INTRODUÇÃO
Em 2020, o Mundo foi assolado por uma doença contagiosa, a COVID-19, provocada por um novo coronavírus, o SARS-CoV-2. Face à rápida propagação da doença, em Portugal foram definidas fases de resposta de acordo com a avaliação de risco e o seu impacto no país.
Uma dessas respostas, resultado da declaração do estado de emergência a 18 de março e posteriormente do estado de calamidade a 1 de maio, foi a de confinamento geral, com o intuito de conter a transmissão do vírus e a expansão da doença. A contenção social incluiu o confinamento obrigatório de pessoas infetadas com COVID-19 ou em vigilância ativa da mesma, bem como o dever cívico de recolhimento domiciliário, com saídas apenas para compras essenciais, atividade física ou passeio de animais de estimação. Estas medidas resultaram em restrições na vida diária e, consequentemente em alterações ao estilo de vida (alimentação e atividade física), potencialmente menos saudáveis e com consequências para a saúde da população, para a carga global de doença e para a gestão dos Serviços de Saúde (1, 2). Identificar e conhecer as alterações nos hábitos alimentares e nos níveis de atividade física poderá, por isso, contribuir para a definição de estratégias, na resposta ajustada e em tempo útil, aos efeitos da pandemia a nível regional e local.
OBJETIVOS
Avaliar o efeito do período de contenção social: i) no volume de atividade física; ii) nos hábitos e comportamentos alimentares; iii) e no consumo de alimentos.
METODOLOGIA
Estudo observacional, transversal e descritivo, de abordagem quantitativa. A população alvo foram utentes inscritos nos Cuidados de Saúde Primários do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira (SESARAM, EPERAM), obtidos através da aplicação de Indicadores da Agenda Eletrónica, à data de 15 de maio de 2020, entre os 5 e os 84 anos de idade. O tamanho mínimo da amostra foi calculado pelo Serviço de Planeamento Estratégico e Controlo de Gestão do SESARAM, EPERAM, considerando a distribuição heterogénea da população, com margem de erro de 5% e um nível de confiança de 95%. Uma amostra probabilística (estratificada por grupo etário e concelho de residência) foi obtida, por concelho e grupo etário. O estudo foi autorizado pelo Conselho de Administração do SESARAM, EPERAM com a aprovação da Secretaria Regional de Saúde e Proteção Civil da Madeira.
Os inquiridos foram contactados por telefone pelos Nutricionistas da Unidade de Nutrição e Dietética, do Serviço de Endocrinologia, do SESARAM, EPERAM que, após identificação e explicação do estudo, recolheram o consentimento verbal para entrevista. Aos utentes que aceitaram participar voluntariamente no estudo foi aplicado um questionário por entrevista telefónica assistida por computador, entre os dias 22 e 29 de maio. No caso dos inquiridos mais novos, as respostas foram obtidas através do membro do agregado familiar que consta no registo do processo clínico eletrónico de cada utente. O questionário usado como instrumento de colheita de dados foi adaptado de modelos da Direção Geral da Saúde. Os grupos etários definidos para o presente estudo foram: 5-9 anos (crianças); 10-17 anos (adolescentes); 18-64 anos (adultos); 65-84 anos (idosos). O questionário aplicado incluiu questões relacionadas com variáveis sociodemográficas (sexo, idade e concelho de residência); tempo e motivo de contenção social; perceção da alteração e tipo de atividade física (incluindo tempo sentado); e perceção da alteração do consumo de alimentos/grupos de alimentos selecionados e do número de refeições diárias. Os inquiridos foram ainda questionados se consideraram que foi maior, no período de contenção social, os seguintes comportamentos alimentares: “o número de vezes que comeu entre as refeições principais (snacking)”; “o número de vezes que cozinhou”; e “o número de ida às compras (do inquirido ou da pessoa do seu agregado responsável pela tarefa)”.
Do total de contactos efetuados, foram realizadas 425 entrevistas (taxa de resposta de 53%). Dos questionários obtidos 407 foram considerados válidos (excluídos 18 por não terem cumprido pelo menos uma semana de contenção social). A análise estatística foi realizada com software SPSS versão 25.0. O teste do Qui-quadrado foi usado para comparação de variáveis categóricas e o teste não paramétrico Kruskal-Wallis para variáveis numéricas. O nível de significância foi estabelecido para p
<0,05. Ao longo do estudo serão apenas referidas as diferenças com significado estatístico, entre grupos etários e concelhos.
RESULTADOS
No período de 16 de março a 29 de maio, os participantes estiveram em média, 7,9 semanas em contenção social (desvio padrão ±2,4). Do total de 407 inquiridos, 61,4% eram do sexo feminino. A Tabela 1 mostra a distribuição da população estudada, por grupo etário e por concelho.
Perceção da Alteração da Atividade Física
A perceção de alteração dos níveis de atividade física durante o período de contenção social foi, comparativamente ao período anterior, inferior para 52,1% dos inquiridos e superior para 15,5%. A diminuição no volume de atividade física foi mais marcada nos grupos etários mais novos: cerca de 77,3% das crianças e 70,6% dos adolescentes, comparativamente com 50,7% dos adultos e 41,8% dos idosos (teste Qui-quadrado de Pearson, p=0,005). O tempo sentado foi superior para 51,8% da população estudada. O aumento no tempo sentado foi maior entre os adolescentes (76,5%) e crianças (59,1%) (teste Qui-quadrado de Pearson, p<0,0001). A maioria da população (58%) estudada referiu que o tempo sentado foi passado maioritariamente à frente do ecrã (ver televisão, em lazer ou telescola, e computador/ tablet/telemóvel sem ser em trabalho).
Perceção da Alteração dos Hábitos e Comportamentos Alimentares
Do total da população estudada, 34,4% referiu ter alterado os hábitos alimentares durante a contenção social, sendo que 16,2% e 17,2% do total de inquiridos considerou ter, respetivamente, piorado e melhorado a alimentação. O Gráfico 1 mostra os principais comportamentos relacionados com a alimentação e a sua variação. No geral, a principal alteração reportada foi o aumento do n.º de idas às compras (60,2%). A maioria das crianças e adolescentes referiu ter aumentado a prática de snacking, ou seja, comer entre as refeições principais (63,6% dos 5-10 anos e 50,0% dos 10-17 anos). De todos os grupos etários, os idosos foram os que menos alterações reportaram nos hábitos alimentares, quando comparado com o período pré-contenção social.
Variação do Consumo de Alimentos
Na alteração no consumo de grupos de alimentos, destaca-se o aumento na ingestão de água (35,1%), fruta (30,5%), snacks doces (28,0%) e hortícolas (18,4%), e a diminuição de 14,5% e 12,8% no consumo de refeições takeaway/entrega domicílio e refeições pré-
-preparadas, respetivamente (Gráfico 2). A Tabela 2 mostra os resultados estratificados por grupos etários. Mais de 54,4% dos adultos (18-64 anos) e de 77,2% dos idosos (65-84 anos) referiu não ter alterado o consumo dos vários grupos de alimentos, comparativamente ao período pré-contenção social. O grupo dos 10-17 anos foi o que reportou maior variação de consumo alimentar, nomeadamente o aumento do consumo de água (82,4%) e de fruta (70,6%). A diminuição no consumo de hortícolas foi reportada por 22,7% das crianças e por 23,5% dos adolescentes, embora a maioria tivesse mantido a ingestão. Entre as crianças, a ingestão de fruta foi semelhante ao período pré-contenção para 68,2% e aumentou para 31,8%, sem se verificar reporte de diminuição. Contudo, o grupo etário 5-9 anos foi o que referiu maior proporção no aumento de snacks doces (40,9%).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O presente estudo fornece uma fotografia do efeito da contenção social na alteração dos hábitos alimentares e atividade física da população da RAM. No geral, e comparativamente ao período anterior ao confinamento, a maioria dos inquiridos diminuiu a atividade física, aumentou o tempo sentado e cerca de 1/3 alterou a sua alimentação, ainda que não necessariamente para pior. No padrão de consumo, destaca-se o aumento na ingestão de água e fruta, e a redução de refeições takeaway/entrega ao domicílio e pré-preparadas. De salientar também, o aumento na ingestão de snacks doces, tipicamente menos saudáveis, entre as crianças dos 5-9 anos durante o período de contenção. O grupo dos 65-84 anos foi o que reportou menos alterações no consumo de alimentos e hábitos alimentares.
Os resultados do presente estudo estão em linha com os dados nacionais, em particular o estudo da DGS (3), e de outros países europeus como Espanha (4), França (5), Itália (6, 7) e Polónia (8). O estudo da DGS (onde a RAM também está incluída), realizado a indivíduos com 16 ou mais anos de idade, revelou que 45,1% alteraram os hábitos alimentares, a maioria alterou o número de idas às compras (71,0%) e passou a cozinhar mais (56,9%) (3). Ainda nesse estudo, as alterações de comportamento alimentar culminaram numa adesão de 18,2% a um padrão mais saudável (aumento na ingestão de fruta, hortícolas e pescas) e de 10,8% a um padrão menos saudável, caracterizado pelo aumento de refeições takeaway, pré-preparadas, snacks salgados e refrigerantes. Em Espanha, a maioria dos participantes (≥ 18 anos) reportaram diminuição de atividade física (59,5%) e 45,7% referiu ter passado a cozinhar mais no período de contenção social, em comparação com o período anterior (4). Um estudo conduzido em Itália revelou cerca de metade dos participantes diminuiu o consumo de refeições pré-preparadas e 21,2% aumentou o consumo de fruta fresca e hortícolas (6). Num outro estudo italiano, entre os inquiridos com 12 ou mais anos de idade, houve também um aumento no consumo de alguns alimentos feitos em casa, nomeadamente doces e pizzas (7). Em França, o estudo NutriNet-Santé revelou que 52,8% dos franceses residentes em área metropolitana referiram diminuição da atividade física e 63% aumentaram o tempo de atividades sedentárias (5). Neste estudo, os resultados mostraram também um aumento no consumo de alimentos confecionados em casa (40%) e da prática de snacking (21,2%). O comportamento de comer e de petiscar mais ao longo do dia foi reportado também pela maioria dos adultos participantes num estudo polaco (43% comeram mais e 52% petiscaram mais).
A redução do exercício fora de casa e da atividade física é reconhecida
como uma das consequências do confinamento e constitui um fator de risco cardiovascular (2). Estes dados são particularmente preocupantes na RAM, uma vez que a diminuição da atividade física foi acompanhada de um aumento do tempo sentado, uma variação especialmente notada entre os grupos mais jovens. A telescola e a opção de ocupação de tempos livres dentro de casa em frente a ecrãs, podem constituir uma explicação para esta variação. O elevado tempo de televisão ou em outras atividade sedentárias tem sido associado a resultados negativos em saúde, nomeadamente no aumento do risco de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e mortalidade por todas as causas (9). No futuro, e em situações de confinamento em casa, será importante estimular a prática de atividade física e limitar o tempo de ecrã durante os tempos livres.
Durante a contenção social, seria expectável a alteração de alguns dos comportamentos relacionados com a alimentação, nomeadamente o número de idas às compras e a prática de cozinhar em casa. Decorrente destas atividades, é possível verificar outros comportamentos tendencialmente mais saudáveis, como a diminuição na aquisição de refeições pré-cozinhadas ou entregas ao domicílio (10). Os resultados do presente estudo revelam que o consumo de refeições pré-preparadas ou de entrega ao domicílio diminuíram durante o período de contenção social, para o geral da população estudada e em todos os grupos etários, o que se traduz num comportamento alimentar benéfico para a saúde. Contudo, o cozinhar mais em casa pode, por outro lado, ter contribuído para a prática de petiscar mais entre as refeições (snacking), principalmente pela maior disponibilidade e acesso a alimentos (5). Snacking é um comportamento habitual em crianças e adolescentes, como comprovado no presente estudo (11, 12). Contudo, é desaconselhado durante períodos de confinamento em casa, principalmente pela sua associação à ingestão de alimentos processados, densamente calóricos e pobres sob o ponto de vista nutricional (12, 13).
Poderia supor-se que o acesso a alimentos frescos, como fruta e hortícolas, poderia ser inferior durante a contenção social, dada a limitação na frequência de saídas do domicílio para compras. No entanto, neste último caso, os dados da RAM mostram uma tendência favorável de aumento na ingestão de fruta, principalmente entre os mais jovens. O consumo de hortícolas foi mantido pela maioria dos participantes, com ligeiro aumento entre adultos e idosos, o que constitui uma boa notícia, tendo em conta que em 2012-2015, o EHA-RAM (Estudo dos Hábitos Alimentares da População Adulta da RAM) havia concluído que o grupo de alimentos da fruta e hortícolas apresentava um consumo inadequado em relação às recomendações (menos 5% e 12% respetivamente) (14).
O presente trabalho pretende ser um primeiro estudo, exploratório, em que um dos pontos fortes foi a recolha de dados ser realizada por profissionais treinados da área da Nutrição, permitindo esclarecer dúvidas para uma maior precisão nas respostas e reduzindo, desta forma, o viés de informação. Muitos dos estudos nesta área durante a pandemia recorreram à aplicação direta de questionários online. Outro aspeto a considerar é a realização do estudo imediatamente após a implementação das medidas de contenção social, o que permitiu capturar em tempo real, o impacto das mesmas na população estudada e contribuir para a redução do viés de informação. Contudo, será necessário continuar a acompanhar os efeitos da pandemia e das medidas de contenção social no consumo de alimentos, comportamentos alimentares e de atividade física para conhecer os efeitos a médio e longo prazo das mesmas. Uma limitação importante a considerar é que todas as variáveis foram medidas através da autoperceção dos inquiridos, o que pode implicar um viés de desejabilidade social.
CONCLUSÕES
Os resultados deste estudo revelam que, não obstante o efeito nefasto sobre a atividade física, as medidas de contenção social impostas pelo bem da saúde pública, não têm necessariamente de provocar alterações desfavoráveis na alimentação. O período de contenção social pode ser, por isso, uma oportunidade para melhorar hábitos alimentares, nomeadamente aumentar a ingestão de alimentos frescos (fruta e hortícolas) e preparar refeições mais saudáveis. Especial atenção deve ser dada às crianças e adolescentes, pois constituem os grupos mais vulneráveis para a ocorrência de mudanças no estilo de vida. Resta saber se no futuro, e após a cessação das medidas de contenção social, as alterações positivas verificadas irão alterar o estilo de vida dos madeirenses.
AGRADECIMENTOS
Um agradecimento especial aos serviços do SESARAM, EPERAM: Serviço de Planeamento Estratégico e Controlo de Gestão no cálculo da amostra; ao Serviço de Gestão de Doentes e Estatística na seleção da listagem dos participantes da amostra; ao Gabinete de Comunicação e Imagem pela criação do questionário para aplicação “online”; e ao Centro de Investigação Dr.ª Maria Isabel Mendonça pela contribuição na análise estatística dos dados.