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Acta Portuguesa de Nutrição

versão On-line ISSN 2183-5985

Acta Port Nutr  no.23 Porto dez. 2020  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.21011/apn.2020.2302 

Artigo Original

COVID-19: RISCO DE INSEGURANÇA ALIMENTAR E FATORES ASSOCIADOS NA MADEIRA

COVID-19: RISK OF FOOD INSECURITY AND ASSOCIATED FACTORS IN MADEIRA

Liliane Costa1  * 

Eva Henriques2 

Teresa Esmeraldo1 

1 Unidade de Nutrição e Dietética, Serviço de Endocrinologia do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira,Funchal, Portugal

2Unidade de Investigação Dra. Maria Isabel Mendonça do Hospital Dr. Nélio Mendonça, Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira, Funchal, Portugal


RESUMO

INTRODUÇÃO:

A Insegurança Alimentar constitui um problema grave de saúde pública, que pode ser agravado com as medidas de contenção social impostas durante a pandemia COVID-19.

OBJETIVOS:

Determinar a prevalência de Insegurança Alimentar e investigar determinantes associados, na Região Autónoma da Madeira, durante o confinamento geral na pandemia COVID-19.

METODOLOGIA:

Estudo transversal, com aplicação de um questionário por entrevista telefónica assistida por computador a 351 adultos, entre 22-29 de maio 2020. A presença de Insegurança Alimentar foi avaliada através de uma escala de 2 itens utilizada pela Direção-Geral da Saúde. A análise multivariada (regressão logística, método Forward Wald) foi usada para estudar a associação entre Insegurança Alimentar e variáveis demográficas, socioeconómicas e de estilo de vida.

RESULTADOS:

A prevalência de Insegurança Alimentar entre os agregados familiares da Região Autónoma da Madeira foi de 33,6%. No modelo ajustado (para tamanho do agregado familiar, perceção da situação financeira e alteração dos hábitos alimentares) a perceção de uma situação financeira suficiente ou difícil/muito difícil foi associada a maior probabilidade de reportar Insegurança Alimentar. Os inquiridos que partilhavam casa com três ou mais pessoas apresentaram probabilidade quase 2 vezes maior de Insegurança Alimentar , do que aqueles que viviam sozinhos ou partilhavam casa com apenas mais uma pessoa. A alteração de hábitos alimentares, durante o período de contenção, associou-se positivamente ao risco de Insegurança Alimentar

CONCLUSÕES:

Na Região Autónoma da Madeira, 33,6% das famílias foram identificadas em risco de Insegurança Alimentar, durante o período de confinamento pela COVID-19. No futuro, em contextos semelhantes, especial atenção deve ser dada a famílias em situação financeira mais frágil, com agregados familiares de maiores dimensões e com tendência para alterar os seus hábitos alimentares.

PALAVRAS-CHAVE: COVID-19; Insegurança Alimentar; Madeira

ABSTRACT

INTRODUCTION:

Food Insecurity is a serious public health problem that may be aggravated by social constraints imposed during the COVID-19 pandemic.

OBJECTIVES:

To determine the prevalence of Food Insecurity in the population of the Autonomous Region of Madeira and explore

associated factors, during the COVID-19 pandemic lockdown.

METHODOLOGY:

Cross-sectional study, with the application of a questionnaire by computer-assisted telephone interview to 351 adults, between 22-29 May 2020. Multivariate analysis (logistic regression, Forward Wald method) was conducted to study the association between Food Insecurity and demographic, socioeconomic and lifestyle variables.

RESULTS:

The prevalence of Food Insecurity among Autonomous Region of Madeira households was 33.6%. In the adjusted model (for household size; perception of financial situation and change in eating habits) the perception of a sufficient financial situation or difficult / very difficult was associated with an increased likelihood of reporting Food Insecurity. Respondents who shared a home with three or more people were almost twice as likely to have Food Insecurity , than those who lived alone or shared a home with just one other person. The change in eating habits, compared to the period of pre-containment, was positively associated with the risk of Food Insecurity .

CONCLUSIONS:

In the Autonomous Region of Madeira, 33.6% of families were identified as at risk for Food Insecurity during COVID-19 pandemic lockdown. In the future, in similar contexts, special attention should be given to families in more fragile financial situations, with larger households and with a tendency to change their eating habits.

KEYWORDS: COVID-19; Food Insecurity; Madeira

INTRODUÇÃO

Em 2020, o Mundo foi assolado por uma doença contagiosa, a COVID-19, provocada por um novo coronavírus, o SARS-CoV-2. Face à rápida propagação da doença, em Portugal e à semelhança de outros países, foram tomadas medidas de confinamento geral e contenção social, com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença. Uma das principais consequências deste tipo de medidas, também observada em outros surtos epidémicos, é o impacto socioeconómico negativo devido ao desemprego, à redução do rendimento familiar e ao consequente aumento da insegurança alimentar (IA) (1, 2). Antes do início da pandemia COVID-19, estimou-se que mais de 2 biliões de pessoas em todo o mundo pudessem ter experienciado algum grau de IA, definida com a limitação no acesso a uma alimentação segura, nutricionalmente adequada e em quantidade suficiente (3). Contudo, após a COVID-19 prevê-se que esse valor aumente e que o número de pessoas com fome severa possa inclusive duplicar (4). Em Portugal vigorou, entre 2011-2014, um sistema de monitorização e avaliação da situação de Segurança Alimentar (SA) da população portuguesa, mas sem dados das Regiões Autónomas (5). Os primeiros dados sobre a Região Autónoma da Madeira (RAM) surgem em 2015- 2016, no Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) e na terceira avaliação do Estudo Epidemiológico de Coorte de Doenças Crónicas (EpiDoC3). No IAN-AF, a prevalência de IA na RAM foi de 13,2%, superior à média nacional de 10,1% (6). Os dados da coorte EpiDoc3 revelaram uma prevalência nacional de 19,3% e regional de 28,8% (7,8). Não obstante as diferenças metodológicas, as Regiões Autónomas surgiram em ambos os estudos como sendo as regiões do país mais afetadas pela situação de IA. Após o início da pandemia COVID-19, e em pleno período de confinamento geral, o estudo React- COVID, conduzido pela Direção-Geral da Saúde (DGS) em todo o território nacional, revelou uma prevalência de IA, ponderada para a população portuguesa, de 32,3% e de 39,4% para a RAM (9).

Por todo o mundo, os fatores demográficos e socioeconómicos têm sido considerados os principais determinantes de IA, nomeadamente: sexo, idade, escolaridade, rendimento e composição do agregado familiar, e local de residência (10). Em Portugal, famílias monoparentais, baixo nível de escolaridade, baixo rendimento familiar, desemprego ou emprego precário e a perceção de uma situação financeira insuficiente foram identificados como os fatores mais associados ao risco de IA (8,11-13). Na literatura científica é reconhecida também a associação entre IA e o aumento da prevalência de doenças crónicas, como a obesidade, a diabetes Mellitus tipo 2 e a hipertensão arterial, tanto devido à escassez de alimentos (fome) como por uma alimentação desequilibrada, rica em alimentos densamente calóricos mas pobres sob o ponto de vista nutricional (14-18). A pré-existência destas doenças tem representado fatores de risco desfavoráveis no prognóstico da infeção pelo novo coronavírus (19, 20). Neste contexto, é plausível o cenário no qual as famílias que experienciam algum grau de IA possam ver a sua saúde comprometida e, em consequência, ficarem mais expostas às complicações da COVID-19, projectando a médio e a longo prazo as complicações para saúde pública. Dadas as diferenças regionais na prevalência de IA e a ausência de dados sobre fatores de risco específicos na RAM, este estudo pretende contribuir com informação sobre o possível impacto das medidas de contenção social no risco de IA, durante a pandemia COVID-19.

OBJETIVOS

Determinar a prevalência de IA na população da RAM, durante o período de contenção social, e investigar fatores demográficos, socioeconómicos e de estilo de vida associados.

METODOLOGIA

Os dados do presente estudo provêm do estudo regional realizado entre 22 a 29 de maio, com objetivo de conhecer o impacto da implementação das medidas de confinamento geral e contenção social, desde 16 de março (11 semanas). O estudo foi autorizado pelo Conselho de Administração do SESARAM, E.P.E. com a aprovação da Secretaria Regional de Saúde e Proteção Civil da Madeira. A população-alvo foi constituída pelos utentes inscritos nos Cuidados de Saúde Primários do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM, E.P.E.), entre os 5 e os 84 anos de idade. Uma amostra probabilística e estratificada por grupo etário e concelho de residência foi obtida. Aos inquiridos que aceitaram participar no estudo foi aplicado um questionário por entrevista telefónica assistida por computador (sistema CATI - computer-assisted telephone interview), num total de 407 questionários válidos (50,3% taxa de resposta, obtida pela razão o total de inquéritos elegíveis e o total de contactos efetuados), ou seja, que estiveram pelo menos 1 semana em contenção social. Para o presente trabalho foram incluídos apenas os participantes com 18 ou mais anos de idade, pelo que a amostra final foi de 351 participantes, dos quais 220 (62,7%) eram mulheres.

O risco de IA foi calculado a partir de uma escala de 2 itens, validada na população americana (21), e indicada pela DGS para o rastreio da IA no contexto da prática clínica (22). Segundo esta escala, o risco de IA é identificado quando se verifica pelo menos uma resposta afirmativa (muitas vezes/às vezes) às seguintes questões: “Durante os últimos 3 meses, alguma vez se sentiu preocupado/a pelo facto de os alimentos em sua casa poderem acabar antes que tivesse dinheiro suficiente para comprar mais?”; “Durante os últimos 3 meses, aconteceu os alimentos em sua casa acabarem antes de ter dinheiro para comprar mais?”. A situação de SA foi categorizada em IA (se identificado risco de IA) e em SA (se não identificado risco de IA).

O tempo de contenção social e confinamento foi determinado pelo número de semanas completas, sem sair de casa ou saindo apenas para atividades essenciais, desde o dia 16 março, e categorizado em: 1-4; 5-8 e 9-11 semanas. Variáveis demográficas (tamanho do agregado familiar, sexo, idade e ruralidade), socioeconómicas (escolaridade, situação profissional e situação financeira percecionada) e do estilo de vida foram obtidas para o presente estudo. A idade dos inquiridos foi categorizada em grupos (18-39; 40-59; ≥ 60). A variável “agregado familiar” refere-se ao número de pessoas (≤1, 2 ou ≥3) com quem partilhou casa durante as semanas em contenção social. A “escolaridade” foi dividida em: primária (até 4 anos de escolaridade); 6.º/9.º ano (5 a 9 anos de escolaridade); 12.º ano (10 a 12 anos de escolaridade); e curso superior (mais de 12 anos de escolaridade). Os municípios de residência foram classificados segundo o grau de ruralidade, de acordo com a metodologia desenvolvida pela Comissão Europeia e aplicada no Programa Regional de Desenvolvimento Rural (23): predominantemente rural (inclui os concelhos da Calheta, Ponta do Sol, Porto Moniz, Porto Santo, Ribeira Brava, Santana e São Vicente), significativamente rural (Câmara de Lobos, Machico e Santa Cruz) e predominantemente urbana (Funchal). A situação profissional foi categorizada em: ativo; reformado ou pensionista; e não ativo, que inclui estudante (não trabalhador), dono(a)-de-casa/doméstico(a), à procura de trabalho ou outro. Os participantes foram ainda questionados sobre a perceção do estado de saúde em geral (ótima/muito boa/boa vs. razoável/fraca) e da perceção de alteração, comparativamente ao período pré-contenção, das seguintes dimensões do estilo de vida: tempo de sono; volume de atividade física; hábitos alimentares; e peso corporal.

A análise descritiva (uni- e bivariada) foi usada para a caracterização do total da população em estudo e por situação de SA. O teste do Qui-quadrado foi usado para comparação de variáveis categóricas entre os grupos. Para estudar a associação entre IA e as características demográficas, socioeconómicas e do estilo de vida foi feita uma análise multivariada (regressão logística) e escolhido o método Forward Wald, no qual todas as variáveis são introduzidas no modelo e, no final, apenas permanecem na equação as variáveis com significância estatística para a predição da variável resposta (com risco de IA). Odds ratio (OR) e os respetivos intervalos de 95% de confiança foram obtidos pela regressão logística. O nível de significância foi estabelecido para p <0,05. A análise estatística foi realizada com recurso ao software SPSS versão 25.0.

RESULTADOS

O presente estudo identificou 33,6%de adultos e respetivas famílias, em risco de IA (Gráfico 1). Do total de adultos em risco de IA, a maioria tinha 60 ou mais anos de idade (55,1%) e referiu estar numa situação financeira difícil/muito difícil (55,1%). Cerca de metade dos inquiridos em situação de IA tinha baixa escolaridade (48,3%) e 38,1% não se encontrava no ativo, a trabalhar (Tabela 1).

A análise estatística ajustada para fatores demográficos e socioeconómicos associados à IA (tamanho do agregado familiar, perceção da situação financeira e alteração dos hábitos alimentares) revelou que as famílias dos inquiridos com perceção de situação financeira menos confortável , ou que preferiram não responder apresentaram maior probabilidade de sofrer dessa condição. No modelo ajustado, os inquiridos que partilharam casa com 3 ou mais pessoas apresentaram uma probabilidade quase 2 vezes maior de IA , comparativamente aos que viviam sozinhos ou partilhavam casa com apenas mais uma pessoa. No que respeita aos fatores do estilo de vida, a alteração de hábitos alimentares durante o período de contenção social, foi positivamente associada ao risco de IA , depois de ajustado para tamanho do agregado familiar e perceção da situação financeira (Tabela 2).

DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Este estudo apresenta os resultados de um inquérito realizado à população adulta da RAM, nas semanas após a implementação de medidas de contenção social, de modo a evitar a propagação da COVID-19. Os dados revelam que, cerca de 1 em cada 3 famílias viveram uma situação de IA entre março e maio de 2020. No presente estudo, a condição financeira percecionada e o tamanho do agregado familiar foram os principais determinantes demográficos e socioeconómicos de risco de IA. A alteração dos hábitos alimentares também se relacionou positivamente com o risco de IA entre a população adulta da RAM.

A prevalência de adultos em risco de IA, determinada no presente estudo, é superior à reportada na Região em 2015-2016, nos estudos IAN-AF (13,2%) e EpiDoc3 (28,8%) e ligeiramente inferior à revelada no estudo React-COVID (33,6% vs. 39,4%) (6,8,9). Estes dados podem significar, por uma lado, que a situação de IA tem vindo a aumentar ao longo do tempo ou que, por outro, as medidas de contenção social impostas durante a pandemia tiveram um impacto negativo importante para as famílias, no que respeita à acessibilidade e preocupação com a alimentação. Aspetos metodológicos podem também explicar resultados diferentes dos estudos anteriores, nomeadamente o método de recolha de dados, o instrumento de medição do risco de IA, os métodos de análise dos resultados, bem como a distribuição

Gráfico 1: Prevalência de segurança/insegurança alimentar na população da RAM (N=351) 

da população por idade e sexo. Não obstante, a IA apresenta-se com um problema sério na RAM, com prováveis implicações no setor social e de saúde.

No presente trabalho, e como expectável, uma pior situação financeira percecionada foi associada a um maior risco de IA. Contudo, é de salientar que, mesmo a perceção de uma situação financeira suficiente, comparativamente a uma situação confortável/muito confortável, aumentou em 4 vezes mais, a probabilidade de IA. Este dado pode sugerir, por um lado a preocupação das famílias quanto ao acesso a alimentos no futuro, e por outro, que a IA depende de outros fatores que não apenas do rendimento. Na verdade, são várias as dimensões que determinam a segurança/insegurança alimentar, nomeadamente a disponibilidade de alimentos (locais de venda, mercados, comércio), o acesso (rendimentos da família, preço dos alimentos, preferências alimentares), a adequação nutricional (quantidade e qualidade dos alimentos; absorção de macro- e micronutrimentos) e a capacidade de garantir todas as dimensões anteriores ao longo do tempo e de forma regular (24, 25). Outro aspeto a considerar é o facto de que, os indivíduos que preferiram não responder sobre a perceção da situação financeira, apresentaram uma probabilidade 5 vezes superior de IA, do que aqueles cuja situação é percebida como confortável/ muito confortável. Este dado salienta a necessidade de se criarem instrumentos de diagnóstico da situação de IA, complementares aos baseados no reporte das famílias, uma vez que estas podem preferir esconder a verdadeira situação e, como consequência, agravarem o seu estado social e de saúde. Apesar de existirem escalas mais exaustivas e abrangentes para medirem a perceção de IA, a escala usada no presente estudo constituiu uma ferramenta de medição simples, rápida e de excelente relação custo-efetividade (21). No presente trabalho, os dados sobre a perceção de IA foram recolhidos no âmbito de um estudo mais alargado e por contato telefónico, pelo que a utilização de uma escala mais pequena era desejável para não tornar a entrevista demasiado comprida.

Apesar de, no geral, os estudos revelarem uma associação entre o tamanho e composição do agregado familiar e risco de IA, as características avaliadas e que fundamentam a associação positiva são diferentes. Os dados do presente trabalho revelam que a um maior número de membros no agregado familiar se associou maior probabilidade de risco de IA, ao contrário do observado em outros estudos nacionais, onde esta relação não foi evidente (11,12). A

Tabela 1: Características demográficas, socioeconómicas e do estilo de vida no total da população estudada e por situação de segurança alimentar 

AF: Atividade Física

HA: Hábitos Alimentares

IA: Insegurança Alimentar

p*: Valor de p obtido pelo teste Qui-quadrado para as diferenças entre os grupos com (IA) e sem insegurança alimentar (SA)

SA: Segurança Alimentar

Valores a negrito: com significância estatística (p<0,05)

Tabela 2: Associação das variáveis demográficas, socioeconómicas e do estilo de vida com o risco de insegurança alimentar 

*As variáveis incluídas no modelo foram: semanas em confinamento, agregado familiar, sexo, grupo etário, escolaridade, situação profissional, situação financeira percecionada, ruralidade, estado de saúde, alteração tempo de sono, alteração volume atividade física, alteração hábitos alimentares e alteração do peso corporal. --- Variáveis excluídas do modelo Forward Wald

AF: Atividade Física

HA: Hábitos Alimentares

IC: Intervalo de Confiança

OR: Odds ratio

Valores a negrito: com significância estatística (p<0,05)

estrutura da família (famílias monoparentais ou casais com ou sem filhos) tem sido, no entanto considerado um determinante importante de IA, em algumas regiões de Portugal (11,12). A presença no agregado familiar de crianças, jovens universitários e idosos dependentes é outro dos fatores relacionados com a composição das famílias que parece aumentar significativamente o risco de IA (26, 27). Estas variáveis, não exploradas neste trabalho, podem também explicar a ausência de associação entre sexo e risco de IA. Na literatura, é reconhecido que um maior número de experiências de IA é reportado por mulheres e que a composição do agregado familiar, em especial o número de crianças, constitui o principal determinante das diferenças na IA entre sexos (10). Neste estudo, apesar de não estatisticamente significativo, observou-se uma maior proporção de inquiridos do sexo feminino nos participantes que reportaram IA. Em estudos futuros, poderá ser importante relacionar as várias dimensões das características do agregado familiar com o risco de IA, no total da população e por sexo. O risco de IA associou-se positivamente à alteração de hábitos alimentares, durante o período de confinamento, ainda que não tenha sido possível neste trabalho, obter a direção dessas alterações. Estudos prévios apontam para uma associação adversa entre IA e qualidade alimentar, nomeadamente uma menor adesão à dieta Mediterrânica, considerada como parte de um padrão alimentar saudável (8, 28-30). Outros estudos seriam necessários, contudo, para apurar se a IA encontrada neste trabalho é temporária ou de longo prazo, se foi desenvolvida no contexto específico das medidas de contenção social impostas na pandemia COVID-19 ou agravada por estas, o que pode determinar um impacto diferente nos hábitos alimentares dos agregados familiares.

Perante os dados deste trabalho, sugere-se a criação, na RAM, de um observatório regional para o diagnóstico regular da situação de IA e a criação de uma estratégia intersetorial capaz de detetar e resolver situações de IA ligeira e responder atempadamente às situações mais graves e urgentes. Manter o aconselhamento alimentar a indivíduos, aumentar a literacia alimentar, conectar as famílias aos recursos alimentares da sociedade e acompanhar clínica e socialmente as famílias em situação de IA poderão ser algumas das medidas a seguir, para mitigar o efeito da IA na saúde das populações.

O presente estudo apresenta algumas limitações importantes. Uma das principais é o facto de, pela metodologia usada, não ser possível garantir que todos os inquéritos foram aplicados ao responsável pelas compras alimentares no seio da família. Ainda assim, acreditamos que, tratando-se de adultos, todos conhecem, no geral, a situação económica familiar. Outra limitação a ser considerada é que todas as variáveis foram medidas através da autoperceção dos inquiridos, o que pode ser sujeito a viés de desejabilidade social. Uma informação importante, não obtida neste estudo, refere-se à caracterização da situação profissional e se esta foi alterada após as medidas de contenção social, uma vez que trabalhadores informais ou em lay-off poderão representar grupos de maior risco para a IA. Pela positiva, destaca-se o facto de ser um estudo cuja informação, dada a escassez de dados regionais, será importante para a escolha de melhores estratégias de intervenção na área da saúde pública, principalmente em períodos de instabilidade económica que possam agravar as desigualdades sociais. Outro dos pontos fortes é o facto de os dados terem sido colhidos por profissionais de saúde na área da nutrição, por telefone, o que reduz o viés de informação. O inquérito a que se refere o presente estudo foi aplicado imediatamente após a implementação das medidas de contenção social (encerramento de escolas, teletrabalho, dever cívico de recolhimento domiciliário), o que permitiu capturar em tempo real, o impacto das mesmas nas famílias e contribuir para a redução do viés de informação. O efeito a longo prazo destas medidas podem ser melhores ou piores do que o encontrado no presente estudo, pelo que estudos futuros serão necessários para continuar a acompanhar os efeitos da pandemia e das medidas de contenção social na insegurança alimentar de indivíduos e famílias.

CONCLUSÕES

Na RAM, 33,6% das famílias foram identificadas em risco de IA, durante o período de confinamento geral para prevenir a propagação da pandemia COVID-19. Trata-se por isso de um problema importante na Madeira, cuja abordagem deverá dar especial atenção a famílias em situação financeira mais frágil, com agregados familiares de maiores dimensões e com tendência para alterar os seus hábitos alimentares, perante situações semelhantes de confinamento e contenção social. Os resultados do presente estudo chamam a atenção para a necessidade de uma estratégia de identificação, mitigação e vigilância das famílias em situação de IA na RAM.

AGRADECIMENTOS

Um agradecimento especial aos serviços do SESARAM, E.P.E.: Serviço de Planeamento Estratégico e Controlo de Gestão no cálculo da amostra; ao Serviço de Gestão de Doentes e Estatística na seleção da listagem dos participantes da amostra; ao Gabinete de Comunicação e Imagem pela criação do questionário para aplicação “online”; e ao Centro de Investigação Dr.ª Maria Isabel Mendonça na análise estatística dos dados.

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Recebido: 23 de Setembro de 2020; Aceito: 16 de Dezembro de 2020

*Endereço para correspondência: Liliane Costa, Centro de Saúde da Ribeira Brava, Estrada Regional, n.º 104, 9350-146 Ribeira Brava, Portugal liliane.lilocosta@gmail.com

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