INTRODUÇÃO
A saúde é definida pela Organização Mundial da Saúde, como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade (1). Através desta definição é possível compreender que a saúde mental, durante anos negligenciada, é parte integrante da saúde e que se relaciona fortemente com a saúde física e com o comportamento, revelando-se essencial para o bem-estar dos indivíduos, e das sociedades em geral (2, 3). A nível nacional, as perturbações psiquiátricas têm uma prevalência de 22,9%, uma das mais elevadas da Europa, representando assim um importante desafio da atualidade (4).
A ansiedade, a depressão e o stress estão intrínsecas nas sociedades modernas em que vivemos, e as intervenções no estilo de vida já demonstraram ser eficazes na sua atenuação (5). Embora as doenças psiquiátricas sejam alguns dos mais sérios desafios médicos e sociais da atualidade, a causa da maioria destas permanece desconhecida e as opções terapêuticas disponíveis são frequentemente pouco eficazes e/ou apresentam efeitos adversos graves (6). Os modelos de intervenção existentes no âmbito dos cuidados de saúde na doença psiquiátrica não conseguem responder na totalidade às complexas dimensões biológicas, sociais, culturais e espirituais da doença mental, tornando-se necessária a exploração de novos conceitos e opções terapêuticas (7). A nutrição e alimentação, enquadradas nos fatores associados ao estilo de vida, constituem alvos terapêuticos modificáveis, tendo vindo a ganhar um papel de destaque tanto na prevenção como no tratamento destas patologias (8 - 11).
A microbiota intestinal, cuja relevância em diversas patologias do trato digestivo está bem documentada (12), tem sido alvo de estudo nos mais diversos contextos. Neste sentido, tem surgido, nos últimos anos, um crescente corpo de evidência sugerindo que a microbiota intestinal tem também a capacidade de interagir com o sistema nervoso central e, por isso, poderá influenciar o comportamento e a função cerebral (13,14). É atualmente conhecida uma associação entre a doença psiquiátrica e os distúrbios gastrointestinais (15), que será alvo de exploração com este trabalho.
OBJETIVOS
O presente trabalho tem como objetivos compilar a informação mais atual acerca do papel da nutrição e alimentação na prevenção e desenvolvimento das doenças psiquiátricas, assim como o impacto da modulação da microbiota intestinal como potencial alvo terapêutico. Pretende-se com esta revisão narrativa abordar o desenvolvimento atual desta temática, assim como sensibilizar os profissionais de saúde, no geral, e o nutricionista, em particular, para a mesma.
METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica com recurso à base de dados PubMed, de artigos publicados entre 2011-2021. Foram incluídos artigos originais realizados em humanos (incluindo ensaios clínicos aleatorizados) e em modelos animais, assim como artigos de revisão, revisão sistemática e meta-análise, utilizando como critérios de pesquisa as palavras-chave “psychiatry and nutrition”, “psychiatry and microbiota”, “probiotics and prebiotics” e “psychobiotics”. De acordo com a sua atualidade e pertinência para o tema, foi selecionada uma amostra de artigos cujo texto integral se encontrava disponível na língua portuguesa ou inglesa, de acesso gratuito.
Nutrição, Doença Psiquiátrica e Microbiota Intestinal
O Conceito de Nutrição Psiquiátrica
O ramo da nutrição psiquiátrica oferece uma possível abordagem para uma gestão mais eficaz e minimização do impacto global associado à doença mental (16). A evidência sugere que a importância dos hábitos alimentares no contexto das doenças crónicas não transmissíveis também se estende à doença mental, tendo este facto sido reiterado no estudo de Jacka et al. no qual se verificou a existência de uma associação entre a prática de um padrão alimentar do tipo ocidental e uma maior probabilidade de ocorrência de sintomas e distúrbios psicológicos (17). Particularmente na depressão, um estudo realizado com uma amostra representativa da população portuguesa reportou que a prática de um padrão alimentar definido como não saudável, caracterizado por uma menor frequência de consumo de sopa, hortofrutícolas, peixe, leite/laticínios, menor ingestão de água e maior frequência de consumo de carne estava significativamente associada à presença de sintomas de depressão (18).
No âmbito da intervenção nutricional, deve ser privilegiada a obtenção de nutrientes através da prática de uma alimentação adequada, podendo também ser considerada a prescrição de nutrientes (nutracêuticos) suplementares (19, 20). São vários os nutrientes que apresentam uma ligação clara com a saúde e função cerebral e que podem ser considerados para este tipo de intervenção, nomeadamente os ácidos gordos polinsaturados n-3, as vitaminas do complexo B (como o folato e a vitamina B12), o ferro, o magnésio, a vitamina D, os aminoácidos, entre outros (19).
Ademais, considerando a alimentação como um todo ao invés dos seus nutrientes de forma isolada, a Dieta Mediterrânica (DM) destaca-se como uma estratégia que poderá ser útil em indivíduos com sintomas depressivos (21). Nesta temática, o estudo PREDIMED concluiu que indivíduos com diabetes mellitus tipo 2 que praticavam uma DM com frutos oleaginosos, numa porção de 30 gramas por dia (22), obtiveram uma redução de 40% no risco de depressão, comparativamente ao grupo placebo (23). Mais recentemente, o estudo HELFIMED comprovou o efeito benéfico de uma dieta do tipo mediterrânico suplementada com óleo de peixe (900 mg de DHA e 200 mg de EPA por dia (24)) em indivíduos com depressão (25). Por fim, o estudo SMILES (26) enfatiza a relevância da otimização da dieta como uma estratégia de tratamento eficaz e acessível para episódios depressivos major, referindo também que os benefícios desta intervenção se podem estender ao controlo de outras comorbilidades, o que é relevante pelo facto de as doenças mentais estarem associadas a um risco aumentado de obesidade, diabetes mellitus e doenças cardiovasculares (27). Ainda em relação às perturbações depressivas, foi verificada uma associação entre a prática de uma dieta pró-inflamatória (ocidental) e um risco aumentado de diagnóstico ou sintomas de depressão, comparativamente aos indivíduos que praticavam uma dieta anti-inflamatória (p.ex. DM) (28). Em concordância, uma revisão sistemática e meta-análise publicada em 2014 na revista American Journal Clinical Nutrition sugere que um padrão alimentar saudável, rico em hortofrutícolas, cereais integrais, peixe, carne de aves e produtos lácteos com baixo teor de gordura, poderá estar associado a um menor risco de depressão e apresenta um potencial para se afirmar como uma estratégia de prevenção primária para as perturbações depressivas (29). Esta informação vai ao encontro a algumas recomendações descritas na literatura para a prevenção da depressão, que incluem também a adoção de padrões alimentares tradicionais (onde se inclui a DM), o aumento do consumo de leguminosas, frutos oleaginosos e sementes, a inclusão de alimentos ricos em ácidos gordos polinsaturados n-3 e a limitação do consumo de alimentos processados, fast food e alimentos açucarados no geral (30). A insegurança alimentar é também um tópico importante a abordar neste contexto, uma vez que poderá afetar a saúde mental dos indivíduos, exercendo um efeito significativo na probabilidade de um indivíduo experienciar stress ou depressão (31), o que realça a importância da intervenção do Nutricionista nas suas diferentes valências. Finalmente, ainda relacionado à intervenção nutricional nesta população, devem ainda ser tidos em consideração os efeitos secundários da medicação com psicotrópicos, nomeadamente o aumento do apetite, aumento da ingestão alimentar ou compulsão alimentar (32 - 34).
A Microbiota Intestinal, a Sua Relação com a Doença Mental e o Eixo Intestino-cérebro
O ser humano alberga e coexiste com a microbiota intestinal, um ecossistema microbiano complexo que se estabelece essencialmente na porção mais distal do intestino (35). O intestino contém também mais de 100 milhões de neurónios e é, em última instância, um ponto de encontro de nervos, células imunológicas e microrganismos (36). Neste sentido, existe um complexo sistema de comunicação entre o trato gastrointestinal, os microrganismos que o habitam, e o sistema nervoso periférico e central (37). Esta rede de comunicação bidirecional de moléculas e sinais neurais, que engloba o trato gastrointestinal, o sistema nervoso e o cérebro, é denominada de eixo intestino-cérebro (38, 39). Existem vários mecanismos pelos quais a microbiota intestinal poderá modular o comportamento, assim como o desenvolvimento e a função cerebral, nomeadamente através do sistema imunológico, endócrino e neurológico (37, 40). Sendo a comunicação entre o intestino e o cérebro bidirecional, também o cérebro é capaz de modular a microbiota intestinal, através de alterações na motilidade, secreção gastrointestinal ou permeabilidade intestinal (41).
Com relevância para esta temática, já foi documentado que a microbiota intestinal de indivíduos com depressão apresenta uma menor riqueza e diversidade, em comparação com a microbiota intestinal de indivíduos saudáveis (42, 43). No entanto, o estudo da microbiota intestinal através de trabalhos observacionais não permite aferir uma relação de causalidade. Neste âmbito, o estudo desenvolvido por Kelly et al. (42), verificou que um transplante de microbiota fecal de indivíduos com depressão em ratos induziu nestes características comportamentais e fisiológicas da depressão e comportamentos semelhantes à ansiedade, facto que sugere que a microbiota intestinal poderá desempenhar um papel causal no desenvolvimento de certas características da depressão, podendo assim representar um alvo terapêutico na prevenção e tratamento desta doença (42). Adicionalmente, não só a microbiota intestinal está associada à doença psiquiátrica em si, como também pode influenciar os efeitos terapêuticos e/ou adversos associados à terapêutica farmacológica utilizada no seu tratamento (44,45). Desta forma, é possível compreender que a modulação da microbiota poderá ser um alvo terapêutico ao nível da saúde mental.
A Modulação da Microbiota Intestinal como Coadjuvante do Tratamento das Doenças Psiquiátricas
Modulação da Microbiota Intestinal: Como e Porquê?
A microbiota intestinal possui plasticidade na sua composição e função (46, 47). Neste sentido, várias estratégias para a sua modificação já foram descritas na literatura, como a manipulação da dieta, a utilização de probióticos e/ou prebióticos, bem como o transplante de microbiota fecal (37, 46). Existe uma íntima relação entre a alimentação, a microbiota e a saúde, sugerindo que, possivelmente, alterações da microbiota induzidas pelo tipo de dieta poderão influenciar o desenvolvimento e progressão da doença (48). O tipo de dieta tem a capacidade de modular a composição da microbiota intestinal, uma vez que determina a disponibilidade de substratos para o crescimento microbiano e influencia o trânsito e ambiente intestinal (49). Esta informação é relevante pois, considerando a informação já descrita ao longo da presente revisão, é possível especular que a modulação da microbiota intestinal poderá ser (pelo menos em parte) o mecanismo pelo qual uma intervenção nutricional possa exercer o seu papel na saúde mental dos indivíduos.
Os probióticos, ou seja, “microrganismos vivos que, quando administrados em quantidades adequadas, conferem um benefício à saúde do hospedeiro” (50), também poderão afetar a microbiota intestinal, através da competição por nutrientes ou por locais de adesão à parede intestinal, da produção de substratos de crescimento para outras bactérias, entre outros (51). Os prebióticos, “substratos que são utilizados seletivamente por microrganismos do hospedeiro conferindo um benefício à saúde” (52), têm também a capacidade de modular a microbiota intestinal, ao estimularem seletivamente o seu crescimento e/ou atividade (53). Por último, o transplante de microbiota fecal, que consiste na transferência de bactérias fecais de um dador saudável para um indivíduo doente, também representa um método com a capacidade de modular a microbiota intestinal e tratar a disbiose, podendo ainda ser um método promissor em perturbações psiquiátricas resistentes ao tratamento (54). O seu uso potencial em transtornos psiquiátricos resistentes ao tratamento surge devido ao racional teórico relacionado com a restauração da microbiota intestinal alterada nestes doentes, não existindo ainda estudos realizados nesta população, de acordo com o nosso conhecimento. Relativamente ao estudo do efeito de probióticos e prebióticos neste contexto já foram realizados vários trabalhos (55). Alguns exemplos serão detalhados na próxima secção do presente artigo.
A Era dos Psicobióticos
O termo psicobiótico foi definido inicialmente, por um grupo de investigadores da University College Cork na Irlanda, como sendo um organismo vivo que, quando ingerido em quantidades adequadas, produz um benefício para a saúde em indivíduos que sofrem de doenças psiquiátricas (56). Posteriormente, a definição de psicobiótico foi reformulada e passou a incluir duas novas dimensões: em primeiro lugar, devido os benefícios dos psicobióticos em indivíduos saudáveis já documentados, a sua utilização não necessita de ser restrita a grupos clínicos; em segundo lugar, foram incluídos os prebióticos, por promoverem o crescimento de bactérias intestinais benéficas (38). Embora a definição de psicobiótico seja recente, o conceito de utilizar microrganismos como uma terapêutica adjuvante em doenças do espetro da psiquiatria tem sido discutido pela comunidade científica há vários anos. Na realidade, o primeiro estudo sobre esta matéria foi publicado em 1910 (57).
Diversos estudos de intervenção com psicobióticos já foram realizados desde então, inclusive em indivíduos saudáveis (58). Considerando populações clínicas, em indivíduos com perturbação depressiva major foi reportada uma diminuição significativa no score de depressão após 8 semanas de intervenção com uma cápsula de probióticos contendo Lactobacillus (L.) acidophilus, L. casei e Bifidobacterium (B.) bifidum (59). Em indivíduos com a mesma patologia, a toma de um probiótico contendo L. helveticus R0052 e B. longum R0175, também durante 8 semanas, resultou igualmente numa diminuição significativa do score de depressão, obtido através do Inventário de Depressão de Beck (60). Nesta temática, os resultados de uma revisão sistemática e meta-análise sobre o efeito dos probióticos no tratamento da depressão indicam que estes são eficientes na redução os sintomas desta doença apenas quando administrados em conjunto com a medicação antidepressiva (61). Em indivíduos com esquizofrenia, a suplementação vitamina D e de probióticos (L. acidophilus, B. bifidum, L. reuteri e L. fermentum), durante 12 semanas, teve um efeito benéfico no perfil metabólico dos indivíduos e no score de uma escala utlizada para medir a severidade dos sintomas desta patologia, comparativamente ao placebo (62). Já em indivíduos com doença bipolar tipo 1 ou com perturbação esquizoafetiva do tipo bipolar que foram hospitalizados devido a um episódio maníaco, a toma de um probiótico durante 24 semanas, após receberem alta hospitalar, contendo L. rhamnosus GG e B. animalis subsp. lactis Bb12 resultou numa menor taxa de re-hospitalização, comparativamente ao verificado nos indivíduos que receberam um placebo (63).
ANÁLISE CRÍTICA
As implicações das doenças do foro psiquiátrico vão muito além do que ocorre no cérebro. Naturalmente, para fazer face a uma doença que envolve várias dimensões da saúde, são necessárias respostas e intervenções de diferentes áreas. Os distúrbios gastrointestinais, a elevada prevalência de comorbilidades, os efeitos adversos da terapêutica farmacológica e a íntima relação entre o intestino e o cérebro são apenas alguns dos fatores que evidenciam e justificam a necessidade de intervenção de um nutricionista neste campo. Uma alimentação saudável e nutritiva em indivíduos com doença psiquiátrica pode comportar benefícios ao nível da saúde mental, além dos restantes benefícios já extensamente conhecidos. Na prática, de acordo com o abordado neste trabalho, recomenda-se uma dieta do tipo mediterrânica, representando esta um padrão alimentar não restritivo e cultural ente adequado à população portuguesa. Relativamente à utilização de psicobióticos, é impossível deixar de salientar que são muitas ainda as questões por responder, nomeadamente a definição exata de quais as estirpes bacterianas ou prebióticos com benefício na saúde mental, assim como qual a respetiva dosagem e duração da intervenção. É necessário também compreender de forma clara os mecanismos responsáveis pelos resultados observados e se estes estão dependentes da toma crónica de psicobióticos. Em suma, a informação disponível no momento é aliciante mas, embora existam diversos estudos que demonstram o seu efeito benéfico, estes são muito heterogéneos para que possam ser estabelecidas conclusões definitivas. Para que seja possível utilizar este conhecimento na prática clínica é crucial que sejam realizados mais estudos.
CONCLUSÕES
Não há dúvidas que ainda há muito por conhecer no âmbito da saúde mental e que é necessário continuar a trabalhar para o seu reconhecimento e tratamento adequado, que passa também por encontrar terapêuticas menos hostis que possam contribuir para o bem-estar e qualidade de vida dos indivíduos. A evidência sugere que a nutrição e alimentação, assim como a associação de psicobióticos, são intervenções com um caráter promissor na prevenção e atenuação do impacto das morbilidades do foro mental nas sociedades modernas