dhaenes, 2018). A este propósito, sublinhe-se a lógica de geolocalização (Brubaker et al., 2016) subjacente à maioria das aplicações e, muito em particular, as de encontros e media sociais.
A utilização de m-apps por jovens adultos em Portugal tem sido pouco estudada. A maioria dos estudos centra-se nos usos das redes sociais (Pinto et al., 2021) e, mais recentemente, em aplicações relacionadas com a saúde (Bento et al., 2018) e encontros amorosos e/ou sexuais (Vieira & Sepúlveda, 2017). Dada a falta de investigação aprofundada sobre as implicações pessoais dos usos de m-apps entre os jovens adultos portugueses, este artigo decorre de um estudo pioneiro em Portugal que procura contribuir para compreender o papel das aplicações móveis populares na vida quotidiana e como estas se relacionam com os contextos e experiências pessoais desta população específica, tendo em conta as suas diferentes origens. Efetivamente, a investigação crítica sobre tecnologias de vigilância digital tem estado mais preocupada com o impacto das m-apps num contexto sociocultural mais vasto, ajudando a combater ou reforçar desigualdades sociais (Wajcman, 2007; Correa et al., 2010; Whiting & William, 2013; Boyd, 2015). Sem questionar a importância destes estudos, neste artigo defendemos que é necessário um entendimento crítico sobre as ferramentas de tecnologia digital como produtos socioculturais que estão a remodelar as relações de género e as práticas sexuais. Neste sentido, propomos um estudo empírico que visa compreender de que forma as m-apps se intersectam, negociam e potenciam imaginários das identidades de género e práticas sexuais de jovens adultos portugueses, procurando identificar se estas interfaces mediadas reproduzem ou desafiam as perspetivas normativas de género.
Metodologia
Este artigo procura compreender de que forma é que jovens adultos portugueses percecionam os seus usos e apropriações de aplicações móveis para aferir como são negociadas e imaginadas as identidades de género nas experiências dos utilizadores. Daqui decorrem as seguintes questões de investigação: 1) As m-apps interferem diretamente com as identidades de género e as práticas sexuais de jovens adultos portugueses?; 2) Como são negociadas e imaginadas as identidades de género nas experiências mediadas dos utilizadores?.
A partir de uma estratégia metodológica quantitativa, foi aplicado um inquérito por questionário online a uma amostra representativa de jovens adultos portugueses (N = 1500), com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos. A amostra selecionou utilizadores de aplicações móveis, com quotas por sexo e região (Portugal Continental e Ilhas) de acordo com a distribuição da população. O inquérito foi conduzido entre 8 e 17 de outubro de 2021. A amostragem garante uma margem de erro de ± 2,53% ao nível de confiança de 95%. O instrumento é composto por seis grandes blocos - caracterização sociodemográfica, consumos mediáticos, usos de aplicações móveis, experiências pessoais e mediadas e autorrepresentação, literacia digital e intergeracionalidade. Neste artigo, debruçamo-nos sobre as experiências pessoais e mediadas e autorrepresentação. A cada inquirido(a) foi solicitado que indicasse o seu nível de concordância com afirmações seguindo uma escala Likert. Os dados foram analisados utilizando o programa de análise estatística SPSS da IBM, recorrendo a análise estatística descritiva e inferencial (bivariada). Neste sentido, as variáveis analisadas são género, orientação sexual e se vive com os pais. Devido à opção metodológica, o estado civil, emprego e classe social não se revelaram estatisticamente significativamente relevantes.
Resultados e discussão
Conforme mostra a Figura 1, as m-apps interferem diretamente com as identidades de género e práticas sexuais dos(as) jovens inquiridos(as). Os resultados apontam para o facto de a tecnologia se assumir como uma extensão do self (Zhang et al., 2018), onde há lugar para a intimidade sexual (Vieira & Sepúlveda, 2017) e a negociação da identidade de género (De Ridder & Van Bauwel, 2015). Entre as questões centradas em experiências pessoais mediadas e autorrepresentação (Figura 1), mais de metade dos(as) inquiridos(as) declaram que identificam o género nas aplicações em que têm conta (66,2%), utilizam fotografias reais (57,5%) e consideram importante ter uma identidade verdadeira nos perfis das aplicações móveis (56,5%). No que concerne aos usos das apps, os resultados sugerem uma preponderância de conteúdos de entretenimento e inspiracionais. Os dados mostram que 58,9% dos(as) inquiridos(as) se sentem inspirados(as) quando navegam em perfis de algumas pessoas e 57,1% procuram ativamente inspiração nas redes sociais.
Quanto às práticas de uso, a maioria dos(as) inquiridos(as) sente-se confiante com o conteúdo que publica nas redes sociais (58,6%) e também manifesta que pode ser quem realmente é nas apps que utiliza (55,9%). É interessante, ainda, observar que 54,9% destes(as) jovens mantêm os seus perfis privados, 50,5% dizem não se preocuparem com o que os outros pensam das suas publicações, enquanto 45,5% usam algumas plataformas apenas para acompanhar o que outras pessoas publicam. Há ainda um comportamento mais residual, embora interessante, que mostra um extremo oposto: 22,7% da amostra publica conteúdo de forma privada para evitar que a família tenha acesso, 24,7% sentem-se pressionado(a)s para ter conta nas redes sociais e 38% adaptam o conteúdo consoante a plataforma por causa das pessoas que o(a) seguem.
Em relação ao género e comportamentos sexuais online, a maioria não experienciou episódios desconfortáveis ou de violência, embora uma percentagem significativa declare já ter sido abordado(a) por alguém devido ao seu género (27,1%), enquanto 24,1% afirmam que já foram sexualmente assediados(as). Destaca-se também que 28,4% dos(as) participantes admitem não terem coragem de utilizar aplicações de dating, embora 36,4% declarem que já tiveram relacionamentos com pessoas que conheceram online e se sentiram bem com isso. Quando consideramos conteúdos eróticos, 28,8% reconhecem que desamigam pessoas que publicam conteúdo íntimo e 61,1% afirmam que costumam bloquear pessoas que enviam mensagens de teor sexual.
Os(as) inquiridos(as) também responderam a um conjunto de perguntas sobre experiências relacionadas com as suas práticas mediadas por aplicações móveis que se relacionam e interagem com as suas identidades de género e sexuais. As respostas dispunham-se sobre uma escala de Likert, transformada numa escala de 1 a 5, com a seguinte correspondência: 1: “Discordo completamente”; 2: “Discordo”; 3: “Nem concordo, nem discordo”; 4: “Concordo”; 5: “Concordo totalmente”. Foram calculadas as respostas médias, o que indica que uma média mais baixa e perto do 1 e do 2 implica um desacordo médio com a afirmação e, por sua vez, uma média mais alta e perto do 4 e do 5 deve ser lida como uma concordância média com a experiência pessoal em questão.
No que concerne à forma como os(as) jovens negociam e imaginam as suas identidades de género, procurámos identificar um conjunto de usos e experiências digitalmente mediadas, considerando que a própria tecnologia regula e controla a apropriação que dela é feita (Correa et al., 2010). Os resultados mostram o peso da identidade de género nas experiências e nos usos digitais.
A Figura 2, seguindo o índice de concordância da escala acima referida, revela-nos vários padrões médios de concordância com experiências pessoais, variando da média de respostas de 1,74 (baixa concordância média das mulheres inquiridas com a ideia de que marcam encontros íntimos em apps) a 3,34 (alta concordância média dos inquiridos gay1 com a ideia de que fazem uso das apps para conhecer novas pessoas). O género aparenta ser o dado sociodemográfico de maior peso na concordância média com as experiências em questão, de tal forma que os homens registam uma concordância média, estatisticamente, significativamente superior à das mulheres na totalidade das seis experiências. Nesse sentido, a média de respostas entre os homens varia de 3,05 a 2,42 e, por sua vez, a das mulheres varia entre 2,56 e 1,74. De forma semelhante, os(as) jovens adultos(as) que vivem com os pais revelam maiores níveis médios de concordância com as afirmações em questão sobre as suas experiências pessoais de utilização de aplicativos móveis. A concordância média dos(as) inquiridos(as) que vivem com os pais só não é significativamente superior em termos estatísticos à concordância média dos(as) jovens adultos(as) que não vivem com os pais no que toca a marcarem encontros íntimos em apps.
A orientação sexual revela nuances sobre as experiências médias de utilização e apropriação de apps com os seus imaginários de género e sexualidade. Em cinco das seis experiências, são os(as) inquiridos(as) heterossexuais quem menos concordam, em média, com as questões. Os(as) inquiridos(as) bissexuais revelam uma concordância média significativamente superior, por comparação com a resposta média dos(as) heterossexuais, no que diz respeito a utilizarem apps para conhecer novas pessoas (3,17 por comparação com 2,72) e no que toca a verem conteúdos de cariz sexual em apps (2,69 por comparação com 2,29). Ainda em comparação com os baixos níveis médios de concordância heterossexual, destacam-se os níveis de concordância média estatisticamente significativamente superior dos inquiridos gay em relação a marcarem encontros amorosos em apps (2,77 por comparação com 2,02) e ainda em marcarem encontros íntimos em apps (2,71 por comparação com 2,01), como mostra a Figura 2.
A amostra representativa de 1500 jovens adultos portugueses respondeu a questões sobre a utilização de aplicações de dating, como se vê nas Figuras 2 e 3. Cerca de dois terços da amostra afirma nunca ter utilizado aplicações móveis de dating, sendo que pouco mais de 31% dos jovens adultos portugueses assumem utilizar (10,80%) ou já ter utilizado (20,67%) apps com este fim. Os resultados demonstram que existem nuances sociodemográficas na utilização de apps de dating. Os homens revelam uma utilização atual de apps com este fim significativamente superior à das mulheres (16,38% em comparação com 5,90%), o que é corroborado com a taxa de respostas negativas estatisticamente superior de mulheres face a homens (74,37% em relação a 57,04%).
A relação destas respostas com a orientação sexual revela-nos uma tendência de não utilização de apps de dating por parte dos jovens adultos portugueses que se assumem como heterossexuais (69,27%), que é estatisticamente superior a todas as restantes orientações sexuais apresentadas na Figura 3, destacando-se os 37,14% de inquiridos gay como a menor percentagem que nunca utilizou apps com esses fins. Entre as respostas de utilização atual dessas apps ou de utilização no passado, registam-se variadas percentagens significativamente superiores por parte dos jovens que se assumem como lésbica, gay ou bissexual, em comparação com a menor utilização assumida pelos(as) inquiridos(as) heterossexuais.
O dado sociodemográfico da vivência dos(as) inquiridos(as) com os pais ou outros adultos encarregados não aparenta ter consequências na utilização de apps móveis de dating por parte dos jovens adultos portugueses, de tal forma que não se registam diferenças estatisticamente significativas.
Dentro do universo de 472 pessoas (31,47%) que responderam utilizar ou já ter utilizado aplicações móveis de dating, foi questionado quais as três aplicações favoritas com esse fim. Houve sete aplicações que foram respondidas por mais de 5% dessa amostra de 472 jovens adultos(as), o que inclui apps de dating e apps cujos objetivos são outros mas que são apropriadas com propósito de dating, (como o Facebook e o Instagram), como mostra a Figura 4. O Tinder destaca-se, reunindo 375 respostas (79,45%). Na Figura 4 encontram-se os resultados cruzados com as variáveis de género, orientação sexual e a questão de viver com pais/familiares. O Tinder é especialmente respondido como uma das apps favoritas para dating pelas mulheres (60,47%), de forma significativamente superior às respostas de homens (47,91%). De igual forma, essa aplicação é respondida pelas inquiridas que se identificam como lésbicas (76,92%) de forma estatisticamente superior à das restantes orientações sexuais.
O Badoo foi a segunda app de dating mais respondida, tendo, de acordo com os resultados, uma utilização estatisticamente superior por parte de homens (22,64% em comparação com 17,39%) e dos(as) inquiridos(as) heterossexuais (22,24%), em especial por comparação com quem se assume como lésbica (7,69%) ou gay (13,33%). O Bumble e o Facebook não revelam nuances de preferência estatisticamente relevantes.
O Grindr - app de dating para homens que têm sexo com outros homens - é igualmente popular ao Tinder junto dos inquiridos que se definem como gays (35,56%, o que é significativamente superior às respostas das outras orientações sexuais). É na preferência pelo Grindr que se encontra a única nuance estatisticamente significativa em relação aos inquiridos que não vivem com os seus pais (5,11% em comparação com 2,92% que vivem com os seus pais). Esta questão de viver ou não com pais aparenta não implicar preferências de apps de dating diferentes. Sendo o Grindr uma aplicação desenhada para homens, enquadra-se a preferência estatisticamente superior de pessoas que se identificam como homens deste estudo (5,05%).
O Instagram é outra aplicação (re)apropriada com fins de dating segundo os resultados. A preferência por esta aplicação é relativamente equilibrada, com os homens (6,15%) a se destacarem estatisticamente das mulheres (2,77%). O Happn também aponta por preferências relativamente equilibradas entre as variáveis, destacando-se apenas a taxa de respostas entre lésbicas (7,69%) que é significativamente superior às respostas de inquiridos heterossexuais e bissexuais (3,49% e 3,09%, respetivamente). Salienta-se ainda que as jovens adultas que se identificam como lésbicas não responderam uma única vez as apps Facebook, Grindr ou Instagram, e os jovens adultos que se identificam como gays não responderam uma única vez a app Bumble (Figura 4).
Conclusões
Esta investigação explora os usos de aplicações móveis por jovens em Portugal com a perspetiva de contribuir para um campo de estudo ainda emergente. Considerando o caráter construído das identidades de género (Butler, 1990) e a incorporação das m-apps no quotidiano das pessoas, os resultados apontam que 66,2% dos jovens portugueses identificam o género nas aplicações em que têm perfil e 37,9% afirmam que o género é a representação da sua identidade. Esses dois resultados reforçam a relevância desta questão nos espaços digitais mediados como forma de representação pessoal, simbólica e social. Importa mencionar que 19,2% dos(as) participantes do inquérito respondem que o género pelo qual se identificam não está disponível na maioria das apps que usa. Daqui se infere que as interfaces digitais podem moldar, limitar ou impor imaginários binários e normativos.
Outro aspeto que sugere que há uma influência e subordinação à vida digital é a referência ao hábito de diferenciar ou classificar os conteúdos publicados para cada plataforma, de acordo com os contactos nela adicionados (38%). É possível inferir que este é apenas um comportamento padrão relacionado à cultura de uso - apropriações feitas pelos utilizadores que são necessariamente condicionadas pelas plataformas (Burgess & Green, 2009; Omena et al., 2020). No entanto, este estudo vai além das apropriações feitas no uso de partilha de conteúdo ou no tipo de publicação mais recorrente, e identifica o que está presente nos imaginários e motivações de jovens adultos portugueses nos ambientes digitais via aplicações móveis. Entre os exemplos dessas motivações e imaginários, destacam-se os resultados que explicitam comportamentos como publicar conteúdo de forma privada para que os familiares não tenham acesso (22,7%), detestar pessoas que causam polémica nas redes sociais (46,9%), o interesse em tentar identificar a orientação sexual nos perfis das pessoas que segue ou com que se relaciona online (19,7%) ou, ainda, já ter abordado pessoas por causa do género delas (16,9%). Constata-se também que, para 32,5% dos(as) inquiridos(as), permanecer sem o telemóvel - o principal meio de acesso a apps - provoca ansiedade. Esse dado reforça as discussões sobre saúde mental e o uso da tecnologia, especialmente relacionadas às aplicações de redes sociais (O’Reilly et al., 2018) e da plataformização da sociedade (van Dijck, 2018).
De acordo com os resultados, as diferentes práticas de utilização de aplicações móveis por parte dos(as) jovens adultos(as) portugueses(as) são moldadas em função das suas identidades de género e sexuais. Diferenças essas que se registam, nomeadamente, pela orientação sexual dos(as) próprios(as) jovens adultos(as). Os(as) inquiridos(as) heterossexuais aparentam ser os que menos necessitam de apps para poder agir e apropriar-se da técnica de acordo com as suas identidades de género e sexuais, como demonstra a generalidade de baixos níveis médios de concordância com as afirmações da Figura 2. No uso particular de aplicações de dating, os(as) jovens adultos(as) heterossexuais afirmam de forma significativamente superior que não utilizam ou utilizaram esse tipo de apps (69,27%). Mesmo no que concerne a inquiridos(as) heterossexuais que utilizam ou utilizaram apps de dating, há nuances nas preferências das apps para esses fins em relação a outras orientações sexuais. Deste modo, os resultados apontam para a ideia de que a orientação sexual influencia os comportamentos relacionados com questões da intimidade e dos imaginários das identidades de género e sexuais.
Além da orientação sexual, o género e a questão de viver com os pais ou não também impactam a forma como os(as) jovens adultos(as) imaginam, negociam e interagem intimamente nos espaços das suas identidades de género e sexuais através das aplicações móveis. Daí destaca-se uma generalização maior do nível médio de concordância com as afirmações da Figura 2 por parte dos(as) jovens que vivem com os pais. Também se destaca a significativa superioridade das mulheres ao afirmarem que não utilizam ou alguma vez utilizaram apps de dating, como se observa na Figura 3.
Os resultados deste estudo demonstram que a agência tecnológica pessoal das práticas quotidianas das pessoas (Boyd, 2015) é influenciada em diferentes aspetos por fatores sociodemográficos como o género, a orientação sexual e a questão de viver com pais.
Neste estudo encontram-se interferências na utilização de m-apps, em especial de âmbito íntimo, no que toca às identidades de género e sexuais dos(as) jovens adultos portugueses. Destacam-se ainda outros dados sociodemográficos como a questão de viverem com os pais ou não, no que concerne a essa questão na utilização de aplicações móveis, o que por sua vez também se interliga, seguramente, com as identidades de género e sexuais e a capacidade e necessidade de as negociar e imaginar através de aplicações móveis.
Verifica-se que as m-apps interferem diretamente com as identidades de género e as práticas sexuais de jovens adultos dependendo das affordances das plataformas, o que molda, condiciona e constrange substancialmente a forma como são (re) negociadas e imaginadas estas identidades nas experiências mediadas, nas perceções do outro e nas próprias autorrepresentações.