1. O retorno dos coletivos
Diz uma passagem conhecida do escritor Eduardo Galeano:
O mundo invertido nos ensina a sofrer a realidade em vez de mudá-la, esquecer o passado em vez de ouvi-lo e aceitar o futuro em vez de imaginá-lo: é assim que pratica o crime e o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são obrigatórias aulas sobre impotência, amnésia e resignação. Mas vê-se que não há infortúnio sem graça, nem rosto que não tenha sua contrapartida, nem desânimo que não busque seu alento. Também não há escola que não encontre sua contra-escola. (Galeano, 2010, p.30) 1
O Brasil da Covid-19 trouxe um espectro de dor, desalento, tristeza, inconformismo e mortes, mas, como ensina Galeano tudo tem sua contrapartida e assim, no cenário de horror, uma força pulsante e concreta percorreu todos os espaços empobrecidos da cidade do Rio de Janeiro, como também de muitas outras localidades do país, e decidiu não permitir que a pandemia se instalasse e executasse o que o poder público, com sua persistente política de abandono, tem realizado há décadas. É neste cenário de pré-carnificina que surgem os novos coletivos: uma força emergente destinada a cumprir as tarefas que caberiam a um governo destinado a cuidar da sua população.
Mas afinal o que vem a ser um coletivo? Como substantivo, é uma palavra relativamente recente em português. Fica mais bem explicitado como coletivo social, isto é, como um tipo de organização social que reúne agentes ou entidades para a consecução de um objetivo comum. Não é o mesmo que cooperativa, caso em que a organização visa a um benefício de natureza econômica ou comercial. Evidentemente, as duas noções estão próximas, mas o coletivo tem atualidade nas formas mais recentes de movimentação social, seja de natureza artística, seja de natureza política. Assim, por exemplo, o “coletivo” de uma minoria determinada dentro ou fora de uma instituição. Iniciar uma investigação a partir da etimologia do conceito sempre permite uma maior aproximação. O substantivo não vem como tal do latim, mas o verbo colligo significa aglomerar ou juntar, e daí vem collatus com sentido afim, assim como o adjetivo collectivus (que tem registro em dicionário histórico francês, mas não no Oxford Latin Dictionary). Em francês, “coletivo” existe como substantivo desde 1802, quando foi usado como “collectif budgétaire”, conjunto das disposições da lei de finanças. Por influência do russo, “un collectif” (1901) designa grupo de trabalho e, depois, grupo de ação. Hoje, em francês, serve mais para se referir a uma assembleia acadêmica. Existe também como substantivo em inglês, collective, com o sentido de ação em comum. Já em português, coletivo é uma importação recente.
Coletivo, pode ser entendido como aquilo “que agrupa” ou como antônimo de individual, porque o individualismo se opõe frontalmente ao coletivismo. Mas o coletivismo também poderia se opor ao comunitarismo, a partir da distinção que o filósofo alemão Herman Schmalenbach estabelece entre comunidade (Gemeinschaft) e liga (Bund). Para Schmalenbach (1975) comunidade possui uma configuração estática e se refere apenas às relações consanguíneas e de vizinhança, ao passo que, para liga, ele reserva uma plêiade de intensos sentimentos comuns e de emoções coletivas. A partir dessa concepção pode-se vislumbrar o campo nocional do que o cientista político francês Bertrand Badie (1991) vai nomear como “solidariedade social”, ou seja, um modelo de interação social que surge em momentos de crise e que pode, por sua natureza, propiciar o surgimento de fenômenos de “resistência comunitária”. Neste sentido, a partir do entrecruzamento de forças opostas, como sugere o escritor Galeano, seria possível no contexto atual, marcado pela presença do individualismo como força motriz global, propiciar o surgimento de mobilizações marcadamente comunitárias, partindo do sentimento que cada integrante confere aos seus propósitos de interações, dando origem à emanação da “solidariedade comunitária” (Badie,1991, p.113). Badie prevê inclusive que se trate de uma mobilização capaz de efetivamente promover mudanças sociais.
De fato, a preocupação com o bem comum e com a ação voltada para o coletivo se contrapõe definitivamente aos propósitos de uma sociedade marcadamente individualista e com forte tendência a uma ética utilitarista. Desta maneira, pode-se afirmar que a perspectiva da ação coletiva e a presença de coletivos em uma sociedade e em determinado período é propiciada por propósitos comunitaristas, na medida em que a lógica do pertencimento, da vinculação e da preocupação com o grupo norteiam sua existência.
Os coletivos, vistos enquanto grupos de ação no corpo social, com propósitos de mobilização, agregam a face mais potencializadora das estruturas comunitárias. Algo que se aproxima da ideia da força dinâmica do “estado nascente”, de que falava o teórico italiano Francesco Alberoni (1968). Nesse livro, Alberoni demonstra, conectando conceitos da sociologia e da psicologia, que o agrupamento pode ocorrer independente de ideologias, partidos políticos, religião. E afirma que esta junção entre pessoas se faz de uma maneira mais presente diante de catástrofes e guerras, especialmente em face a constatação de desestruturação social e falência das instituições. Em um quadro de pré-anomia, esses grupamentos trazem uma possibilidade regenerativa.
Mas é mesmo no seu livro “Movimento e istituzione”, originalmente de 1977, revisitado e reeditado em 2014, que ele objetiva e traz detalhes sobre o surgimento dos coletivos e, especialmente, provê uma perspectiva de que sejam eles os responsáveis pelo nascimento de novas instituições no corpo social. Entretanto, é o momento inicial, o “statu nascenti, o momento dinâmico, marcado pelo sentimento de revolta, do sonho de renovação radical, de uma solidariedade que dá vez ao pacto social” (Alberoni, 2014, p. 12) é que nos interessa em particular, porque é o que define a formação do coletivo. Que tipo de força é capaz de fazer com que se rompam as barreiras do individualismo e possa provocar o desejo de aglutinação e atuar em direção ao bem comum? Essa é uma questão em pauta que este presente trabalho não pretende esgotar, uma vez que se trata de uma temática em estudo e que exige abordagens e sondagens amplas e que estão em curso. Porém o que se pretende, desde já é apontar essa como uma temática importante a ser analisada e paralelamente trazer como estudo inicial a pesquisa empírica em torno desses coletivos e em particular com enfoque
no Coletivo Frente Maré, que atua na Favela da Maré, no Rio de Janeiro.
É necessário alertar que, neste momento da pandemia causada pelo Sarscov 2 (Covid19), no mundo inteiro, mas especialmente no Brasil, constatamos o surgimento de inúmeros coletivos. É um processo que já vinha se consolidando nos últimos 10 anos, mas que diante do impacto global causado pela pandemia, especialmente em lugares com tanta disparidade social e econômica como no Brasil e diante da situação política, em que a população foi impelida a um enfrentamento solitário, a ação dos coletivos foi o único aporte informacional e até mesmo econômico mais permanente com que as populações empobrecidas puderam contar. A presença no contexto social global de grupos organizados e mobilizados a partir de questões e pautas específicas é algo que metodologicamente mais se tem presente a partir dos anos 60 em diversas partes do planeta. Na França, por exemplo, diversos autores chegam mesmo a denominar toda uma década como “efervescência associativa dos anos 60”. Trata-se de uma aura reivindicativa que colocou lado a lado as antigas associações, como organizações sindicais, associações culturais e, em especial, grande número de grupos e associações surgidos a partir da aceleração da urbanização periférica.
Portanto, é preciso pontuar primeiramente que os movimentos reivindicativos estão inseridos no contexto da cidade. O contexto urbano e as desigualdades de acesso aos bens citadinos produzem o ambiente contestatório e reivindicativo que caracteriza essa efervescência. Na agenda, apesar da pluralidade temática, de uma maneira geral o foco está concentrado nos pressupostos da sociedade civil, da convivência e do exercício pleno da cidadania. De uma maneira geral, os movimentos procuram romper com o individualismo e o isolacionismo. O movimento norteado pela consciência ecológica surge neste contexto, alcançando um espraiamento global, tendo como fator determinante uma das características principais dos novos movimentos que é o pertencimento à lógica territorial. Uma certa desvinculação com a política partidária também é outra característica que marcou os movimentos surgidos naquele contexto. Inúmeros autores se debruçaram sobre a natureza desses movimentos que, a despeito de não possuírem uma estrutura organizacional ou partidária rígida, possuíam um altíssimo nível de adesão e uma orquestrada coesão entre os seus membros, capaz de torná-los um grupo com lastros mais comunitários que associativistas. Após a efervescência europeia desses movimentos, seguiu-se um momento na América Latina em que eles se fizeram muito presentes, alguns deles conectados a partidos políticos, muitos com projetos em que a comunicação se transformava em proposta de ação, com rádios comunitárias, por exemplo. Havia emissoras de rádio vinculadas a movimentos políticos, partidários, mas também educativos e principalmente ligadas à necessidade de democratização do acesso aos bens existentes no espaço urbano. Era a década de 70, que também se expandiu para a década de 80, quando a democratização soprou seus ventos em todo o continente. A década de 90 e o novo milênio trouxeram a formação de grupos concentrados principalmente em questões raciais e de gênero, mas também da posse da terra, numa clara disposição de corrigir as permanentes investidas de poder extrativista, patriarcalismo e capitalismo predatório vigentes nos países do hemisfério sul.
Em março de 2020, quando teve início o período pandêmico no mundo e o governo federal brasileiro adotou como política pública o desconhecimento do cenário global e as recomendações da Organização Mundial de Saúde, para em seguida adotar como política de saúde pública a utilização de um tratamento precoce que levou milhares à morte, em função de não ter qualquer comprovação científica, o desespero tornou-se o sentimento catalisador. Isso porque diante do fato de que, em todo
o mundo, a adoção de medidas para a contenção do contágio era seguida à risca,
o Brasil incentivava medidas de negação da existência da pandemia, gerando uma mortandade com reconhecida subnotificação e que até a presente data se aproxima dos 700 mil brasileiros. Nesse contexto de abandono, os coletivos urbanos assumiram para si o papel de realizar campanhas de esclarecimento, doação de máscaras, álcool em gel, cestas de alimentos e até mesmo pagamento de contas de água e luz executadas normalmente pelas empresas privadas responsáveis pelos serviços.
2. Cidadania e incivilidade no contexto brasileiro
Apesar de etimologicamente a palavra “cidadania” estar relacionada à “cidade”, não é comum incluir como direitos de cidadania a apropriação do espaço urbano pelos seus habitantes, tornando-o acolhedor e habitável, apartando a possibilidade da degradação e também do não acesso aos serviços públicos. Por esta razão, sugere-se analisar cidadania principalmente como a apropriação coletiva e democrática por todos os membros do grupo. Habitar uma cidade envolve, dessa maneira, papéis que podem caracterizá-la como uma cidade acessível e aberta em contraposição a uma cidade inacessível e fechada.
Esta perspectiva da apropriação da cidade e do acesso aos seus direitos confere ao espaço urbano uma compreensão quanto ao exercício e convivência civis. O contrário também pode ser considerado, na perspectiva de uma “sociedade incivil” (Paiva & Sodré, 2019; Sodré, 2021), compreendida como o espaço urbano fechado, principalmente a partir da vertente do novo capitalismo, marcadamente financeiro, responsável pela deterioração econômica, política e social até então salvaguardadas pelo liberalismo clássico. A “sociedade incivil” elege como interlocutor prioritário o indivíduo-cidadão, que isolado passa a ser o grande e único responsável por si mesmo. A cidade se torna cada vez mais fechada, ou seja, se configura como espaço de existência da “sociedade incivil”, na medida em que inicialmente define segmentos e estratos sociais prioritários para o exercício pleno de seus direitos de cidadão e elege os que estarão fatalmente alijados dessa prerrogativa. O consumo, a mobilidade urbana, o lazer, o acesso aos equipamentos de cultura, a segurança, as redes de informação e até mesmo a água potável interpõem-se como escalas e limites entre o civil e o incivil.
Estes já eram, antes da pandemia pelo Sarscov 2, considerados limites intransponíveis dentro do espaço urbano. Com a Covid-19, além da morte causada pela doença, as dificuldades de acesso aos serviços de saúde, a impossibilidade de isolamento social2 e de manutenção de empregos, as cidades brasileiras e seus cidadãos foram imediatamente colocados diante de limites que se tornaram a cada dia mais visíveis e intransponíveis. Cerca de 19 milhões3 de brasileiros encontram-se em insegurança alimentar, ou seja, já não podiam mais ter garantias de ter o que comer. A esse quadro soma-se o número de desempregados de 11,6% da população4, ou seja, um total de 12 milhões de brasileiros desempregados5. Muitas outras variáveis poderiam ser elencadas para demonstrar a situação limite que o país atravessa, em especial com o desalento político provocado por um governo que se apartou desde o seu início em 2018 das causas da população que o elegeu. Por isso, impõe-se a pergunta sobre o significado de se falar sobre cidadania nesse cenário.
Nesse contexto, da sagração da “sociedade incivil”, a urgência e a emergência dos coletivos representam a única possibilidade em muitas áreas, como a alimentar de superação rumo ao exercício cidadão. É preciso reconhecer o dado de que 82% da população das favelas no Rio de Janeiro6 só tiveram acesso à alimentação graças às doações a partir da ação dos coletivos. A sociedade civil e mesmo algumas instituições públicas responderam ao chamado dos coletivos nos momentos em que a pandemia atingiu de maneira mais forte a população com o aumento do número de mortes7. Portanto, é preciso atribuir aos coletivos as campanhas para conscientização da população em geral para o problema dos moradores das favelas, que enfatizavam a necessidade das doações. Mas também o gerenciamento dos recursos que possibilitou a atuação estratégica, acompanhando o desenvolvimento da transmissão do vírus e das mortes, à tardia chegada da imunização e ao agravamento da crise financeira.
Como hipótese a ser investigada, é de se supor que a ação efetiva dos coletivos na cena urbana brasileira, em particular no Rio de Janeiro, tem sido capaz de resgatar o caráter cívico da sua população. Entretanto, não é possível prever ainda a natureza dessa cidadania e nem mesmo se será capaz de fazer frente ao avanço da sociedade incivil. Um aspecto a ser considerado é o fato de que as doações também seguiram os fluxos da contaminação pelo vírus e em muitos momentos praticamente chegaram ao nível de impedir a continuidade das ações dos grupos.
Como suporte para estes questionamentos sobre o exercício da cidadania no contexto da “sociedade incivil”, é importante também mencionar as reflexões do economista e cientista social americano Mancur Olson, que trouxe à tona com o seu livro “Logic of Collective Action”, em 1965, a discussão em torno do dilema do porquê alguns grupos de indivíduos racionais são envolvidos pela ação coletiva, ao passo que outros não. O argumento central de Olson é que os atores racionais não participam da ação coletiva, a menos que incentivos seletivos os persuadam a fazê-lo.
O pensamento de Olson tem sido aplicado aos estudos sobre a participação em movimentos sociais, por tentar explicar por que as pessoas não participam deles apesar do interesse que têm nas suas metas e objetivos. A perspectiva Olsoniana parte de pressupostos individuais, desconsiderando as redes sociais e, mesmo, a questão da solidariedade entre grupos e causas. Entretanto, é possível considerá-lo um autor basilar nesses estudos, porque a partir de sua linha de compreensão pode-se discernir os obstáculos postos no caminho para a mobilização comum.
3. A Frente de Mobilização da Maré
Em março de 2020, assim que começaram as notícias sobre a pandemia da Covid-19, comunicadores e comunicadoras comunitárias atuantes do Conjunto de Favelas da Maré8, na Zona Norte do Rio de Janeiro, se reuniram para construir uma estratégia de comunicação para disseminar notícias relacionadas à pandemia com foco nas particularidades dos moradores. As recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) ganharam o noticiário nacional e mundial, mas muitas dessas recomendações não tinham como foco as necessidades das favelas do Rio de Janeiro. Afinal, as favelas e periferias do Rio sempre sofreram com a falta constante de água, de saneamento básico, de acesso à serviços públicos de saúde e com o desemprego.
Cinco pessoas que já atuavam de alguma forma na comunicação comunitária interna da favela começaram a formular uma estratégia de comunicação sobre os riscos de transmissão da Covid-19, com foco específico nas particularidades e na realidade de cada uma das 16 favelas da Maré. Alguns vieram do Jornal O Cidadão, outros do Maré Vive, do Bloco se Benze que Dá, do Coletivo Maré 0800, da Agência Labirinto, outros ainda são fotógrafos independentes. Ao passar das semanas, após a chegada de mais integrantes, o coletivo ganhou um nome: Campanha Frente de Mobilização da Maré contra Covid-19.
O objetivo inicial era o de fomentar ações que levassem informações sobre a importância da proteção, da necessidade de hábitos de higiene e do respeito ao isolamento social. Inicialmente, foram produzidas frases para faixas a serem colocadas nas ruas das favelas e para a produção de cards para uso em redes sociais. Toda a produção de conteúdo era compartilhada com todos os moradores e comunicadores atuantes da “Frente”, profissionais de saúde revisavam e, depois, eram impressos ou publicados nas redes sociais.
As faixas foram para as principais ruas da favela, onde se têm maior circulação de pessoas. Algumas organizações atuantes na Maré doaram recursos para a impressão de cartazes e compra de fitas adesivas. Os cartazes eram colados nos postes, nas casas, portões de prédios, estabelecimentos com grande circulação de pessoas, assim como igrejas, associações de moradores, padarias, supermercados e passarelas.
Nesta mesma época, com o valor de arrecadação que chegava à conta pessoal de um dos integrantes, os comunicadores ampliaram os formatos de comunicação com o objetivo de atingir maior número de pessoas, pois na segunda reunião ainda presencial realizada pelo coletivo, foi discutida a preocupação de que nem todos os moradores tinham acesso a leitura (para ler as faixas e os cartazes) como também nem todos tinham acesso à internet, para ler os cards que estavam sendo publicados nas redes sociais das diferentes mídias comunitárias da Maré. A partir daí se cogitou a ideia do aluguel de carros de som para circular pelas ruas de toda a Maré. Foi produzido um roteiro e gravado um áudio. O carro de som foi alugado e começou a circular nas principais ruas da Maré. Importante destacar que neste período os moradores permaneceram em suas casas, as ruas da favela ficaram vazias e as igrejas ficaram fechadas durante meses. Inicialmente, o carro de som só podia passar em 10 das 16 favelas da Maré que compõem todo o conjunto de favelas por causa das disputas territoriais entre grupos.
Apenas no final de 2020, os integrantes da Frente Maré conseguiram autorização da Associação de Moradores das outras seis favelas para que o carro de som pudesse circular por toda a favela. Importante enfatizar que a campanha só começou a ser feita nestas seis favelas porque muitos moradores relataram o aumento no número de casos de óbito pela Covid-19. Naquela época, meados de 2020, os testes ainda não estavam disponíveis na rede pública de saúde.
De março até meados de 2020, é possível afirmar que houve um esforço coletivo dos moradores de permanecerem em suas casas. Os comunicadores da Frente entenderam a necessidade do carro de som ser permanente, porque conseguiam atingir um maior número de pessoas. O carro de som era alugado no valor de 1.200 reais e circulava por 2 a 3 horas por dia por semana. Assim, os recursos que chegavam eram destinados a produção de faixas, aluguel do carro de som, compra de kits de higiene e de EPI para os integrantes da Frente que estavam nas ruas.
O motorista, proprietário do carro e que circulava com a propaganda da campanha da Frente, também se tornou referência para a população local e muitas vezes relatou ser parado por moradores alegando ser a pandemia uma mentira, e que era tudo fake news. Mas também estava parado porque as pessoas queriam conseguir álcool gel 70%, máscaras e alimentos. Nesse período, muitos moradores começaram a perder seus empregos, muitos sem conseguir pagar aluguel e comprar alimentos. Os integrantes da Frente perceberam então que o desemprego e, consequentemente, a fome estava aumentando. Por causa dessas solicitações, além da produção de materiais de comunicação, a Frente passou para as doações de produtos de higiene/limpeza e alimentos distribuídos durante o período de crise.
Como a Frente Maré era uma iniciativa nova, houve a necessidade da criação de uma assessoria de imprensa para divulgar sobre o que era o coletivo e seus objetivos. A partir dessa divulgação nas mídias comunitárias, populares e comerciais, um maior número de pessoas, organizações e coletivos se aproximaram. No final de 2020, havia aproximadamente 120 voluntários, além da adesão de cerca de 20 coletivos9. A Frente Maré ganhou visibilidade e logo os apoios aumentaram, com recursos financeiros, mas também doações de máscaras, álcool, remédios e nebulizadores. Uma das organizações que fez parte da Frente foi o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm)10. Em parceria com a Fiocruz, conseguiram durante quase todo o ano de 2020 mais de quatro mil cestas de alimentos e kits de higiene por mês. A partir desse momento, o espaço do Museu da Maré foi cedido para que a Frente pudesse atuar, já que era necessário um galpão para armazenar as cestas e kits de higiene. Neste período, a Frente foi dividida em grupos de trabalho para a melhor organização das tarefas: GT Comunicação; GT Cadastro; GT Captação e recursos (Finanças) e GT Mobilização/Rua. Finalmente, com o agravamento da pandemia e aumento no número de mortes, as reuniões passaram a ser realizadas online. No GT Comunicação foram criadas as redes sociais (Facebook, Instagram, Youtube, Twitter) e a produção do site, além da produção de mensagens/ofícios para organizações, sindicatos, empresas, universidades e artistas com o objetivo de ampliar a arrecadação. No GT Captação de Recursos, optou-se pela “vakinha online”. Também foram pesquisados inúmeros projetos para tentar editais.
Para evitar aglomeração na porta do Museu da Maré, foi decidido que o melhor seria entregar as cestas nas casas das pessoas cadastradas e, assim, uma van e dois carros foram alugados semanalmente para a distribuição dos alimentos, kits de higiene e gás de cozinha pela favela. O GT cadastro criou um formulário online para cadastrar os moradores que mais precisavam receber cestas básicas. Em menos de um dia de divulgação do cadastro, mais de 15 mil pessoas se inscreveram. Os integrantes da Frente selecionaram aqueles com maior necessidade porque o número de cestas era muito menor do que o número de inscritos e esse fato gerou uma crise interna na Frente, diante da difícil situação de ter que escolher as famílias a serem beneficiadas. Importante reforçar que se somavam as dificuldades inerentes à doença, à falta d’água e às operações policiais que nesse momento se intensificaram dentro das favelas. De parte do governo, não havia qualquer assistência aos favelados. Todo o trabalho realizado em 2020 pela Frente de Mobilização da Maré não foi planejado e que até mesmo a iniciativa de formar o coletivo, foi norteada pelo sentimento de sobrevivência, da necessidade de salvar a própria vida e amenizar os impactos da pandemia e das consequências financeiras, políticas, psíquicas e sociais. O coletivo agia pela demanda e a estrutura era organizada a partir dos problemas que surgiam. Apenas com a formação dos grupos de trabalho e a assessoria de imprensa a Frente conseguiu ter mais visibilidade e foi possível pensar em um planejamento financeiro semanal. Por ser uma iniciativa nova e que de alguma forma trazia uma resposta imediata para os problemas da favela, os integrantes eram chamados para participarem de inúmeras lives: universidades, artistas, jornalistas, movimentos sociais, organizações de direitos humanos locais, nacionais e internacionais, convidavam os componentes e, com isso, o grupo ganhava mais visibilidade, o que significava sempre um saldo positivo, porque a cada divulgação, conseguiam-se mais doações e apoios. Durante o ano de 2021, a Frente conseguiu atender cerca de 400 famílias com doações de cestas básicas por mês. Entretanto, no final do segundo ano de pandemia, com a queda nas doações de alimentos e de doações financeiras para compra e montagem das cestas básicas e com a paralisação do auxílio emergencial dado pelo governo federal, a Frente Maré constatou o aumento do desemprego e fome principalmente para populações negras e pobres.
Diante desse quadro, a Frente Maré decidiu pensar em alternativas mais efetivas para conseguir atender aos mais vulneráveis da favela. Os efeitos da pandemia nas favelas vão muito além da preocupação com o contágio da Covid-19, com 68% dos moradores de favela não têm dinheiro para comer (Data Favela, 2021) e muitas famílias fazem menos de duas refeições por dia, chegando a passar fome.
Por isso, como meta, o coletivo passou a se concentrar na construção de uma cozinha solidária, que só foi possível devido à parceria com organizações locais, como o Ceasm e o Museu da Maré, que mais uma vez cedeu o CNPJ para se tentar editais como o edital da Fiocruz, voltado para os coletivos de favelas e periferias que estavam na linha de frente contra a Covid-19. A Frente foi selecionada e recebeu o valor de 50 mil para a construção da cozinha.
Logo após as obras no Espaço Palafitas (prédio emprestado pela Associação de Moradores para a Frente de Mobilização da Maré) eletrodomésticos foram comprados, enquanto parte dos alimentos são doados por coletivos de comunicação comunitária como o Voz das Comunidades, Movimento Favelas na Luta, Coalizão Negra dos Direitos e por comerciantes da Maré, além do Circo Voador. O público-alvo da Cozinha da Frente são os moradores e moradoras das ocupações de moradia de dentro da Maré e, também, aqueles que estão desempregados, ou pagam aluguel ou se encontram neste momento em situação de rua. Até o momento foram 9 meses de ações da Cozinha Solidária da Frente, ao todo já foram atendidas aproximadamente 6 mil pessoas com quentinhas ou lanches. Além dos voluntários que já atuam na Frente nestes dois anos de surgimento do coletivo, muitos moradores que são atendidos pela Frente, com doações de cestas ou de quentinhas, também participam atuando tanto na produção dos alimentos como na montagem de quentinhas durante os dias de ações de solidariedade, quando se atende um maior número de pessoas. A própria comunidade tem se envolvido com o projeto, passando também a cuidar do espaço, limpando, organizando e participando das reuniões presenciais. Ou seja, as atividades passaram a ser ainda mais colaborativas.
Nos dias de ações da Cozinha, a divulgação da distribuição das quentinhas funciona no boca-a-boca, os moradores avisam a todos para que busquem senhas no Espaço Palafitas. As senhas são distribuídas pela manhã e na hora do almoço as pessoas vão buscar suas quentinhas. Entretanto, infelizmente nesses dias de ações da Cozinha, o número de quentinhas distribuídas é sempre menor do que a demanda, com inúmeras pessoas deixando de serem atendidas.
O processo de preparação do almoço ou dos lanches requer sempre mais tempo do que os dias de ações de distribuições. Os voluntários e voluntárias da Frente se reúnem dias antes para pensar o cardápio, calcular a quantidade de alimentos, além das ações a limpeza de todo o espaço e da cozinha. O objetivo é que a Cozinha funcione com as distribuições gratuitas até o final de 2022. Novas tentativas de apoios financeiros estão começando a ser feitas para garantir essa distribuição. Em paralelo ao funcionamento da Cozinha Solidária da Frente, os integrantes pensam também em formar uma escola para ensinar as pessoas a cozinharem, garantindo assim, recursos para o espaço e utilizando cada vez mais a cozinha para benefício da favela.
4. Backstage ou Procedimentos Metodológicos
Algumas razões levaram as autoras a optar por concentrar o foco do presente trabalho na Frente Maré e pode ser importante iluminá-los. O primeiro deles é explicitar o contexto em que a pesquisa vem sendo realizada desde o início da pandemia de Covid 19 no mundo e no Brasil, a partir de 15 de março de 2020. Desde o primeiro momento, observou-se que os espaços populares, as favelas, foram deixadas de lado pelos governos e os próprios moradores passaram a se organizar, gestando novas formas organizativas, como o texto trouxe. O Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária, LECC, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e criado coordenado por uma das autoras desde 1997 optou por concentrar todos os esforços na direção dessa nova realidade e dos novos movimentos surgidos.
A pesquisa teve início com o mapeamento dos novos movimentos, os coletivos, como eles próprios se intitularam desde o primeiro instante. E como todos passaram a utilizar as redes sociais essa foi a ferramenta inicial. Após o mapeamento passou-
-se a realizar contatos no sentido de complementar as informações básicas sobre os coletivos. Ainda não estávamos realizando entrevistas estruturas, aplicação de questionários e mesmo workshops e cursos de curta duração, sobre as temáticas de interesse dos grupos. Tudo isso foi feito e continua sendo realizado ao longo desses quatro anos e ainda continuará a ser investigado nos próximos quatro anos, uma vez que a proposta é consolidar o olhar sobre os novos movimentos sociais, a utilização massiva das mídias sociais e plataformas digitais e a ampliação de horizontes de atuação, uma vez que a pandemia, se não está superada totalmente encontra-se em estágio avançado especialmente a partir das vacinas.
Portanto, trata-se de uma pesquisa em andamento e como tal possui duas fontes de financiamento: o governo federal, a partir do CNPq e Capes, responsáveis pelas bolsas de pesquisador sênior de uma das autoras e de doutoramento da outra. E ainda o governo estadual, uma vez que o enfoque prioritário são os movimentos do Rio de Janeiro, via a Faperj Fundação de Apoio a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - que financia por quatro anos a pesquisa, com um escopo de ação que engloba a pesquisa teórica e empírica e em especial a pesquisa-ação, nos moldes traçados por Jahoda, Lazarsfeld e Zeisel (1996), de intervenção na realidade. No momento, o Laboratório está atuando com cerca de 60 coletivos do Rio de Janeiro e a previsão é que este número deva aumentar nos próximos anos, especialmente porque a temática em torno da covid tem migrado para outras mais prementes como demonstrado no texto com a questão da fome, da violência policial, do racismo, da violência contra mulheres.
A atuação basicamente tem sido a realização de mapeamento, posteriormente a análise detida de cada coletivo, com trabalho de campo, etnográfico, entrevistas em profundidade com os integrantes dos grupos, análise da produção realizada pelo coletivo e finalmente realização de minicursos atendendo a demanda dos coletivos. Muitas vezes a demanda não se restringe a questões do universo da comunicação comunitária ampliando para questões jurídicas, que foi uma reivindicação do grupo e que o Laboratório considerou fundamental em função principalmente da possibilidade do resgate da cidadania.
Finalmente é necessário explicar o porquê do presente trabalho ter se concentrado no coletivo da Frente Maré, o que se faz importante porque nesse caso especifico amplia-se o escopo teórico e metodológico trabalhado, uma vez que uma das autoras é moradora atuante da Favela da Maré e uma das responsáveis pela existência do grupo. A autoetnografia e seu aporte teórico bem como os questionamentos em torno do papel e importância intelectual orgânico transformam-se também em ferramentas para a realização do doutoramento da pesquisadora.
5. Considerações Finais
A atuação da Frente Maré é um dos exemplos desses novos movimentos que, surgidos no ambiente pandêmico e sem contar com ações sociais do governo, têm produzido uma efetiva alteração no tecido social urbano. Alguns elementos compõem o perfil dessa nova forma de militância urbana. Em primeiro lugar o componente direcionado a um propósito específico de subvencionar os mais necessitados e à beira da pobreza. A capacitação para constituir pólos capazes de produzirem mudanças no tecido social foi uma categoria por nós formulada no final dos anos 90 como “comunidades gerativas” (Paiva, 2004), ou seja, grupos reunidos em prol de uma ação imediata e de grande impacto social.
Por outro lado, ainda é cedo para perceber qual o caminho que os coletivos irão adotar nos próximos contextos. Se continuarão a mobilizar a sociedade civil, se serão até mesmo capazes de se transformar em novas instituições dentro da estrutura urbana, se tendem a alterar o curso de sua ação, na medida em que se vislumbre o final da pandemia. Ou até mesmo se irão concluir sua atuação, configurando-se como outra categoria por nós formulada no início do novo milênio, que é a das “minorias flutuantes” (Paiva, 2003), em referência a grupos que surgem com um perfil e uma proposta de atuação fundamentais em um contexto específico, mas que são igualmente suscetíveis de se dissolverem ou se transmutarem, assim concluída a sua diretriz principal. Entretanto, para além do percurso que os coletivos irão adotar, é importante enfatizar que sua atuação já se faz inédita na história da humanidade também pelo fato da utilização de maneira integral das plataformas e aplicativos da virtualidade. O aspecto em torno de novos perfis da comunicação comunitária é temática necessária, uma vez que se o período pandêmico trouxe perspectivas até então impensáveis para a humanidade e maneiras diferentes de lidar com elas, a comunicação também é parte dessa mutação e certamente sofreu uma transformação com o novo formato de movimento. Efetivamente, sem essa adesão ao novo ambiente virtual, esses novos grupos, praticamente não existiriam. Graças a virtualidade puderam ter o vigor de divulgarem suas campanhas em pleno período de confinamento, além da capacidade de irmanarem populações dispersas territorialmente.