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Acta Portuguesa de Nutrição
versão On-line ISSN 2183-5985
Acta Port Nutr no.13 Porto jun. 2018
https://doi.org/10.21011/apn.2018.1303
ARTIGO DE REVISÃO
O paradoxo insegurança alimentar e obesidade: uma revisão da realidade portuguesa e dos mecanismos associados
The Food Insecurity And Obesity Paradox: A Review Of The Portuguese Reality And The Associated Mechanisms
Carla Campos Correia1*; Ana Baltazar Santos2; José Camolas1,3
1 Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, Avenida Professor Egas Moniz MB, 1649-028 Lisboa, Portugal
2 Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Coimbra, Rua 5 de Outubro, 3046-854 Coimbra, Portugal
3 Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte, E.P.E., Avenida Professor Egas Moniz,1649-035 Lisboa, Portugal
Endereço para correspondência
RESUMO
Introdução: Insegurança alimentar é uma situação em que o acesso físico, social e económico do consumidor a alimentos adequados sob o ponto de vista nutricional é escasso ou inexistente. Apesar de o senso comum ditar o contrário, a evidência científica tem mostrado que a obesidade e a Insegurança alimentar estão significativamente associadas.
Objetivos: Contextualizar este paradoxo na população portuguesa e abordar os mecanismos associados.
Metodologia: Foi feita uma revisão narrativa da melhor evidência científica publicada nos últimos 10 anos com as palavras-chave definidas, segundo as normas PRISMA e em snowball, inserindo artigos científicos, documentos oficiais e livros aplicados à população portuguesa.
Resultados: A crise económica sentida nos últimos anos despoletou disparidades sociais. Os grupos mais vulneráveis à Insegurança alimentar em Portugal são as mulheres, desempregados ou empregados em condições precárias, famílias monoparentais, famílias numerosas e com baixo nível de escolaridade. Vários estudos associam a Insegurança alimentar a doenças crónicas como obesidade, dislipidémia, diabetes Mellitus tipo 2 e hipertensão arterial, devido a uma alimentação desequilibrada, rica em produtos alimentares de elevada densidade energética e pobre em micronutrientes, e ao sedentarismo.
Conclusões: A prevenção e a gestão deste problema deve passar pela implementação de programas de monitorização nos cuidados de saúde primários e nas escolas, e aplicar estratégias a nível local para que se possa intervir de uma forma adequada e atempada.
Palavras-chave
Doenças crónicas, Insegurança alimentar, Obesidade/Excesso de peso, Programas de assistência alimentar
ABSTRACT
Introduction: Food insecurity exists when people don’t have adequate physical, social or economic access to food. Scientific evidence shows that Food insecurity and obesity are significantly associated.
Objectives: Contextualize this paradox in the Portuguese Population and evaluate the mechanisms associated to it.
Methodology: A narrative review of the best scientific evidence was carried with data from the last 10 years using the defined keywords according to PRISMA standards and to a snowball approach, by choosing scientific papers, official working reports and books directed to the Portuguese Population.
Results: The recent economic crisis has triggered social disparities. The most vulnerable groups to Food insecurity in Portugal are women, unemployed or employed in precarious conditions, single parents, big families and low educational level. Food insecurity is associated with chronic diseases, such as obesity, dyslipidemia, type 2 diabetes and hypertension, due to an unbalanced diet, rich in high density and micronutrient deficient food products, and a sedentary lifestyle.
Conclusions: In order to prevent and deal with this paradox, it is important to implement monitoring programs in primary health care and schools, and apply strategies at a local level to promote an adequate and timely intervention.
Keywords
Chronic diseases, Food insecurity, Obesity/Overweight, Food assistance programs
INTRODUÇÃO
A obesidade é uma doença crónica fruto de um balanço energético positivo, em que ocorre uma acumulação anormal ou excessiva de tecido adiposo que pode comprometer a saúde do indivíduo (1). O aumento do processamento de alimentos e a consequente ingestão de produtos de elevada densidade energética, ricos em gordura, açúcar e sal, associada à diminuição do nível de atividade física fruto do sedentarismo nas atividades laborais, no transporte e em casa, são os grandes responsáveis por este desequilíbrio energético (2, 3).
O excesso de peso constitui per se um fator de risco para o desenvolvimento de problemas de saúde a nível metabólico (cancro, osteoporose, insulinorresistência, diabetes Mellitus tipo 2 (DM2), cálculos biliares, dislipidémia, hipertensão arterial (HTA), doenças cardiovasculares e distúrbios digestivos), mecânico (doenças osteoarticulares e respiratórias) e psicossocial (baixa autoestima, depressão, ansiedade, perturbações do comportamento alimentar (PCA), isolamento social) (1, 2, 4). A obesidade abdominal, resultado da acumulação de gordura a nível visceral, está associada independentemente à DM2, doença cardiovascular, HTA, cancro e morte prematura (1, 2, 4). Estas doenças crónicas são mais prevalentes em indivíduos provenientes de grupos mais vulneráveis que sofrem de insegurança alimentar (IA) (3, 5–11).
A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) definiu IA como uma situação em que o acesso físico, social e económico do consumidor a alimentos adequados sob o ponto de vista nutricional é escasso ou inexistente (12, 13). Distingue-se do conceito de fome, que consiste numa sensação dolorosa causada pela falta recorrente e involuntária de alimentos, que se traduz num incumprimento das necessidades energéticas diárias, consequência de níveis graves de IA (12, 13).
Pretende-se nesta revisão contextualizar o paradoxo IA e obesidade na população portuguesa, abordando os mecanismos associados.
METODOLOGIA
Foi elaborada uma revisão bibliográfica da melhor evidência entre os meses de junho de 2017 e agosto de 2017, reunindo artigos dos últimos dez anos seguindo as normas PRISMA, pesquisados na base de dados Pubmed, em português e em inglês. Dos 2122 artigos encontrados com as palavras-chave no título e no resumo, foram selecionados 145 após a análise do título e, após a leitura do resumo, restaram 49 artigos que foram sujeitos a uma análise do texto integral e incluídos nesta revisão. Foram analisados artigos de revisão e originais, e foram excluídos artigos cuja amostra era constituída apenas por crianças e por indivíduos de países em desenvolvimento.
Devido à insuficiência de artigos científicos sobre a realidade portuguesa na base de dados Pubmed, foi também realizada uma pesquisa manual, incluindo referências secundárias em snowball, em revistas portuguesas (Revista Nutrícias e Acta Portuguesa de Nutrição) e sites oficiais (Organização Mundial da Saúde (OMS), Organização das Nações Unidas (ONU), FAO, Direção-Geral da Saúde (DGS), Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS), Instituto Nacional de Estatística, Repositório Científico de Acesso Aberto em Portugal) de documentos oficiais, teses e livros atuais aplicados ao nosso país.
A insegurança alimentar em portugal e na união europeia
Desde 1986, a Comissão Europeia implementou políticas de ação social para assistência não financeira a pessoas carenciadas: o Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados, que foi substituído em 2014 pelo Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC) (14–16). A implementação do FEAC veio relevar a necessidade de avaliar e adequar a oferta alimentar dos programas de distribuição alimentar, contribuindo para garantir a segurança alimentar e nutricional destes indivíduos e agregados familiares (15, 16).
A crise económica sentida nos últimos anos agravou as desigualdades sociais e o risco de pobreza, consequentes dos aumentos nos impostos, do desemprego e das reduções salariais, pelo que a IA tornou-se uma preocupação das organizações europeias e, consequentemente, do Governo português (14). Em 2014 e 2015, a OMS e a ONU relembraram o direito humano a uma alimentação adequada e suficiente com a publicação dos seus relatórios que promovem que todos os cidadãos devem ter acesso a alimentos nutricionalmente adequados em quantidade suficiente, independentemente do género ou do nível socioeconómico (17, 18).
Desde 2011, com as consequências da crise em Portugal, a DGS tem procurado elaborar e adaptar indicadores para avaliar e monitorizar a IA (14, 19). O PNPAS (20), um dos programas prioritários da DGS, foi criado em 2012, baseado nas diretrizes da OMS, e tem como um dos principais focos a erradicação da IA em Portugal (14, 18, 20).
O estudo INFOFAMÍLIA (21) foi pioneiro na avaliação da IA em Portugal, inquirindo agregados familiares que frequentavam o Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante o período de crise económica entre 2011 e 2014, com os objetivos finais de capacitar os cidadãos para efetuarem melhores escolhas alimentares com menos custos associados, e os profissionais de saúde para detetarem situações de vulnerabilidade social.
Antes deste estudo, apenas dois tinham avaliado a prevalência de IA em Portugal, obtendo valores muito díspares, resultado de diferentes abordagens metodológicas com diferentes métodos de amostragem e instrumentos utilizados, e de contextos socioeconómico e político distintos: em 2003, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge estimou a prevalência de IA em 8,1%, e, em 2007, 16,5% foi a prevalência determinada pelos dados do 4.º Inquérito Nacional de Saúde 2005-2006 (22–24). Este último identificou também uma prevalência de IA superior em mulheres, fumadores, jovens, desempregados, indivíduos com baixo nível de escolaridade e com baixos rendimentos familiares (23).
Para o INFOFAMÍLIA, foi desenvolvida e aplicada uma proposta metodológica para avaliar a IA validada para a população portuguesa (22, 25), resultado de uma adaptação da “Escala Brasileira de Insegurança Alimentar” (26) que foi baseada no questionário original americano (13, 27). Avaliar o grau de IA e os respetivos fatores associados proporciona um melhor planeamento dos cuidados de saúde a nível local (13, 21, 25).
As escalas psicométricas são métodos de avaliação simples, práticos, de fácil aplicação e compreensão e com boa relação custo-efetividade (14, 21, 25). Este tipo de escalas é amplamente utilizado em estudos a nível mundial (13) e permite classificar o indivíduo com segurança alimentar, IA leve, IA moderada ou IA grave (25). A principal desvantagem do uso deste método centra-se na subjetividade inerente ao autopreenchimento, resultado da perceção individual do risco de IA (25).
O INFOFAMÍLIA concluiu que, entre 2011 e 2014, cerca de 48,7% dos inquiridos sofreu de algum tipo de IA (28,2% ligeira, 9,6% moderada e 10,9% grave), sendo o ano de 2014 o que registou uma menor prevalência (45,8%), depois de um crescendo entre 2011 e 2013 (21). O ano de 2012 foi percecionado como o mais difícil, com maior prevalência de IA grave (8,8%) (21, 28). Os determinantes socioeconómicos e demográficos associados à IA foram as habilitações literárias, a situação profissional e o número de elementos do agregado familiar (21). A região Centro foi a mais protegida durante o período estudado, devido, provavelmente, à baixa prevalência de famílias monoparentais e de cidadãos estrangeiros (21, 22, 28). Verificou-se ainda que os níveis de IA mantiveram-se constantes ao longo do tempo, com maior prevalência nas regiões do Algarve e de Lisboa e Vale do Tejo, e os agregados familiares identificados com maior risco eram famílias numerosas, apresentavam menor nível de escolaridade, tinham elementos desempregados, domésticos ou reformados, tinham menos elementos a contribuir para o rendimento familiar ou sofriam de pré-obesidade (21, 28). A carência monetária foi a principal razão apontada para o consumo insuficiente de alimentos e para a não disponibilidade dos alimentos necessários para uma alimentação saudável e equilibrada (21). Cerca de 11,2% dos agregados familiares inquiridos apontou uma diminuição das idas ao médico por razões económicas nos últimos três meses, e 20,7% reportou uma diminuição na aquisição dos medicamentos prescritos e consequente diminuição na adesão à terapêutica (21). É importante referir que estes dados podem estar enviesados pela sensação de preocupação e incerteza inerente à instabilidade socioeconómica vivida em Portugal no período do estudo, e que, apesar do grande número de inquiridos, a amostra não é representativa da população e não contabilizou as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira (21, 28).
Posteriormente, dados de uma coorte representativa que utilizou a mesma metodologia do INFOFAMÍLIA, avaliou entre 2015 e 2016 uma prevalência de 19,3% de IA na população portuguesa, mais pronunciada nas ilhas, cujos determinantes major foram desemprego ou emprego em condições precárias, famílias monoparentais, baixo nível de educação e pouca perceção dos rendimentos familiares (29). Este estudo verificou ainda que os indivíduos com IA reportavam pior qualidade de vida, maior inaptidão física, maior prevalência de doenças crónicas, mais sintomas depressivos e maior consumo de recursos em saúde (29).
Dados do Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF 2015-2016) (30) revelaram números menos preocupantes, mas que merecem igualmente atenção e intervenção. O IAN-AF 2015-2016 foi um estudo transversal a uma amostra representativa da população portuguesa, com uma metodologia distinta para avaliar a IA que incluiu a recolha de dados acerca da disponibilidade, acesso, utilização e estabilidade/resiliência dos agregados familiares com e sem menores (30). Os resultados indicaram que 10,1% das famílias portuguesas sofreram de IA, dos quais 2,6% indicaram IA moderada ou grave (30). A prevalência de IA também parece ser superior em famílias que ainda têm menores dependentes (11,4%), o que pode ser sintomático da impossibilidade de estas crianças e jovens terem uma alimentação completa, variada e equilibrada, como o preconizado pela Roda dos Alimentos (30). A prevalência de IA não é uniforme em todas as zonas do país, destacando-se as ilhas com maior prevalência e o Alentejo com maior severidade (30). Verificou-se ainda que a IA é mais grave em famílias com baixa escolaridade e rendimentos menores ou próximos do salário mínimo (30).
Segundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento correspondente a 2016 (31), 25,1% dos residentes vivem em risco de pobreza ou de exclusão social, dos quais 18,8% são menores e 18,0% idosos. Neste ano, o risco de pobreza atingiu em especial desempregados, famílias numerosas e indivíduos que viviam sós (32). Dados mais recentes relativos ao ano de 2017 apresentaram um aumento do rendimento mediano por adulto na população com menores rendimentos, e a percentagem de população em risco de pobreza ou exclusão social reduziu para 23,3% (32).
Consequências da insegurança alimentar para a saúde pública
A alimentação traz elevados encargos para o orçamento familiar, pelo que a IA é considerada um evento de stress, inversamente relacionada com uma alimentação equilibrada, o que constitui um indicador para o risco de desenvolvimento de doenças crónicas (5, 33).
A literatura evidencia uma associação entre IA e doenças crónicas nos países desenvolvidos (3, 6, 33–40), nomeadamente obesidade infantil e adulta (3, 5, 33–35, 39–43), obesidade abdominal (11, 43–45), dislipidémia (36, 43, 46–48), DM2 (11, 36, 39, 40, 47, 49–53) associada a um pior controlo glicémico (11, 48–50, 52, 54) e HTA (36, 39, 47).
Estas associações devem-se, principalmente, a uma alimentação desequilibrada, rica em produtos alimentares de elevada densidade energética (3, 5, 6, 11, 33, 43, 55, 56) como cereais refinados (43, 57, 58), refrigerantes (3, 33, 59) e produtos processados ricos em gordura e sal (11, 33, 43, 55, 58, 59), e muito baixa em hortofrutícolas (3, 5, 6, 11, 33, 43, 56, 57, 59–62), carnes magras e peixe (57, 58, 60), leguminosas (57), cereais integrais (6) e laticínios (43, 56, 62), muito devido à distinção entre preços (5, 6, 8, 43, 63). Apesar da elevada ingestão calórica total, estes indivíduos possuem deficiências nutricionais (6, 47, 62), pois não atingem as recomendações de micronutrientes através da sua alimentação (3, 11, 56, 57, 60). O sedentarismo (3, 34, 50, 60) e a monotonia na alimentação (6, 55) também são mais prevalentes. Estas associações são significativamente mais evidentes no sexo feminino (5–7, 11, 34, 35, 37, 41, 42, 44, 53, 64–69).
Alguns estudos reportam ainda que indivíduos que sofrem IA apresentam perturbações psiquiátricas, como PCA, depressão, stress e ansiedade (43, 47, 49, 54, 58, 66, 70, 71), menor adesão à terapêutica farmacológica (47, 49, 50,54, 72, 73), maiores gastos em serviços de saúde (72, 74) e um pior estado geral de saúde (47, 73). Importa salientar que muitos indivíduos com IA não possuem recursos suficientes para se alimentarem adequadamente e para adquirirem a medicação, o que os leva a ter de selecionar apenas uma das opções, com evidente prejuízo para o seu estado geral de saúde (72, 73).
Mecanismos associados ao paradoxo insegurança alimentar e obesidade
Em 2007, a Comissão Europeia estimou que cerca de 20% da obesidade em homens e 40% em mulheres se deve às desigualdades socioeconómicas (3). Existe um gradiente social nos comportamentos de saúde, em desfavor dos indivíduos com nível socioeconómico mais baixo, com menor acesso a alimentos saudáveis e maior recurso a refeições pré-confecionadas e produtos alimentares de elevada densidade energética (55, 63), menor atividade física e um ambiente social potenciador de um balanço energético positivo e, consequentemente, do excesso de peso (3, 55).
Várias são as publicações que procuram compreender os mecanismos associados à elevada prevalência de excesso de peso em indivíduos que sofrem de IA (5–10, 67). Esta associação torna-se paradoxal, pois enquanto a IA resulta da falta de meios económicos que permitam que os indivíduos tenham acesso a alimentos, a obesidade resulta do excesso de calorias consumidas face ao gasto energético (5). A IA leve é o grau mais correlacionado com a obesidade, já os níveis de IA mais graves associam-se ao baixo peso (5, 8, 75).
A maior incidência nas mulheres pode dever-se a diferentes pressões sociais que potenciam uma menor atividade física, às alterações físicas resultantes da gravidez, a uma menor autoestima associada à frustração no incumprimento das normas sociais, à discriminação no meio laboral e a diferenças na composição corporal (3, 8, 66, 67).
A associação entre a IA e a obesidade é ainda inconsistente em crianças e adolescentes, devido à proteção parental e aos vários programas de assistência alimentar específicos para esta faixa etária (5, 8, 67).
O ambiente pré-natal e nos primeiros meses de vida influencia a programação fetal (3, 6, 76) e pode contribuir para o risco de desenvolvimento de obesidade e outras doenças crónicas no futuro adulto (11). Mulheres de baixo estatuto socioeconómico que sofrem de IA apresentam maior risco de terem crianças com baixo ou elevado peso ao nascer, ambos fatores de risco para a obesidade, e seguem menos as recomendações de amamentação e de diversificação alimentar (3, 70, 76).
Este aparente paradoxo é também potenciado pela genética de baixa eficiência metabólica, com indivíduos mais predispostos à obesidade quando nasceram e cresceram em ambientes com IA, pelo baixo nível de educação que se associa a escolhas alimentares menos conscientes, pelo baixo valor nutricional da sua alimentação, monótona, rica em alimentos de elevada densidade energética de baixo custo, e pelas alterações psicológicas resultantes de estados depressivos, stress, ansiedade e preocupação constante com as refeições (5, 6, 8–11, 54, 58, 67).
À semelhança dos modelos animais, o aumento do armazenamento de gordura corporal pode dever-se a uma resposta fisiológica perante a ameaça da falta de alimento no ser humano (10, 67). O stress está associado ao aumento dos níveis de cortisol que, cronicamente, influencia a ingestão alimentar e o metabolismo das gorduras, promovendo a resistência à leptina e o aumento do apetite, a deposição de gordura a nível visceral e a insulinorresistência (10, 67). A ativação do mecanismo de recompensa gerado pela ingestão de alimentos de elevada palatibilidade e de baixo valor nutricional em indivíduos de baixa condição social, como resposta a elevados níveis de stress, é outra das hipóteses apontadas (10, 11).
Um estudo longitudinal (77) revelou uma forte associação entre a IA e o índice de massa corporal, identificando um maior controlo da ingestão alimentar e da gestão do rendimento familiar nos indivíduos não obesos. Para tirar mais conclusões acerca do efeito da IA na génese e manutenção da obesidade, seriam necessários mais estudos longitudinais que nos permitissem avaliar a evolução do peso nos indivíduos e os mecanismos associados (8, 11, 64), bem como perceber a intensidade, duração e nível (familiar ou individual) da IA associada a piores consequências para a saúde e quais os períodos de vida mais críticos (11).
Contextualização do paradoxo insegurança alimentar e obesidade em portugal
À semelhança da realidade internacional, o estudo INFOFAMÍLIA (21) identificou níveis elevados de excesso de peso associados à IA leve, sendo que o baixo peso se associou à IA moderada e grave. A prevalência de IA associada à obesidade parece resultar de um comprometimento da qualidade nutricional das refeições ou apenas de uma preocupação com o acesso a alimentos num futuro, enquanto os valores de IA associados ao baixo peso refletem uma situação de restrição quantitativa de alimentos (21, 22).
Dados nacionais entre 1998 e 2006 (78) identificaram a presença de desigualdades sociais na distribuição das doenças crónicas, com uma maior prevalência nos grupos populacionais com rendimentos baixos. Relativamente à obesidade, os grupos de nível educacional mais baixo e as mulheres apresentaram prevalência superior, comparativamente com os restantes grupos (78). Um estudo de 2010 (79) associou os estilos de vida, as doenças cardiovasculares e o nível socioeconómico em Portugal, com maior prevalência de acidente vascular cerebral, doença cardíaca isquémica, DM2 e obesidade em agregados familiares com rendimentos mais baixos do que nos restantes grupos. Em 2012, um estudo (80) avaliou uma pequena amostra de conveniência (N=17) de indivíduos apoiados pelo Banco Alimentar contra a Fome e calculou uma elevada prevalência de pré-obesidade (17,6%) e obesidade (76,5%), um elevado perímetro da cintura com consequente risco de desenvolver complicações metabólicas, e um baixo consumo de fruta, hortícolas, leguminosas e leite e derivados.
Outros trabalhos portugueses identificaram uma relação inversa entre o grau de IA e a ingestão diária de produtos hortofrutícolas e carne, com consequente comprometimento das necessidades nutricionais de macro e micronutrientes (22). Crianças portuguesas de agregados familiares com IA têm hábitos mais sedentários (um maior número de horas passadas ao ecrã) e uma alimentação desequilibrada (baixo consumo de hortofrutícolas e ingestão mais frequente de sumos de fruta e refrigerantes) (22). A situação de IA encontrava-se associada a determinantes sociais, económicos e ambientais que condicionavam o acesso a alimentos de maior valor nutricional, como o preço e alguns comportamentos parentais mais permissivos em resposta a atitudes das crianças (22).
O IAN-AF 2015-2016 (30) não quantificou os níveis de obesidade associados à IA, mas, à semelhança da coorte representativa da população portuguesa avaliada no mesmo período de tempo (29), concluiu existir uma associação entre a IA e a menor adesão ao padrão alimentar mediterrânico. Esta coorte apresentou também uma tendência, não estatisticamente significativa, para uma maior prevalência de excesso de peso nos indivíduos com IA (29). Resultados de um grupo de idosos da mesma coorte revelaram uma prevalência de IA de 23%, presente principalmente em mulheres, indivíduos com menor nível de escolaridade, menores rendimentos, menor número de refeições, menor qualidade de vida e maior prevalência de doenças crónicas não transmissíveis (81).
ANÁLISE CRÍTICA
As estratégias para lidar com a IA e o seu impacto na saúde, particularmente a associação com a sobrecarga ponderal, decorrente de uma alimentação de elevada densidade energética e nutricionalmente pobre, devem ser multidisciplinares, abordando questões económicas, psicológicas e fisiológicas (5).
O preço dos alimentos é um importante determinante das escolhas alimentares dos indivíduos (82–84). O custo superior de alimentos de elevado valor nutricional, como fruta, cereais integrais, vegetais frescos e carnes magras, comparativamente com produtos de elevada densidade energética ricos em gordura e açúcares simples, exigem políticas nacionais e internacionais de proteção dos produtos saudáveis, de modo a facilitar o seu acesso (5, 6, 17, 60, 82, 83). O controlo do marketing alimentar e apoios para agricultura e mercados locais podem ser estratégias eficazes para promover preços acessíveis dos alimentos mais saudáveis e facilitar o seu acesso (3, 5).
A crise económica vivida nos últimos anos em toda a Europa trouxe grandes implicações para a saúde pública (85). O aumento do desemprego e a diminuição dos salários refletem-se nos níveis de IA percecionados e na saúde física e mental da população, mas, com investimento na proteção social, estas consequências poderiam ser minimizadas (85–87). A redução das desigualdades sociais contribuirá para uma melhor saúde e bem-estar, nomeadamente melhoria do estado nutricional e dos hábitos alimentares (17, 22).
O acesso de todos os indivíduos a uma alimentação saudável e equilibrada do ponto de vista nutricional deve ser um direito assegurado pelo Estado (14, 17). Não podemos assumir que indivíduos com excesso de peso e que sofrem de IA não possuam deficiências nutricionais, pois, na comunidade, a quantidade de energia fornecida pelos produtos alimentares disponíveis é suficiente ou até excessiva, mas a sua qualidade nutricional e diversidade são limitadas (6).
Nos indivíduos que sofrem de IA e usufruem de programas de assistência alimentar, é importante monitorizar, tendo em atenção a periodicidade, a quantidade e a qualidade nutricional da oferta, de modo a responder às reais necessidades (5, 7, 88, 89). Promover o acesso a alimentos saudáveis, nos programas de assistência alimentar, por si só, não é suficiente para corrigir a associação entre a IA e a obesidade (10). Os esforços no alívio à pobreza devem ter em consideração oportunidades de promoção de estilos de vida mais saudáveis, com melhores escolhas alimentares, aliadas a um nível adequado de atividade física (7), bem como oportunidades de educação alimentar e apoio social referente ao controlo das porções alimentares, a práticas culinárias económicas e à gestão do rendimento familiar (77, 89).
Após o diagnóstico de IA na população portuguesa (21), o PNPAS publicou, em 2017, um conjunto de diretrizes para a composição de cabazes alimentares com produtos nutricionalmente adequados, correspondentes a cerca de 50% das necessidades energéticas médias dos cidadãos nas várias faixas etárias, constituído por laticínios meio gordos, arroz, massa, cereais de pequeno-almoço à base de milho sem açúcares adicionados, leguminosas (feijão e grão), carne e peixe congelado, enlatados (atum e sardinha), tomate pelado, vegetais congelados, azeite, creme vegetal e marmelada (19).
Publicou também diretrizes para uma adequada utilização e conservação dos alimentos disponibilizados nestes cabazes (90). Estes documentos não substituem a integração de profissionais de saúde, nomeadamente nutricionistas, nos programas de assistência alimentar para combater a epidemia de doenças crónicas na população mais desfavorecida (3, 6, 14, 19, 55, 90–92). As estratégias educativas devem promover a autonomia dos envolvidos e ser suficientemente abrangentes para que o impacto seja duradouro (92). Os programas de assistência alimentar podem realmente ter um papel protetor nos indivíduos apoiados, na promoção de hábitos mais saudáveis e prevenção de doenças crónicas (3, 61, 71, 75, 91, 93, 94).
As consequências das doenças crónicas estão diretamente relacionadas com os custos em saúde para as famílias, comunidade e País, o que, associado ao aumento da esperança média de vida, põem em causa a sustentabilidade dos sistemas de saúde (2, 14, 17, 22, 47, 74, 95).
A intervenção e investigação futura na IA exige profissionais habilitados e sensíveis para este paradoxo, pelo que deve:
- Rever o conceito de “segurança alimentar”, que exige uma estratégia multidisciplinar integrando os setores da saúde, ação social, educação, agricultura e economia (5, 6, 14, 22).
- Definir políticas nacionais e internacionais para facilitar o acesso a produtos mais saudáveis por populações mais vulneráveis, tornando-
-os mais atrativos e acessíveis do ponto de vista financeiro e geográfico (14, 22, 55, 60, 91, 96).
- Assegurar, por profissionais de saúde, a qualidade nutricional e higiossanitária dos alimentos distribuídos às famílias carenciadas nos programas de assistência alimentar, procurando distribuir alimentos de todos os grupos da Roda dos Alimentos em quantidades adequadas (7, 14, 19, 22, 88, 90, 92).
- Formar os profissionais que exercem atividades diárias na área da ação social e nos cuidados de saúde primários para as questões da IA, higiene e segurança dos alimentos, bem como alimentação e estilos de vida saudáveis, de forma a capacitá-los para atuar em situações de vulnerabilidade social e atenuar as suas consequências (14, 91, 92, 97).
- Contribuir para a literacia em saúde, capacitando os cidadãos, nomeadamente os mais desfavorecidos, para escolhas e práticas alimentares mais adequadas (educação alimentar para estratégias de otimização da utilização dos alimentos, diminuição do desperdício, práticas alimentares económicas e porções alimentares adequadas para todo o ciclo de vida), promovendo ambientes impulsionadores de estilos de vida saudáveis (14, 17, 22, 63, 89, 92).
- Desenvolver ferramentas de monitorização para avaliar o impacto dos programas de assistência alimentar na saúde física e mental, nomeadamente no estado nutricional dos indivíduos e famílias apoiadas (7, 22, 60, 88).
- Desenhar programas escolares de monitorização do estado de saúde e do grau de IA nas crianças e jovens (14).
- Desenvolver ferramentas de monitorização para avaliar o estado de saúde associado ao grau de IA da população a nível local e regional (8, 14, 22, 60, 91).
- Desenvolver procedimentos acessíveis de fortificação de alimentos com micronutrientes para diminuir a prevalência das deficiências nutricionais mais observadas nas populações mais vulneráveis (6).
- Desenvolver programas de atividade física e nutrição junto das populações mais vulneráveis (6).
- Sensibilizar os profissionais de saúde, nomeadamente nos cuidados de saúde primários, para monitorizar a IA em contexto de prevenção e tratamento da obesidade, bem como em consulta de planeamento familiar e acompanhamento durante a gravidez (70, 76, 94, 97).
CONCLUSÕES
A IA, particularmente o grau leve, associa-se à obesidade, e é um problema que hoje assola todo o mundo desenvolvido, incluindo Portugal. Apesar de ir contra o senso comum, a evidência científica mostra atualmente a obesidade como uma doença das populações mais vulneráveis, fruto de um elevado sedentarismo e de uma alimentação desequilibrada.
Em Portugal, as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira apresentam maior prevalência de IA, e os grupos mais vulneráveis são mulheres, desempregados ou empregados em condições precárias, famílias monoparentais, famílias numerosas e baixo nível de escolaridade. São também estes grupos que apresentam um pior estado geral de saúde, com maior prevalência de doenças crónicas, menor adesão à terapêutica, maior consumo de recursos de saúde, maior inaptidão física, pior qualidade de vida e uma alimentação mais desequilibrada com menor adesão ao padrão alimentar mediterrânico.
É importante implementar ferramentas de avaliação da IA validadas para a população portuguesa, bem como descrever a sua associação ao desenvolvimento de doenças crónicas, monitorizando assim a IA e as suas consequências em ambiente de consulta de nutrição clínica, o que moldaria e promoveria a eficácia da intervenção nutricional. Implementar programas de monitorização da IA associada à obesidade nas escolas e nos cuidados de saúde primários, para que se possa intervir de uma forma adequada e atempada, preveniria as suas consequências a curto, médio e longo prazo. Uma das prioridades dos programas nacionais deve ser também educar a população, de forma a proporcionar um ambiente familiar com escolhas alimentares e hábitos de vida mais saudáveis, intervindo, para isso, a nível local, na criação de oportunidades de atividades ao ar livre e de formações de culinária económica e alimentação saudável, para promover escolhas alimentares mais inteligentes e a baixo custo.
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Carla Campos Correia
Rua da Almoinha, n.º 7,
3140-262 Montemor-o-Velho, Portugal
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Recebido a 2 de outubro de 2017
Aceite a 15 de junho de 2018