INTRODUÇÃO
Em 2020, o Mundo foi assolado por uma doença contagiosa, a COVID-19, provocada por um novo coronavírus, o SARS-CoV-2. Face à rápida propagação da doença, em Portugal e à semelhança de outros países, foram tomadas medidas de confinamento geral e contenção social, com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença. Uma das principais consequências deste tipo de medidas, também observada em outros surtos epidémicos, é o impacto socioeconómico negativo devido ao desemprego, à redução do rendimento familiar e ao consequente aumento da insegurança alimentar (IA) (1, 2). Antes do início da pandemia COVID-19, estimou-se que mais de 2 biliões de pessoas em todo o mundo pudessem ter experienciado algum grau de IA, definida com a limitação no acesso a uma alimentação segura, nutricionalmente adequada e em quantidade suficiente (3). Contudo, após a COVID-19 prevê-se que esse valor aumente e que o número de pessoas com fome severa possa inclusive duplicar (4). Em Portugal vigorou, entre 2011-2014, um sistema de monitorização e avaliação da situação de Segurança Alimentar (SA) da população portuguesa, mas sem dados das Regiões Autónomas (5). Os primeiros dados sobre a Região Autónoma da Madeira (RAM) surgem em 2015- 2016, no Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) e na terceira avaliação do Estudo Epidemiológico de Coorte de Doenças Crónicas (EpiDoC3). No IAN-AF, a prevalência de IA na RAM foi de 13,2%, superior à média nacional de 10,1% (6). Os dados da coorte EpiDoc3 revelaram uma prevalência nacional de 19,3% e regional de 28,8% (7,8). Não obstante as diferenças metodológicas, as Regiões Autónomas surgiram em ambos os estudos como sendo as regiões do país mais afetadas pela situação de IA. Após o início da pandemia COVID-19, e em pleno período de confinamento geral, o estudo React- COVID, conduzido pela Direção-Geral da Saúde (DGS) em todo o território nacional, revelou uma prevalência de IA, ponderada para a população portuguesa, de 32,3% e de 39,4% para a RAM (9).
Por todo o mundo, os fatores demográficos e socioeconómicos têm sido considerados os principais determinantes de IA, nomeadamente: sexo, idade, escolaridade, rendimento e composição do agregado familiar, e local de residência (10). Em Portugal, famílias monoparentais, baixo nível de escolaridade, baixo rendimento familiar, desemprego ou emprego precário e a perceção de uma situação financeira insuficiente foram identificados como os fatores mais associados ao risco de IA (8,11-13). Na literatura científica é reconhecida também a associação entre IA e o aumento da prevalência de doenças crónicas, como a obesidade, a diabetes Mellitus tipo 2 e a hipertensão arterial, tanto devido à escassez de alimentos (fome) como por uma alimentação desequilibrada, rica em alimentos densamente calóricos mas pobres sob o ponto de vista nutricional (14-18). A pré-existência destas doenças tem representado fatores de risco desfavoráveis no prognóstico da infeção pelo novo coronavírus (19, 20). Neste contexto, é plausível o cenário no qual as famílias que experienciam algum grau de IA possam ver a sua saúde comprometida e, em consequência, ficarem mais expostas às complicações da COVID-19, projectando a médio e a longo prazo as complicações para saúde pública. Dadas as diferenças regionais na prevalência de IA e a ausência de dados sobre fatores de risco específicos na RAM, este estudo pretende contribuir com informação sobre o possível impacto das medidas de contenção social no risco de IA, durante a pandemia COVID-19.
OBJETIVOS
Determinar a prevalência de IA na população da RAM, durante o período de contenção social, e investigar fatores demográficos, socioeconómicos e de estilo de vida associados.
METODOLOGIA
Os dados do presente estudo provêm do estudo regional realizado entre 22 a 29 de maio, com objetivo de conhecer o impacto da implementação das medidas de confinamento geral e contenção social, desde 16 de março (11 semanas). O estudo foi autorizado pelo Conselho de Administração do SESARAM, E.P.E. com a aprovação da Secretaria Regional de Saúde e Proteção Civil da Madeira. A população-alvo foi constituída pelos utentes inscritos nos Cuidados de Saúde Primários do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM, E.P.E.), entre os 5 e os 84 anos de idade. Uma amostra probabilística e estratificada por grupo etário e concelho de residência foi obtida. Aos inquiridos que aceitaram participar no estudo foi aplicado um questionário por entrevista telefónica assistida por computador (sistema CATI - computer-assisted telephone interview), num total de 407 questionários válidos (50,3% taxa de resposta, obtida pela razão o total de inquéritos elegíveis e o total de contactos efetuados), ou seja, que estiveram pelo menos 1 semana em contenção social. Para o presente trabalho foram incluídos apenas os participantes com 18 ou mais anos de idade, pelo que a amostra final foi de 351 participantes, dos quais 220 (62,7%) eram mulheres.
O risco de IA foi calculado a partir de uma escala de 2 itens, validada na população americana (21), e indicada pela DGS para o rastreio da IA no contexto da prática clínica (22). Segundo esta escala, o risco de IA é identificado quando se verifica pelo menos uma resposta afirmativa (muitas vezes/às vezes) às seguintes questões: “Durante os últimos 3 meses, alguma vez se sentiu preocupado/a pelo facto de os alimentos em sua casa poderem acabar antes que tivesse dinheiro suficiente para comprar mais?”; “Durante os últimos 3 meses, aconteceu os alimentos em sua casa acabarem antes de ter dinheiro para comprar mais?”. A situação de SA foi categorizada em IA (se identificado risco de IA) e em SA (se não identificado risco de IA).
O tempo de contenção social e confinamento foi determinado pelo número de semanas completas, sem sair de casa ou saindo apenas para atividades essenciais, desde o dia 16 março, e categorizado em: 1-4; 5-8 e 9-11 semanas. Variáveis demográficas (tamanho do agregado familiar, sexo, idade e ruralidade), socioeconómicas (escolaridade, situação profissional e situação financeira percecionada) e do estilo de vida foram obtidas para o presente estudo. A idade dos inquiridos foi categorizada em grupos (18-39; 40-59; ≥ 60). A variável “agregado familiar” refere-se ao número de pessoas (≤1, 2 ou ≥3) com quem partilhou casa durante as semanas em contenção social. A “escolaridade” foi dividida em: primária (até 4 anos de escolaridade); 6.º/9.º ano (5 a 9 anos de escolaridade); 12.º ano (10 a 12 anos de escolaridade); e curso superior (mais de 12 anos de escolaridade). Os municípios de residência foram classificados segundo o grau de ruralidade, de acordo com a metodologia desenvolvida pela Comissão Europeia e aplicada no Programa Regional de Desenvolvimento Rural (23): predominantemente rural (inclui os concelhos da Calheta, Ponta do Sol, Porto Moniz, Porto Santo, Ribeira Brava, Santana e São Vicente), significativamente rural (Câmara de Lobos, Machico e Santa Cruz) e predominantemente urbana (Funchal). A situação profissional foi categorizada em: ativo; reformado ou pensionista; e não ativo, que inclui estudante (não trabalhador), dono(a)-de-casa/doméstico(a), à procura de trabalho ou outro. Os participantes foram ainda questionados sobre a perceção do estado de saúde em geral (ótima/muito boa/boa vs. razoável/fraca) e da perceção de alteração, comparativamente ao período pré-contenção, das seguintes dimensões do estilo de vida: tempo de sono; volume de atividade física; hábitos alimentares; e peso corporal.
A análise descritiva (uni- e bivariada) foi usada para a caracterização do total da população em estudo e por situação de SA. O teste do Qui-quadrado foi usado para comparação de variáveis categóricas entre os grupos. Para estudar a associação entre IA e as características demográficas, socioeconómicas e do estilo de vida foi feita uma análise multivariada (regressão logística) e escolhido o método Forward Wald, no qual todas as variáveis são introduzidas no modelo e, no final, apenas permanecem na equação as variáveis com significância estatística para a predição da variável resposta (com risco de IA). Odds ratio (OR) e os respetivos intervalos de 95% de confiança foram obtidos pela regressão logística. O nível de significância foi estabelecido para p <0,05. A análise estatística foi realizada com recurso ao software SPSS versão 25.0.
RESULTADOS
O presente estudo identificou 33,6%de adultos e respetivas famílias, em risco de IA (Gráfico 1). Do total de adultos em risco de IA, a maioria tinha 60 ou mais anos de idade (55,1%) e referiu estar numa situação financeira difícil/muito difícil (55,1%). Cerca de metade dos inquiridos em situação de IA tinha baixa escolaridade (48,3%) e 38,1% não se encontrava no ativo, a trabalhar (Tabela 1).
A análise estatística ajustada para fatores demográficos e socioeconómicos associados à IA (tamanho do agregado familiar, perceção da situação financeira e alteração dos hábitos alimentares) revelou que as famílias dos inquiridos com perceção de situação financeira menos confortável , ou que preferiram não responder apresentaram maior probabilidade de sofrer dessa condição. No modelo ajustado, os inquiridos que partilharam casa com 3 ou mais pessoas apresentaram uma probabilidade quase 2 vezes maior de IA , comparativamente aos que viviam sozinhos ou partilhavam casa com apenas mais uma pessoa. No que respeita aos fatores do estilo de vida, a alteração de hábitos alimentares durante o período de contenção social, foi positivamente associada ao risco de IA , depois de ajustado para tamanho do agregado familiar e perceção da situação financeira (Tabela 2).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Este estudo apresenta os resultados de um inquérito realizado à população adulta da RAM, nas semanas após a implementação de medidas de contenção social, de modo a evitar a propagação da COVID-19. Os dados revelam que, cerca de 1 em cada 3 famílias viveram uma situação de IA entre março e maio de 2020. No presente estudo, a condição financeira percecionada e o tamanho do agregado familiar foram os principais determinantes demográficos e socioeconómicos de risco de IA. A alteração dos hábitos alimentares também se relacionou positivamente com o risco de IA entre a população adulta da RAM.
A prevalência de adultos em risco de IA, determinada no presente estudo, é superior à reportada na Região em 2015-2016, nos estudos IAN-AF (13,2%) e EpiDoc3 (28,8%) e ligeiramente inferior à revelada no estudo React-COVID (33,6% vs. 39,4%) (6,8,9). Estes dados podem significar, por uma lado, que a situação de IA tem vindo a aumentar ao longo do tempo ou que, por outro, as medidas de contenção social impostas durante a pandemia tiveram um impacto negativo importante para as famílias, no que respeita à acessibilidade e preocupação com a alimentação. Aspetos metodológicos podem também explicar resultados diferentes dos estudos anteriores, nomeadamente o método de recolha de dados, o instrumento de medição do risco de IA, os métodos de análise dos resultados, bem como a distribuição
da população por idade e sexo. Não obstante, a IA apresenta-se com um problema sério na RAM, com prováveis implicações no setor social e de saúde.
No presente trabalho, e como expectável, uma pior situação financeira percecionada foi associada a um maior risco de IA. Contudo, é de salientar que, mesmo a perceção de uma situação financeira suficiente, comparativamente a uma situação confortável/muito confortável, aumentou em 4 vezes mais, a probabilidade de IA. Este dado pode sugerir, por um lado a preocupação das famílias quanto ao acesso a alimentos no futuro, e por outro, que a IA depende de outros fatores que não apenas do rendimento. Na verdade, são várias as dimensões que determinam a segurança/insegurança alimentar, nomeadamente a disponibilidade de alimentos (locais de venda, mercados, comércio), o acesso (rendimentos da família, preço dos alimentos, preferências alimentares), a adequação nutricional (quantidade e qualidade dos alimentos; absorção de macro- e micronutrimentos) e a capacidade de garantir todas as dimensões anteriores ao longo do tempo e de forma regular (24, 25). Outro aspeto a considerar é o facto de que, os indivíduos que preferiram não responder sobre a perceção da situação financeira, apresentaram uma probabilidade 5 vezes superior de IA, do que aqueles cuja situação é percebida como confortável/ muito confortável. Este dado salienta a necessidade de se criarem instrumentos de diagnóstico da situação de IA, complementares aos baseados no reporte das famílias, uma vez que estas podem preferir esconder a verdadeira situação e, como consequência, agravarem o seu estado social e de saúde. Apesar de existirem escalas mais exaustivas e abrangentes para medirem a perceção de IA, a escala usada no presente estudo constituiu uma ferramenta de medição simples, rápida e de excelente relação custo-efetividade (21). No presente trabalho, os dados sobre a perceção de IA foram recolhidos no âmbito de um estudo mais alargado e por contato telefónico, pelo que a utilização de uma escala mais pequena era desejável para não tornar a entrevista demasiado comprida.
Apesar de, no geral, os estudos revelarem uma associação entre o tamanho e composição do agregado familiar e risco de IA, as características avaliadas e que fundamentam a associação positiva são diferentes. Os dados do presente trabalho revelam que a um maior número de membros no agregado familiar se associou maior probabilidade de risco de IA, ao contrário do observado em outros estudos nacionais, onde esta relação não foi evidente (11,12). A
AF: Atividade Física
HA: Hábitos Alimentares
IA: Insegurança Alimentar
p*: Valor de p obtido pelo teste Qui-quadrado para as diferenças entre os grupos com (IA) e sem insegurança alimentar (SA)
SA: Segurança Alimentar
Valores a negrito: com significância estatística (p<0,05)
*As variáveis incluídas no modelo foram: semanas em confinamento, agregado familiar, sexo, grupo etário, escolaridade, situação profissional, situação financeira percecionada, ruralidade, estado de saúde, alteração tempo de sono, alteração volume atividade física, alteração hábitos alimentares e alteração do peso corporal. --- Variáveis excluídas do modelo Forward Wald
AF: Atividade Física
HA: Hábitos Alimentares
IC: Intervalo de Confiança
OR: Odds ratio
Valores a negrito: com significância estatística (p<0,05)
estrutura da família (famílias monoparentais ou casais com ou sem filhos) tem sido, no entanto considerado um determinante importante de IA, em algumas regiões de Portugal (11,12). A presença no agregado familiar de crianças, jovens universitários e idosos dependentes é outro dos fatores relacionados com a composição das famílias que parece aumentar significativamente o risco de IA (26, 27). Estas variáveis, não exploradas neste trabalho, podem também explicar a ausência de associação entre sexo e risco de IA. Na literatura, é reconhecido que um maior número de experiências de IA é reportado por mulheres e que a composição do agregado familiar, em especial o número de crianças, constitui o principal determinante das diferenças na IA entre sexos (10). Neste estudo, apesar de não estatisticamente significativo, observou-se uma maior proporção de inquiridos do sexo feminino nos participantes que reportaram IA. Em estudos futuros, poderá ser importante relacionar as várias dimensões das características do agregado familiar com o risco de IA, no total da população e por sexo. O risco de IA associou-se positivamente à alteração de hábitos alimentares, durante o período de confinamento, ainda que não tenha sido possível neste trabalho, obter a direção dessas alterações. Estudos prévios apontam para uma associação adversa entre IA e qualidade alimentar, nomeadamente uma menor adesão à dieta Mediterrânica, considerada como parte de um padrão alimentar saudável (8, 28-30). Outros estudos seriam necessários, contudo, para apurar se a IA encontrada neste trabalho é temporária ou de longo prazo, se foi desenvolvida no contexto específico das medidas de contenção social impostas na pandemia COVID-19 ou agravada por estas, o que pode determinar um impacto diferente nos hábitos alimentares dos agregados familiares.
Perante os dados deste trabalho, sugere-se a criação, na RAM, de um observatório regional para o diagnóstico regular da situação de IA e a criação de uma estratégia intersetorial capaz de detetar e resolver situações de IA ligeira e responder atempadamente às situações mais graves e urgentes. Manter o aconselhamento alimentar a indivíduos, aumentar a literacia alimentar, conectar as famílias aos recursos alimentares da sociedade e acompanhar clínica e socialmente as famílias em situação de IA poderão ser algumas das medidas a seguir, para mitigar o efeito da IA na saúde das populações.
O presente estudo apresenta algumas limitações importantes. Uma das principais é o facto de, pela metodologia usada, não ser possível garantir que todos os inquéritos foram aplicados ao responsável pelas compras alimentares no seio da família. Ainda assim, acreditamos que, tratando-se de adultos, todos conhecem, no geral, a situação económica familiar. Outra limitação a ser considerada é que todas as variáveis foram medidas através da autoperceção dos inquiridos, o que pode ser sujeito a viés de desejabilidade social. Uma informação importante, não obtida neste estudo, refere-se à caracterização da situação profissional e se esta foi alterada após as medidas de contenção social, uma vez que trabalhadores informais ou em lay-off poderão representar grupos de maior risco para a IA. Pela positiva, destaca-se o facto de ser um estudo cuja informação, dada a escassez de dados regionais, será importante para a escolha de melhores estratégias de intervenção na área da saúde pública, principalmente em períodos de instabilidade económica que possam agravar as desigualdades sociais. Outro dos pontos fortes é o facto de os dados terem sido colhidos por profissionais de saúde na área da nutrição, por telefone, o que reduz o viés de informação. O inquérito a que se refere o presente estudo foi aplicado imediatamente após a implementação das medidas de contenção social (encerramento de escolas, teletrabalho, dever cívico de recolhimento domiciliário), o que permitiu capturar em tempo real, o impacto das mesmas nas famílias e contribuir para a redução do viés de informação. O efeito a longo prazo destas medidas podem ser melhores ou piores do que o encontrado no presente estudo, pelo que estudos futuros serão necessários para continuar a acompanhar os efeitos da pandemia e das medidas de contenção social na insegurança alimentar de indivíduos e famílias.
CONCLUSÕES
Na RAM, 33,6% das famílias foram identificadas em risco de IA, durante o período de confinamento geral para prevenir a propagação da pandemia COVID-19. Trata-se por isso de um problema importante na Madeira, cuja abordagem deverá dar especial atenção a famílias em situação financeira mais frágil, com agregados familiares de maiores dimensões e com tendência para alterar os seus hábitos alimentares, perante situações semelhantes de confinamento e contenção social. Os resultados do presente estudo chamam a atenção para a necessidade de uma estratégia de identificação, mitigação e vigilância das famílias em situação de IA na RAM.