INTRODUÇÃO
A nutrição é fundamental em todas as fases da vida, particularmente durante a gestação pois não só afeta a saúde materna como também influencia a saúde das futuras gerações (1 - 3). Este efeito é particularmente importante nos primeiros mil e cem dias (desde a pré-conceção até aos vinte e quatro meses de vida) visto que desempenha um papel fundamental na modulação metabólica do feto e do lactente, com potenciais resultados a longo prazo para a saúde do futuro adulto (4, 5).
A investigação reporta prevalências elevadas de défices nutricionais antes da conceção (6 - 8). Atualmente existe evidência científica que comprova a associação entre um inadequado estado nutricional pré-concecional e problemas perinatais (9 - 11). São vários os estudos que reportam um inadequa- do aporte nutricional durante a gestação (6 - 8, 12-21). A inadequação nutricional tem consequências negativas quer para a mãe quer para a criança, uma vez que a malnutrição materna pode estar associada a efeitos adversos na gravidez e no pós-parto (22-25).
Para além da maior motivação para a mudança comportamental por parte deste público-alvo, o facto de este estudo ser o único que utiliza os valores de referência da European Food Safety Authority (EFSA), especificamente desenvolvidos para a população europeia, para avaliar a adequação nutricional e também por ser o primeiro estudo sobre esta temática, realizado na Região Autónoma dos Açores e apenas o segundo feito a nível nacional, reforça a sua pertinência.
OBJETIVOS
Avaliar o aporte nutricional de mulheres da ilha do Faial, antes e durante a gravidez e analisar a sua respetiva adequação.
METODOLOGIA
Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética para a Saúde da Unidade de Saúde da Ilha do Faial, pelo parecer número 4.2018, a 3 de maio de 2018. Todas as participantes deram o seu consentimento informado por escrito e foi-lhes atribuído individualmente um código para assegurar a sua confidencialidade. Foi igualmente assegurada a anonimização dos dados recolhidos.
A amostra deste estudo foi composta por grávidas que completaram a sua gestação entre maio de 2018 e junho de 2019 e teve como critérios de inclusão mulheres com idade igual ou superior a dezoito anos, idade gestacional inferior a doze semanas, sem comorbilidades, residentes na ilha do Faial, inscritas na Unidade de Saúde desta ilha e sem qualquer situação que impossibilitasse a participação livre e informada. As mulheres com história de abortos espontâneos, morte fetal, partos prematuros (inferior a 32 semanas de gestação) e/ou previamente submetidas a cirurgia bariátrica foram excluídas.
Um total de 48 grávidas foram convidadas a participar no estudo, seis (12,5%) das quais recusaram. Foram posteriormente excluídos os da- dos de oito participantes: três sofreram aborto espontâneo, uma teve parto prematuro (inferior a 32 semanas de gestação), duas tiveram diagnóstico de diabetes gestacional e duas desistiram do estudo. Desta forma, foram analisados os dados de 34 mulheres.
Para a colheita de dados sobre a ingestão alimentar foi aplicado o questionário de frequência alimentar (QFA), versão semi-quantitativa (26), que se encontra validada para a população portuguesa (27) e, em concreto, para as gestantes (28). Este questionário foi aplicado em dois momentos, o primeiro dos quais na primeira consulta pré-natal (primeiro trimestre de gestação), com a finalidade de estimar o aporte nutricional usual antes da conceção. O segundo foi aplicado na última consulta pré-natal (final do terceiro trimestre de gestação), para estimar o aporte nutricional usual durante a gravidez. A conversão dos alimentos em nutrientes foi efetuada utilizando o programa informático Food Processor Plus® (ESHA Research, Salem, Oregon), com informação nutricional proveniente de tabelas de composição de alimentos do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América, adaptada a alimentos tipicamente portugueses (26).
Para a avaliação da adequação do aporte nutricional foram utilizadas, sempre que possível, as recomendações da European Food Safety Authority (EFSA) uma vez que foram desenvolvidas para a população europeia (29). A média das necessidades energéticas, durante a gravidez, foi calculada adicionando 277 kcal às necessidades anteriores à conceção. Este valor corresponde à média do aumento das necessidades energéticas nos três trimestres de gestação, cuja adequação teve como referência as average requirements (AR) (29). Para avaliar o exercício físico foi questionado se realizava algum tipo atividade física durante a gestação, o tipo de exercício praticado, a sua frequência e a respetiva duração. O nível de atividade física foi considerado como pouco ativo, à semelhança do evidenciado no inquérito alimentar na- cional e de atividade física (IAN-AF) (30).
Para avaliar a adequação do aporte proteico foram utilizados os acceptable macronutrient distribution ranges (AMDR) (31). Relativamente à avaliação do aporte lipídico foram utilizadas as reference intake ranges for macronutrients (RI) (29). Na avaliação da adequação do aporte dos hidratos de carbono foi utilizado o AMDR porque, na referência anterior, não existem recomendações específicas deste macronutriente para este grupo (31). Pelo mesmo motivo, foi utilizado o valor da adequate intake (AI) para as fibras (31).
Para a avaliação da adequação do aporte de cálcio, ferro, vitamina A, tiamina, riboflavina, niacina e vitamina B6 foram utilizados os valores da AR (29). Para analisar os restantes micronutrientes, foram usados como pontos de corte as AI, visto que nestes não existem valores de AR (32). Dada a impossibilidade de quantificar o consumo de fitatos, que podem influenciar negativamente a proporção de zinco disponível para absorção, foi utilizado o valor da estimated average requirement (EAR) para avaliar a adequação do aporte deste mineral (32). Para a avaliação da adequação da vitamina C, também foi utilizado a EAR (32), porque nas recomendações europeias existe apenas a population reference intake para este nutriente (29).
A análise estatística foi realizada no programa IBM SPSS®, versão 25.0 para Windows®. Utilizou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov para avaliar a normalidade das variáveis cardinais. A estatística descritiva consistiu no cálculo de frequências absolutas (n) e relativas (%), mé- dias e desvios-padrão (dp) e de medianas e percentis (P25; P75). Os testes t de Student e de Mann-Whitney foram usados para comparar, respetivamente, médias e ordens médias de amostras independentes, e o teste de Wilcoxon para comparar ordens médias de amostras emparelhadas. Utilizou-se o teste exato de Fisher para avaliar a independência entre pares de variáveis e o teste de McNemar para com- parar proporções de amostras emparelhadas. Rejeitou-se a hipótese nula quando p < 0,05.
RESULTADOS
Como é possível constatar na Tabela 1, a idade média das participantes foi de 31 anos (dp = 4), 50% apresentava o ensino superior, 64,7% estava casada ou em união de facto, a maioria (91,2%) esta- va empregada, mais de metade da amostra (58,8%) era primípara e 79,4% considerou os seus rendimentos económicos suficientes para os seus gastos.
Na Tabela 2 apresentam-se os valores de referência, medianas do aporte energético e nutricional diário e prevalência de inadequação nutricional antes da conceção e durante a gestação. Os nutrientes com maior inadequação antes da conceção foram: vitamina D, iodo, lípidos, hidratos de carbono e fibra. Todos estes micronutrientes tiveram uma inadequação por defeito, à exceção dos lípidos que apresentaram uma inadequação por excesso. Na gestação, para além dos nutrientes mencionados anteriormente, os folatos também apresentaram uma elevada percentagem de inadequação por defeito. A inadequação por defeito de folatos e iodo acentuou-se na gestação, aumentando em 44,1 e 20,6 pontos percentuais, respetivamente, comparativamente à pré-conceção, sendo estes os nutrientes com maior aumento de inadequação.
Em termos de aporte energético, não se verificaram diferenças significativas entre os períodos pré-conceção e gestação. Considerando
1 MJ = 238,83 kcal
a AMDR: Acceptable Macronutrient Distribution Ranges
b RI: Reference Intake Ranges for Macronutrients
c AR: Average Requirements
d EAR: Estimated Average Requirement
e AI: Adequate Intake
f 24 anos
g ≥ 25 anos
h mg/MJ
AGMI: Ácidos Gordos Monoinsaturados
AGPI: Ácidos Gordos Polinsaturados
AGS: Ácidos Gordos Saturados
HC: Hidratos de Carbono
MJ: Megajoule
VET: Valor energético total
VR: Valor de referência
Nota: Os valores de p correspondem à comparação das percentagens de inadequação entre a pré-conceção e a gestação.
aumento de alguns valores de referência na gestação e a reduzida diferença no aporte nutricional entre o período pré-concecional e a gestação não se verificam muitas diferenças nas prevalências de inadequação nutricional. Apenas se identificaram diferenças com significado estatístico para o folato e o iodo, sendo a inadequação superior na gestação. Embora não apresente diferenças com significado estatístico, a mediana do aporte de cafeína reduziu para menos de metade na gravidez.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Neste estudo identificaram-se sete grávidas com aporte energético inferior às necessidades, ao contrário de Pinto et al. que não reportaram qualquer gestante com aporte energético insuficiente (8).
Identificamos também diversos nutrientes com elevada proporção de inadequação, o que para além de resultar dos hábitos alimentares desta população, deve ser interpretado em termos comparativos tendo em consideração a escolha de diferentes valores de referência em diferentes estudos. Entre a gestação e a pré-conceção apenas se verificam diferenças com significado estatístico na adequação nutricional dos folatos e iodo, sendo a percentagem de inadequação por defeito superior na gravidez. Este resultado é expectável porque, em conjunto com a vitamina A, estes são os micronutrientes cujas necessidades mais aumentam na gravidez, o aumento do folato e iodo é de 200 µg e 50 mg, respetivamente, embora se tenha verificado que o seu aporte nos dois momentos avaliados era semelhante. É habitual a suplementação de ácido fólico e de iodo antes da conceção e durante a gestação, pelo que se destaca a importância da suplementação, particularmente para melhorar a adequação nutricional (“Perfil de suplementação antes e durante a gestação: estudo de acompanhamento na ilha do Faial”) (33).
Relativamente aos hidratos de carbono, verificou-se que mais de metade da amostra, nos dois momentos de avaliação, apresentava um aporte inadequado, por defeito, sendo superior no período pré-gestacional. É de salientar que os resultados de outros estudos revelam uma proporção de inadequação menor antes da conceção e durante a gravidez (7, 8, 16, 26, 31).
Os lípidos foram o macronutriente com maior proporção de inadequação, por excesso, especialmente na gravidez. Antes da conceção a proporção de inadequação (73,5%) foi bastante superior comparativamente a outros estudos (8, 30). São vários os estudos que demonstram que durante a gravidez há uma elevada prevalência de aporte excessivo de gordura, contudo apresentam valores de inadequação mais baixos (8, 14, 15). Não verificamos alterações relevantes na contribuição percentual do valor energético total proveniente dos diferentes tipos de ácidos gordos. Na gestação, a percentagem relativa aos ácidos gordos polinsaturados manteve-se (6,1%), mas houve um aumento de 0,7 e 1,0 pontos percentuais nos ácidos gordos saturados (de 10,1 para 10,8%) e monoinsaturados (de 17,5 para 18,5%), respetivamente.
Relativamente à vitamina D, nenhuma das participantes teve um aporte adequado antes ou durante a gestação. Os resultados de outros estudos demonstram que na gravidez a prevalência de inadequação desta vitamina tende a ser bastante elevada (14, 15, 21). É de salientar que o nível sérico da vitamina D não corresponde apenas ao seu aporte, pelo que os níveis de inadequação podem ser inferiores, especialmen- te no verão, dado que nesta estação a exposição solar poderá ser a principal fonte desta vitamina (29), pelo que a interpretação destes valores de inadequação deverá ser feita com cautela.
Neste estudo verificou-se um baixo aporte de folatos antes e durante a gravidez, o que reforça a importância da sua suplementação. No estudo de Pinto et al., a prevalência de inadequação desta vitamina foi elevada nos dois momentos, mas superior na gestação (90,8%) (17). Looman et al. também encontraram uma elevada percentagem de défice no período pré-gestacional (80,7%) (34).
Relativamente ao iodo foi possível identificar um aporte inadequado antes e durante a gestação. Importa referir que o QFA não é o melhor instrumento para analisar o aporte deste mineral, não só porque não tem em conta a utilização de sal iodado, mas também porque contém informação nutricional proveniente de tabelas de composição de alimentos não nacionais. No estudo de Rodriguez-Bernal et al. 24,3% das grávidas apresentou inadequação deste mineral (21).
Quanto à fibra, nos dois momentos de análise foi possível verificar a existência de inadequação, por defeito, sendo ligeiramente superior (47,1%) na gravidez. Comparativamente com a mediana do IAN-AF, o valor deste estudo na pré-conceção é superior (30). Segundo Abu- Saad et al. foi encontrada uma prevalência de inadequação superior na gestação, mas Dubois et al. não detetaram qualquer inadequação deste nutriente neste mesmo período (14, 35).
Tal como todos os trabalhos de investigação, o presente também apresenta limitações, das quais se destaca o facto de ter sido foi realizado em mulheres com um elevado nível de literacia e que residem apenas na ilha do Faial, o que condiciona a extrapolação dos resultados. Considerando o desenho do estudo houve a necessidade de excluir algumas inquiridas, o que poderá ter influenciado os resultados relativos ao consumo alimentar e respetivo aporte nutricional. Ao longo da aplicação dos dois QFA, as inquiridas foram informadas várias vezes sobre o período a que estava a ser aplicado esta ferramenta, contudo os dados foram recolhidos de forma retrospetiva o que poderá comprometer a acuidade da informação recolhida. Para além disso, está descrito que o uso destes questionários tende a sobrestimar a ingestão alimentar (36), pelo que há a possibilidade da inadequação nutricional por défice estar subestimada e da inadequação nutricional por excesso ser na realidade inferior ao que é descrito nos resultados. Na avaliação do consumo alimentar e do aporte nutricional antes e durante a gestação foi estudada a mesma amostra, o que minimizou o viés associado às características das participantes.
CONCLUSÕES
Neste estudo foi possível constatar que as mulheres que residem no Faial apresentam uma elevada inadequação nutricional quer em macro quer em micronutrientes. Os nutrientes com maior inadequação antes da conceção foram: vitamina D, iodo, lípidos, hidratos de carbono e fibra. Todos estes micronutrientes tiveram uma inadequação por defeito, à exceção dos lípidos que apresentaram inadequação por excesso. Na gestação, para além dos nutrientes mencionados anteriormente, os folatos também apresentaram uma elevada percentagem de inadequação por defeito.
Os resultados deste estudo reforçam a importância da adesão à suplementação, nomeadamente de iodo e ácido fólico que por sua vez são de distribuição gratuita na região, fomenta a necessidade da sensibilização para a intervenção nutricional no âmbito da Saúde Materna e Planeamento Familiar, de forma a atuar com a conveniente precocidade.