INTRODUÇÃO
O desperdício alimentar ocorre ao longo de toda a cadeia de abastecimento alimentar, desde a fase inicial de produção agrícola até às fases finais de distribuição, gestão e consumo (1). De acordo com um relatório do Parlamento Europeu, 50% dos alimentos que se encontram em condições para a alimentação humana perdem-se anualmente ao longo da cadeia de abastecimento alimentar e também ao nível do consumidor. Na Europa, estima-se que, desde 1974, o desperdício alimentar tenha aumentado 50% (2).
O Projeto de Estudo e Reflexão sobre Desperdício Alimentar, publicado em 2012, concluiu que Portugal tinha um desperdício de 17%, valor que embora elevado é inferior aos 35%, valor médio observado a nível mundial (3).
A FAO (Food and Agriculture Organization) estima que se desperdicem anualmente cerca de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos ao longo da cadeia alimentar (1), enquanto 800 milhões de pessoas vivem em situação de insegurança alimentar (4). A diminuição do desperdício alimentar pode constituir uma estratégia fundamental para uma distribuição mais equitativa dos alimentos produzidos, contribuindo para melhorar o estado nutricional da população e, indiretamente, combater a fome no mundo, com o intuito de cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (4, 5).
É fundamental promover e consolidar a sustentabilidade do setor social através da viabilização das instituições de solidariedade social e da garantia da subsistência das pessoas mais necessitadas e vulneráveis da sociedade, através da resolução dos problemas sociais e da complementaridade da ação social entre instituições e destas com o Estado (6). Em Portugal, existem diversos tipos de instituições de apoio às pessoas carenciadas, que após 2010 aumentaram devido ao agravamento das condições sociais e ao aumento do desemprego. A maior parte destas instituições são Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) sem fins lucrativos. Estas instituições têm um papel ativo na promoção de saúde e no apoio de crianças, jovens, idosos e famílias, com necessidades básicas várias, nas quais se enumeram a de habitação própria e permanente, assim como alimentares representando um papel importante para a integração social dos indivíduos carenciados e zelando pela formação dos mesmos (Decreto-Lei n.º 172-A/2014. É no seio destas instituições que as populações de pessoas sem-abrigo têm conseguido o suporte social que necessitam. A Assistência Médica Internacional define “sem-abrigo” como “toda a pessoa que não possui residência fixa, pernoita na rua, carros ou aquele indivíduo que recorre a alternativas habitacionais precárias como albergues noturnos, quartos ou espaços cedidos por familiares, ou que se encontra a viver temporariamente em instituições, centros de recuperação, hospitais ou prisões” (7).
OBJETIVOS
Quantificar o desperdício alimentar da Associação dos Albergues Nocturnos do Porto (AANP) e identificar possíveis causas do desperdício alimentar neste contexto.
METODOLOGIA
Caracterização da Instituição
A AANP é uma IPSS que apresenta a forma de Associação de Solidariedade Social e funciona como Centro de Alojamento Temporário (CAT) (8).
O serviço de alimentação da AANP abrange não só os indivíduos institucionalizados na AANP, mas também de pessoas exteriores à instituição que integram o plano de emergência social, num total de 60 utentes. Relativamente ao plano de emergência alimentar, este permite o acesso por pessoas com dificuldades económicas previamente comprovadas, a refeições de almoço e jantar, quer de forma gratuita ou com um custo reduzido (aferido de acordo com o rendimento económico). As refeições são confecionadas na cozinha da sede e servidas num refeitório adjacente. Existe um sistema de marcação prévia de refeições. O plano de ementas obedece a um ciclo rotativo de 8 semanas, que é ajustado pelo Diretor técnico em função das doações recebidas.
Avaliação do Desperdício Alimentar
A quantificação do desperdício sob a forma de sobras e restos foi realizada durante 21 dias consecutivos, incluindo as refeições do almoço e jantar servido a um número estimado de 60 utentes. Para avaliação do desperdício foi utilizado o método de pesagem agregada não seletiva, com pesagem da quantidade total de alimentos confecionados, pesagem dos alimentos confecionados, mas não servidos (definidas como sobras) e dos restos (definidos como os alimentos que permanecem no prato após o consumo das refeições) (9). Para as pesagens foi utilizada uma balança marca António Pessoa, Lda, Modelo 307, Tipo R, com limite de 20 kg e precisão de 10 g. Foram recolhidas informações relativas à ementa, método de confeção, tipo de fonte proteica fornecida (carne ou pescado), a sua forma de apresentação (composta ou não composta1) e a taxa de utentes faltosos, parâmetro construído a partir de:
Taxa de utentes faltosos= (Refeições marcadas - Refeições realizadas) ×100
(Refeições marcadas)
Foram eliminados os dados referentes a 3 refeições por não incluírem os dados completos das pesagens.
Análise Estatística
O tratamento dos dados recolhidos foi realizado através do programa IBM Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 26.0 e do programa Microsoft Office Excel 2016. A análise descritiva consistiu no cálculo das médias e desvios-padrão para as variáveis quantitativas discretas e contínuas e cálculo de frequências simples absolutas
(n) e relativas (%) para as variáveis qualitativas ordinais e nominais. Seguidamente, foi realizado o teste da normalidade das variáveis quantitativas através do teste não paramétrico de Kolmogorov- Smirnov, observando-se uma distribuição normal da amostra.
Foi realizada a análise descritiva do desperdício e utilizado o teste t-student para comparação pelo tipo de refeição, fonte proteica e forma de apresentação da fonte proteica, a análise de variância (ANOVA) para comparação do desperdício entre métodos de confeção e a regressão linear para relação com a taxa de utentes faltosos. Posteriormente, utilizou-se a análise de variância multifatorial, associando todas as variáveis mencionadas, para estudar a sua influência conjunta na percentagem de sobras e de restos. Para todos os testes foi assumido o nível de significância (α) de 0,05.
RESULTADOS
Avaliação do Desperdício
Verificou-se que a quantidade média de alimentos confecionados para serem consumidos no prato principal, nos dias avaliados foi de 44,1 kg. A quantidade média de sobras do prato foi de 7,3 kg, com um mínimo de 0,0 kg e um máximo de 23,8 kg. A quantidade média de sopa confecionada foi de 23,5 kg. A quantidade média de sobras da sopa (2,5 kg) foi inferior à quantidade média de sobras do prato sendo que, houve dias sem sobras (Tabela 1). A percentagem média de sobras e restos para o prato foi de 17,5% e 18,9%, respetivamente. Relativamente à sopa, verificou-se uma percentagem de sobras e restos, de 10,5% e de 13,1%, respetivamente (Tabela 1).
Observou-se que alguns dos pratos incluídos na ementa influenciaram a quantidade de sobras. Nos dias em que as ementas eram “Bolinhos de bacalhau c/arroz de cenoura”, “Carne de vaca estufada c/ puré de batatas e ervilhas”, “Douradinhos de peixe no forno c/arroz de tomate”, “Rissóis de camarão c/ arroz de cenoura” e “Pescada assada c/ arroz branco” não houve sobras. Por outro lado, quando as ementas
[1]
incluíam pratos como “Massa à lavrador”, “Carne da pá estufada c/ massa cortada” e “Frango estufado c/ puré de batata” verificaram-se maiores quantidades de sobras.
Nas preparações em que método de confeção utilizado foi “estufar” ou “cozer”, observou-se uma percentagem mais elevada de sobras e de
restos, comparativamente, aos métodos de confeção “assar” ou “fritar”; refira-se que quando é este último o método de confeção utilizado, é possível verificar que a capitação servida no prato é superior, sendo que a percentagem observada de sobras e restos é inferior, apesar das diferenças não serem estatisticamente significativas (p ≥ 0,05). Nos dias em que o método de confeção usado é “estufar”, reparamos a existência de maior quantidade de sobras e restos (Tabela 2). A taxa média de utentes faltosos é elevada (14,7±7,0%), representando, aproximadamente 15,5±7,6 utentes por dia, tendo atingido nalguns dias 34,3%.
Apenas a taxa de utentes faltosos teve influência significativa (p<0,05) na percentagem de sobras do prato(Tabela3).
Observou-se que seria possível um decréscimo de 0,82% de sobras do prato com uma redução de 1% na taxa de utentes faltosos (R2=0,176). Apesar do método de confeção utilizado não influenciar significativamente as sobras e os restos do prato, verificamos uma tendência de redução da taxa de utentes faltosos quando o método de confeção utilizado é “fritar” o (Tabela 4).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Vários estudos realizados em Portugal têm avaliado o desperdício alimentar em cantinas escolares, universidades, hospitais e instituições de apoio a seniores (9-13), sendo o presente estudo pioneiro na avaliação do desperdício alimentar numa instituição que acolhe população sem-abrigo.
A definição de um nível aceitável para o desperdício alimentar nos serviços de alimentação coletiva não reúne consenso entre os vários autores e é variável de acordo com as características da unidade e população a que se destina. As estratégias para a redução do desperdício alimentar e o valor considerado aceitável desse mesmo desperdício devem ser baseados em valores apurados na própria unidade de alimentação (13), sendo que deverá ser considerado aceitável quando qualquer tentativa para a sua redução comprometa a qualidade e a ingestão nutricional ou quando o custo da monitorização excede o valor financeiro gerado pelo próprio desperdício (14). Uma Resolução do Conselho Federal de Nutricionistas Brasileiros, identifica uma percentagem de restos inferior a 10% como aceitável (15). O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido estabeleceu como limite aceitável de desperdício em contexto hospitalar um valor de 6% do total de alimentos produzido para as sobras e de 10% para os restos (16). Em Portugal, com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/2018 foi aprovada a Estratégia Nacional e Plano de Ação de Combate ao Desperdício Alimentar, que visa a implementação de diferentes medidas para a redução do desperdício alimentar, bem como, promover a constante monitorização do desperdício de alimentos nos diferentes setores de atividade, incluindo os serviços de alimentação (17).
A Comissão Europeia tem sistematizado os vários projetos e referenciais no âmbito da quantificação e monitorização do desperdício alimentar desenvolvidos pelos diferentes Estados-Membros (18). A estratégia Farm to Fork, através do European Green Deal (19), veio reforçar o objetivo da redução do desperdício na União Europeia para que seja possível reduzir o desperdício alimentar para metade até 2030, de acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (5).
Os valores encontrados no presente estudo encontram-se acima de todos os limites referenciados, classificando o desperdício alimentar observado como não aceitável.
Por outro lado, Nonino-Borges et al. (2006), referem uma classificação para as unidades de alimentação que propõe como “ótimo” se o desperdício alimentar for menor de 5%, entre 5 e 10% “bom”, entre 10 e 15% “regular” e mais que 15% “mau” (20). Neste estudo encontrou-se um valor superior a 15%, o que de acordo com esta classificação, define o serviço de alimentação como “mau” e remete para a necessidade de medidas de otimização na sua gestão. O método de confeção parece influenciar a aceitabilidade do prato, o que poderá estar associado às preferências e hábitos de consumo deste grupo populacional (21).
A marcação das refeições teve uma forte influência no desperdício alimentar. Esta evidência vem mostrar que é possível reduzir as sobras, com uma medida meramente administrativa, que passaria por exemplo por penalizar os utentes faltosos.
Neste trabalho verificou-se uma percentagem média de 18,9% de restos no prato, com uma variação elevada entre ementas (DP=12,2%). Outros trabalhos realizados em diferentes contextos tinham já identificado a influência da ementa no desperdício alimentar (9, 10, 13, 21). Com valores elevados de restos, a ingestão de alimentos pode ficar aquém das necessidades diárias recomendadas, o que pode comprometer a satisfação das necessidades nutricionais destes utentes (22).
Verificou-se um desperdício superior em pratos compostos, em que a fonte proteica foi servida misturada com o acompanhamento de cereais, leguminosas ou hortícolas. Outros trabalhos realizados em contexto escolar também verificaram um valor médio de desperdício mais elevado neste tipo de pratos, o que poderá estar relacionado com as características sensoriais da refeição (10, 21, 22).
Outros fatores podem influenciar igualmente o desperdício, como o método de confeção e o ambiente existente no refeitório (11, 20, 21). A sensibilização para a diminuição de desperdício alimentar por parte dos utentes e funcionários poderá ser uma estratégia para a sua redução, assim como, um correto planeamento das quantidades a confecionar que devem estar adequadas às porções recomendadas e considerar as características desta população e o número de utentes estimado para cada refeição.
CONCLUSÕES
O desperdício alimentar observado implica uma classificação do serviço de alimentação como “mau”. O valor médio de sobras foi de 17,5% no prato e de 10,5% na sopa. O valor médio de restos foi de 18,9% para o prato e 13,1% para a sopa. A ementa e o número de utentes faltosos foram identificados como fatores que influenciaram o desperdício alimentar nesta instituição.