INTRODUÇÃO
Os poluentes ambientais são um problema global com impacto profundo no meio ambiente e em todos os seres vivos (1). De acordo com a Organização Mundial da Saúde, o mercúrio (Hg) é considerado um dos dez produtos químicos com maior preocupação para a saúde pública (2) devido ao potencial neurotóxico (3), à capacidade de interferir no metabolismo de citocinas inflamatórias (4) e do selénio (Se), entre outros (5-9). Este elemento encontra-se presente no ar, água, terra e solo, bem como em organismos vivos. A exposição excessiva ao Hg está associada a diversos efeitos nefastos para a saúde, afectando principalmente o sistema nervoso central e os rins (10).
O Hg encontra-se sob diferentes formas no meio ambiente e com diferentes níveis de toxicidade. Um dos compostos mais tóxicos é o metilmercúrio (MeHg), formado a partir da metilação de formas inorgânicas de Hg por microrganismos, sendo também o composto orgânico de Hg mais frequentemente encontrado no meio ambiente (7, 10, 11).
Os compostos orgânicos de Hg podem acumular-se em organismos vivos, como o peixe, de forma significativa (10), em especial nas espécies predadoras (1, 11). Deste modo, torna-se a principal fonte de MeHg na dieta (1, 7, 10). Proteger a cadeia alimentar da contaminação por Hg é uma tarefa importante na proteção da saúde da população humana e um dos grandes objetivos da segurança alimentar (1, 2, 10, 12, 13).
Uma população significativamente afetada por este metal são as mulheres grávidas, uma vez que o mesmo é capaz de atravessar a barreira placentária e hematoencefálica, prejudicando o desenvol- vimento e a saúde do feto (2, 5, 8, 11, 12, 14, 15), especialmente em indivíduos com predisposição genética (16, 17) como polimorfismos (12) ou marcas epigenéticas no ADN em genes como GRIN2B, NR3C1 e BDNF (18). Alguns estudos demonstram uma associação entre a exposição pré-natal ao Hg e o desenvolvimento neurológico das crianças (10, 19-21).
Apesar do risco elevado de contaminação por MeHg, o peixe é uma fonte importante de diversos nutrientes essenciais (8,12,13), nomeadamente proteína, vitaminas, minerais, oligoelementos e ácidos gordos ómega-3 (w-3) (12), cujos estudos identificam um efeito neuroprotetor no desenvolvimento das crianças, quando consumido pelas mães durante a gravidez (12, 13, 21 - 23).
São objetivos deste artigo rever os mecanismos e metabolismo do Hg e o seu impacto na saúde humana, em especial nas gestantes e no desenvolvimento fetal. Ao mesmo tempo pretende-se identificar os alimentos com maior exposição a este metal e perceber de que forma se minimizam os seus impactos.
Para a elaboração do presente artigo, a revisão bibliográfica baseou-se na pesquisa de artigos científicos das plataformas PubMed e ScienceDirect. A pesquisa foi realizada no dia 06 de abril de 2021, recorrendo às palavras-chave: “pregnancy mercury exposure”, “methylmercury toxicity”, “nutrition” e “prenatal mercury exposure”. Para a adequada seleção dos artigos foram delineados alguns critérios de inclusão, nomeadamente: 1 publicação nos últimos 5 anos, 2 texto totalmente disponível de acesso gratuito,3 relevância para o tema e 4 identificação eletrónica (DOI, PMID, ISSN ou ISSBN). Após a leitura do título foram selecionados 75 artigos e posteriormente, segundo o abstract foram selecionados 46. Procedeu-se à sua leitura integral e 20 artigos foram excluídos por não se enquadrarem no tema, e apenas 26 cumpriam na sua generalidade os critérios de inclusão. Integrou-se posteriormente 2 artigos e 1 documento com relevância para o tema.
Mercúrio e Fontes de Contaminação
O mércurio é um xenobiótico naturalmente presente em baixos níveis no ambiente, que pode ser de origem orgânica ou inorgânica (2, 7, 9). Este metal na sua forma inorgância encontra-se na atmosfera como Hg elementar (Hg0) ou como Hg2+, enquanto que o MeHg (CH3Hg+), metilado pela combinação do Hg com o carbono, compreende a forma orgânica mais prevalente (2,7,9). Este último assume a forma mais tóxica de Hg e um dos químicos mais comuns no ambiente (7, 14). A sua principal via de absorção é a oral, distribuindo-se e acumulando-se nos organismos vivos (10).
O Hg pode ser encontrado na água, solo, ar e seres vivos e provém de fontes naturais ou humanas (10), sendo que os maiores níveis de contaminação tem origem antropogénica. A sua natureza volátil facilita a propagação pelos diversos ecossistemas (2).
O meio aquático sofre o maior impacto do Hg devido à deposição atmosférica, que por metilação bacteriana é convertido em MeHg, tendo assim capacidade de se acumular na cadeia alimentar aquática (2, 11, 13). A sua concentração é mais elevada nas espécies do topo da cadeia alimentar devido à bioacumulação e biomagnificação (7, 11). Os níveis totais de Hg variam de acordo com o tamanho, espécie e origem (1). A acumulação deste metal no músculo dos peixes e crustáceos constitui um problema para o ser humano, uma vez que aumenta a sua exposição ao MeHg (2).
De acordo com a Comissão Reguladora (EC) da União Europeia nº1881/2006, que estabelece os níveis máximos para certos contaminantes em géneros alimentares, o limite máximo de Hg em peixe é de 0,5 mg/kg e 1 mg/kg para peixes predadores (24). Em Portugal e Espanha, segundo um estudo de Cabañero et al. (2005), os niveis de Hg na cavala, polvo, peixe-espada, sardinha e atum, encontraram-se abaixo dos máximos permitidos. No entanto, mais de 93% do Hg encontrado deve-se à forma orgânica deste metal (1). Segundo o Grupo de Estudos para a Prevenção da Exposição ao Me- Hg (GEPREM-Hg) em Espanha, as mulheres grávidas, em lactação e as crianças até aos 14 anos devem evitar o consumo dos seguintes peixes: Atum patudo (Thunnus obesus) procedente do atlântico; Atum vermelho (Thunnus thynnus); cação (Galeorhinus galeus); Linguado (Hippoglossus hippoglossus); Lúcio (Esox lucius); marlim (Makaira species); peixe-boi (Isurus oxyrinchus); espadarte (Xiphias gladius); pata roxa (Scyliorhinus canicula); olho-de-vidro (Hoplostethus mediterraneus); tubarão (Carcharhinus species); e tintureira (Prionace glauca). Também Kimáková et al. (10) consideram o consumo de tubarão, peixe-espada e cavala proveniente do Golfo do México não apropriado para crianças, mulheres em idade fértil, mulheres grávidas e mães que amamentam.
Exposição Pré-natal e Impacto no Desenvolvimento Fetal
A alimentação materna no período prenatal é de elevada importância para o desenvolvimento fetal. A ingestão inadequada pode acarretar prejuízos não só durante o período intrauterino, mas também ao longo da vida do recém-nascido.
Baldewsingh et al. realizou um estudo prospetivo de coorte, no Suriname, no qual concluiu que 93% das grávidas apresentavam níveis capilares significativamente elevados de Hg. No entanto, não encontraram relação com problemas no nascimento, enquanto as mulheres que tinham níveis mais baixos de Hg tiveram bebés com baixo peso. Esta ausência de relação pode-se dever ao efeito protetor do peixe devido à sua riqueza em Se e ácidos gordos ómega-3 (13). Patel e colaboradores desenvolveram um estudo, no Cincinnati (Ohio), com o objetivo de avaliar a associação entre os baixos níveis de Hg durante o desenvolvimento fetal e problemas de comportamento e défice de habilidades intelectuais em crianças. Ainda que os autores afirmem não haver evidências consistentes para efeitos adversos de uma baixa exposição ao MeHg durante o período pré-natal, apresentaram algumas evidências de uma associação entre uma baixa exposição ao mercúrio durante a gravidez precoce e ansiedade relatada pelos pais em crianças aos 8 anos de idade (3).
Ursinyova et al. estudaram um grupo de mães e filhos, na Eslováquia, que foram acompanhados até às 6 semanas para avaliar a exposição ao Hg. Os resultados sugerem que a concentração de MeHg aumenta no sangue do cordão umbilical com o consumo de peixes marinhos, mesmo na população com baixo consumo de pescado, no entanto, a associação foi fraca (23). Nesse sentido, Naess e colaboradores, analisaram as concentrações de mercúrio total (THg) no cabelo de grávidas norueguesas que consumiam bacalhau atlântico (Gadus morhua) e verificaram que o aumento do consumo daquele peixe levou a um aumento ligeiro na concentração de THg nas gestantes (25). O estudo de coorte Tohoku Study of Child Development desenvolvido em grávidas, por Iwai-Shimada e colegas, no Japão, analisou os níveis de exposição aos diferentes elementos tóxicos, inclusive MeHg e THg, no sangue materno, cordão umbilical e placenta. Concluíram que existe associação entre as concentrações de MeHg e THg no cordão umbilical e sangue materno, o que comprova a exposição fetal. Determinaram ainda que os níveis encontrados no sangue do cordão umbilical eram duas vezes mais elevados que os níveis no sangue materno. Portanto, o MeHg pode ser transportado ativamente pela placenta por meio da conjugação de cisteína através do sistema transportador de aminoácidos neutros (26).
Esta maior sensibilidade dos fetos e recém-nascidos a baixos teores de MeHg, poder-se-á justificar pela menor eficácia da barreira hematoencefálica, uma vez que não se encontra totalmente formada antes dos 6 meses de idade (14), aliado a uma maior taxa de absorção gastrointestinal, excreção renal menos eficaz e ao baixo peso corporal face ao elevado consumo de alimentos por quilograma de peso corporal (9). A vulnerabilidade e imaturidade cerebral deve-se ao seu processo complexo de desenvolvimento (14). A capacidade do MeHg atravessar a placenta e a barreira hematoencefálica leva a que este chegue à parênquima cerebral e exerça um efeito deletério nas células neuronais (2) devido à acumulação nos astrócitos (14), o que permite a entrada de químicos no sistema nervoso central do bebé, que pode levar à sua acumulação cerebral e, consequentemente, aumentar o risco de atraso de desenvolvimento neurológico (11, 12, 14).
Este processo ocorre na gravidez, contudo estende-se até ao período de amamentação, uma vez que o MeHg é excretado pelo leite materno e 95% deste é absorvido pelo trato gastrointestinal (2, 11, 14) e através da circulação sanguínea pode chegar a diferentes órgãos (7).
Há também evidências de que fetos de mães com doença crónica renal (DCR) são mais susceptíveis de acumular MeHg do que fetos de mães saudáveis, isso porque a captação de Hg nos rins fetais é aumentada (27).
Ulloa et al. examinaram a associação entre o MeHg e a metilação do ADN num estudo de desenvolvimento infantil das Seychelles (SCDS) (18). Foram analisados os genes BDNF, GRIN2B e NR3C1 devido ao seu papel crucial no desenvolvimento e função neuronal, já anterioriormente associados à exposição ao MeHg. Foram encontradas correlações positivas entre o Hg presente no cabelo das mães e níveis de metilação do ADN. As alterações no recetor glucocorticoide NR3C1, nomeadamente quanto à sua reduzida expressão génica, parecem estar associadas a resultados adversos no desenvolvimento neuronal. Para além dos efeitos neurotóxicos, a exposição a níveis elevados de MeHg pode também contribuir para a síndrome metabólica em crianças. Stratakis et al. estabeleceram essa relação no seu estudo e, com auxílio de biomarcadores de inflamação em crianças, verificaram que houve um aumento da inflamação e uma deterioração do perfil metabólico no público alvo (4).
ANÁLISE CRÍTICA
A discussão sobre os riscos e benefícios do consumo de peixe, tendo em conta a sua possível contaminação por MeHg, torna este tema desafiante, principalmente no que se refere a estabelecer recomendações, consistentes com observações epidemiológicas, sobre o seu consumo durante a gravidez (28). Neste sentido, torna-se necessário investigar os benefícios versus os efeitos adversos do baixo consumo materno de peixe no desenvolvimento infantil (23). O consumo de pescado apresenta uma íntima ligação com o desenvolvimento neurocognitivo da criança (19, 25). A eliminação ou redução significativa do seu consumo pode incorrer em prejuízos no desenvolvimento neuronal do feto, uma vez que este grupo alimentar é rico em proteína (aminoácidos essenciais), vitaminas e minerais, para além de ser considerado a principal fonte dietética de ácidos gordos polinsaturados de cadeia longa w-3, que apresentam um potencial anti-inflamatório, benefícios cardiometabólicos e caracteristicas neuroprotetoras (4, 7, 13, 28). O ácido docosa-hexaenóico (DHA) é particularmente importante no terceiro trimeste de gravidez, período em que ocorre a sinaptogénese e o desenvolvimento dos fotorecetores no feto (22).
Sabe-se hoje que o stress oxidativo é uma das consequências de níveis elevados de MeHg pela sua capacidade de gerar espécies reativas de oxigénio, com efeitos deletérios no organismo e consequente depleção da atividade enzimática antioxidante (7). Por forma a minimizar o stress oxidativo podemos contar com um sistema exógeno de defesa, que depende de vitaminas e minerais, onde o Se se torna essencial, contribuindo para o bom funcionamento das enzimas antioxidantes e neutralização dos efeitos do MeHg. Este mineral encontra-se presente principalmente em peixes oceânicos, como a sardinha da costa portuguesa e espanhola, e em outros alimentos como a castanha do brasil (1, 5, 8).
Para além do Se, de acordo com estudos realizados em ratos, as vitaminas C e E também parecem atuar neste processo através da redução do dano oxidativo, da peroxidação lipídica e no aumento da imunidade (7). Outros compostos como o Zinco (Zn) e a N-acetilcisteína (NAC) parecem atuar como fatores de proteção. O Zn é capaz de se ligar ao MeHg, diminuindo os seus efeitos tóxicos, à semelhança da NAC que funciona como um agente quelante do MeHg. O tratamento com pólen de abelha em animais também parece promissor pela redução efetiva dos efeitos neurotóxicos do MeHg, devido ao efeito protetor, ao nível dos neurotransmissores, bem como redução da inflamação, apoptose e excitotoxicidade do glutamato (13).
Os estudos realizados em animais podem ser um ponto de partida para a investigação destes compostos em humanos, com o intuito de atenuar os efeitos tóxicos do MeHg durante a gravidez e lactação, uma vez que não é possível erradicar o mesmo da alimentação (27). A investigação aliada a uma sensibilização e consciencialização das mulheres grávidas e em idade fértil assumem-se como estratégias em saúde na prevenção da doença.
Por forma a estabelecer um equilíbrio acerca das informações sobre o risco/benefício do peixe para a saúde, o documento Alimentação e Nutrição na Gravidez publicado este ano pela Direção Geral da Saúde vem orientar as grávidas para o consumo de pescado (29). Cabe ao nutricionista ter a capacidade de consciencializar mulheres em idade fértil, grávidas e lactantes para as recomendações de saúde pública sobre o consumo de peixe, enaltecendo a sua importância no desenvolvimento ao longo de toda a gravidez e nos primeiros anos de vida.
CONCLUSÕES
A procura pelo equilíbrio entre o consumo de peixe e a possível exposição ao metilmercúrio tem sido alvo de discussão e um grande desafio para a investigação. Torna-se necessário consciencializar as mulheres sobre o impacto do MeHg no crescimento e desenvolvimento fetal, as principais fontes de contaminação e recomendar o consumo de peixes de pequeno porte e de baixo nível trófico, atendendo aos seus benefícios para a saúde materna e fetal e o baixo risco de contaminação. Aliada à prevenção, é de aludir a importância de criar estratégias que minimizem o impacto do MeHg na saúde materna e fetal, através da promoção de um consumo seletivo de pescado, mas também na ingestão de alimentos com efeitos protetores, como é o caso do Se, o ómega-3, entre outros. O estudo de nutrientes e compostos bioativos capazes de neutralizar o stress oxidativo provocado pelo MeHg, dificultando ainda a sua passagem pela barreira placentária e hematoencefálica, é uma possível abordagem de futuro, juntamente com estudos longitudinais que permitam avaliar a longo prazo o seu impacto e assim encontrar formas de minimizar o impacto do MeHg no desenvolvimento fetal.