INTRODUÇÃO
Os hidratos de carbonos no futebol revelam-se fundamentais na produção de energia e, por isso, são determinantes no rendimento desportivo. Em 31 jogadores dos Países Baixos, o glicogénio muscular diminuiu 46% após a realização de jogos não-oficiais (1). Para comprovar o impacto dos hidratos de carbono no rendimento, os participantes, realizaram um protocolo intermitente antes e depois dos jogos (1). O tempo médio de realização do teste decresceu 2,8% comparativamente aos valores iniciais. Este estudo veio reforçar resultados de pesquisas precedentes, em que a depleção de 40-90% do glicogénio muscular durante a competição afetaram negativamente o rendimento em esforços maximais de curta duração (2, 3). Adicionalmente, um estudo transversal dos anos 90 examinou, em 6 jogadores adultos, a associação entre a concentração de glicogénio e os esforços predominantes em 90 minutos de jogo (4). Curiosamente, o tempo despendido em esforços maximais esteve substancialmente associado à concentração de glicogénio muscular avaliada antes da competição. Por outras palavras, os participantes que recorreram a uma dieta predominante em hidratos de carbono (65% do consumo energético total), 48 horas antes da competição realizaram ações de alta intensidade durante mais tempo.
Durante as últimas décadas, as diretrizes para o consumo de hidratos de carbono em futebolistas masculinos foram extensivamente documentadas, debatidas e atualizadas (5 - 7). Inicialmente, 5-7 g.kg-1. dia-1 de hidratos de carbono foram recomendadas para períodos de treino moderados (6). Para suportar o período competitivo, caracterizado por sessões de treino intensas, e a necessidade de abastecer para os momentos competitivos, foram sugeridas 7-12 g.kg-1.dia-1 (6). Recentemente, as recomendações de hidratos de carbono foram revistas por um grupo de peritos: para o período preparatório 4-8 g.kg-1. dia-1; 3-8 g.kg-1.dia-1 foram propostas para a fase competitiva, permitindo aos atletas suportar treinos e jogos, assim como repor as reservas de glicogénio; <4 g.kg-1.dia-1 foram sugeridas durante a off-season para a otimização da composição corporal (7). Assim, um consumo apropriado de hidratos de carbono, considerando a variabilidade de carga imposta durante a época competitiva, tem um impacto positivo nas adaptações ao treino e competição em futebolistas (5, 7).
A variação do consumo de hidratos de carbono por grupo, em esforços maximais avaliados através da monitorização da carga de treino e de avaliações laboratoriais, foi documentada em futebolistas de elite (8, 9). Por exemplo, com recurso à tecnologia global positioning system (GPS), foi reportado que os médios apresentavam valores superiores de velocidade média comparativamente aos avançados, e que os defesas percorriam uma menor distância em esforços maximais, em contraste com os alas, médios e avançados (8). Além disso, os avançados evidenciaram melhores desempenhos em protocolos de terreno do que os guarda-redes, defesas e médios (9). Em paralelo, o gasto energético total também variou por grupo posicional. Recentemente, dois estudos examinaram o dispêndio energético total, com recurso a água duplamente marcada, em futebolistas de elite (10, 11). Apesar dos estudos anteriormente mencionados serem limitados no tamanho amostral, diferenças assinaláveis foram evidentes entre os guarda-redes e as restantes posições no campo. O dispêndio energético em seis jogadores (defesas, médios e avançados) foi, em média, de 3566 kcal por dia (11), enquanto o guarda-redes dispendeu 2894 kcal (10). Consequentemente, as diretrizes de hidratos de carbono não devem ser generalizáveis para os diferentes grupos posicionais, particularmente, para guarda-redes que gastam menos energia por dia comparativamente às restantes posições no campo.
Dada a relação entre o glicogénio muscular, o consumo de hidratos de carbono e o impacto no rendimento desportivo, as recomendações de hidratos de carbono devem ser prescritas de acordo com a periodização da época (7, 12). O primeiro objetivo deste estudo foi examinar se o consumo de hidratos de carbono em futebolistas obedece às diretrizes recomendadas. Adicionalmente, foi também testada a variação no consumo de hidratos de carbono por grupo posicional.
METODOLOGIA
Protocolo
O presente estudo foi realizado considerando as recomendações propostas pelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (13).
Elegibilidade e Critérios de Inclusão
As pesquisas científicas arbitradas por pares foram selecionadas para a presente revisão. Os manuscritos elegíveis obedeceram aos seguintes critérios de inclusão: (i) amostra com jogadores de futebol masculino; (ii) idade superior a 18 anos; (iii) o consumo de hidratos de carbono ser expresso em gramas por quilograma de massa corporal.
Pesquisa
A estratégia de pesquisa foi realizada no dia 13 de abril de 2021 em três base de dados, a saber: PubMed, SPORTDiscus e Web of Science Core Collection. Os termos de pesquisa usados envolveram a combinação das seguintes palavras: “carbohydrate ingestion”, “CHO intake”, “CHO ingestion”, “carbohydrate need”, “CHO need”, “adult male soccer”, “professional male soccer”. Subsequentemente, os manuscritos foram selecionados com recurso ao software CADIMA (14). Tendo em conta critérios de elegibilidade, os manuscritos foram primeiramente considerados por título e abstract, e numa segunda fase pelo texto completo. Este processo foi realizado por dois observadores.
Itens da Pesquisa
Os participantes do sexo masculino estiveram envolvidos na prática organizada de futebol. O consumo de hidratos de carbono foi expresso em g.kg-1.dia-1 e comparado com as recomendações definidas para futebolistas (5 - 7).
Risco de Enviesamento dos Estudos
O risco de enviesamento dos estudos foi avaliado através de uma ferramenta desenvolvida para estudos observacionais (15). Esta é constituída por oito questões com resposta categórica: yes, no, unclear, not applicable. As questões referem-se à amostra envolvida, à qualidade dos dados, às co-variáveis que devem ser consideradas e finalmente, aos procedimentos estatísticos usados.
Síntese de Resultados
Os estudos foram agrupados de acordo com as recomendações de hidratos de carbono definidas: para a pré-epoca e durante o período competitivo. Surpreendentemente, nenhum estudo examinou o consumo de hidratos de carbono na off-season. Os estudos que apresentaram os resultados separadamente para dias de treino e de jogo foram incluídos na mesma meta-análise, uma vez que se trata do período competitivo. Surpreendentemente, a média e o desvio padrão referentes ao período de descanso, durante a semana competitiva, não foram incluídas na análise. A heterogeneidade foi examinada pela estatística I e interpretada da seguinte forma (16): I < 25% (baixa); 25% ≤ I < 75% (moderado); I ≥ 75% (alta). A meta-análise foi conduzida no Meta‐Analyst software (version beta 3.13) e o nível de significância foi definido a <0,05. Apenas dois artigos discriminaram a variação por grupo posicional, adotando diferentes categorias, razão pela a qual não foi realizada a meta-análise. Finalmente, um estudo-caso que avaliou o consumo energético de um guarda-redes durante uma semana também foi incluído na variação por grupo posicional.
RESULTADOS
Identificação e Seleção dos Estudos
A pesquisa nas bases de dados identificou 1992 títulos. Após remover os duplicados (n=132), 1860 artigos foram rastreados através do título e do abstract. Destes, 1834 registos foram excluídos. O texto dos 26 artigos elegíveis para a seleção foi cuidadosamente examinado, sendo 15 excluídos pelas seguintes razões: não era reportado o consumo de hidratos de carbono, o consumo de hidratos de carbono não era expresso em g.kg-1.dia-1, a amostra envolveu jovens futebolistas e finalmente, quando a mesma amostra foi objeto de estudo em estudos diferentes (Figura 1). Dos 11 estudos elegíveis, 10 foram incluídos na meta-análise.
As características dos 11 estudos envolvidos nesta revisão sistemática são apresentadas na Tabela 1. A maioria dos estudos são observacionais e procuram avaliar o consumo de hidratos de carbono em amostras de futebolistas específicas de um determinado país: Espanha (17, 18), Japão (19), Austrália (20, 21), Países Baixos (22, 23), Inglaterra (10, 11), Brasil (24) e Polónia (25). O nível dos atletas variou entre futebolistas que treinavam pelo menos quatro vezes por semana a um nível profissional. Com exceção do estudo que envolveu futebolistas japoneses (19), todos usaram o recordatório das 24 horas anteriores ou o diário de frequência alimentar para estimar o consumo alimentar, ainda que tenham recorrido a diferentes períodos temporais. Como referido anteriormente, um caso-estudo que reportou o consumo de hidratos de carbono num guarda-redes durante uma semana (10), foi excluído da meta-análise, mas considerado para examinar a variabilidade no consumo de hidratos de carbono por grupo posicional.
Qualidade Metodológica dos Estudos
A ferramenta utilizada para analisar o risco de enviesamento de cada estudo permitiu aferir que os critérios de inclusão na maioria das amostras não são discriminados. O estudo que envolveu a amostra de futebolistas japonenses (19) recorreu ao questionário de frequência alimentar adaptado para aquele país. No entanto, apesar de este ter sido previamente validado, não é considerado o procedimento apropriado para avaliar o consumo alimentar em atletas.
Consumo de Hidratos de Carbono Durante o Período Competitivo
Seis estudos foram incluídos na meta-análise, sendo a média do consumo de hidratos de carbono para o total de futebolistas considerados (n=205) de 4,3 g.kg-1.dia-1 (95% IC: 3,9 g.kg-1.dia-1 a 4,6 g.kg-1.dia-1), durante o período competitivo. O valor de heterogeneidade foi elevado (I = 91%; p<0,001) - Figura 2.
Consumo de Hidratos de Carbono Durante o Período Preparatório ou Pré-época
Quatro estudos foram incluídos na meta-análise, na qual foi estimado o consumo de hidratos de carbono em 5,1 g.kg-1.dia-1 (95% IC: 3,4 g.kg-1.dia-1 a 6,6 g.kg-1.dia-1) durante a pré-epoca, em 63 futebolistas. O valor de heterogeneidade foi elevado (I = 96%; p<0,001) - Figura 3
Consumo de Hidratos de Carbono Durante a Off-season
Nenhum estudo reportou o consumo de hidratos de carbono durante a off-season.
Variação no consumo de hidratos de carbono por grupo posicional A Tabela 2 sumaria o consumo de hidratos de carbono por grupo posicional. Na amostra que envolveu futebolistas do Brasil (24), o consumo de hidratos de carbono foi comparável nos diferentes grupos posicionais (guarda-redes: 5,6±1,2 g.kg-1.dia-1, defesas: 5,5±2,7 g.kg-1.dia-1, alas: 4,5±0,4 g.kg-1.dia-1, médios: 5,6±2,2 g.kg-1.dia-1, avançados: 5,46±1,41 g.kg-1.dia-1), enquanto que na amostra dos Países Baixos (23) os guarda-redes (3,6±0,8 g.kg-1.dia-1) e os avançados (3,8±1,4 g.kg-1.dia-1) ingeriam menos hidratos de carbono do que os defesas (4,2±1,4 g.kg-1.dia-1) e os médios (4,0±0,8 g.kg-1.dia-1).
1O consumo de hidratos de carbono foi estimado para um guarda-redes durante 7 dias.
HC: Hidratos de carbono
Finalmente, o guarda-redes estudado em Inglaterra apresentou um consumo menor comparativamente aos guarda-redes avaliados no Brasil ou nos Países Baixos.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
O objetivo desta revisão sistemática com meta-análise foi avaliar o consumo de hidratos de carbono em futebolistas, considerando a periodização anual da época. De acordo com recentes diretrizes publicadas por um grupo de peritos da UEFA (7), o consumo de hidratos de carbono durante a pré-epoca deve ser de 4-8 g.kg-1.dia-1, enquanto na off-season a ingestão deve ser inferior a 4 g.kg-1.dia-1. As recomendações para o período que embarga o calendário competitivo apresentam uma maior amplitude, variando entre 3-8 g.kg-1.dia-1, nas semanas em que existe um jogo, e 6-8 g.kg-1.dia-1 quando o calendário competitivo é mais congestionado. No entanto, mesmo para equipas que competem apenas uma vez por semana, é sugerido 6-8 g.kg-1.dia-1 no dia antecedente e posterior ao jogo (7). Em média, os jogadores de futebol avaliados durante a pré-epoca, cumpriram as diretrizes de hidratos de carbono. Em contraste, durante a época, a ingestão de hidratos de carbono tende a estar próxima do limite inferior recomendado. Surpreendentemente, nenhum estudo avaliou a ingestão de hidratos de carbono durante a off-season.
A necessidade de periodizar o consumo de hidratos de carbono explica-se pelas exigências e objetivos específicos nas diferentes fases da época (6, 7). Durante o período preparatório ou pré-epoca, as diretrizes de hidratos de carbono justificam-se pela variabilidade da carga de treino imposta, enquanto, durante a fase competitiva, o objetivo é de sustentar a elevada frequência e intensidade de treino, para além de proporcionar aos atletas a reposição do glicogénio muscular e hepático (7). As diretrizes do consumo de hidratos do carbono durante o período competitivo foram definidas considerando o congestionamento do campeonato competitivo. Esta abordagem fundamentou-se num estudo recente que avaliou o impacto da carga de treino e de jogo em futebolistas de elite ingleses, durantes diferentes microciclos competitivos (26). Jogadores que competiram duas e três vezes, semanalmente, percorreram durante o treino e o jogo 32,5 km e 35,5 km, respetivamente, enquanto os atletas que apenas tiveram um jogo completaram 25,9 km. Adicionalmente, a percentagem de tempo em ações com velocidade acima de 14 km.h-1, foi superior quando os atletas competiam três vezes por semana (23%) comparativamente a duas (18%) ou uma vez (14%) (26). Os dados previamente reportados têm implicações nas estratégias nutricionais a adotar nos diferentes microciclos da época competitiva. No entanto, o limite inferior de 3 g.kg-1.dia-1, na tentativa de otimizar o rendimento desportivo, parece não satisfazer as necessidades energéticas dos futebolistas.
O consumo de 3 g.kg-1.dia-1 de hidratos de carbono, num futebolista de 80 kg, traduz-se em 960 kcal de hidratos de carbono. Se o mesmo atleta obedecer às recomendações proteicas e lipídicas de 1,6 g.kg-1.dia-1 e 1,2 g.kg-1.dia-1 sugeridas num estudo com 41 futebolistas de elite (23), respetivamente, o seu consumo energético será aproximadamente de 2400 kcal por dia. Este valor é inferior ao gasto energético estimado por água duplamente marcada em futebolistas de elite ingleses (10) e holandeses (23), os quais despendem, em média, 3186 kcal e 3566 kcal, respetivamente. Extrapolando os resultados encontrados no presente estudo, no qual a média do consumo de hidratos de carbono, durante o período competitivo foi de 4,3 g.kg-1.dia-1, um atleta de 80 kg ingeriria aproximadamente, 2500 kcal, o que não permitiria satisfazer o seu dispêndio energético. O consumo de proteína anteriormente mencionado, 1,6 g.kg-1.dia-1, em 41 futebolistas dos Países Baixos foi consideravelmente inferior aquele que foi reportado em futebolistas Britânicos (2,4 g.kg-1), o que demonstra a necessidade de estudos futuros descreverem o consumo nutricional em futebolistas profissionais (27).
A amplitude do consumo de hidratos de carbono já havia sido recentemente discutida, sendo sugeridos 7-8 g.kg-1.dia-1 em períodos de treino intensos ou momentos competitivos (23). O presente estudo parece sugerir um estreitamento das diretrizes do consumo de hidratos de carbono no período competitivo, independentemente, do congestionamento do calendário. Mesmo em períodos da época, em que só existe um momento competitivo por semana, as 24-36 horas anteriores representam um período temporal que justifica um aporte superior de hidratos de carbono, conjugado com unidades de treino de baixa intensidade (6). A ingestão de 4,3 g.kg-1.dia-1 de hidratos de carbono, durante o período competitivo pode ser explicada por um consumo excessivo de proteína (10, 17, 20, 22, 24). Outra explicação para os valores estimados de hidratos de carbono poderá ser a metodologia usada para avaliar o seu consumo. A maioria dos estudos estimaram a ingestão de hidratos de carbono recorrendo ao recordatório das 24 horas anteriores ou ao diário alimentar. Note-se, que os erros associados aos diários alimentares, tendem a subestimar 18-20% o consumo energético real (5). Para minimizar o erro da estimativa da ingestão de hidratos de carbono (28), os estudos que avaliaram futebolistas de elite ingleses recorreram ao diário alimentar de 7 dias, combinado com o recordatório das 24 horas anteriores. Outro fator que pode influenciar os valores encontrados no consumo de hidratos de carbono é a variação por posição. Um estudo com 19 futebolistas brasileiros reportou ingestões comparáveis entre os diferentes grupos posicionais (24), contrastando com os resultados verificados em 41 futebolistas holandeses, com os guarda-redes a reportarem um consumo inferior comparativamente aos defesas, médios e avançados (23). Um guarda-redes inglês avaliado durante sete dias reportou um consumo diário inferior a 3 g.kg-1.dia-1, com um dispêndio energético médio de 3160 kcal (19), substancialmente inferior às 3600 kcal estimadas em 6 futebolistas ingleses de outras posições em campo.
A presente revisão sistemática e meta-análise tem limitações que devem ser reconhecidas. Primeiramente, o consumo de hidratos de carbono nos dias de treino e competição foram considerados para avaliar a ingestão durante o período competitivo, pelo que estudos futuros devem clarificar se o consumo de hidratos de carbono deve ser distinto nos dias de treino e competição, comparando com o dispêndio energético e a variabilidade da carga. Finalmente, os resultados da meta-análise devem ser cuidadosamente interpretados tendo em conta o nível de heterogeneidade encontrada.
CONCLUSÕES
Em suma, o consumo de hidratos de carbono em jogadores de futebol treinados aproxima-se do limite inferior recomendado considerando as mais recentes diretrizes durante o período competitivo. Durante o período preparatório cumprem, em média, as recomendações sugeridas. Apesar da frequente atualização das diretrizes para o consumo de hidratos de carbono (7, 29), o presente estudo evidenciou que são necessárias estratégias para que os atletas percebam a necessidade deste macronutriente durante o período competitivo, considerando também as suas preferências alimentares (20). A variabilidade por posição deve ser considerada aquando da ingestão alimentar, emergindo do presente estudo que os guarda-redes apresentam um consumo de hidratos de carbono inferior ao de atletas das restantes posições em campo.