INTRODUÇÃO
O excesso de peso, que abrange a obesidade e o sobrepeso, é definido como o acúmulo excessivo de gordura corporal associado a riscos para a saúde estando associado ao excesso de consumo de calorias em relação ao gasto de energia. Atualmente emerge como importante problema de saúde pública mundial (1) e, em particular, no Brasil. De acordo com dados do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crónicas por Inquérito Telefónico/ Vigitel 2019 (2), o excesso de peso, no Brasil, cresceu, em treze anos, passando de 42,6% em 2006 para 55,4% em 2019. Ao mesmo tempo a obesidade aumentou no mesmo período de 11,8% para 20,3%. Segundo a World Health Organization (WHO), a obesidade é responsável direta e indiretamente por 68% das mortes no mundo (1). A etiologia da obesidade é complexa envolvendo fatores genéticos, psicológicos, ambientais sociais e económicos (3), de modo que a sua reversão depende em larga medida de mudança comportamental, a qual pode ser facilitada por terapêuticas dietéticas para a perda de peso (TDPP) (4). Todavia, a mudança efetiva de comportamento não é algo trivial (4) associando-se a uma baixa adesão à TDPP, um dos fatores que explicam os pífios resultados destas (5).
Nesta perspetiva muitos estudos vêm investigando as causas dos problemas de adesão e dos fracassos das TDPP, enfatizando as dificuldades para a concretização das mudanças necessárias de hábitos alimentares e de estilo de vida (6-8).
A literatura, todavia, não tem explorado a força de fatores psicossociais, socioeconómicos, clínicos e demográficos no processo de abandono de TDPP, lacuna que o presente estudo visa preencher investigando a probabilidade de abandono segundo características psicossociais, demográficas, socioeconómicas e clínicas.
METODOLOGIA
Delineamento do Estudo, Local, Questionário e Coleta de Dados Foi desenvolvido um estudo transversal quantitativo retrospetivo, com base em dados primários. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comité de Ética da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, sob o número 82589718.7.0000.0067.
A pesquisa foi desenvolvida em duas instituições de saúde (um ambulatório de um hospital e uma clínica de nutrição) e em uma instituição de ensino, localizados na cidade de São Paulo/Brasil.
Foram critérios de inclusão: adultos de 20 a 60 anos, de ambos os sexos que, independente do seu estado nutricional, já tivessem se submetido à terapêutica dietética para a perda de peso.
O tamanho da amostra (de conveniência) foi determinado a partir de parâmetro relativo ao Índice de Massa Corporal (IMC) extraído da amostra do estudo piloto com base na fórmula Snedecor e col. em 1967 (9):
N = 2 Onde:
N = é o tamanho da amostra;
zα/2 = valor crítico que corresponde ao grau de significância α = 5%; σ = Desvio padrão populacional da variável estudada (IMC);
E = margem de erro admitida
A amostra planejada foi de 90 indivíduos, todavia estudo apenas 86 em função de dificuldades no recrutamento. Para o recrutamento, a pesquisa foi divulgada por meio de cartaz, exposto por 4 meses, convidando interessados, para assistir a uma palestra e participar da pesquisa. À medida que se formavam grupos de 20 pessoas, as palestras eram agendadas e realizadas, seguidas da coleta dos dados, por meio da aplicação de dois questionários às pessoas que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O primeiro mediu o grau de suporte social, de motivação e de satisfação com a terapêutica dietética, em duas versões, uma para cada grupo em que foram distribuídos os participantes; indivíduos que abandonaram suas terapêuticas para perda de peso (grupo ABT- abandono de terapêutica) e indivíduos que não abandonaram (grupo TTA- terapêutica), e foi também usado para registrar a avaliação antropométrica. O segundo, mensurou o nível socioeconómico dos participantes.
O primeiro questionário continha questões extraídas e adaptadas de quatro instrumentos, já existentes na literatura nacional e internacional. Os questionários que investigaram fatores intervenientes em terapêuticas dietéticas e adesão à reeducação alimentar (5,10), inspiraram as perguntas relacionadas à satisfação com a terapêutica, tais como: qual foi o seu grau de satisfação com relação à abordagem e ao plano alimentar prescritos pelo profissional. Os aspectos motivacionais foram incluídos a partir do instrumento Treatment Self- Regulation Questionnaires Tobacco (TSRQ tobacco) (11), que analisou as motivações para abandonar o hábito de fumar. Dois dos seus itens adaptados ficaram: perder peso é a melhor maneira de me ajudar; tenho grande vontade de emagrecer e me sentir saudável. E os aspetos ligados a apoio familiar foram considerados com base no APGAR1(12) utilizado para investigação da funcionalidade familiar. Como exemplo de afirmações utilizadas desse instrumento: tenho o apoio e o estímulo de meus familiares para dar continuidade ao meu tratamento; minha família também aderiu às mudanças na alimentação propostas pelo profissional.
O primeiro questionário foi dividido em três partes; a primeira contemplando questões fechadas sobre os aspetos clínicos2, demográficos e antropométricos, a segunda abrangendo indagações relativas à satisfação com a terapêutica e a terceira referente ao suporte social e às motivações para a permanência na mesma. As respostas foram avaliadas com base em uma escala Likert. No que tange à satisfação utilizou-se 0 (extremamente insatisfeito) a 4 (extremamente satisfeito), já em relação ao suporte social e motivação, 0 para totalmente falso e 4 totalmente verdadeiro. A avaliação antropométrica foi feita por meio da mensuração de peso e estatura auto referida. Para a avaliação dos aspectos socioeconómicos (o segundo questionário) foi utilizado o instrumento brasileiro consagrado da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (13). Este instrumento estima o poder de compra das pessoas, classificando-as em sete classes económicas: A (a mais alta), B1, B2, C1, C2, D e E (a mais baixa), com base no grau de instrução do chefe da família e na quantidade de bens possuídos.
Análise dos Dados
Para caracterização da amostra e avaliação da homogeneidade dos dois grupos foram utilizadas estatísticas descritivas e testes de igualdade de média/mediana e proporções3. Adotou-se como referência o valor de p < 0,050.
A modelagem da regressão multivariada foi feita pelo método stepwise forward, que consiste em uma análise univariada com cada variável independente para a qual se adota p < 0,200, com o objetivo de uma pré-seleção. Com base nas variáveis pré-selecionadas foi composto o modelo final com 11 variáveis para estimar a probabilidade de abandono de terapêutica dietética para perda de peso por meio do método Probit de regressão múltipla (14), conforme função a seguir ABT = f (EstSau, IMC, IMC2, SupC, Medic, GSAT, GSSOC, GMOTIE,Dtmeses, Epmeses, QTPPmeses). Onde: ABT = Abandono (variável binária: 0 = não abandonou a terapêutica e 1= abandonou a terapêutica); EstSau = variável binária que indica pacientes recrutados em estabelecimentos de saúde = 1, ou em estabelecimento educacional = 0; IMC = Índice de Massa Corporal; IMC2 = Índice de Massa Corporal ao quadrado; SupC = Nível de Escolaridade (variável binária, menos que superior completo=0, superior completo ou mais =1); Medic = utilização de medicamento (variável binária, não utiliza=0, utiliza=1) GSAT = Grau de Satisfação com a Terapêutica (pontuação de 0 a 32, normalizada na base 10); GSSOC = Grau de Suporte Social (pontuação de 0 a 12, normalizada na base 10) GMOTIE = Grau de Motivação (pontuação de 0 a 80, normalizada na base 10); Dtmeses = Duração da terapêutica (em meses); Epmeses = Tempo com excesso de peso4 (em meses); QTPPmeses = Tempo tentando perder peso5 (em meses).
A estimação foi realizada por meio do Software StataCorp 2015, adotando-se valor de p < 0,050.
RESULTADOS
Caracterização da População de Estudo
Na amostra final foram observados 57% de indivíduos compondo o grupo que abandonou a terapêutica (ABT) e o restante 43%, integraram o grupo terapêutica (TTA).
Na Tabela 1, observam-se diferenças estatísticas significativas em relação ao uso de medicamentos (p= 0,010), escolaridade (p= 0,020) e nível socioeconómico (p= 0,050).
A probabilidade de Abandono da Terapêutica
A Tabela 2 apresenta os coeficientes estimados pelo método Probit, que mostram que quanto maior a escolaridade (p= 0,020) maior a probabilidade de abandono da TDPP.
No que diz respeito ao grau de satisfação com a terapêutica, evidenciou-se que quanto maior a satisfação, menor a probabilidade de abandono (p= 0,001). O mesmo sentido foi obtido em relação ao suporte social, (p= 0,010). Já a influência da motivação não foi estatisticamente significativa (p= 0,140), ainda que tenha apresentado o sinal negativo esperado. As demais variáveis não foram estatisticamente significativas.
Os resultados do método Probit não indicam a magnitude dos efeitos de cada variável independente
sobre a variável dependente (14). Para obter esse impacto foi necessário calcular os efeitos marginais, apresentados na Tabela 3.
(*)p<0,010
(**)p<0,050
ABT: Abandono de terapêutica
IMC: Índice de Massa Corporal
N: Número de observações
TTA: Terapêutica
ABT: abandono de terapêutica
IMC: Índice de Massa Corporal
N: tamanho da amostra
pp: pontos percentuais
A partir dos coeficientes estimados e dos respetivos efeitos marginais, constatou-se que o indivíduo referência tinha uma probabilidade de 77,6% de abandonar sua terapêutica dietética para perda de peso. Essa probabilidade se eleva a 93,9% para indivíduos com maior nível de escolaridade, mas se reduz para 68,7% caso possuam um ponto a mais de satisfação e de suporte social do que o indivíduo referência.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Em um cenário de aumento da incidência da obesidade, de estilos de vida conflitantes com as regras básicas do peso adequado; e de oferta abundante de alimentos processados e de equipamentos que poupam as pessoas de gasto energético (15), cabe discutir a força de fatores que possam incentivar ou inibir os comportamentos saudáveis e a persistência em TDPP.
As pessoas com excesso de peso buscam terapêuticas para perda de peso, visando a saúde e a estética. Todavia, o sucesso de tais programas, não é suficientemente frequente (5,16-18).
O sinal positivo encontrado para a escolaridade foi inesperado, pois considera-se que o nível de instrução elevado atribui maior capacidade de entendimento sobre a importância das orientações do profissional. Esse resultado, contrário ao esperado, também foi obtido no estudo de caso controle desenhado por Abo e col. em 2016 (19), cujo objetivo foi estudar os fatores que influenciam a não adesão aos regimes alimentares entre adultos obesos em Tanta, Egito. De facto, indivíduos com maior nível intelectual podem sentir que não precisam de acompanhamento periódico de um profissional, por acreditarem estar aptos a seguir por conta própria as mudanças alimentares necessárias.
No que concerne aos aspetos psicossociais, a baixa satisfação aumenta a probabilidade de abandono de terapêutica dietoterápica para perda de peso. Neste contexto destaca-se o estudo de revisão sistemática de Greavesa e col. em 2017 (20), entre outros, sobre manutenção de peso em adultos, com a conclusão de que a perda e o controle de peso bem-sucedidos envolvem, entre outros fatores, a satisfação com a terapêutica e o apoio do profissional que o assistiu. A conduta do nutricionista é um elemento básico para a satisfação do paciente com sua terapêutica. A humanização no serviço de saúde, com a criação de um atendimento baseado no diálogo, no entendimento e no auxílio às dificuldades do indivíduo, como também a empatia e a escuta são fundamentais neste processo. A convicção do paciente em seu tratamento tem como primeira instância a confiança no profissional e na sua abordagem (17).
O desenvolvimento do vínculo entre profissional e paciente tem sido cada vez mais valorizado, e por sua vez, têm conexão positiva com a adesão à terapêutica. Estudo brasileiro desenvolvido com o objetivo de analisar a potencialidade da abordagem grupal, utilizando-se de estratégias de educação alimentar e nutricional, apontou que o resultado do tratamento é consequência da interação entre paciente e nutricionista, e esta decorre da atuação do profissional, entretanto o protagonismo para promover essa interação depende da habilidade do mesmo em conduzir o processo de mudanças comportamentais (21).
A importância da satisfação com a TDPP, evidenciada no presente estudo, vai também ao encontro dos achados da pesquisa de Oliveira e col. em 2014 (22), na qual analisaram a satisfação com o atendimento de pacientes em uma Clínica de Nutrição da PUC de Minas Gerais/Br, concluindo que essa variável impacta diretamente a decisão de permanência ou não do paciente na terapêutica.
Em relação ao suporte social, o acolhimento percebido, tanto do grupo familiar ou de amigos, quanto do próprio profissional de saúde, leva o paciente a ter uma maior segurança e força para continuar seguindo seu objetivo (16, 18, 8, 23). A importância do papel do nutricionista e da família no contexto de terapêutica também foi referenciada em estudo de Cangerana Santiago e col. em 2015 (24), cujo objetivo foi entender quais fatores levam ao abandono de tratamento nutricional para perda de peso de crianças com excesso de peso, concluiu-se que a falta de vínculo e de empatia do profissional assim como a falta de apoio do grupo familiar são fatores predisponentes ao abandono. Estudos como os de Varkevisser e col. em 2019 (16) e Taglietti e col. em 2018 (17), os quais tiveram por objetivo, entender os determinantes para a perda de peso e descrever os aspetos subjetivos do tratamento para redução de peso, respetivamente, mostram que as motivações têm importância para a continuidade do tratamento, mas somente esta força de vontade não é suficiente, como demonstrado no presente estudo. Como ponto forte deste trabalho destaca-se o embasamento econométrico do estudo que permitiu estimar a probabilidade de abandono e o papel de fatores psicossociais sobre essa probabilidade, demonstrando a importância desses fatores para a continuidade dos TDPP. As limitações do estudo derivam da forma de recrutamento, da amostragem por conveniência e do tamanho da amostra inferior ao planejado, que podem ter gerado viés de seleção. Nesse sentido, considera-se que novos estudos são necessários para aumentar a compreensão de tema tão complexo.
CONCLUSÕES
Verificou-se que os fatores psicossociais como satisfação com a terapêutica e suporte social influenciam favoravelmente, reduzindo a probabilidade de abandono. Além desses, o nível elevado de escolaridade, por outro lado, atuou em sentido contrário, favorecendo o abandono de TDPP. Os efeitos das demais variáveis testadas, de caráter clínico, económico, demográfico e antropométrico não foram estatisticamente significativas.
Diante destas constatações, evidencia-se a importância do papel do nutricionista responsável pelo atendimento do indivíduo com excesso de peso, e do tipo de abordagem, onde a humanização e a empatia se destaquem. O apoio social e da família também tem um papel de grande importância no processo para perda de peso, cabendo ao nutricionista identificar a qualidade de tais apoios e adotar uma terapia holística envolvendo outros tipos de profissionais como psicólogos e assistentes sociais.
Neste contexto, estratégias de atendimento que priorizem tais evidências podem aumentar as chances de sucesso das terapêuticas para perda de peso.