Introdução: representação, género e diversidade em contexto democrático
Democracia, política e jornalismo são campos interdependentes entre si (Strömbäck & Shehata, 2018). Sendo o jornalismo, nessa relação, o elemento que desempenha o papel de mediador entre atores políticos, cidadãs e cidadãos, pode, por isso, ser entendido como um mediador por excelência, que coleta, edita e dispõe do poder de fazer reverberar discursos enquanto plataforma privilegiada que é (Esteves, 2015).
Os Estudos em Jornalismo entendem o jornalismo político, mais especificamente, como a especialidade que lida explícita e diretamente com instituições e atores sociais nos parlamentos, governos e nas disputas eleitorais, por exemplo (Strömbäck & Shehata, 2018). Essa atuação jornalística sobre o campo político dá-se por meio de uma alocação impositiva de valores que reforça as estruturas de poder e o poder político de alguns, provendo recursos para que determinados sujeitos sigam com suas agendas (Cook, 2011; Miguel, 2014). Sobre isso, Adcock (2010) vai mais além ao afirmar que os media estão “profundamente envolvidos ... como participantes integrais na própria formação e interpretação do processo político” (p. 138).
Esta relação complexa, por integrar-se nas dinâmicas sociais, é atravessada por relações desiguais e desproporcionais, como as de género e de diversidade, que consideramos como centrais na condução desse estudo. Conroy (2015), partindo do princípio de que há uma representatividade feminina distópica na política, afirma que a escassez de mulheres dispostas a engajar-se politicamente e a participar dos pleitos eleitorais justifica-se pelo processo de “socialização (a forma como as meninas são criadas, em comparação com os meninos) e pela persistência de normas sociais que incentivam as mulheres a ficarem em casa a criar os filhos” (p. 1). Além disso, a autora aponta ainda que os media sustentam “noções amplamente negativas do feminino, simultaneamente afirmando a relevância e a supremacia do masculino” (p. 14). Já no que toca a representação de mulheres que conseguem alcançar cargos de poder, Caldas-Coulthard (2019) pontua que “discursos ‘genderizados’ são usados para comunicar ideias e práticas que enfatizam o género das mulheres profissionais em detrimento de outros aspetos de suas identidades, suas funções ou papéis sociais quando estas questões não são relevantes” (p. 32). Isto ocorre, sustenta Lachover (2012), por conta de uma crença de que mulheres têm “qualidades e comportamentos inconsistentes com os esperados dos políticos” (p. 444), sendo essa a justificativa usada para a manutenção de uma “distância normativa” (Lachover, 2012) entre as possibilidades das mulheres e o mundo político. Outras autoras, a exemplo de Ritchie (2013), vão um pouco mais longe ao defenderem que há na representação mediática uma intenção de pôr as mulheres no lugar de monstras e que isso já́ é parte de uma resposta dirigida às conquistas femininas em espaço e voz. Sendo a arena política um dos campos mais estratégicos no que à tomada de decisão diz respeito, fazer de mulheres eleitas bodes expiatórios, representados como monstros que irão degradar as instituições e relativizar sua moral, configura-se como uma tentativa de limitar e constranger a ação das mulheres no espaço público por excelência. Numa perspetiva interseccional, podemos entender as mulheres como um outro sobre o qual recaem diferentes e interrelacionadas formas de subordinação e opressão. Para articular uma reflexão acerca do outro político, diversas autoras colocam em relevo a interseccionalidade (Albæk et al., 2019; Ribeiro, 2017; Siapera, 2010; Spivak, 2010), advertindo que não basta a reflexão centrada no género para compreender as macroestruturas que regem representações distópicas (van Dijk, 1980), quer sejam na política ou nos media.
Este artigo pretende contribuir para o conhecimento produzido neste âmbito, investigando a representação mediática de duas figuras políticas que alcançaram intensa visibilidade no espaço público. O deputado André Ventura (Chega) e a deputada Joacine Katar Moreira (Livre), as figuras políticas cuja representação mediática nos interessa analisar, foram eleitos como representantes únicos de seus partidos durante o pleito que constituiu a XIV Legislatura da Terceira República Portuguesa, formada a partir das eleições legislativas de 2019 e composta por representantes de 10 partidos, sendo o Chega, autodenominado nacional, conservador, liberal e personalista1, e o Livre, portador do lema liberdade, esquerda, Europa, ecologia2, dois dos três que estrearam com a eleição de um único deputado cada3. André Ventura é doutor em Direito Público pela Universidade de Cork, na Irlanda, e, além de deputado (2019-2022)4 e presidente do partido pelo qual foi eleito, é professor universitário. Teve seu percurso como militante político iniciado no Partido Social Democrata (PSD), pelo qual já chegou a ser eleito à Câmara Municipal de Loures, em 2017. Por divergências dentro do PSD, se desvinculou do partido, renunciou ao mandato na autarquia e, em seguida, fundou o partido Chega em 9 de abril de 2019, a menos de seis meses das eleições legislativas nacionais nas quais foi eleito. Desde 2014, é uma figura mediática especialmente por atuar como comentador desportivo no canal televisivo CMTV e como colunista do jornal Correio da Manhã5. Já Joacine Katar Moreira é historiadora e doutora em Estudos Africanos pelo Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)6 e ativista feminista e antirracista. Seu percurso mais expressivo como ativista se deu pelo Instituto da Mulher Negra em Portugal (INMUNE), do qual é membro-fundadora. Antes de ser eleita em outubro de 2019, como deputada única pelo partido Livre, havia concorrido pelo mesmo partido às eleições legislativas nacionais em 2015 e às europeias, em maio de 2019, mas em ambas não obteve êxito. Com a vitória nas legislativas nacionais de 2019, a luso-guineense Joacine Katar Moreira tornou-se a primeira mulher negra a ganhar uma eleição como cabeça de lista de uma candidatura partidária em Portugal. Embora, com pouco mais de três meses de mandato, mais precisamente a 31 de janeiro de 2020, o partido Livre tenha decidido, após um conflito amplamente mediatizado, retirar a confiança política a Joacine Katar Moreira, passando a deputada, que não abdicou de seu mandato, a partir de então, ao estatuto de Não Inscrita7.
Ambos os parlamentares atraíram significativa atenção mediática, o que, no caso de André Ventura, precede a sua eleição, visto que há uns anos atua como comentador televisivo. Ainda no que ao deputado diz respeito, desde que passou a atuar pelo partido Chega, tem sido apontado pelos próprios media portugueses e até estrangeiros como representante do populismo e da ultradireita em Portugal (e.g. Almeida, 2019; Câncio, 2019; del Barrio, 2019; Pinto, 2019). Já Joacine Katar Moreira, a primeira mulher negra vinda de uma antiga colónia portuguesa a encabeçar uma lista candidata às legislativas e a ser eleita em Portugal, foi um dos nomes políticos mais destacados. Desde as saias que vestiu seu assessor no primeiro dia de trabalhos na Assembleia da República até ao intenso e explorado conflito no qual Joacine Katar Moreira se envolveu com seu próprio partido, passando pelo desentendimento com jornalistas, a deputada foi um nome do Parlamento português com expressiva presença mediática nesta legislatura.
Tomando como objeto de estudo a representação mediática destas duas figuras políticas e recorrendo a uma perspetiva feminista interseccional, examinámos a produção informativa online de três jornais generalistas portugueses (o Correio da Manhã, o Público e o Diário de Notícias) durante o período que compreende os seis primeiros meses da legislatura para a qual foram eleitos (25 de outubro de 2019 a 24 de abril de 2020). Para tal, socorremo-nos da Análise de Conteúdo.
O estudo das representações mediáticas de representantes políticos faz-se importante pela relação de retroalimentação que se dá entre representações políticas e mediáticas (Hartley, 2019; Miguel, 2014) e pelo impacto que a forma como os media representaram este espectro político mais alargado e diverso causará em pleitos futuros e na confiança dos eleitores nas mulheres (Lazarsfeld et al., 1960; Martino, 2012).
Para nós é imprescindível considerar perspetivas de género, raça e classe ao analisar representações de atores políticos, já que, no campo social, há uma série de desigualdades pautadas por essas questões que vão dificultar o acesso aos media e à participação política (Albæk et al., 2019). Pensando na realidade portuguesa, a ser discutida mais à frente, a correlação entre representação mediática e minorias políticas é quase intuitiva quando se quer problematizar a representação de atores políticos em um Estado historicamente colonizador, especialmente ao contemplarmos a visibilidade concedida a uma mulher negra e luso-guineense.
2. Representação mediática e produção de sentidos em contexto político
As representações mediáticas, que integram um ambiente cultural no qual se estabelecem o pensamento, o julgamento e a ação dos seres humanos (Soares, 2009, p. 26), têm sido entendidas pela investigação sobre os media como um processo de reapresentação no qual membros de uma sociedade recorrem a sistemas de signos para produzir significado, sendo esse processo em si a essência e o fator de maior valor da representação mediática (Orgad, 2012; Simões, 2011). Particularmente no campo dos media, representação também pode ser sinónimo de atuação ou performance, na qual atores desempenham papéis que geram conexão com o público de forma positiva ou negativa, enquanto que, no campo político-democrático, representação também é o que faz o pequeno grupo escolhido pelo povo para representá-lo num parlamento, por exemplo (Hartley 2019).
Pondo representação política e media em contexto, Miguel (2014) explica que o capital político é conquistado, especialmente, por meio do reconhecimento social e que isto é o que dá estatuto aos media, pois ficam sendo os órgãos de comunicação social os principais instrumentos de “difusão das visões de mundo e dos projetos políticos” (p. 153). Ou seja, as representações políticas e mediáticas não apenas se retroalimentam, como antes apontámos, mas também são interdependentes e oportunas uma à outra. Além disso, as representações mediáticas das dinâmicas de atuação de figuras políticas podem ser tomadas não apenas como representações em si, mas como a própria política, como descreve Soares (2009).
Ao pensarmos sobre esse papel estratégico dos media e da sua produção de sentido sobre as relações sociais, precisamos também atribuir o devido papel de importância a quem as produz. Um nódulo problemático a ser destacado nesse âmbito da produção é o papel das agências de notícias, que estão a alimentar quem alimenta o ambiente de informação compartilhada, constituindo-se como um tipo de poder discursivo transversal dentro da engrenagem mediática que também passa por disputas internas de poder. De acordo com Franklin et al. (2005), a atuação das agências têm influenciado a redefinição do próprio conceito de notícia no mundo ocidental, por operarem na satisfação das demandas de diversos meios de comunicação diários de varejo. As agências de notícias são vistas como ocultas mas poderosas, constituindo-se como a principal fonte de informação de estações comerciais projetadas para depender especialmente desse tipo de abastecimento, sendo as agências uma espécie de “universalizadoras das notícias” (Franklin et al., 2005).
3. Media, política, verdade e tendências populistas
Diversos autores convergem no entendimento de que o aumento do apoio a líderes populistas fundamenta-se, especialmente, na insegurança económica e em choques culturais (Cunha, 2019; de Vreese et al., 2018; Waisbord, 2018, 2020) e que o mundo cada vez mais globalizado é um terreno fértil para ideologias que se encaixam dentro do que entendemos por populismo (de Vreese et al., 2018). No que toca ao contexto mediático informativo, este fenómeno pode se apresentar como uma alternativa às notícias convencionais sendo uma corrente discursiva articulada entre atores políticos e atores mediáticos não necessariamente atrelados a partidos ou a figuras específicas (de Vreese et al., 2018).
Como explica Waisbord (2020), dentro dos anseios populistas, a detenção da verdade é um projeto político, logo, todas as instituições sociais que possam ter o estatuto de legitimadoras de discursos que potencialmente possam vir a tomar o lugar de “verdade” são alvos dos populistas. Muito embora, ainda segundo o mesmo autor, a verdade não seja algo que se possa possuir, mas sim o resultado de uma discussão racional irrestrita.
A crença em verdades partidárias e unilaterais nega as possibilidades e a complexidade da busca da verdade como um esforço público comum (Waisbord, 2018). Por isso, faz-se importante um jornalismo plural que dê espaço a todos os envolvidos nas dinâmicas sociais, visto que é dentro da lógica populista que não há espaço para uma expressão plural e inclusiva (Waisbord, 2020). Como observou Stuart Hall, quando há fundamentação num único sujeito soberano e numa única visão política binária, desconsidera-se o caráter heterogéneo da representação política-e mediática-e da profundidade dos conflitos (Waisbord, 2018).
No contexto de produção jornalística, Cunha (2019) chama atenção para o fato de que jornalistas estão cada vez mais tentados a praticar um jornalismo considerado “emocional”, de características populistas e
com vista a competir, não só com os utilizadores das redes sociais, como com os inúmeros opinadores e comentadores presentes nos meios de comunicação. Em simultâneo, o Jornalismo emocional, que utiliza estratégias semelhantes aos utilizadores/consumidores das redes sociais, tende a favorecer a simplificação dos conteúdos; a construção de um mundo binário, dividido entre um Nós-necessariamente bom-e os Outros-obviamente estranhos e ameaçadores. Esta relação, causal e moral, configura uma dimensão importante do populismo mediático, que está na base das atitudes antiestablishment que permeiam, por exemplo, muitas das coberturas jornalísticas dos casos de corrupção política e económica (p. 18).
A partir deste ponto de vista, que identifica os media como fontes do populismo, haverá que reconhecer que a cobertura de atores populistas vem aumentando (de Vreese et al., 2018). Posto isso, e entendendo que há aqui claras pelo menos duas camadas problemáticas de relação entre media e populismo, fica o desafio não só de problematizar a amplificação dos discursos populistas por parte dos media mas também de identificar um populismo dos próprios media quando se apresentam como defensores do povo e críticos do poder e dos poderosos (de Vreese et al., 2018) condicionando, dessa forma, o trabalho de representação e de compreensão dos fatos e da realidade. Ao centrar-se na oposição entre o “povo” e as “elites”, o populismo parece partilhar certas semelhanças com o feminismo, que também conceptualiza os grupos dominantes e os grupos subordinados. Contudo, como salientam Kantola e Lombardo (2019), o feminismo fala especificamente da subalternidade das mulheres, com frequência, como um efeito da intersecção entre vários tipos de relações desequilibradas de poder, enquanto o populismo, independentemente de alinhado à Esquerda ou à Direita política, reproduz as mesmas instituições patriarcais características das forças partidárias, divergindo apenas na circunstância de poder ser menos ou mais antifeminista.
Retomando nosso argumento inicial, no que diz respeito às representações distópicas de atores políticos, reforçamos que mulheres já minorizadas pelo arranjo social podem, oportunamente, constituir-se como bode expiatório tanto dos atores políticos cujas atitudes populistas ganham espaço mediático, como das atitudes de atores mediáticos. Visto que, na possibilidade de conflitos discursivos pela detenção da verdade, mantém-se a defesa do status quo, que contempla a perseguição de grupos já minorizados, como exploramos a seguir.
4. Pensando as mulheres e suas representações a partir da realidade portuguesa
Considerando a estratégica relação estabelecida entre representação mediática e política, é importante pensarmos sobre a presença feminina, ou dessa “outra” que a mulher passou a representar em algum momento da história em ambientes essencialmente masculinos ou literalmente projetados para o ser.
O jornal português de distribuição nacional mais antigo em atividade, o Diário de Notícias, fundado em 29 de dezembro de 18648, já tinha cerca de 70 anos quando as três primeiras mulheres ocuparam, em 1934, durante o Estado Novo, assentos na Assembleia Nacional, sendo elas Domitila de Carvalho, Maria Cândida Bragança Parreira e Maria Guardiola9. Junto a isso, os primeiros estudos sobre as representações mediáticas jornalísticas em Portugal que consideraram as produções entre as décadas de 80 e 90 dão conta da representação de sujeitos racializados nos media (essencialmente africanos vindos de Cabo Verde, ex-colónia portuguesa) maioritariamente associados à criminalidade e com fraca presença na agenda política (Cunha, 2007). Para refletir sobre os percursos de mulheres migrantes, por exemplo, dentro das sociedades pós-coloniais, uma análise feita com base apenas nos recortes de género pode não ser suficiente, fazendo-se importante ir além e levar em consideração outros fatores segregacionistas. A teoria feminista pós-colonial parte de uma visão interseccional pautada na identidade, “colocando igual ênfase no conjunto sobreposto de posições de sujeito afetadas pela colonização: gênero, classe, raça, nacionalidade . . . e outros marcadores de identidade, bem como rejeita debates sobre quais interesses devem vir primeiro, os da anticolonização ou os dos grupos feministas” (Kosut, 2012, p. 100). Sob a ótica feminista pós-colonial, mulheres na ordem patriarcal são entendidas como ocupantes de lugares equiparados aos de súditos colonizados sob o imperialismo, sendo a linguagem e os esquemas de representação estratégicos artifícios de manutenção do poder do patriarcado e dos colonialismos contemporâneos. Dessa forma, o feminismo pós-colonial critica o arranjo discursivo da linguagem, bem como as representações, ressaltando “as maneiras pelas quais a colonização discursiva afeta adversamente as realidades materiais das mulheres” (Kosut, 2012, p. 100).
Articulando esse debate com a busca pela detenção do poder sobre a verdade e pela colonização do conhecimento típicos da lógica populista (Waisbord, 2020), faz-se necessário partir do pressuposto de que grupos inferiorizados, incluindo as mulheres, são mantidos a uma distância normativa dos centros do poder (Lachover, 2012). Ibroscheva e Storver (2012), por exemplo, destacam que as mulheres ocupam lugares muito menos expressivos do que os homens tanto nos espaços de poder quanto nas representações mediáticas e que, mesmo quando conquistam sucesso político, ao ingressar nos parlamentos, as mulheres não estão protegidas de linchamentos virtuais e discursivos e outras humilhações com base em seu género. Os discursos que formatam as notícias, por exemplo, operam de forma ativa na perpetuação das narrativas masculinizadas sobre a política e os políticos (Rakow & Kranich, 1991; Ibroscheva & Stover, 2012). Jonh Fiske (1987) e Lana F. Rakow e Kimberlie Kranich (1991) associam tais narrativas mediáticas acerca das dinâmicas políticas a uma “novela masculina”, por conta do repertório compatível com essa classificação. E os usos indiscriminados de repertórios que remetem a uma vivência masculina dentro dos espaços políticos seguem como ordem.
Em casos práticos, a cobertura de novos personagens na esfera política, por exemplo, muitas vezes acaba se focando em quem foge ao padrão. Logo, as mulheres, por exemplo, costumam ser retratadas como sujeitos não naturalizados naqueles espaços. Biroli (2010) aponta que as mulheres políticas têm “visibilidade restrita”, sendo esta uma camada que antecipa a questão dos estereótipos. Por conta dos padrões construídos sobre o género masculino, há possibilidades inalcançáveis: “a visibilidade possível, antes mesmo de ser negativa ou positiva para a trajetória individual de uma mulher que ganha espaço na cobertura jornalística, está relacionada à divisão dos papéis sexuais e à dualidade entre público e privado” (p. 54). Não estariam então aptas as mulheres às pautas públicas e políticas? Herzog (2010), alinhada a Biroli, defende que as mulheres políticas “desviam-se dos modos tradicionais de atividade das mulheres. [Sendo] introduzidas na esfera pública ao incorporar a
diferenciação binária entre as duas esferas [pública e privada]. A imprensa faz isso quando fala sobre as mulheres em seções separadas” (p. 241). Com sua autonomia condicionada, a mulher, ainda candidata, já tem limitações evidentes:
a investigação feminista dos media mostra que, originalmente, os meios de comunicação subestimam e menosprezam as candidatas políticas e mulheres parlamentares, sub-representando-as comparativamente com os políticos homens, negando-lhes títulos honoríficos, identificando-as pelo primeiro nome, por relações familiares com sujeitos masculinos ou usando descrições de género pouco lisonjeiras (Simões e Amaral, 2019 p. 137).
Essa questão do nome também é um ponto importante, pois, muitas vezes, os media popularizam uma forma de se referir a cada sujeito. Frequentemente, as mulheres políticas são nomeadas pelo nome próprio ou referidas por formas de nomeação masculinas, como foi o caso da primeira e única primeira-ministra portuguesa, Maria de Lurdes Pintasilgo, tratada por “primeiro-ministro”10 (Martins, 2014), o que ilustra práticas genderizadas de representar os atores sociais.
Para além das dificuldades encaradas, independentemente do alinhamento ideológico-político, há camadas de sexismo, racismo e outras, que reforçam representações que descredibilizam e deslegitimam as mulheres e a sua autonomia, especialmente quando se fala de migrantes oriundas de territórios e populações que no passado foram subalternizados. De acordo com Siapera (2010), “do ponto de vista analítico, para entender as representações mediadas da diferença cultural, precisamos conhecer seus antecedentes conceituais, suas ‘condições de possibilidade’ e esboçar suas implicações, com o objetivo de contribuir para a construção de representações menos problemáticas” (p. 112). Ou seja, é necessário realizar estudos sobre as representações, problematizando-as sob várias frentes, para que se desenvolvam sensibilidades sobre essas condições de possibilidade e se percebam que o discurso sobre a performance do outro deve ter como referencial as condições de possibilidade do outro, não a de quem fala. Siapera (2010), a partir das proposições de Spivak, acredita que há um regime racista de representação, que predispõe não somente a raça, mas também as culturas no intuito de incorporar no debate público justificativas para determinadas políticas, como as migratórias e antiterroristas, o que também se alinha às argumentações em torno do fortalecimento do populismo na Europa (Cunha, 2019).
Tendo estabelecido um ponto de encontro entre a questão do populismo dos e nos media e a assunção de que, ao longo do tempo, as mulheres são representadas como monstros na política, este estudo procurou compreender a relação dos media com dois novos atores políticos.
5. Percursos metodológicos
Os objetivos deste estudo são perceber padrões de representação dos atores políticos no jornalismo mainstream, destacar diferenças entre as representações de cada um dos atores políticos e estabelecer possíveis relações entre a atividade mediática e o fenómeno populista contemporâneo. A partir disso, realizámos uma investigação sustentada na hipótese de que diferentes sujeitos com diferentes condições de possibilidade (Siapera, 2010) são objeto de tratamento diferenciado por parte dos media.
Como o interesse desta investigação incide sobre os media informativos, este estudo recai sobre a produção informativa online de três jornais generalistas (Correio da Manhã, Público e Diário de Notícias) cujos sites figuram entre os mais acedidos em Portugal em outubro de 2019-período em que se inicia o intervalo temporal de recolha das unidades de análise-de acordo com o ranking Marktest111.
Para levar esta investigação a cabo, acatamos aquilo que defende Reppen (2010) sobre a essencialidade da formação de um corpus para a exploração de temas e questões relacionadas ao uso da linguagem. Primeiramente, estabelecemos como marco temporal para a recolha dos artigos que compõem o corpus o primeiro semestre da XIV Legislatura, o que compreende o período de 25 de outubro de 2019 a 24 de abril de 2020. A constituição desse corpus se deu por meio da recolha das respostas à pesquisa pelas palavras-chave “katar” e “ventura” nos motores de busca dos próprios sites dos OCS. Para ser recolhida, cada potencial unidade de análise deveria atender a três critérios: ter sido publicada entre 25 de outubro de 2019 e 24 de abril de 2020; ser texto jornalístico informativo; e ter um dos dois deputados únicos representantes de partido como sujeitos da narrativa.
A partir dessa triagem, o corpus ficou composto por 309 textos informativos (unidades de análise). Todos esses textos foram submetidos ao protocolo de Análise de Conteúdo (AC), desenvolvido para este fim. O uso da AC justifica-se pela intenção de apresentar um diagnóstico sobre as representações mediáticas dos atores políticos que interessam a esta investigação. Os resultados estatísticos da AC, como defendeu Anderson (2012), permitiram-nos apresentar e explorar informações sobre e a partir de padrões existentes no conjunto de dados.
De acordo com Fonseca Jr. (2005), a AC desenrola-se em três fases cronológicas, sendo elas a pré-análise: planeamento do trabalho; a exploração do material: análise propriamente dita; e o tratamento dos resultados obtidos e interpretação. A pré-análise consistiu na delimitação do corpus e na elaboração do protocolo de codificação, o qual é composto por variáveis divididas em dois tipos, de acordo com a proposta do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS)12: variáveis alfanuméricas (strings), de variabilidade não previsível ou previsibilidade em um amplo espectro, como dados de publicação (data e hora), títulos, links de acesso direto à publicação original; e variáveis numéricas, de variabilidade prevista em códigos estabelecidos no processo de pré-análise, como Órgão de Comunicação Social (OCS) no qual foi publicado, formato do texto informativo, dados de autoria, permissão de acesso, secção de publicação, deputado foco da narrativa mediática, proeminência do protagonista do discurso mediático em título de unidade, forma de nomeação do protagonista (se formal ou informal), área de atuação do ator político sobre a qual se dá o interesse mediático e partilhada na rede social Facebook pelo próprio órgão de comunicação social de publicação.
6. Resultados e discussão
6.1 Às mulheres a quantidade, aos homens a qualidade
Tal como consta da Tabela 1, embora no Correio da Manhã, que teve uma produção mais vasta, o número de peças sobre André Ventura (AV) seja superior ao número de peças sobre Joacine Katar Moreira (JKM), no total, é sobre a parlamentar que incide a maioria de peças jornalísticas publicadas pelos três jornais analisados.
Correio da Manhã | Diário de Notícias | Público | Total | |
AV | 72 | 30 | 39 | 141 |
JKM | 61 | 57 | 50 | 168 |
Total | 133 | 87 | 89 | 309 |
Fonte: elaboração própria
Os 309 textos do corpus foram publicados através do recurso a quatro formatos jornalísticos: breves (19), notícias (278), entrevistas (5) e reportagem (7). É importante pontuar que, no contexto do corpus utilizado, há uma forte presença da agência Lusa como produtora de conteúdo informativo, como se pode observar pelo Gráfico 1, que dá conta da distribuição de peças por tipo de autoria.
Quase metade das peças provêm da agência Lusa, o que sinaliza uma terceirização da produção noticiosa cujo principal efeito se traduz na hegemonia discursiva e na história única, ou seja, na perda de diversidade de perceções e olhares sobre os fatos, o que pode colaborar com as dinâmicas discursivas favoráveis à lógica populista. Isto vai reforçar o que apontam Franklin et al. (2005) sobre o estratégico papel das agências de notícias tanto na construção e compreensão da ideia de notícia quanto na universalização de perspetivas únicas. Desta forma, destaca-se aqui esta agência como um dos principais agentes discursivos no trabalho de produção de representações mediáticas dos atores políticos em questão.
Dos 309 textos, 23 são de acesso restrito a assinantes dos jornais, os demais são de acesso livre, de acordo com os limites de paywall estipulados por cada OCS. Com relação aos personagens principais das narrativas mediáticas, 141 unidades de análise têm AV como foco e 168, JKM. Apesar de JKM ser o centro discursivo do maior número de unidades de análise, é AV que tem a presença mediática mais distribuída pelo intervalo temporal. As 141 unidades de análise em que AV aparece como foco da narrativa estão distribuídas por 72 dias, enquanto que as 168 de JKM em 58 dias. A frequência da presença de cada um dos deputados na cobertura mediática pode ser observada comparativamente no Gráfico 2:
O Gráfico 3 mostra o cruzamento do intervalo temporal dos 183 dias que constituem o recorte temporal desta investigação (horizontal) com o número de notícias diário sobre cada um dos deputados (vertical). Os observáveis intervalos referem-se a dias ou períodos sem produção informativa sobre o respetivo deputado.
Em 249 unidades de análise, JKM e/ou AV foram mencionados e/ou citados direta ou indiretamente no sistema titular e em 274 unidades de análise um deles figurou na imagem principal do artigo, como se pode observar na Tabela 2:
AV (141) | JKM (168) | |
Apenas menção | 69 | 105 |
Menção e citação direta | 30 | 43 |
Menção e citação indireta | 1 | 1 |
Sem menção ou citação | 41 | 19 |
Imagem principal | 111 | 163 |
Fonte: elaboração própria
Todas as menções nominais a AV em títulos são formais (uso do apelido ou nome e apelido), não havendo nenhuma situação em que o deputado seja referido apenas como “André”. Já JKM tem menções formais em apenas 33% das vezes em que é mencionada nominalmente nos títulos (55 casos). Ao contrário de AV, não há nenhuma menção apenas ao apelido “Katar Moreira”, sendo a forma mais expressiva de JKM ser referida em sistemas titulares o recurso ao seu primeiro nome, Joacine (94 casos, que correspondem a 55% do total de menções nominais em titulação). Este dado é importante, pois reflete a naturalidade com que mulheres são tratadas informalmente pelos media, independente do seu estatuto social. O facto de não se verificar nenhuma menção informal a AV enquanto que a maioria das menções a JKM o são mostra-nos que dentro da “novela masculina” o homem recebe um padrão de tratamento formal meticulosamente respeitado.
Com relação às áreas de atuação, das 141 unidades cuja narrativa esteve focada em AV, 14 têm foco partidário (atuação do deputado dentro do seu partido); 13 têm foco “eleitoral” (referente a sondagens eleitorais e especulações a respeito de uma possível candidatura à presidência da república em 2021); 18 têm foco em “iniciativas parlamentares” (projetos do deputado); 76 têm foco na “rotina parlamentar” (discursos e discussões em sessões legislativas ou bastidores da atividade na Assembleia da República); 1 tem foco na “participação cívica” (presença em uma manifestação); 5 têm foco no âmbito “pessoal” (que no caso de AV são todas sobre sua tese de doutoramento); 12 têm foco em declarações ou polémicas em que AV promoveu ou se envolveu nas “redes sociais”, sendo, parte delas, inclusive, sobre declarações que deu sobre JKM; e 2 foram codificadas como “Outro” (uma com foco numa investigação aberta pelo Ministério Público contra AV-questões jurídicas-e outra na repercussão de um artigo em periódico espanhol sobre AV-repercussões mediáticas):
Das 168 unidades de análise focadas em JKM, 89 textos têm foco “partidário” (essencialmente referentes aos conflitos em que JKM esteve envolvida com o seu ex-
-partido, o Livre); 1 tem foco “eleitoral” (referente a sondagens eleitorais legislativas); 10 têm foco em “iniciativas parlamentares” (projetos da deputada); 58 têm foco na “rotina parlamentar” (discursos e discussões em sessões legislativas, bastidores da atividade na Assembleia da República e polémica em que a deputada esteve envolvida no Palácio de São Bento junto a seu chefe de gabinete com jornalistas da emissora SIC); 3 têm foco na “participação cívica” (presença em manifestações); 1 tem foco “pessoal” (que, no caso de JKM, é uma reportagem do CM sobre sua relação familiar após decisão pela política); 4 têm foco em declarações ou discussões em que JKM se envolveu em seus perfis nas “redes sociais”; e 2 foram codificadas como “Outro” (uma é uma espécie de retrospetiva do Diário de Notícias sobre os principais fatos envolvendo JKM que compreenderia mais de uma categoria-comprovando a excessiva exploração e o excessivo interesse na performance da deputada-e um outro é a repercussão mediática do fato de JKM estampar a capa de uma revista guineense-repercussões mediáticas). No tópico “pessoal”, cujo interesse sobre AV recai sobre sua tese de doutoramento e sobre JKM recai sobre suas raízes familiares, confirmamos aquilo que diz Herzog (2010) a respeito de como as mulheres são, na esfera pública, introduzidas por meio da distinção binária entre o público e o privado. Este entendimento vem da perceção de uma tese de doutoramento como uma produção de interesse e acesso público e da vida familiar como algo do âmbito estritamente privado.
No que toca às partilhas das unidades de análise por parte dos próprios OCS em seus perfis oficiais na rede social Facebook, 90 dos 141 textos sobre AV (63,8%) e 128 dos 168 sobre JKM (76,2%) mereceram ser partilhados. JKM, mais uma vez, aparece como sendo a figura mais explorada mediaticamente, o que é reforçado, inclusive, por meio da verificação de repetidas publicações sobre as mesmas notícias polémicas que têm a deputada como foco e que geraram considerável engajamento por parte da audiência.
Conclusões
Observamos com este estudo que, quantitativamente, JKM recebeu maior atenção mediática. Esta atenção, no entanto, é contingente, na medida em que se deveu, sobretudo, à exploração dos conflitos partidários e episódios polémicos em que se viu envolvida, e que geraram considerável envolvimento nas redes sociais. Em termos absolutos, AV esteve menos presente na agenda dos media analisados, mas a tematização da sua cobertura privilegiou as rotinas e as iniciativas parlamentares. A presença de AV é, além disso, mais constante e menos episódica, recorrendo os jornais à nomeação formal, diferentemente do que ocorre em relação à JKM, que é tratada de forma frequente com informalidade, o que reflete as assimetrias que a investigação feminista em comunicação há muito documenta (e.g. Caldas-Coulthard, 2019). De um modo geral, os principais diários generalistas portugueses favorecem a performance populista de AV, concedendo-lhe visibilidade centrada nas rotinas parlamentares. Já JKM é representada maioritariamente a partir de episódios disruptivos no campo partidário, tendo a sua imagem sujeita a uma supersaturação, o que contribui para que seja vista como uma ameaça à estabilidade das instituições políticas (de Vreese et al., 2018; Waisbord, 2018, 2020; Cunha, 2019) e para a manutenção da distância normativa entre a mulher e os espaços de poder (Lachover, 2012). Longe de ser entendida como uma performance conspiratória dirigida a uma mulher política em particular, a cobertura mediática analisada reproduz imaginários centrados na desqualificação feminina no campo político e na inferiorização das mulheres no espaço público em geral, recorrendo a elementos populistas, tais como as dicotomias entre “nós” e “outros” (de Vreese et al., 2018). Ao abordarmos o populismo e compreendermos as suas características básicas, tais como o antagonismo binário entre “o povo” e “as elites”, percebemos como encoraja não apenas a construção de visões simplificadas e opostas do mundo, mas também, como sustentam Kantola e Lombardo (2019, p. 1125), a miopia em relação ao género e à diversidade. Estudos futuros deverão dar conta do desenvolvimento deste fenómeno que se demarca em 2019, com a chegada de novos partidos ao parlamento com deputados únicos e que vão ganhando espaço, especialmente por essa relação problemática entre a representação política e a representação mediática. Enquanto JKM saiu da cena legislativa, AV passou a fazer parte de um grupo de 12 deputados eleitos por seu partido nas eleições seguintes, em 2022. Mudanças na performance de outros atores e partidos também vão requerer atenção da investigação académica, visto que o crescimento de determinadas ideologias populistas irá necessariamente afetar outros sujeitos e partidos e os próprios media.