Introdução
Este estudo tem por base a cobertura da imprensa de um caso que envolveu a oposição de uma família de Famalicão à frequência, pelos seus dois filhos adolescentes, da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento (CeD), obrigatória nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico desde o ano letivo 2018/2019. Invocando a objeção de consciência, os pais defendem que alguns dos tópicos integrados na componente de CeD são da responsabilidade da família e não da escola. A não frequência da disciplina por parte destes alunos levou o Ministério da Educação a decidir, num primeiro momento, a sua não progressão escolar por faltas. Em novembro de 2021, num período posterior ao contemplado neste estudo, a comunicação social deu conta da decisão do Ministério da Educação em aprovar a progressão condicionada dos dois alunos. Em nota enviada à imprensa, a tutela justificou a decisão não só pelo excelente desempenho escolar dos alunos nas restantes disciplinas, mas também pela necessidade de garantir “a proteção do bem-estar emocional dos alunos e o saudável desenvolvimento das suas aprendizagens, para que não sejam eles os únicos prejudicados pelas posições assumidas pelos seus encarregados de educação» (DN/ Lusa, 2021). O caso tinha, entretanto, chegado ao Tribunal de Família e Menores de Vila Nova de Famalicão, tendo o procurador responsável pedido que os dois irmãos ficassem à guarda da escola em período letivo, por considerar que os pais estariam a colocar em perigo a educação e a formação dos jovens. Já no fecho de 2022, foi anunciado o arquivamento do caso nesta instância, ficando a decisão sobre a progressão (ou não) dos alunos a cargo dos tribunais administrativos (Lusa, 2022).
Este caso foi objeto de discussão no espaço público mediático, sobretudo a partir da publicação, a 1 de setembro de 2020, do manifesto “Em Defesa das Liberdades de Educação”, promovido por Manuel Braga da Cruz, professor universitário, e assinado por diversas personalidades públicas, entre as quais o cardeal patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, o ex-Presidente da República Aníbal Cavaco Silva e o ex-Primeiro-
-Ministro Pedro Passos Coelho. O manifesto recorre a diversos documentos oficiais para sustentar os argumentos dos signatários que se manifestam contra a obrigatoriedade da disciplina. São exemplos desses argumentos (“Manifesto Em Defesa das Liberdades de Educação”, 2020):
Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948, art. 26.º)
Os Estados […] comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais […] de escolher para seus filhos (ou pupilos) estabelecimentos de ensino diferentes dos dos poderes públicos [...] e a assegurar a educação religiosa e moral dos seus filhos em conformidade com as suas próprias convicções Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966, art. 13.º);
É garantido o direito à objeção de consciência, nos termos da lei Constituição da República Portuguesa (art. 41.º).
Dias após a publicação deste manifesto, que avivou a cobertura e a discussão do caso pelos e nos media, surge o contra manifesto “Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção”, promovido pela jornalista Helena Ferro Gouveia, e que recolhe o apoio de centenas de signatários. Entre outros aspetos, este contra manifesto defende a obrigatoriedade da disciplina no currículo escolar, argumentando que:
A Educação para a Cidadania e para os Direitos Humanos não pode ser classificada como ‘ideológica’, uma vez que ajuda as alunas e alunos a distinguir entre o que é ‘ideologia’ e ‘conhecimento’.
Não é razoável nem aceitável que um conhecimento básico sobre os Direitos Humanos e a Cidadania de todos os humanos seja considerado opcional.
É uma disciplina que permite que todos conheçam os seus direitos, respeitem os direitos dos outros e conheçam quais os deveres que coletivamente têm para construir uma sociedade mais equitativa, inclusiva e fraterna. (“Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção!”, 2020)
Dada a relevância educativa e social do assunto e a sua extensa mediatização, e levando em linha de conta a missão do MILObs Observatório sobre Informação, Media e Literacia (milobs.pt), investigadores ligados a este observatório entenderam analisar o modo como o caso, e a polémica que o envolveu, foram objeto de cobertura pela imprensa, mais especificamente por seis jornais nacionais (Correio da Manhã, Diário de Notícias, Expresso, Jornal de Notícias, Observador e Público). Partindo da ideia de Couldry e Hepp (2017) de que o mundo social construído pelo ser humano está dependente do enquadramento e do contexto, este estudo pretende compreender como foi coberto e apresentado o caso, como foi debatido, quais foram os argumentos apresentados, o que foi dito e o que não foi dito.
2. Mediatização, cobertura mediática e processos de construção da realidade
O objetivo central do presente artigo consiste em caraterizar, compreender e questionar a cobertura mediática de um caso que começa por ser um problema familiar e escolar e que se converte rapidamente num problema de impacte nacional, pela sua mediatização e através dela.
A ideia de “cobertura” deve ser problematizada, dado que ela pode admitir uma gama de posicionamentos que vão do simples “conceder” atenção, espaço e tempo à tomada de iniciativas próprias, passando pelo acompanhamento e reporte do que se vai passando. O resultado, do ponto de vista daquilo que chega aos cidadãos, pode ser completamente diferente.
Os estudos jornalísticos ajudaram-nos a compreender os processos e as lógicas através das quais uma certa matéria se converte em notícia e pode gerar “ondas noticiosas” (van Atteveldt, 2018). As decisões tomadas por quem seleciona, faz a agenda, investiga, edita e hierarquiza a informação são condicionadas por valores e mundividências, quer relativamente ao conteúdo e alcance da informação quer acerca dos seus destinatários.
Uma visão autorreferencial do jornalismo tende a centrar estas decisões e influências apenas na esfera da produção jornalística (redações, profissão, empresas, grupos de media…). Na verdade, como demonstraram as séries de estudos sobre o agenda-setting inspirados no seminal estudo de McCombs e Shaw (1972), são múltiplos os processos e os níveis através dos quais se dá a produção daquilo que se poderia chamar uma agenda pública. À luz do que hoje se conhece, não basta atender à capacidade dos media de influenciar aquilo que preocupa as pessoas. É necessário também prestar atenção à capacidade de certas instituições (económicas, políticas, culturais…) de “agendar” os próprios media. E seria preciso, em tempos de redes sociais e plataformas digitais, considerar igualmente como a lógica algorítmica exerce ela própria influência no agendamento mediático.
Estes processos de construção social da realidade, estudados por Berger e Luckmann (1966), estão longe de ser exclusivos do jornalismo e dos media, mas adquirem, no terreno mediático, um significado eminente, dado o papel que este campo tem na construção das perceções do público.
Nas últimas décadas, o conceito de mediatização ganhou destaque no âmbito do estudo sobre as mudanças ocorridas nos e pelos media (Strömbäck, 2008), tendo sido utilizado para “caracterizar o modo como os media adquiriram uma influência extensa na sociedade” (Frandsen, 2020, p. 29).
Concretamente, a mediatização é encarada como uma tentativa de englobar num único termo o conjunto das consequências da influência dos media no dia-a-dia da sociedade e da rápida propagação dos conteúdos mediáticos pelas diferentes plataformas (Livingstone, 2009). Para alguns autores, trata-se de uma relação entre a crescente evolução e mudanças verificadas nos media e o seu impacto nas diferentes instituições culturais e sociais (Couldry & Hepp, 2013, 2022; Hjarvard, 2008). Desta forma, podemos afirmar que a mediatização coloca a tónica nas situações em que as instituições e estruturas da sociedade são, de facto, modificadas pela influência dos media (Mattoni & Treré, 2014). Ou seja, podemos encarar a mediatização como um conceito que expõe as mudanças ocorridas no ambiente mediático em que nos inserimos, isto é, um mundo em que os media e a construção social da realidade estão profundamente ligados (Couldry & Hepp, 2022).
Os media surgem, assim, como construtores de um mundo social no qual se assumem como principal fonte de informação e, simultaneamente, como plataformas que trazem os temas e problemas para a discussão na esfera pública. No caso da polémica em torno da disciplina de CeD, a cobertura mediática feita sobre o tema permitiu certamente ao público em geral tomar consciência de uma matéria cuja existência a maioria provavelmente ignorava. E de se aperceber que se trata de um assunto sobre o qual há visões e posicionamentos diferentes, entre os cidadãos. Porém, como este estudo pretende sublinhar, isso pode não ser suficiente para municiar a cidadania com informações e argumentos necessários a uma compreensão substantiva daquilo que está em jogo.
3. Contextualização curricular da Disciplina Cidadania e Desenvolvimento
A formação em contexto escolar da cidadania e dos seus valores está prevista na legislação portuguesa desde 1986, altura da publicação, em Diário da República, da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) (Lei nº46/86, de 14 de outubro). No diploma, que tem como objetivo definir o quadro geral do ensino português, estão consagradas as regras que regem o sistema educativo.
No que respeita à cidadania, a LBSE (1986) prevê que o sistema educativo seja organizado de forma a permitir o desenvolvimento dos alunos, da sua personalidade e da sua noção de cidadania, para que estejam aptos a refletir crítica e conscientemente sobre diversos valores e, a partir daí, construírem um desenvolvimento cívico equilibrado.
Em 2017, no seguimento do Despacho n.º 6173/2016, de 10 de maio, é criado o Grupo de Trabalho de Educação para a Cidadania (GTEC) com o objetivo de delinear uma Estratégia de Educação para a Cidadania. Como resultado, surge, em 2017, a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) que reúne um conjunto de competências, valores, direitos e deveres que devem integrar a formação cívica dos jovens, em convergência com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e com as Aprendizagens Essenciais.
É neste contexto que surge a disciplina de CeD. Introduzida gradualmente no plano escolar português no ano letivo de 2017/2018, sob a forma de projeto-piloto, a disciplina está, atualmente, integrada nos planos curriculares de todos os níveis de ensino da escolaridade obrigatória, sendo aplicada de forma transversal no 1.º ciclo, lecionada como disciplina autónoma no 2.º e no 3.º ciclo do ensino básico e desenvolvida, no ensino secundário, através do contributo de todas as disciplinas e componentes de formação. Nestes níveis de ensino, a CeD pode ser estruturada e operacionalizada de acordo com a oferta curricular do estabelecimento de ensino, ou seja, trimestral ou semestralmente, por exemplo (GTEC, 2017).
A componente de CeD é estruturada em três grupos de conteúdos (Tabela 1). O primeiro, referente a áreas transversais e longitudinais, é obrigatório para todos os anos de escolaridade; o segundo grupo de conteúdos (onde se incluem os media) é obrigatório em, pelo menos, dois ciclos do ensino básico; o terceiro é de cariz opcional para qualquer nível ou ano de escolaridade (GTEC, 2017).
Grupo | Ciclo de aplicação | Conteúdos |
---|---|---|
1º Grupo | Obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade | Direitos humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade) Igualdade de género Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa) Desenvolvimento sustentável Educação ambiental Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico) |
2º Grupo | Obrigatório em, pelo menos, dois ciclos do ensino básico | Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva) Media Instituições e participação democrática Literacia financeira e educação para o consumo Segurança rodoviária Risco |
3º Grupo | Opcional para qualquer ano | Empreendedorismo (nas suas vertentes económica e social) Mundo do trabalho Segurança, defesa e paz Bem-estar animal |
Fonte: GTEC, 2017. Elaboração própria
De acordo com a proposta do GTEC, a disciplina de CeD integra um conjunto de direitos e deveres que devem ser trabalhados junto de crianças e jovens, cabendo à escola um papel de destaque na construção da cidadania dos alunos, promovendo a tolerância, a justiça social, a igualdade e os Direitos Humanos (GTEC, 2017).
4. Métodos
A análise da cobertura deste caso pela imprensa foi orientada pelas seguintes questões: Quem foi e quem não foi ouvido pelos/nos media? Que géneros jornalísticos foram privilegiados pela imprensa? Como foi feita a cobertura pelos jornalistas? Que argumentos foram apresentados por quem se posicionou a favor e contra a disciplina? Quais as visões de escola e de criança que tais argumentos deixam transparecer? De que forma a análise dos conteúdos publicados aponta para modos de construção social da realidade pelos media? O que ficou por dizer?
Para esta análise foram selecionados seis jornais nacionais: quatro diários Correio da Manhã (CM), Diário de Notícias (DN), Jornal de Notícias (JN) e Público; um semanário Expresso; e um digital Observador. Mesmo apresentando características distintas entre si (não só em termos de periodicidade, mas também de linha editorial e suporte de publicação), o facto de, em conjunto, formarem o grupo das principais publicações de cariz informativo generalista do país, levou a que fossem incluídas neste estudo1. Considerou-se, igualmente, a probabilidade de o semanário Expresso e o jornal digital Observador permitirem alargar o leque das visões e perspetivas daqueles que são críticos da CeD.
Para a constituição do corpus de análise foi selecionado o período temporal de 1 a 30 de setembro de 2020, ou seja, um mês após a publicação do manifesto “Em Defesa das Liberdades de Educação” que acendeu a discussão. Na pesquisa, decorrida nas semanas seguintes ao período de análise estipulado, foram utilizadas as seguintes palavras/expressões: “cidadania”, “cidadania e desenvolvimento” e “educação para a cidadania”. Com exceção do Observador, para todos os restantes jornais, para além do levantamento online, foram pesquisadas também as edições impressas e todos os artigos encontrados sobre o tema foram analisados.
No total, foram recolhidas 148 peças (notícias, artigos de opinião, editoriais e entrevistas) sobre o tema 43 no Público; 38 no Observador; 24 no JN; 19 no CM; 14 no Expresso e 10 no DN publicadas no período selecionado para a análise (Figura 1).
As peças jornalísticas foram analisadas quantitativa e qualitativamente, tendo por base um conjunto de categorias descritas na tabela 2.
Categorias | Descrição |
---|---|
Géneros jornalísticos | Caracterização de todas as peças recolhidas de acordo com o género jornalístico em que se inserem |
Posicionamento face à disciplina de CeD | Análise ao posicionamento de entrevistados e autores de artigos de opinião e editoriais relativamente à obrigatoriedade da disciplina |
Argumentos a favor e contra a disciplina | Análise aos argumentos apresentados a favor e contra a obrigatoriedade da disciplina |
Autores das peças | Identificação e análise dos autores de artigos de opinião, editoriais e entrevistados relativamente ao género e à categoria profissional |
Fontes de informação | Identificação e análise das fontes de informação ouvidas nas peças do género notícia relativamente ao género e à categoria profissional |
Funcionamento da disciplina | Identificação de referências aos moldes de funcionamento da disciplina nas escolas |
Direitos das crianças | Identificação de referências aos direitos das crianças, seja através de diplomas oficiais ou através do papel da criança no processo educativo (o direito a ser ouvida) |
Fonte: Elaboração própria
5. O dito e o não dito nos e pelos media
5.1 Volume de produção jornalística
O primeiro passo para compreender a cobertura mediática do caso dos dois alunos de Famalicão implica um mapeamento da produção jornalística das publicações analisadas ao longo do período estudado. O maior volume de produção concentra-se na primeira semana, entre 1 e 8 de setembro, após a publicação do primeiro manifesto, tendo atingido o pico no dia 4 de setembro, data em que foi lançado o contra manifesto. Neste dia, contabilizam-se, ao todo, 14 peças, onde se incluem sete notícias, seis artigos de opinião e uma entrevista (Figura 2).
Num exercício semelhante (Figura 3), procedeu-se à análise da distribuição das peças por género jornalístico. Tal como será detalhado no ponto seguinte, verifica-se a predominância de artigos de opinião face aos restantes géneros jornalísticos. O período inicial após a publicação do primeiro manifesto é o que reúne maior e mais variada produção no que se refere a géneros: entre 1 e 12 de setembro foram lançadas 106 peças (72% do total) dos diferentes géneros jornalísticos categorizados. A análise revela, ainda, um período de seis dias, entre 14 e 19 de setembro, em que apenas são publicados artigos de opinião. As notícias são retomadas a 20 de setembro, no seguimento do envio, por parte de um grupo de cidadãos católicos, de uma carta aberta ao cardeal patriarca de Lisboa e ao bispo de Aveiro em crítica à associação de ambos ao primeiro manifesto.
5.2 Classificação dos artigos quanto ao género jornalístico
Dos 148 artigos recolhidos, 61% das peças (75) são artigos de opinião e 47%
(69) são notícias. Com menor expressão, surge a entrevista (2%; 3) e o editorial (1%; 1) (Figura 4).
Olhando cada publicação, verifica-se que o maior volume de peças pertence ao Público (29%) e ao Observador (26%) onde, em ambos os casos, predominam os artigos de opinião (em conjunto, as duas publicações reúnem 68% do total de peças deste género jornalístico). Além do Público e do Observador, também no DN os artigos de opinião superam os de género noticioso. Nos casos do CM, Expresso e JN a tendência inverte-se e são as notícias que surgem em maioria. Em particular, o JN merece destaque por incluir, além das notícias e artigos de opinião, um editorial (o único presente na amostra recolhida) e uma entrevista sendo, por isso, a publicação mais diversificada no que refere aos géneros jornalísticos dedicados ao tema (Figura 5).
5.3 Artigos de opinião, editoriais e entrevistas: posicionamento dos autores e entrevistados
Esta análise teve como objetivo categorizar a posição assumida pelos autores dos artigos de opinião, do editorial e dos entrevistados2 (N= 78 artigos). As notícias não foram incluídas neste exercício por se considerar que, pela sua natureza, uma notícia deve cingir-se a factos e manter a imparcialidade no tratamento do tema.
Os resultados revelam que 54% das peças (n= 42) apresentam-se a favor da obrigatoriedade da disciplina, enquanto 33% (n=26) assumem uma posição contra. Em 13% dos artigos (n=10) o autor não revela um posicionamento claro face ao tema (ver Figura 6). Estes dados ilustram bem o pensamento de Gamson et al. (1992) sobre a ausência de neutralidade dos media e o impacto destes na construção da realidade. O predomínio claro de determinadas posições face à disciplina de CeD em alguns dos jornais analisados permite vislumbrar a presença de perspetivas políticas e linhas editoriais, de mais difícil constatação sem a realização de uma análise sistematizada.
Transportando a análise para cada uma das publicações (Figura 7), verifica-se que os artigos a favor da obrigatoriedade da disciplina estão em maioria
em quase todos os jornais. Com 24 artigos, o Público é o jornal que reúne um maior volume de vozes favoráveis à obrigatoriedade de CeD no currículo escolar, seguindo-se o JN, com seis artigos e o DN, com quatro. O Expresso é a única publicação em que todos os artigos contemplados na análise (seis) assumem uma posição a favor.
Contrariando esta tendência, no Observador predominam os artigos com uma posição contra a obrigatoriedade da disciplina. O caso é particularmente relevante, uma vez que as 14 peças nesta categoria correspondem a 54% do total de artigos de posição contra recolhidos em todas as publicações. Já o CM é o único jornal que não apresenta qualquer artigo de opinião favorável à obrigatoriedade de CeD, reunindo quatro peças contra e três onde o autor não refere opinião.
5.3.1 Análise dos argumentos contra e a favor da obrigatoriedade de CeD
O manifesto “Em Defesa da Liberdade de Educação”, que colocou o caso dos alunos de Famalicão na esfera mediática, apresenta os principais argumentos que sustentam a defesa da não obrigatoriedade da disciplina. Esses argumentos remetem para o direito à objeção de consciência, o compromisso do Estado em respeitar a liberdade dos pais no que se refere à educação moral dos filhos e a obrigação do Estado de não programar o ensino de acordo com orientações ideológicas.
Desta forma, os argumentos contra o caráter obrigatório de CeD surgem como um apelo à neutralidade do Estado na educação moral dos alunos, atribuindo essa responsabilidade à família, em especial no que respeita a determinados temas da disciplina. Recorrendo a diversos diplomas oficiais para sustentar este argumento, algumas das vozes contra a obrigatoriedade da disciplina frisam que o Estado deve atuar apenas como elemento colaborativo da educação que os pais pretendem dar aos filhos: “a primazia dos pais quanto à educação dos filhos - com a consequente posição subsidiária do Estado (presta um serviço, não ordena) - é matéria de direito natural, abundantemente consagrada em declarações internacionais de direitos, em textos constitucionais e nas leis” (Castro, 2020). Por outro lado, há ainda quem argumente não se tratar de uma disciplina do foro científico e que as áreas lecionadas e, em particular, os moldes em que são lecionadas, procuram formatar a mente dos alunos. Esta é uma ideia defendida, por exemplo, pelo jurista João Gonçalves, que escreve que “o Estado, do ‘marcellista’ ao do PS do primeiro Soares, jamais me impingiu uma ‘ideologia’ ou um ‘modo de vida’” (Gonçalves, 2020) ou por Armando Esteves Pereira, diretor-adjunto do Correio da Manhã, para quem é “irónico que o mesmo Estado que deixa ao critério dos pais a vacina contra o sarampo, imponha a vacina ideológica na escola” (Pereira, 2020).
Por sua vez, o contra manifesto “Cidadania e Desenvolvimento: a Cidadania não é uma opção” defende a obrigatoriedade de CeD, contrapondo a ideia de se tratar de uma disciplina ideológica com o argumento de capacitação dos alunos com as ferramentas e os valores que lhes permitirão fazer escolhas conscientes sobre vários aspetos da sociedade e distinguir o que é ideologia e doutrinação daquilo que é conhecimento. Um outro argumento apresentado no manifesto alerta para o risco de desigualdade entre os alunos fora do contexto escolar devido à possibilidade de contacto e de discussão de temáticas abordadas na disciplina, devendo a escola, por esse motivo, assegurar igualdade de oportunidades aos alunos.
Contudo, os argumentos a favor vão além dos apresentados no manifesto. Entre autores de artigos de opinião e fontes de informação ouvidas nas notícias, há quem defenda que a ética e a cidadania não deveriam estar sujeitas à objeção de consciência e que, ao não se defender a disciplina de CeD, condiciona-se a consciência individual e coletiva. Sustenta-se, por exemplo, tratar-se de uma componente letiva que ensina os alunos a formularem opiniões e a tomarem decisões adequadamente, e que “[os jovens] até poderão escolher não exercer a cidadania (...), mas escolha pressupõe conhecimento e este não é incompatível (antes complementar) com tudo aquilo que se aprende no seio da família” (Correia, 2020).
Alguns dos intervenientes, embora sublinhem que “há assuntos que podem ser discutidos (por exemplo, a religião), mas face aos quais o Estado e a escola pública não podem nem devem tomar qualquer posição” e outros que “podem ser discutidos e defendidos pelo Estado e pela escola pública (por exemplo, o voluntariado ou a separação de resíduos), mas em que a decisão quanto ao que fazer é da esfera privada e pessoal” (Correia, DN), encaram o Estado enquanto responsável pelo ensino da cidadania. O ser cidadão, e a educação para as componentes que integram esta disciplina, é tido como uma construção complementar entre a escola e a família e não como uma oposição entre estes dois pólos: “a discussão traz à boca de cena a velha e pensava eu! ultrapassada a dicotomia escola-família, como se uma e outra não estivessem sempre ‘condenadas’ a intervir no modelar da consciência cívica dos jovens” (Vaz, 2020).
Por detrás das posições contra e a favor da disciplina de CeD, parecem esconder-se duas visões opostas da instituição escolar. Os argumentos de quem se opõe à lecionação de Cidadania remetem para uma visão mais tradicional de escola, em que para usarmos uma ideia de Manuel Sarmento (2011) a criança fica à porta e quem entra é apenas o aluno. Aluno esse que ali se desloca para aprender conteúdos de diferentes matérias, pensadas como neutras, apolíticas. Pelo contrário, a argumentação dos apologistas da lecionação de CeD aponta para uma ideia de escola pensada já não apenas para crianças na sua condição de alunas, mas também de cidadãs. Deste modo, vai ao encontro dos Direitos de Participação, que a Convenção sobre os Direitos da Criança veio conceder aos membros mais jovens da sociedade. Quem se posiciona a favor, transmite a ideia de que, na escola, as aprendizagens a fazer devem ir além da matéria constante dos manuais escolares e abranger a vida em sociedade. Tomando, desta vez, emprestada uma expressão de Paulo Freire, este grupo parece abraçar a ideia de que a escola deve abarcar o ensino da “leitura do mundo”. Em oposição, ainda, com quem se manifesta contra CeD, este setor parece não conceber a possibilidade de um ensino neutro, apolítico, da mesma forma que não concebe a escola como local onde não se estimule o pensamento e o espírito crítico dos alunos, ambos pensamento autónomo e reflexivo e espírito crítico vistos como antídoto contra qualquer tentativa de doutrinação.
Por último, é essencial referir o único ponto comum a unir os lados da polémica, embora sustentado em argumentos diferentes: o facto de os dois alunos de Famalicão serem prejudicados devido à posição assumida pelos pais.
5.4 Género dos autores das peças e fontes de informação
Os autores dos artigos de opinião e as fontes ouvidas nas notícias, no que toca ao género e à profissão, foram também objeto de análise. Pretendeu-se com este exercício conhecer os atores que deram corpo à cobertura mediática da polémica, bem como verificar quem não foi escutado, o tal ‘não dito’ pelos media.
5.4.1 Autores das peças: género e categoria profissional
Relativamente aos autores, e à semelhança do que aconteceu na análise à posição assumida nas peças, a equipa considerou apenas os artigos de opinião, as entrevistas e o editorial. Para este exercício foi contabilizado o número total de autores, independentemente da quantidade de artigos que tenham assinado (N=73 autores)3.
A análise ao género revela, de forma clara, uma maior presença de autores masculinos (74%) face aos femininos (26%), tendência que se mantém numa análise por publicação. Tendo por base o volume de artigos publicados, a situação é particularmente notória no Observador, onde apenas dois dos 18 autores são mulheres, e no Público, que conta com apenas nove autoras face a 22 homens (Figuras 8 e 9). Estamos, mais uma vez, na presença de um dado que ilustra a ausência de neutralidade por parte dos media, tendo como eventual consequência a transmissão para a audiência (ainda que de uma forma inconsciente) da ideia de que quem detém o domínio da opinião no espaço público é o sexo masculino.
Através da distribuição dos autores face à sua carreira profissional (ver Figura 10) verifica-se que os professores universitários/investigadores (33%) e jornalistas/ colunistas (19%) reúnem a maioria dos artigos de opinião. Em menor escala, é possível encontrar profissionais da área das Letras (11%), políticos (10%) e profissionais da área de Direito (8%), no entanto, apenas 3% dos autores das peças são docentes do ensino básico5. Como já referido, a disciplina de CeD é de caráter obrigatório no ensino básico e, sendo esta uma polémica em torno dessa mesma obrigatoriedade, é notória a falta de voz de docentes, coordenadores de ciclo/agrupamentos escolares ou diretores pedagógicos, que poderiam contribuir para o debate a partir da própria realidade vivida nas escolas e, em particular, no âmbito da disciplina e das suas componentes. Entende-se, naturalmente, o espaço dado a cronistas (regulares e não regulares) de diferentes áreas, como o Direito para garantir uma visão sobre a legislação ou áreas não relacionadas com a temática, como a Psicologia, a Economia ou o Jornalismo, uma vez que estes autores poderiam dar o seu parecer não só como cidadãos, mas eventualmente como pais. No entanto, a falta de artigos de opinião assinados por quem está ligado ao ensino escolar obrigatório é notória e abre uma lacuna na visão sobre os objetivos e o funcionamento da disciplina lacuna que, como veremos no ponto de análise dos dados, os jornalistas não colmataram, mobilizando-se para ouvir as vozes que não se expressaram, por iniciativa própria, nos espaços de opinião.
Relativamente aos artigos de opinião, fez-se o exercício de contar quantos dos seus autores eram colunistas dos jornais e quantos eram colaboradores pontuais. De um total de 70 autores (não se contabilizaram, naturalmente, os entrevistados para apurar este dado), percebe-se que 57% são pessoas que habitualmente assinam textos de opinião nos órgãos de comunicação em análise e 43% correspondem a contributos episódicos. Estes números espelham bem o interesse que o assunto despertou na opinião pública, levando a que várias vozes tenham feito um esforço cívico para se juntar ao debate.
5.4.2 Fontes de informação: género e categoria profissional
A segunda parte do exercício relativo aos atores envolvidos na polémica é referente às fontes de informação ouvidas, tendo sido conduzido apenas com base nas notícias.
Os resultados obtidos revelam uma discrepância ainda maior quanto à presença do género masculino (90%) face ao feminino (10%) (Figura 11). Na perspetiva por publicação, o DN e o CM destacam-se como os únicos a não contemplar fontes de informação femininas nas notícias publicadas. Nos restantes jornais, apenas o Expresso inclui duas fontes do género feminino (Figura 12).
Quanto à distribuição por profissão (Figura 13), a classe política domina o panorama das fontes ouvidas (23%), embora também se destaquem professores universitários, advogados, juristas e jornalistas. Por outro lado, se nos autores de artigos de opinião foi possível contabilizar, embora em menor escala, a presença de professores do ensino básico, estes não foram, de todo, incluídos nas notícias recolhidas. Enquadradas com a polémica, estão fontes da Direção-Geral da Educação (DGE), do Conselho Nacional de Educação (CNE), o pai dos dois alunos de Famalicão e os próprios alunos, sendo que, no total, contabilizam apenas 10% das fontes ouvidas. Ao não se conceder espaço a atores que testemunham em primeira mão a operacionalização de CeD, excluem-se vozes imprescindíveis à construção de uma mensagem mediática que, de facto, reflita a realidade da disciplina. Reforçando a ideia da falta de neutralidade dos media apontada por Gamson et. al. (1992), também Couldry e Hepp (2022) salientam que, se as mensagens dos media não são totalmente desprovidas de filtros, apresentam ao público uma perspetiva mediada ou uma realidade filtrada do mundo real.
Se na análise anterior é possível argumentar que, por motivos editoriais e/ou contratuais das publicações6, a falta de vozes ligadas ao ensino obrigatório pudesse ser facilmente justificada, na análise às fontes noticiosas o cenário muda. Por um lado, dos seis jornais analisados, apenas o CM procurou recolher depoimentos dos principais visados do caso: os dois alunos de Vila Nova de Famalicão. Por outro lado, e apesar de terem sido repetidamente ouvidos o pai dos alunos, o seu advogado e o Secretário de Estado Adjunto e da Educação, é evidente a ausência de outras fontes, em particular, ligadas ao ensino obrigatório (docentes, diretores pedagógicos, presidentes de associações de pais ou alunos). É importante ter presente que o artigo 1.º do Novo Código Deontológico (Sindicato dos Jornalistas, 2017) defende que “os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso”. Os resultados deste estudo permitem verificar que ficaram de fora outras fontes com potencial interesse e relevância para a polémica.
Perante os dados obtidos, considerou-se pertinente verificar a frequência das fontes de informação mais ouvidas (Figura 14). Para este exercício foram consideradas declarações diretas dadas à publicação e citações de declarações feitas a outros meios de comunicação.
João Costa, à época Secretário de Estado Adjunto e da Educação, foi a fonte mais ouvida nos artigos em análise, tendo sido consultado ou citado 17 vezes. Seguem-se Artur Mesquita Guimarães, pai dos dois alunos de Vila Nova de Famalicão (dez vezes), Manuel Braga da Cruz, professor universitário e impulsionador do primeiro manifesto, e David Rodrigues, do Conselho Nacional de Educação (ambos citados sete vezes) e Mário Pinto, deputado e signatário do primeiro manifesto (cinco vezes). Assim, as cinco fontes mais frequentes nas notícias referentes à polémica incluem, além do pai dos alunos, personalidades das áreas da política, ensino universitário e Conselho Nacional de Educação, reforçando a já referida escassez de fontes com um possível interesse direto nas questões levantadas pela obrigatoriedade da disciplina: docentes do ensino obrigatório, alunos e pais/encarregados de educação.
5.5 Cobertura sobre o funcionamento da disciplina
O estudo procurou, também, entender até que ponto os artigos em questão incluíam referências ou explicações sobre os moldes de funcionamento da disciplina de CeD nas escolas, sendo considerados para esta análise todos os artigos recolhidos, independentemente do género jornalístico.
Para medir a alusão ao funcionamento da disciplina de CeD, foram consideradas quaisquer referências ou informações sobre os moldes em que estava a ser lecionada nas escolas, nomeadamente, ao nível dos conteúdos do plano curricular, dos docentes (formação em CeD) ou das metodologias utilizadas para o ensino.
Assim, dos 148 artigos analisados, apenas 13% (19) incluem alguma referência aos moldes de funcionamento da disciplina, dos quais sete são notícias e os restantes 12 são artigos de opinião (ver Figura 15). A maioria das referências surge como enumeração dos conteúdos lecionados e seus objetivos, tendo por base o documento “Cidadania e Desenvolvimento”, da Direção-Geral da Educação, que operacionaliza a disciplina. Existem, contudo, referências que apontam para um funcionamento desigual e desregrado de CeD nas diferentes escolas, não só ao nível da formação necessária dos professores, mas também da condução das próprias aulas. “[CeD] tem sido ministrada com exigências muito diferentes de escola para escola. Em muitos sítios, aproveita-se esse horário escolar para tirar dúvidas de outras disciplinas. Noutros, passa-se o tempo a falar das coisas da vida” (Baldaia, 2020).
O facto de a maioria das referências ao funcionamento de CeD surgir em artigos de opinião suscita uma reflexão sob duas perspetivas distintas. Por um lado, é crucial relembrar que estes artigos de opinião, por terem um carácter opinativo e subjetivo, podem não corresponder à realidade o que, aliado ao facto de apenas uma percentagem mínima de autores pertencer à área do ensino obrigatório, não permite atribuir a credibilidade necessária ao que é apresentado em cada texto. Por outro, esta análise coloca a descoberto o que nos parece ser uma falha na cobertura mediática desta polémica: a carência de notícias, construídas com base em testemunhos de diretores de escola, de agrupamentos ou de alunos, que pormenorizem como a disciplina é, de facto, lecionada nas escolas. O artigo de opinião do jornalista Paulo Baldaia, citado no parágrafo anterior, levanta várias questões merecedoras de uma análise jornalística mais aprofundada, como por exemplo, se, de facto, a disciplina é usada para outras atividades e se os professores encarregues de CeD têm a formação necessária para lecionar os conteúdos previstos.
5.6 Referência aos Direitos das Crianças
A análise seguinte recai sobre a existência, ou não, de referências aos Direitos das Crianças não só em termos de documentos oficiais, como as declarações de Direitos das Crianças e dos Direitos Humanos, mas também no que se refere ao direito das crianças a serem ouvidas e tomarem parte ativa no processo educativo enquanto cidadãos. Para esta categoria foram novamente consideradas todas as peças recolhidas.
Das 148 peças recolhidas, apenas 10% (15), na sua maioria artigos de opinião, incluem reflexões sobre os Direitos das Crianças, verificando-se, uma vez mais, a falta de cobertura mediática do que pode ser considerado um dos ângulos de análise cruciais da polémica (ver Figura 16). A par de outros diplomas oficiais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou a Constituição da República Portuguesa, a Convenção sobre os Direitos da Criança é por vezes citada para sustentar uma visão de não obrigatoriedade da disciplina, dado que o n.º 1 do artigo 18º da Convenção refere que “(…) a responsabilidade de educar a criança e de assegurar o seu desenvolvimento cabe primacialmente aos pais e, sendo caso disso, aos representantes legais. O interesse superior da criança deve constituir a sua preocupação fundamental” (UNICEF, 1989, p. 16).
O facto de os jornalistas não terem ouvido as vozes das crianças (e não apenas as dos dois alunos diretamente envolvidos na polémica) denota, no nosso entender, que os jornalistas continuam a não ter presente, na sua prática profissional, o espírito da CDC. Ao não irem ao encontro dos jovens, ao não procurarem saber o que pensam sobre a disciplina e a própria polémica, os jornalistas não correspondem ao preconizado naquele documento. Recorde-se que uma das razões pelas quais a Convenção significou um marco na forma de olhar a infância prende-se com o facto de ter atribuído às crianças direitos de participação, isto é, direitos sociais, civis e políticos (até então os direitos reconhecidos à criança centravam-se no âmbito da proteção e da provisão). Ao não escutar as crianças, a imprensa desconsidera este lugar de cidadania que a CDC lhes reserva. Pior: dado o papel que os órgãos de comunicação social desempenham na construção social da realidade, contribui para perpetuar a imagem que durante décadas esteve colada à infância a de um grupo que não importa ouvir, porque nada sabe e nada pode acrescentar. No caso em análise, há ainda a agravante de estarmos perante um caso que diz diretamente respeito à população mais jovem. Na cobertura feita, esta ausência remete para uma perceção tradicional de criança: apenas como indivíduo a proteger e não como agente, capaz de ter uma voz no espaço público e de influenciar a sociedade. É importante ter presente que os jornalistas não são indivíduos que vivem à margem da comunidade em que se inserem. Como Schudson nota, são “pessoas que operam, inconscientemente, num sistema cultural, um depósito de significados culturais armazenados e padrões de discursos” (1995, p. 14). Deste modo, a visão de criança que vislumbramos na cobertura jornalística do caso pode ser vista como refletindo a fraca sensibilidade da sociedade portuguesa em geral face aos direitos de participação da criança a que atrás nos referíamos. Por outro lado, pesa o argumento de que as crianças têm direito a ter acesso aos princípios lecionados em CeD, não só por lhes permitir fazer escolhas informadas no futuro, mas também porque nem todas têm acesso a esses mesmos princípios no seio familiar. Merecem também uma nota os artigos de ambos os lados da polémica que, embora em número muito reduzido, atentam no facto de os dois alunos de Vila Nova de Famalicão, protagonistas e principais visados da história, terem tido pouca voz
nos próprios media.
6. Discussão e considerações finais
Os resultados apresentados neste estudo requerem uma reflexão problematizadora da cobertura jornalística desta polémica. Importa não perder de vista que o facto desencadeador (a proibição de dois adolescentes de frequentar CeD por parte dos seus pais, invocando objeção de consciência) ocorreu numa fase de implementação dessa nova disciplina. Não foi a criação dessa medida no currículo da escolaridade obrigatória que suscitou o debate. Foi necessário surgir um caso extremo e um abaixo-assinado de solidariedade para inscrever o assunto na agenda pública. Como se referiu, a investigação feita está limitada pelo facto de ter envolvido apenas seis jornais, ainda que de natureza e orientação editorial diversas. É evidente que a cobertura ganharia em incluir também os media audiovisuais, bem como os reflexos da polémica nas redes sociais digitais. Ainda assim, com a vertente reflexiva que os meios impressos permitem, é de salientar a prevalência que teve a vertente de opinião relativamente à informação, sinal de que o assunto em causa mobilizou diferentes atores sociais.
Numa primeira nota de teor analítico, deve reconhecer-se que o espaço que a imprensa dedicou à polémica em torno da relevância e lugar da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento foi significativo, quantitativa e qualitativamente.
Globalmente, os resultados apurados revelam uma clara aceitação (por maioria absoluta) dessa formação na escola, ainda que a existência de um terço de posicionamentos contra a disciplina seja revelador de um significativo movimento contra. Contudo, os dados permitem também realçar alguns processos de construção social pelo jornalismo que põem a descoberto limitações e desafios ao trabalho das redações e dos jornalistas.
Em clima de liberdade de expressão e de imprensa, diversos fatores intervêm na cobertura e, decorrentemente, na representação da realidade através dos media, condicionando o que os media dizem, o modo como o dizem e o que não dizem. Referimo-nos, designadamente, às operações e critérios de seleção dos acontecimentos, assuntos e personalidades ouvidas; aos enquadramentos e ângulos de abordagem; aos processos de enfatização e de destaque nos espaços de apresentação e publicação. Os fatores culturais e legais são também importantes, mas não os tivemos aqui em consideração. No caso em análise, devemos ter em conta vários planos: o plano das políticas educativas e seus agentes (órgãos de soberania, partidos, legisladores); o plano das instituições educativas (famílias, escolas e agrupamentos de escolas, associações socioprofissionais, investigadores); o plano da sala de aula (alunos, professores, dinâmicas escolares e de ensino e aprendizagem, projetos pedagógicos, programas escolares); e plano mediático (mediação dos restantes planos; projetos editoriais, debate público, construção da agenda pública).
Sem podermos considerar de forma sistemática cada um destes planos, iremos tomar os dados apurados no ponto 5 para sublinhar alguns exemplos. Em primeiro lugar: quem fala sobre a polémica, nos jornais estudados? Os resultados permitem verificar que se ouve esmagadoramente vozes masculinas (76%) e que à roda de metade de quem se pronuncia são professores/investigadores universitários e jornalistas ou colunistas dos media. Quem fica, em grande medida, de fora? As mulheres, os docentes do ensino obrigatório - que, por sinal, são maioritariamente mulheres e são aqueles que estão diretamente ligados à prática e aos contextos de lecionação de CeD -e os alunos na generalidade.
Se passarmos para as fontes de informação citadas nas peças publicadas, a desigualdade de género é ainda mais flagrante (90% de homens e 10% de mulheres). E esmiuçando de que homens se trata, conclui-se que são sobretudo agentes políticos e académicos consultados como peritos.
Erguem-se, neste retrato, sinais de significativos enviesamentos na cobertura jornalística, que correm o risco de compor um quadro de vozes que podem ser apenas uma parte da situação. Por exemplo, são escassas, quer como autores de posicionamentos quer como fontes consultadas pelos jornalistas, os diretores de escola ou de agrupamento7, associações de pais e de alunos e, maxime, os dois adolescentes proibidos pelos pais de frequentar a disciplina8, além dos professores dos ensinos básico e secundário, já referidos.
É certo que tais enviesamentos são fruto de lógicas de ação, assentes em rotinas e cultura profissionais. Mas não é menos certo, como se sublinhou anteriormente, que os jornalistas têm o dever de ouvir “todas as partes com interesses atendíveis no caso”. Silêncios não são necessariamente silenciamentos, no sentido de opções e decisões de não dar a palavra ou não auscultar certas vozes. Mas não deixam de ser silêncios. Com resultados e consequências que podem ser graves. Exemplificando: quase não se publicaram matérias jornalísticas que explicassem como estavam de facto a decorrer as aulas de CeD, já que apenas 13% dos textos da amostra o fizeram, sendo, a maioria, artigos de opinião.
Ora, a polémica surgiu da contestação dos pais de uma família que se insurgiram contra a natureza da disciplina e dos seus objetivos e conteúdos. Não seria expectável que os jornalistas e as redações fossem para o terreno inquirir o que efetivamente se passava? Deixou-se que a polémica se ficasse sobre questões de princípios e sobre presunções acerca das práticas educativas formuladas em grande medida por agentes externos à escola, a partir de tópicos do programa de CeD. Ouvir os docentes da disciplina, bem como os alunos, os responsáveis pedagógicos e os membros dos conselhos gerais dos agrupamentos (onde pais e encarregados de educação estão representados) poderia contribuir para uma representação mais rica e complexa da realidade construída pelos jornais, com base em certos atores sociais.
A reportagem, o inquérito, a entrevista e, em geral, uma maior proximidade dos jornalistas ao terreno, em vez de um trabalho que acaba por privilegiar quem tem voz e poder de fazer chegar mais facilmente os seus pontos de vista aos media, permitiria prestar um melhor serviço à cidadania e desenvolver um jornalismo de maior relevância e qualidade.
A cobertura revelada por este estudo não poderá, certamente, ser desligada das difíceis condições económicas atualmente vividas pelo jornalismo português (e também o mundial) e do impacto que o novo contexto tecnológico teve no exercício da profissão. A disputa de publicidade com as inúmeras páginas de conteúdos disponíveis na Internet e a enorme quebra na venda de jornais têm inevitáveis consequências na qualidade do jornalismo (com redações reduzidas, a quem são dados menos recursos para fazer bom jornalismo e com cargas de trabalho muitas vezes excessivas). Uma vez mais, jornalismo e sociedade aparecem como vasos comunicantes, tendo o que se passa no mundo da imprensa repercussão na vida social. O estudo realizado revela, ainda que circunscrito a um caso, uma mediatização pobre da realidade nacional. Tratando-se de uma realidade nova nos ensinos básico e secundário, estaria a nova disciplina de Cidadania e Desenvolvimento a correr bem ou mal? Que perceções teriam e que dificuldades estariam a viver os professores? Que sugestões de melhoria poderiam os vários agentes educativos dar? Haveria, de facto, base para a inquietação dos pais de Famalicão e dos setores que com eles se solidarizaram? A cobertura ajudou a perceber que, na polémica suscitada, havia pontos de vista diversos e até antagónicos. Mas, no geral, só pontualmente se conseguiu ir além dos pontos de vista. O que ficou por dizer e mostrar - o não dito dos media - teria sido,
no mínimo, tão relevante como aquilo que foi dito.