INTRODUÇÃO
A população idosa, definida como indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos (1), continua a aumentar globalmente (2). Como tal, deve ter-se especial atenção ao seu estado de saúde, introduzindo mecanismos e ferramentas que possibilitem o diagnóstico de morbilidades específicas deste grupo etário. Neste contexto, tem sido dada especial importância ao diagnóstico da fragilidade física e da sarcopenia, condições muito frequentes em pessoas idosas (3).
A fragilidade física trata-se de uma síndrome que se caracteriza por um declínio progressivo em múltiplos sistemas fisiológicos que resulta na diminuição das reservas de capacidade intrínseca, assim como no comprometimento da habilidade de manutenção da homeostasia, o que confere extrema vulnerabilidade a eventos causadores de stresse e aumenta o risco de consequências negativas para a saúde (4, 5). As complicações associadas à síndrome de fragilidade podem ser devastadoras para a população geriátrica, levando ao aumento de quedas, comprometimento do estado funcional e da mobilidade, decréscimo da função física e cognitiva, aumento do número de hospitalizações e, em casos mais graves, morte (6). Existe evidência que demonstra que o estado de fragilidade pode ser prevenido e reversível (7). Por conseguinte, a deteção precoce pode trazer benefícios ao paciente e permitir uma intervenção atempada (6, 8). De facto, é recomendado que se realize o rastreio da fragilidade física a todos os indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos (7).
A FRAIL Scale foi desenvolvida pela International Association of Nutrition and Aging como uma ferramenta de rastreio de fragilidade de aplicação e interpretação simples (9, 10). Esta ferramenta é baseada tanto na abordagem do Fenótipo de Fragilidade proposto por Fried et al. (11), como na abordagem desenvolvida por Rockwood et al. que propõe o Frailty Index (12). Estas últimas ferramentas são mais difíceis de implementar em contexto clínico e comunitário, uma vez que têm um protocolo de aplicação mais complexo e requerem maior tempo de administração (8). Neste sentido, foi necessário criar uma ferramenta que permitisse identificar de forma rápida e simples os indivíduos em risco de fragilidade. A FRAIL Scale foi construída sob a forma de um questionário de auto reporte com resposta simples de “sim” ou “não”. Inclui cinco componentes inseridos em três domínios: resistência e deambulação no domínio funcional, fadiga e perda de peso, inseridos no domínio biológico e, por último, em representação do domínio de acumulação de défices, o componente de doença (8, 10, 13). A possibilidade de existência da síndrome de fragilidade é indicada pela pontuação final, em que pontuações iguais e superiores a 3 indicam risco de fragilidade, pontuações de 1 ou 2 indicam risco de pré-fragilidade e 0 pontos indicam um estado de saúde robusto (9). A FRAIL Scale é considerada uma ferramenta válida na predição de incapacidade e mortalidade, sendo útil na identificação de potenciais áreas de tratamento (14). Quando comparada com outras estratégias, nomeadamente as supramencionadas, a FRAIL Scale é capaz de prever deficiências e mortalidade com precisão semelhante (15), apresentando alta especificidade e baixa a moderada sensibilidade (16).
No consenso do European Working Group on Sarcopenia in Older
People 2 (EWGSOP 2), a sarcopenia é apresentada como uma doença muscular, definida pela perda de força muscular, associada a uma redução da qualidade e quantidade de massa muscular, sendo classificada como grave quando existe, concomitantemente, diminuição do desempenho físico (17). A sarcopenia está, do mesmo modo, relacionada com o declínio das atividades do dia-a-dia e da qualidade de vida, declínio da função cognitiva, depressão e aumento dos custos com a saúde (18). Tendo em conta a sua natureza reversível, é imperativo que se faça a sua deteção atempadamente de modo a estabelecer uma terapêutica adequada e identificar novas áreas de tratamento. Recomendações recentes apontam para a realização anual do rastreio desta doença em indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos ou após algum evento clínico adverso major (19).
O diagnóstico da sarcopenia é complexo e difícil de implementar na prática clínica. Neste sentido, Malmstrom et al. desenvolveram o SARC-F (20), um método de rastreio simplificado para a sarcopenia em idosos, baseado nos critérios de EWGSOP. Segundo estes investigadores, o SARC-F deve ser incorporado no diagnóstico primário da sarcopenia, estando sugerido no algoritmo para deteção de casos, diagnóstico e determinação da gravidade da sarcopenia, criado pelos mesmos autores (17). O SARC-F é um questionário de auto reporte, de fácil implementação em contexto clínico, concebido de modo a detetar alterações no estado de saúde associadas às consequências da sarcopenia (21). Permite determinar o nível de dificuldade percecionada pelo indivíduo para cinco componentes: força, assistência para caminhar, levantar da cadeira, subir escadas e quedas. A pontuação final varia entre 0 e 10, em que pontuações iguais ou superiores a 4, são sugestivas da presença de sarcopenia. Esta ferramenta já foi traduzida e validada para diversos idiomas, estando comprovada a sua alta especificidade e baixa a moderada sensibilidade (22). Diversos autores consideram este questionário como uma ferramenta válida e consistente para o rastreio da sarcopenia (17, 23), sendo reconhecida a sua grande utilidade como ferramenta de identificação para posterior confirmação do diagnóstico de sarcopenia (24).
Tendo em conta a grande aplicabilidade das ferramentas descritas, urge a necessidade da sua aplicação na população portuguesa. Para tal, é necessário que exista uma tradução dos questionários originais validada para a língua portuguesa. Neste sentido, são objetivos deste trabalho produzir uma tradução para a língua portuguesa das versões originais em inglês da FRAIL Scale e do SARC-F, bem como estudar a validade dessas traduções à luz das recomendações da Patient- Reported Outcome (PRO) Consortium (25). Pretende-se, também, verificar a validade linguística e cultural das traduções efetuadas, avaliar o grau de dificuldade de preenchimento e a compreensão, assim como a aplicabilidade destas duas ferramentas.
METODOLOGIA
A tradução da versão original e a validação da versão traduzida foi conduzida segundo as normas do PRO Consortium (25), que preconiza a realização dos seguintes passos: preparação, tradução, reconciliação, retrotradução, revisão da retrotradução, harmonização, revisão, entrevista cognitiva, revisão/análise, revisão final e documentação, relatório e arquivo/manutenção de registos.
Em seguida, encontra-se a descrição em detalhe da metodologia aplicada:
Preparação
O autor correspondente das ferramentas FRAIL Scale e SARC-F (Prof. John E. Morley), foi contactado e concedeu permissão para que fosse realizada a tradução e validação dos questionários para a língua portuguesa.
Tradução
Dois indivíduos nativos de língua portuguesa e fluentes em inglês, desenvolveram, em paralelo, duas traduções individuais das ferramentas FRAIL Scale e SARC-F, originalmente em língua inglesa, para português.
Reconciliação
Num painel constituído pelos investigadores e por uma nutricionista com vasta experiência na área, foram analisadas e discutidas as duas propostas. Para cada questão tentou-se uma maior aproximação à versão original. Não obstante, teve-se em consideração que a tradução efetuada não resultaria numa tradução literal, mas sim numa tradução conceitual adequada à população alvo das ferramentas. Desta forma, tendo em conta a equivalência semântica e sintática das propostas, criou-se uma versão primordial dos dois questionários onde foram integrados os pontos fortes de cada uma das traduções e sugestões consideradas pertinentes. De destacar que na ferramenta FRAIL Scale para a questão: “Qual é o seu peso com roupa, mas sem sapatos? Há um ano, em (mês, ano) quanto pesava (sem sapatos e com as roupas vestidas)?”, considerando que na versão original da ferramenta o valor de 5 não estava contemplado em nenhum dos intervalos, o ponto de corte usado para a variação do peso foi alterado de >5 (versão original) para ≥5 tendo em conta a escala de Fried et al. (11) para a fragilidade.
Retrotradução
A versão resultante foi enviada a um indivíduo nativo de língua inglesa, que não tinha qualquer conhecimento da versão original das ferramentas. Deste modo, procedeu-se à tradução da versão portuguesa criada para inglês, idioma original.
Revisão da Retrotradução
O painel comparou a tradução gerada com a versão original e verificou que existiam algumas diferenças entre ambas. A maioria das diferenças encontradas não foi considerada relevante, uma vez que não induziam discrepância ao nível de equivalência conceitual. No entanto, três questões foram verificadas tendo em conta que levantaram alguma ambiguidade perante a versão original. Na terceira questão do questionário SARC-F procedeu-se à alteração da palavra “assistência” para a palavra “ajuda”, atendendo a que este último termo corresponde a uma tradução mais correta. No questionário FRAIL Scale procedeu-se à alteração de duas questões. Na primeira questão, alterou-se a pergunta e as respetivas opções de resposta, dado que a versão portuguesa induzia uma resposta em termos de frequência e a versão original pretendia obter uma resposta referente à duração no tempo. Na última questão, verificou-se incongruência entre a tradução gerada (“What is your weight”) e o original (“How much do you weight”), no entanto, por uma questão cultural e de equivalência conceitual, optou- se por não realizar a alteração na versão portuguesa.
Harmonização
Após resolver as discrepâncias encontradas, o painel verificou a equivalência conceitual entre as versões originais e a versão portuguesa, fazendo as alterações necessárias. Alcançado o consenso, criou-se a versão pré-final de cada uma das duas ferramentas.
Revisão
O painel enviou a versão pré-final a duas nutricionistas experientes na área com nacionalidade portuguesa e fluentes em inglês, para que fosse feita uma revisão da tradução e verificada a coerência gramatical e conceitual. O painel de investigadores analisou as sugestões e fez as alterações que considerou mais pertinentes, tendo em conta o alcance de uma tradução fiel das ferramentas, adaptada ao contexto onde as mesmas serão aplicadas. No total, foram sugeridas seis alterações conceituais, das quais foram realizadas três. No questionário SARC-F foi feita uma alteração conceitual, visto que esta implicava uma maior coerência ao longo do questionário. No questionário FRAIL Scale, o termo “além de” foi substituído por “exceto” no seguimento da tradução do termo “other than”. A alteração foi realizada de modo a não causar ambiguidade na interpretação da questão referida. O termo “cancro da pele minor” resultante da tradução original de “minor skin cancer” foi alterado para “cancro da pele não-melanoma”. A alteração foi verificada por uma médica especialista em oncologia médica, que referiu ser este o termo mais correto e usado na prática clínica. As restantes três sugestões não foram efetuadas, uma vez que o painel concordou que, nestes casos, a versão original devia ser mantida de modo a obter uma maior aproximação ao questionário original, bem como maior congruência ao longo dos questionários. Além disso, caso algumas propostas fossem efetuadas, poderiam originar discrepância na interpretação das questões.
Entrevista Cognitiva
Iniciou-se um estudo piloto no qual se realizou a aplicação da versão pré-final dos questionários. O estudo teve como objetivos verificar o grau de dificuldade de preenchimento, a facilidade de compreensão dos questionários e a aplicabilidade das traduções geradas. Os questionários foram aplicados presencialmente ou por chamada telefónica pelos três investigadores do painel. A amostra de conveniência foi constituída por nove indivíduos, correspondentes à população alvo das ferramentas, com idades compreendidas entre os 61 e os 87 anos que não se encontravam institucionalizados. Cada indivíduo selecionado respondeu a cada um dos questionários. No total, obtiveram-se 18 questionários válidos, 9 correspondentes ao SARC F e 9 correspondentes ao FRAIL Scale, não havendo qualquer recusa na participação. Para a caracterização da amostra recolheu-se informação sobre sexo, idade, presença de patologias e o meio onde o inquirido se encontra. Dos 9 inquiridos, 7 eram do sexo feminino e 2 do sexo masculino. As características sociodemográficas da amostra selecionada encontram-se descritas na Tabela 1. A proporção de indivíduos com sinais sugestivos de sarcopenia pela aplicação do SARC-F foi de 44,4%, ao passo que a proporção de indivíduos identificados em risco de fragilidade ou de pré-fragilidade pela aplicação da FRAIL Scale foi de 22,2% para ambos os casos (Tabela 2).
Revisão/Análise
Terminada a ministração das ferramentas, foram recolhidas sugestões de melhoria, identificadas expressões e/ou palavras que pudessem gerar dúvidas aquando da futura aplicação das ferramentas, assim como analisados os seus pontos fortes e fracos. Os questionários tiveram boa aceitabilidade e aplicabilidade não tendo havido qualquer relutância à sua aplicação. As sugestões de melhoria foram analisadas pelo painel, que decidiu aplicar apenas uma alteração na classificação da “fadiga” na questão 1 da ferramenta FRAIL Scale de modo a tornar a resposta mais percetível, mantendo a escala de quantificação no tempo.
Revisão Final e Documentação
As ferramentas foram revistas de modo a verificar a existência de possíveis erros ortográficos, gramaticais e de sintaxe. O painel considerou como finalizado todo o processo de tradução apresentando as versões portuguesas da FRAIL Scale e do SARC-F no Anexo 1 e 2, respetivamente.
Relatório
Produção do relatório final enquadrado neste documento.
Arquivo/Manutenção de Registos
O painel guardou todas as versões realizadas ao longo do processo e registou todas as alterações e sugestões de melhoria. Do mesmo modo, encontram-se arquivados os resultados da aplicação das ferramentas.
ANÁLISE CRÍTICA
Através do presente trabalho, foram desenvolvidas versões portuguesas das ferramentas FRAIL Scale (6) e SARC-F (20). A utilização das normas do PRO Consortium (25) permitiu criar versões válidas e adaptadas para a língua portuguesa, mantendo a equivalência e conceitos das ferramentas originais.
De forma a estudar a validade das ferramentas, as mesmas foram aplicadas a uma amostra de conveniência, a qual não mostrou qualquer relutância à sua aplicação. As versões produzidas mostraram-se de fácil compreensão e aplicabilidade, rápida administração, demonstrando boa aceitabilidade e validade aparente.
Será importante referir que as ferramentas FRAIL Scale (6) e SARC-F (20) são baseadas no autorrelato de pessoas com idades iguais ou superiores a 65 anos, e que não está previsto o rastreio a alterações da função cognitiva, que poderiam comprometer a validade da avaliação. Também, nas publicações originais, não estão definidos os pré- requisitos neste domínio, para a aplicação destas ferramentas. Uma explicação possível, será o facto de estas ferramentas serem aplicadas por profissionais de saúde, que conhecerão a capacidade cognitiva e mental das pessoas rastreadas.
As versões Portuguesas das ferramentas FRAIL Scale (6) e SARC-F (20) desenvolvidas podem ser relevantes no rastreio da fragilidade e da sarcopenia em ambiente hospitalar, nos cuidados de saúde primários e na comunidade, tanto em Portugal como noutros países de língua portuguesa. Tendo em consideração que a fragilidade física e a sarcopenia são indicativas de um grau acrescido de incapacidade e vulnerabilidade, espera-se que a utilização destas ferramentas permita a identificação precoce da população em risco e, consequentemente, o diagnóstico precoce destas condições e a intervenção atempada. Desta forma, poderão ser implementadas medidas com vista a impedir a evolução e a deterioração do estado nutricional e do quadro clínico destes indivíduos.