INTRODUÇÃO
A Doença Celíaca (DC) é uma doença crónica e autoimune, que surge na sequência da ingestão de cereais que contêm glúten, em indivíduos geneticamente suscetíveis. Esta caracteriza-se pela atrofia das vilosidades do intestino delgado proximal, condição que se reverte aquando da exclusão do glúten da dieta e reincide após a sua reintrodução. O glúten é uma fração proteica, presente no endosperma dos grãos do trigo, centeio e cevada (1-4).
De acordo com o único estudo realizado em Portugal, por Antunes et al., a prevalência de DC no país é de 1:134 indivíduos (~1%) (1).
O único tratamento para a DC consiste no cumprimento de uma Dieta Isenta de Glúten (DIG) rigorosa e para toda a vida, sendo que a mais ínfima quantidade de glúten ingerida pode ser prejudicial (1-4). A DIG consiste na evicção de todos os alimentos e medicamentos que contenham glúten (2, 4). A contaminação é uma das maiores causas de incumprimento, tanto em casa como fora de casa, devido às dificuldades em evitar a exposição acidental ao glúten (4, 5). Torna-se, assim, imprescindível a implementação de boas práticas durante o processamento, armazenamento e manipulação do alimento, para que este seja seguro e apto ao celíaco (4).
Relativamente à alimentação nas escolas, a Direção-Geral da Educação emitiu, em 2018, a Circular 3097/DGE/2018, com orientações sobre ementas e refeições escolares, referindo que «podem ser servidas ementas alternativas, quando devidamente justificadas por prescrição clínica, mantendo sempre que possível a matéria-prima (ou sucedâneos) da ementa do dia». Considerando a informação, as escolas públicas devem fornecer a alimentação isenta de glúten às crianças, porém não se encontram obrigadas a ter os produtos específicos sem glúten e garantir a variedade dos alimentos (6). O principal problema na escola é a contaminação, que pode acontecer na preparação das refeições, na partilha ou troca de lanches, em workshops de cozinha ou em festas de aniversário (7). No caso das crianças celíacas, é comum os familiares revelarem preocupação com o diagnóstico da DC e, consequentemente, com todos os locais de refeição que esta frequenta, devido ao perigo de contaminação cruzada, visto que estas ainda não apresentam discernimento para fazer escolhas alimentares acertadas e seguras. E é neste sentido que as escolas, local onde as crianças permanecem grande parte do seu dia, devem assegurar uma alimentação compatível com as necessidades da mesma, ou expressar claramente a incapacidade de o assegurar, solicitando apoio.
OBJETIVOS
Avaliar a perceção dos pais de crianças com DC relativamente à capacidade das escolas dos seus filhos fornecerem refeições isentas de glúten, bem como o conhecimento dos profissionais da escola sobre DC e cuidados a ter numa DIG. Acrescem ainda os objetivos de avaliar os conhecimentos iniciais e realizar formação sobre DC e cuidados a ter numa DIG aos diferentes profissionais das escolas e avaliar o impacto da mesma no conhecimento sobre DC e DIG.
METODOLOGIA
Desenho de Estudo e Participantes
Estudo transversal, cujos participantes eram os encarregados de educação (ED) de crianças celíacas, com idades compreendidas entre os 2 e os 9 anos, que fossem sócios da Associação Portuguesa de Celíacos (APC) e que residissem no Grande Porto. Dezasseis ED responderam a um questionário online com o objetivo de percecionar a confiança que estes tinham na segurança das refeições distribuídas/confecionadas nas escolas dos seus filhos. Seguidamente, essas escolas foram contactadas e selecionaram os profissionais (diretores e coordenadores, professores, auxiliares de educação, manipuladores de alimentos) para responder a um questionário, no sentido de avaliar o conhecimento sobre DC e cuidados a ter numa DIG. Apenas 8 escolas aceitaram participar, correspondendo a 22 profissionais. Seis escolas demonstraram interesse em receber formação sobre o tema, ministrada por uma das nutricionistas da APC, no sentido de adquirirem ferramentas para a criação de refeições aptas a celíacos. A todos os presentes na formação, aplicou-se o mesmo questionário aplicado inicialmente às escolas com o intuito de avaliar o impacto da formação nos conhecimentos, obtendo um total de 36 questionários. Este estudo foi submetido à Comissão de Ética do Centro Regional do Porto da Universidade Católica Portuguesa, tendo sido aprovado (CE.310.2019).
Inquéritos Aplicados aos Pais e Escolas
Foram elaborados questionários semi-estruturados, preparados para preenchimento online nos Formulários da Google®. O questionário aplicado aos pais incluiu os seguintes itens: dados pessoais da criança (idade, concelho de residência, nome e contacto do jardim-de-infância ou escola que frequenta); dados clínicos da criança (idade de diagnóstico da DC, presença/ausência de doenças crónicas, sintomas e aceitação da doença); caracterização da rotina escolar (refeições, profissionais e colegas) e confiança dos pais na segurança das refeições.
O questionário aplicado às escolas, para além da identificação da escola e categoria do profissional inquerido, abrangia várias questões referentes à DC, glúten, DIG e cuidados associados. Este mesmo questionário foi aplicado após a formação, no sentido de avaliar o impacto da mesma. Idealmente, o questionário teria sido aplicado antes e depois da formação ao mesmo participante. Contudo, por dificuldades em obter uma grande adesão, optou-se por utilizar toda a informação disponível.
Formação às Escolas
A formação aos profissionais das escolas foi administrada numa sala de aula ou biblioteca cedida pelos coordenadores, tendo sido utilizado o formato de PowerPoint® e os métodos expositivo e interrogativo. A formação teve a duração de 1 hora, incluindo tópicos como a definição da DC, glúten, DIG e o seu cumprimento rigoroso, rotulagem (este tópico incluiu um pequeno exercício prático de leitura de rótulos), materiais perigosos na escola e cuidados a adotar para a evitar contaminação cruzada.
Tratamento Estatístico
Todas as variáveis qualitativas foram descritas através das suas frequências absolutas (n) e frequências relativas (%). Para testar hipóteses sobre a independência de variáveis qualitativas foram aplicados o teste de Qui-quadrado de independência ou o teste exato de Fisher, conforme apropriado. Em todos os testes de hipóteses foi considerado um nível de significância de α=5%. A análise foi efetuada utilizando o programa de análise estatística de dados SPSS® v.25.0 (Statistical Package for the Social Sciences).
RESULTADOS
Caracterização e Dados Clínicos das Crianças
Nesta amostra (n=16), os 5 anos foi a idade cronológica mais frequente (n=4), sendo a criança mais jovem de 2 anos de idade e a mais velha de 9 anos. Destas crianças, 5 tinham obtido o diagnóstico de DC recentemente, há 1 ano, e 2 delas já apresentavam desde há 6 anos. De referir ainda, que quase metade obteve o diagnóstico de DC no primeiro ano de vida (n=7).
Relativamente à presença de outras doenças crónicas, 18,8% da amostra respondeu positivamente. Quanto à aceitação da DIG, todos os pais referiram que as crianças a aceitavam bem.
Caracterização da Rotina Escolar
No que concerne à alimentação na escola das 16 crianças, 81% levava diariamente o seu lanche de casa, sendo que nas restantes era a escola que fornecia e os alimentos específicos SG (pão, bolachas, etc.) eram enviados na lancheira. Em relação ao almoço, 50% dos celíacos realizavam o seu almoço na escola, sendo que em 75% casos todos os alimentos eram fornecidos pela mesma. Dos grupos profissionais que trabalham na escola, os auxiliares de educação e os responsáveis pela produção de refeições, foram os que os pais mais consideraram não possuir conhecimentos que lhes permita cuidar adequadamente dos seus educandos (n=12 e n=7, respetivamente).
A maioria dos pais das crianças celíacas (n=13) considera que os seus filhos não se sentem inferiorizados em relação às outras crianças por terem DC. Quanto à confiança que os ED depositam na escola relativamente à segurança das refeições servidas (lanches e almoços) aos seus educandos, 43,8% não confiam na isenção de glúten das refeições escolares, correspondendo a 75% das crianças que não fazem o almoço na escola. Os momentos que causam mais angústia aos pais, por acharem que os seus filhos podem quebrar a DIG, são as festas de aniversário (n=10) e comemorações realizadas na escola que envolvam oferta de alimentos (n=8).
Caracterização dos Profissionais e Escolas
Dos 22 profissionais que responderam ao questionário inicial, a maioria era professor(a)/educador(a) (n=12). Dos 36 profissionais que receberam formação, mais uma vez, professor/educador foi a profissão mais comum (n=14), seguindo-se auxiliar de educação (n=8) e cozinheiro(a) (n=6).
Todas as escolas produziam refeições nas suas instalações, tendo-se constatado que entre todos os profissionais que responderam inicialmente ao questionário, 68,2% nunca tinha recebido nenhuma formação sobre DC e DIG e que metade (50,0%) dos profissionais que receberam formação pela APC, já tinha recebido formação sobre este assunto, previamente. Relativamente à pergunta se se sentiam capazes de servir uma refeição segura ao celíaco, 40,9% e 83,3% dos profissionais, antes e depois da formação, respetivamente, referiram que “sim”.
Nas questões em que o inquirido poderia selecionar mais do que uma resposta, encontraram-se diferenças estatisticamente significativas para as perguntas relativas ao rigor da DIG e aos alimentos perigosos na DIG entre os dois grupos de respondentes (p=0,002 e p=0,028) (Tabela 1). Ainda que não tenha atingido significância estatística, é de realçar que o grupo que recebeu formação acertou mais nas perguntas referentes aos sintomas da DC e alimentos proibidos na DIG. Nas questões em que apenas era possível selecionar uma opção, constatou-se um maior número de respostas corretas nos profissionais com formação, sendo que se observaram diferenças estatisticamente significativas entre os profissionais sem e com formação (p=0,032) na questão de quais os cereais que contém glúten. Na última questão, sobre os cuidados a ter na dieta do celíaco, cujos inquiridos tinham que classificar 22 afirmações como verdadeiras ou falsas, foi possível constatar que nenhum profissional sem formação acertou na combinação correta, o que já depois da formação se
pode observar que 8 inquiridos responderam corretamente a todas as alíneas, observando-se diferenças estatisticamente significativas entre os grupos (p=0,019).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Os celíacos enfrentam um verdadeiro desafio quando comem em restaurantes ou outros estabelecimentos de restauração, nomeadamente em cantinas escolares, devido às dificuldades em evitar a exposição acidental ao glúten. Neste sentido, parecem não ter muita confiança nos estabelecimentos de restauração e seus profissionais (5), tendo o mesmo sido constatado no presente estudo com cerca de 44% dos pais a responder que não confiavam na segurança das refeições fornecidas nas escolas. Sendo os pais os principais responsáveis pela preparação e confeção, 81% dos que participaram na amostra preferem enviar o lanche dos seus filhos para a escola e 50% escolheram que o almoço não fosse realizado na escola, provavelmente denotando a falta de confiança na escola ou pelo facto de as próprias escolas terem declarado não o conseguir assegurar. Uma das principais dificuldades apontada pelos pais após o diagnóstico de DC é a alimentação em contexto social, sendo as festas de aniversário (8) o momento que causa maior angústia aos pais em contexto escolar (n=10). Neste sentido, os funcionários destes estabelecimentos têm um papel importante na compreensão e comunicação de possíveis riscos para estes consumidores. No entanto, tem sido reportado que a maioria destes profissionais não recebe formação para o efeito (5), o que se revelou na amostra que respondeu inicialmente ao questionário (68,2%). Os auxiliares de educação e os responsáveis pela produção de refeições foram os que os pais mais consideraram não possuir conhecimentos, provavelmente por serem os profissionais que mais contactam com a dieta do celíaco e, por isso, apresentarem maior responsabilidade. Apenas nas questões referentes aos cereais que contêm glúten, rigor da dieta, alimentos perigosos e cuidados a ter na dieta do celíaco se observaram diferenças estatisticamente significativas entre os profissionais sem e com formação. Na realidade estas são as que geram mais dúvidas na prática: a primeira por não ser um conhecimento comum de que a aveia pode ser tóxica para 5% dos celíacos (9,10); a segunda por não se compreender a extrema necessidade do celíaco em cumprir uma DIG rigorosa e para toda a vida, pela atual confusão com a “moda” ou “intolerância ao glúten” (11,12); a terceira pela dificuldade em se compreender que o glúten está presente em diversos alimentos processados que, à primeira vista, são inofensivos, e que por isso é necessária a leitura dos rótulos dos produtos (13); a última pelo facto de ser constituída por afirmações muito práticas e possivelmente pouco vivenciadas pela maioria dos inquiridos (professores, diretores e auxiliares de educação). A formação revelou-se assim, importante para desmistificar e abordar com maior detalhe estes pontos fulcrais na DIG. Nas restantes perguntas não se observaram diferenças estatisticamente significativas, ou por serem ideias já preconcebidas pelos inquiridos e difíceis de modificar, ou pelo facto de os profissionais já terem conhecimento antes da formação ou, pelo contrário, ser necessário uma formação mais aprofundada. Apenas em 4 questões, estas relacionadas com a caracterização da DC e do glúten, se observou uma proporção de respostas corretas superior a 50%, podendo-se concluir que ainda existe uma grande percentagem de profissionais a trabalhar em escolas com falta de conhecimento sobre os cuidados a ter na DIG.
O preenchimento do questionário foi efetuado imediatamente após a formação, podendo alguns conteúdos do mesmo serem relembrados, sem que tenha havido uma verdadeira assimilação, pelo que a aplicação algum tempo depois seria fundamental, para se comprovar que os conhecimentos foram verdadeiramente adquiridos. Seria também importante, comparar os conhecimentos antes e após a formação, contudo pela dificuldade de conciliar a disponibilidade dos vários participantes nos dois momentos, tal comparação não foi possível. Não obstante as limitações reconhecidas a este trabalho, considera-se que fornece resultados pertinentes para direcionar trabalhos futuros de formação em escolas.
CONCLUSÕES
Aproximadamente metade dos pais de crianças celíacas não confiam na segurança das refeições servidas nas escolas dos seus filhos, optando pelos lanches e refeições confecionadas pelos próprios ou por familiares. Os resultados sobre o conhecimento acerca da DC, práticas e treino dos participantes sugerem ser necessário maior formação nas escolas, especialmente aos profissionais responsáveis pelas refeições das crianças. É, por isso, importante investir em treinos de maior duração, maior detalhe ou com uma vertente mais prática, para que os profissionais possam contactar com a realidade da DIG.