INTRODUÇÃO
A Dieta Mediterrânica (DM) é caracterizada, essencialmente, pelo consumo elevado de frutas, produtos hortícolas, leguminosas, frutos secos oleaginosos, pães e cereais integrais (como massa e arroz); azeite como principal fonte de gordura adicionada; consumo moderado a elevado de pescado; consumo moderado de produtos lácteos (principalmente queijo e iogurte) e de ovos; consumo baixo de carne vermelha; e consumo moderado de vinho, particularmente aquando do momento de refeição (com exceção de crianças, adolescentes, grávidas, lactantes e adultos sem ingestão regular de vinho) (1, 2). Para além de ser reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura desde 2010 como Património Cultural Imaterial da Humanidade (3), a DM é considerada como um padrão alimentar saudável (4 - 10) e sustentável (11, 12).
Desde os anos 60 até à primeira década do século XXI, os países mediterrânicos, no geral, demonstraram uma tendência de perda de adesão a este padrão alimentar embora menos pronunciada na última década -, principalmente nas gerações mais jovens (13-18). Neste alinhamento, considera-se que as estratégias de promoção da saúde devem priorizar a promoção da DM na população em geral e, mais especificamente, nas duas primeiras décadas de vida (10, 17). Tais estratégias de promoção da saúde exigem o estudo da qualidade global da alimentação e, várias abordagens a priori baseadas nos princípios da DM, foram desenvolvidas para avaliar a adesão das crianças e adolescentes a este padrão alimentar. A mais utilizada tem sido o Mediterranean Diet Quality Index for children and adolescentes (Índice KIDMED) (10, 19).
O Índice KIDMED foi desenvolvido e validado por Serra Majem, et al, em 2004 (20), para avaliar os hábitos alimentares de 3850 crianças e adolescentes espanhóis, com idades compreendidas entre os 2 e os 24 anos, no âmbito do estudo EnKid. É composto por 16 questões de resposta dicotómica (SIM/NÃO), podendo ser autoadministradas (aplicação direta) ou conduzidas por um/a inquiridor/a (aplicação indireta). A pontuação global obtida varia de -4 a 12 pontos, sendo que existem questões com pontuação de -1, por se referirem a hábitos alimentares com uma conotação negativa no PAM, e questões com pontuação +1, por refletirem aspetos positivos. A soma das pontuações das questões permite a classificação da adesão ao PAM das crianças e adolescentes em 3 níveis: baixa se for ≤3 pontos (alimentação de baixa qualidade); moderada se estiver compreendida entre 4 e 7 pontos (precisa de melhorar e ajustar a sua ingestão ao padrão mediterrânico); e elevada se for ≥8 pontos (ótima alimentação mediterrânica).
No entanto, o valor prático deste índice alimentar - e de qualquer instrumento de recolha de dados - depende da reprodutibilidade e validade das informações que recolhe e, por ser reprodutível e válido na população para a qual foi desenvolvido, não se pode presumir que o mesmo aconteça para a nova população onde será utilizado (21, 22). Para se testar as propriedades psicométricas de um instrumento é necessário, numa primeira etapa, proceder à produção, a partir da versão original, de uma versão idêntica na língua materna da nova população a que se destina (22). Contudo, a simples tradução do instrumento não é suficiente, sendo necessária e importante a adaptação transcultural do instrumento (22, 23).
Embora, várias versões do Índice KIDMED na língua portuguesa tenham sido produzidas, por diferentes autores, à luz do nosso melhor conhecimento, com base numa extensa revisão da literatura, nenhum procurou investigar as propriedades psicométricas deste instrumento, em Portugal. Para além disso, nenhum procurou verificar se a população-alvo compreendia, do modo esperado, as questões da versão produzida, ou seja, nenhuma adaptou o instrumento com base em perspetivas ou caracterizações elaboradas pela própria população-alvo. Por consequência, o principal objetivo do presente estudo foi traduzir e adaptar transculturalmente o Índice KIDMED, para adolescentes portugueses. Uma vez que a incorreta interpretação e compreensão das questões leva a um incorreto preenchimento das mesmas e, consequentemente, a uma incorreta avaliação da adesão ao PAM, é fundamental que a adaptação tenha em consideração as perspetivas dos/as adolescentes depois de perceber se compreendem corretamente as questões do instrumento.
METODOLOGIA
Tradução do Índice KIDMED: Primeiramente, foi produzida, a partir da versão original do Índice KIDMED (20), uma versão idêntica na língua portuguesa. Esse processo de tradução consistiu em 3 etapas: inicialmente efetuou-se uma tradução preliminar da versão em castelhano por uma pessoa cuja língua mãe é o português europeu, fluente nas duas línguas e que estava bem informada sobre os objetivos do estudo e sobre a intenção de cada questão do inquérito. Seguidamente essa tradução preliminar foi avaliada e, por fim, retro traduzida para a língua original por uma pessoa cuja língua mãe é o castelhano, bilíngue, bicultural e que não tinha tido contacto com a versão original (22, 24). As discrepâncias encontradas foram examinadas, obtendo-se uma retro tradução idêntica à versão original, não sendo, por isso, necessário repetir o processo. De seguida, elaborou-se um protocolo de administração do instrumento, com instruções de utilização para a sua aplicação direta, de forma a uniformizar os procedimentos.
Amostragem: O Índice KIDMED é uma ferramenta construída para ser aplicada dos 2 aos 24 anos de idade, contudo, para que o presente trabalho de investigação fosse exequível, optou-se por limitar a participação aos/às adolescentes com idades compreendidas entre os 10 e os 19 anos (25), com nacionalidade portuguesa e sem necessidades educativas especiais que os/as impedissem de preencher o Índice KIDMED e realizar entrevistas.
De entre uma amostra de agrupamentos de escolas, selecionadas por conveniência de acesso num concelho da zona norte do país, escolheram-se apenas dois agrupamentos que tivessem, em simultâneo, escola básica de 2.º e 3.º ciclo e escola secundária (o mais a litoral e o mais no interior, tornando a amostra o mais heterogénea possível). De todas as turmas do 5.º ao 12.º ano, selecionou-se aleatoriamente 1 turma de cada ano letivo, para os dois agrupamentos. Enviaram-se consentimentos informados para os/as respetivos/as Encarregados/as de Educação de 4 adolescentes de cada turma, 2 adolescentes do sexo masculino (primeiro e último, por ordem alfabética) e 2 adolescentes do sexo feminino (primeira e última, por ordem alfabética).
De um total de 64 adolescentes, apenas 35 aceitaram participar (taxa de participação de 54,7%), tendo havido a exclusão dos dados de 2 adolescentes, após a sua participação, por não terem nacionalidade portuguesa (taxa de resposta de 100%). Os/as restantes 33 participantes tinham idades compreendidas entre os 10 e os 18 anos, eram maioritariamente do sexo masculino (54,5%) e encontravam-se 36,4% no 2.º ciclo do ensino básico, 36,4% no ensino secundário e 27,3% no 3.º ciclo do ensino básico. Relativamente ao contexto socioeconómico dos/as participantes pode-se inferir, através da escolaridade do pai e da escolaridade da mãe, que pertenciam a um nível socioeconómico médio-baixo, uma vez que apenas 3% e 6,1% dos pais e das mães, respetivamente, tinham concluído o ensino superior.
Organização e Gestão do Trabalho de Campo: Durante o período de aulas, em novembro de 2019, aplicou-se diretamente o Índice KIDMED já traduzido à amostra inicialmente definida, o que permitiu aos/às adolescentes terem um primeiro contacto com o instrumento e prevenir a introdução do viés do/a entrevistador/a (24). Prosseguiu- se para a entrevista individual semiestruturada, que se efetuou com o auxílio de um guião e de um gravador de áudio para recolha de dados. A utilização deste instrumento de pesquisa de natureza qualitativa permitiu que não houvesse uma imposição rígida de questões, o que, consequentemente, permitiu ao/à entrevistado/a discorrer sobre o tema proposto respeitando os seus “quadros de referência” - intenções, representações, pressupostos, estados de espírito, sexo, idade, classe social, momento histórico, etc. - e salientando o que para ele/ela era mais relevante, com as palavras e a ordem que mais lhe convinha (26). No guião da entrevista constou a formulação do problema, os objetivos que se pretendiam alcançar, as questões fundamentais, e as perguntas de recurso a utilizar apenas se o/a entrevistado/a não avançasse no desenvolvimento do tema proposto ou não atingisse o grau de explicitação que se pretendia.
O ponto de partida do trabalho de investigação foram, portanto, as entrevistas - método qualitativo -, nas quais se exploraram as perspetivas dos/as participantes acerca do Índice KIDMED. Seguidamente, realizaram-se as transcrições integrais das entrevistas e efetuou-se a análise de conteúdo das respostas abertas obtidas nas mesmas. As informações obtidas foram usadas para construir uma nova versão do Índice KIDMED - método quantitativo -, que melhor se adaptasse à amostra em estudo. Por fim, o conteúdo das questões e as adaptações efetuadas foram, depois, validadas por um grupo de especialistas constituído por três Professoras Doutoradas com publicações e pesquisas significativas e pertinentes sobre o PAM, conceito explorado neste instrumento.
Análise Estatística: Procedeu-se à análise descritiva dos dados obtidos aquando do preenchimento do Índice KIDMED pelos/as adolescentes com recurso ao programa IBM SPSS v25. Após testar a normalidade das variáveis de interesse, aplicou-se o teste T-Student para 2 amostras independentes para analisar a pontuação média do Índice KIDMED em função do sexo e o teste de Mann-Whitney para analisar a classificação do Índice KIDMED também em função do sexo. Fixou-se α = 0,05 como nível de significância.
Procedimentos Éticos: Obteve-se a aprovação da Comissão de Ética do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, a autorização da Direção-Geral de Educação, através do sistema de Monitorização de Inquéritos em Meio Escolar (número de registo 0702600001), a autorização dos/as Diretores/as dos Agrupamentos de Escolas, a autorização do autor para a utilização do Índice KIDMED, bem como os consentimentos informados dos/as Encarregados/as de Educação e dos/as adolescentes.
RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A Adesão ao Padrão Alimentar Mediterrânico
Em 15,2% da amostra não foi possível calcular a pontuação do Índice KIDMED e, consequentemente, classificar quanto à adesão ao PAM, por omissão de respostas a algumas questões do instrumento, nomeadamente, nas duas questões relativas ao consumo de produtos hortícolas (3 omissos em ambas), na questão referente ao consumo de pescado (1 omisso) e na questão referente à toma do pequeno- almoço (1 omisso). Ainda assim, nos restantes 84,8% da amostra, a pontuação do Índice KIDMED variou entre 1 e 11 valores, tendo a média correspondido a 6,18 (±2,23) valores. Adicionalmente, mais de metade (64,3%) apresentou uma adesão moderada ao PAM, 10,7% uma adesão baixa ao PAM e 25,0% uma adesão elevada ao PAM. Não se encontraram diferenças estatisticamente significativas (p=0,209) na pontuação média entre os adolescentes do sexo masculino e do sexo feminino. No entanto, encontraram-se diferenças estatisticamente significativas (p=0,048) na classificação do Índice KIDMED, tendo as adolescentes do sexo feminino apresentado uma ordem-média de classificação superior à ordem-média dos adolescentes do sexo masculino, ou seja, apresentaram uma maior adesão ao PAM.
Pode-se observar que a adesão moderada ao PAM da amostra deve-se, principalmente ao consumo de uma peça de fruta ou sumo de fruta todos os dias (75,8%), ao consumo de produtos hortícolas uma vez por dia (51,5%), ao consumo de leguminosas mais de uma vez por semana (69,7%), ao consumo de arroz e massa quase todos os dias (90,9%), ao uso de azeite (93,9%), à toma do pequeno-almoço (96,9%) e ao consumo de cereais ou derivados de cereais (84,8%) e de lacticínios (87,9%) ao pequeno-almoço. É ainda importante referir que apesar dos contextos de “fast-food” serem tradicionalmente atrativos para crianças e adolescentes, este grupo parece fugir a essa tendência, aliás já indicada num estudo de Cruz (2000) na comparação com outros países (27).
A Perspetiva dos/as Adolescentes sobre o Índice KIDMED
O objetivo do presente estudo é trazer informação sobre o modo como os/as adolescentes do contexto português interpretam a versão do Índice KIDMED produzida na sua clareza e acessibilidade. Este tipo de estudos é efetuado, como forma a testar o instrumento na população-alvo, em seguimento do seu processo de produção ou, como neste caso, de tradução.
As entrevistas individuais com os/as adolescentes trazem contributos distintos. A maioria considera o Índice KIDMED um inquérito de fácil preenchimento, sem perguntas difíceis de responder ou palavras complicadas de compreender. Indicam assim que o instrumento é claro, o que nos permitiria confiar na fiabilidade dos resultados.
Normal e… (pausa) as perguntas eu percebi. (longa pausa). Acho que é simples, fácil e está bem adaptado para pessoas da minha idade… adolescentes. (E01)
achei que a linguagem estava explícita e compreende-se perfeitamente. (E06)
Achei-o claro e objetivo. (E08)
Hum, eu achei que as perguntas estavam bem feitas e eram
objetivas. (E10)
Eu achei-o fácil. (E11)
Até achei que foi fácil… de perceber… sim. (E16)
Achei que é um questionário simples de responder, não tem assim nenhuma pergunta muito difícil. (…) são tudo palavras simples (E23)
Hum, (sorri) achei fácil. (E31)
Tá bem feito, dá para perceber as perguntas que nos estão a tentar fazer. Está compreensível para todos! (E32)
Achei fácil, achei que todas as pessoas conseguiam responder e
que não tem nenhuma palavra difícil. (E34)
As respostas acima apontam para se considerar que o instrumento tem uma linguagem clara e que a natureza das questões foi considerada fácil. Contudo, houve também relatos de dificuldades em algumas questões, às quais optaram por não responder, resultando em casos omissos. Este facto mereceu a nossa atenção levando a uma exploração das dificuldades.
Adolescentes E15, E28 e E33 não responderam às seguintes questões:
“Comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados regularmente, uma vez por dia?”
“Comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados mais de uma vez por dia?”
Achei fácil, só que algumas coisas também não consegui fazer.
(E15)
Não entendeste as duas frases, mas tudo ou só alguma palavra? (Entrevistadora)
Horti-có-las. (E15)
Assim… para nós sabermos o que comermos e o que nós
deveremos parar de comer. (E28)
E tiveste dificuldade em responder a alguma pergunta? (Entrevistadora)
(acena que sim com a cabeça) (E28)
Estas daqui (aponta no questionário) comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados… porque não sei o que significa hortícolas. (E28)
No geral? Um questionário bem constituído e fácil de responder.
(E33)
Tiveste dificuldade em responder a alguma pergunta? (Entrevistadora)
Sim, “comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados”, porque
não sei o que significa hortícolas. (E33)
Como se pode observar, 3 adolescentes não responderam às duas questões sobre o consumo de produtos hortícolas, que são conotadas com pontuação +1 cada uma, por se referirem a alimentos cujo consumo diário é promovido no PAM. A ausência de resposta resultou do desconhecimento do conceito “produtos hortícolas”, que por sua vez, pode resultar do não consumo destes alimentos. Independentemente disso, será necessário incluir exemplos destes alimentos de forma a facilitar a interpretação e a resposta a estas duas questões.
Adolescente E19 não respondeu à seguinte questão:
“Comes peixe com regularidade (pelo menos 2 a 3 vezes por semana)?”
E as perguntas que foram feitas? Achas que foram fáceis? Difíceis? (Entrevistadora)
Fáceis… (E19)
Aqui (aponto no questionário) pergunta se comes peixe pelo menos duas a três vezes por semana, mas não respondeste, porquê? (Entrevistadora)
Eu sou vegetariano. (E19)
Houve um caso de omissão de resposta na questão referente ao consumo de peixe, por se tratar de um/a adolescente que segue uma alimentação vegetariana. Sendo o vegetarianismo um padrão alimentar distinto do PAM, objeto de avaliação neste instrumento, é importante avaliar a existência de algum tipo de regime alimentar especial (exemplos: vegetariano, vegetariano estrito, ovolactovegetariano) ou condicionado pela presença de doença (exemplo: condicionado pela doença celíaca) antes ou depois de se aplicar o Índice KIDMED. Isto permitirá evitar possíveis enviesamentos de classificação da adesão ao PAM da amostra, resultantes, por exemplo, do não consumo de produtos de origem animal (como é o caso do peixe e dos laticínios, conotados com pontuação +1 em 3 questões do questionário) e do não consumo de produtos alimentares com glúten (como é o caso da massa e do pão, também conotados com +1 em 2 questões do questionário).
Adolescente E20 não respondeu à seguinte questão:
“Tomas o pequeno-almoço?”
No geral, o que achaste deste questionário que acabaste de responder? (Entrevistadora)
Fácil e simples! (E20)
E tiveste dificuldade em responder a alguma questão? (Entrevistadora)
Sim, na do pequeno-almoço. (E20)
Porque a resposta é só de sim/não e eu não tomo todos os
dias… (E20)
Na questão relativa à toma do pequeno-almoço também surgiu um caso de omissão de resposta. Pode-se inferir através da informação recolhida na entrevista que a questão estava “incompleta”, por falta de informação que permitisse responder apenas SIM ou NÃO, ou seja, a questão poderia especificar se a toma do pequeno-almoço é diária ou pontual.
Em alguns casos, mesmo tendo algumas dúvidas, os/as adolescentes optaram por responder à questão, o que causa desconfianças sobre a fiabilidade das respostas.
Adolescentes E05, E18 e E35 responderam NÃO às seguintes questões:
“Comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados regularmente, uma vez por dia?”
“Comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados mais de uma vez por dia?”
Hum… as perguntas até estão bem… estão bem feitas, só algumas palavras é que não… por exemplo, vou dar um exemplo de uma palavra (pausa enquanto procura no questionário). Aqui (aponta no questionário) “comes produtos hortícolas frescos ou cozinhados”, eu não sei mais ou menos o que… o que é que tem a ver… (E05)
Hortícolas, produtos hortí-colas frescos ou cozinhados… não
percebi o significado. (E18) Não entendi, o que é hortícolas. (E35)
Pode se verificar, através dos exemplos, que mesmo admitindo o desconhecimento do significado do conceito “produtos hortícolas”, responderam às questões. Mais uma vez, urge a necessidade de se exemplificar este conceito, para permitir que os/as adolescentes respondam de forma informada e consciente e não apenas de forma arbitrária.
Adolescente E13 respondeu NÃO à seguinte questão:
“Comes frutos secos com regularidade (pelo menos 2 a 3 vezes por semana)?”
Eu nunca comi frutos secos, nem sei o que é que é… (E13)
Adolescente E29 respondeu SIM à seguinte questão:
“Gostas e comes leguminosas mais de uma vez por semana?”
Legus.. Le-gu, leguminosas. (E29)
Porque eu não sei o significado. (E29)
O desconhecimento do significado dos conceitos “frutos secos” e “leguminosas” também foi referido aquando das entrevistas. Chega mesmo a ser demonstrada a arbitrariedade das repostas às questões, quando num dos casos o/a adolescente respondeu NÃO e no outro caso respondeu SIM, embora, em ambos, fosse referido não saberem o significado dos conceitos avaliados. Para estas questões, tal como para as questões dos produtos hortícolas, será necessário dar exemplos destes alimentos, para se obter respostas informadas e conscientes por parte dos/as participantes.
E houve alguma palavra que não percebeste o significado? (Entrevistadora)
Hum… não. Mas produtos hortícolas e leguminosas, acho que podem confundir os dois termos, podiam dar exemplos… (E21)
Ah… tipo, eu acho que… (pausa) pastelaria vem… tipo, também um bocado de tipo pão, mas não é bem pão… hum… eu não costumo ir muitas vezes à pastelaria, mas eu pensei no pão… ou
é bolos?! Eu aqui punha exemplos. (E12)
A ausência de exemplos em algumas questões chega mesmo a ser referida pelos/as próprios/as entrevistados, como se pode verificar nas transcrições acima mencionadas. Por outro lado, dado tratar-se de um instrumento que se dirige a um intervalo etário com estádios de desenvolvimento distintos (2 aos 24 anos) terá de se cuidar das dificuldades de abstração diferenciadas apresentadas por crianças e adolescentes, bem como jovens adultos.
Consegues me dizer quanto é 40g de queijo? (Entrevistadora)
Eu acho que é uma ou duas fatias. (E01)
Tipo, duas fatias de queijo… sei lá… (E04)
Não são 4 fatias de queijo?! (…) (E05)
Talvez 3 fatias, por aí… mas acho que em vez de gramas podia
dizer fatias… (E06)
Não consigo dizer, mas… sei lá, duas fatias de queijo?! (pausa) Esta pergunta podia estar mais explicita… explicar o que é as 40g de queijo, porque fico na dúvida de quanto é. (E07)
40g de queijo?! Creio que seja aí…hum… para aí um sétimo de
bola de queijo. (E08)
Sinceramente não (…) (E09)
40g é… acho que é tipo 1 fatia de queijo. (E13)
Não… se dissesse camadas de queijo… quantas fatias, se comes dois iogurtes ou 4 fatias de queijo, já sabia. (E14)
Eu não como queijo, não gosto de queijo, nem sei o que é 40g de
queijo. (E15)
Não… Não... (E18)
Uma pequena quantidade… (aponta com as mãos). (E20)
Hum… não. (E21)
Eu creio que seja duas fatias, mais ou menos. (E22)
Hum… não. Não sei. Agora que eu vejo… as medidas… 40g de queijo?! Podiam por o número de fatias… (E23)
É meio queijo, acho eu… (E26)
Hum, não. (E28)
Um queijo?! (E29)
Não (sorri)… mas eu também não como muito queijo, só se for no
pão e pouco. (E30)
Não. (E31)
Uma fatia, talvez. (E32)
Não (sorri), não mesmo. (E33)
Hum, não. (E34)
Uma fatia ou duas… ou não, acho que é mais… três fatias… deve ser três fatias ou quarto… não sei. (E35)
A ausência de referência a doses caseiras, mais simples de identificar, também é um problema a ter em consideração no instrumento, porque surgem dificuldades de entendimento para com a quantidade, por exemplo, de 40g de queijo. Os/as próprios/as adolescentes referem a relevância de substituir “40g de queijo” pelo número de fatias de queijo correspondente.
A principal tipologia de dificuldade identificada foi, portanto, relativa aos conceitos específicos em determinadas questões e as tipologias de explicação para essa dificuldade foram referentes ao desconhecimento dos conceitos, à existência de questões “incompletas”, por falta de exemplos ou por falta de informação que permitisse responder apenas SIM ou NÃO, e às quantidades de alimentos expressas em gramas, pois não sabiam converter corretamente para doses caseiras.
Para além do que foi até agora referido, conceitos que os/as adolescentes achavam conhecer, em algumas situações, estavam incorretos. Noutras situações não se recordavam de (não sabiam indicar) outros exemplos para além dos exemplos já referidos no questionário. Mais uma vez, a fiabilidade das respostas dadas é colocada em causa.
Quando respondeste a esta pergunta aqui, (aponto no questionário) dos produtos hortícolas frescos ou cozinhados, que exemplos te lembraste? (Entrevistadora)
Ervilhas e couves. (E11)
Pensei em salada, no feijão, no… no…no… (pausa) eu… (longa pausa) pensei nos produtos que como, ervilhas, grão-de-bico…
(E19)
De comidas tipo cozidos, tipo… hum… tipo ovo cozido, batata cozida… já não me lembro de mais nenhum. (E27)
Verificou-se a inclusão, incorreta, de alimentos como as ervilhas e o grão-de-bico (que são leguminosas), o ovo (que é um equivalente da carne e do peixe) e a batata (que é um tubérculo equivalente da massa e do arroz) como exemplos de produtos hortícolas frescos ou cozinhados.
E exemplos de leguminosas? (Entrevistadora)
Hum… a mesma coisa que hortícolas (sorri) eu só associei leguminosas a legumes… foi por isso que eu meti isso… como costumo comer legumes quase todos os dias… (E03)
Legumes, tomate e assim. (E04)
Legumes (E05)
É os legumes normais (E07)
Alface… hum… uma coisa que agora não me vem o nome à cabeça... (sorri)… não me lembro de mais nenhuma. (E08)
(pausa) Sei lá… (sorri e faz longa pausa) Não sei nomes, não sei.
(E09)
Hum… brócolos… hum (pausa) feijão. (E10)
Eu lembrei-me dos legumes. Leguminosas, legumes… (E11)
Leguminosas, foi legumes (E14)
Não me lembrei de nada. (E15)
São os legumes, como cenoura e alface, couve rocha. (E16)
Hum, legumes? Cenoura e isso. (E18)
O mesmo que os hortícolas, dos legumes. (E20)
Hum, eu acho que isso era tipo, cenouras e assim… (E22)
Hum, pensei na cenoura e isso. (E23)
Leguminosas são os legumes em geral. (E26)
São os legumes. (E27)
Tipo os legumes. (E28)
(longa pausa), cenoura, tomate, alface e esses legumes. (E32)
Leguminosas? Alface, tomate. (E33)
Hum, couves, pepino, tomate, sei lá… (E35)
Verificou-se, também, a confusão entre leguminosas e legumes, um subgrupo dos produtos hortícolas, bem como a situação de “não me lembrei de nada”, quando solicitados exemplos de leguminosas. Ponderando que 69,7% da amostra menciona comer leguminosas mais de uma vez por semana, é de refletir a possibilidade deste valor não refletir a realidade.
Nozes... ah… as uvas passas, deve ser das que como mais… e
amendoins. (E02)
frutos secos é… não tem muita água, mas contém água, mas não tem muita. Por exemplo, a maçã, não é um fruto seco. (pausa) Frutos secos… (pausa) não sei se a romã é… (E05)
(pausa) é assim, não sei nenhum fruto seco, não me veio à cabeça nada, mas a palavra frutos secos sei o que é… mas… exemplos, dar os nomes de frutos secos, isso já não sei. (E12)
Eu acho que já comi isso, mas… não sei qual é o nome… eu acho que era frutos secos… (longa pausa) (E15)
Pensei… (pausa) como na noz, na… hum… aveia?! (pausa) só
mesmo esses. (E16)
Pensei em uva passa, que eu não gosto (sorri). (E20)
Por exemplo, passas… hum… também frutos desidratados, não sei se isso conta, por exemplo, morango. (E21)
Hum, passas, hum, amêndoa e… castanha e também há outro…
(pausa) noz. (E27)
Não como… não me lembrei de nenhum. (E29)
Não costumo comer muitos frutos secos… e por acaso eu não sei muito bem o nome dos frutos secos, mas avelã é um fruto
seco? (E30)
Figos, nozes e amêndoas. (E32)
Castanhas, nozes, amendoins. (E33)
De nozes, castanhas e assim… (E34)
A inclusão, incorreta, de alimentos como a maçã, a romã e o figo (que são frutas frescas), a aveia (que é um cereal), as uvas passas (que são frutos secados) e a castanha (que é um amiláceo) como exemplos de frutos secos oleaginosos e a situação do “não sei”/”não me lembrei de nenhum” são possíveis de ser observadas nos exemplos apresentados. Apenas 15,2% da amostra afirma comer frutos secos pelo menos duas a três vezes por semana, o que depois da informação qualitativa recolhida, é de se discutir a veracidade deste valor, pois quase metade da mesma amostra desconhece o que são frutos secos oleaginosos.
E na pergunta dos cereais ou derivados de cereais, dá o exemplo do pão? Lembraste-te de mais algum? (Entrevistadora)
Não, só pensei mesmo no pão. (E12)
Ah… não, só no pão. (E13)
Não. (E14)
Nenhum. (E15)
Não, o pão… o pão serviu para a resposta. (E16)
Sim… hum, lembrei-me do pão, só… porque dizia pão. (E23)
Mais ou menos (olha para o questionário)… Ya, só pão e cereais.
(E25)
Hum… não. (E27)
Hum… não. (E28)
(pausa) Não. (E29)
Cereais, tipo aqueles… tipo Chocapics e Estrelitas e… também me lembrei do pão que já está aqui (aponta no questionário).
(E30)
Não sei se os cereais, aqueles do Chocapic e essas coisas, entra.
Mas lembrei desses. (E31)
Não, só mesmo pão. (E32)
Não… não. (E33)
Hum, não. (E34)
(pausa) acho que não, não me estou a lembrar. (E35)
A dificuldade de indicarem exemplos de cereais ou derivados de cereais para além do pão que é referido no próprio questionário, assim como a inclusão incorreta de cereais açucarados, nomeadamente “Cereais, tipo aqueles… tipo Chocapics e Estrelitas” como equivalente do pão, são problemas a necessitar de reflexão. O consumo destes cereais açucarados é despromovido dentro do PAM e, estando a população- alvo a incluí-los - erradamente - ao responder a uma questão com conotação +1, pode levar a enviesamento da classificação da adesão a este padrão alimentar.
Nos laticínios, fala do leite e do iogurte, pensaste em mais algum? (Entrevistadora)
Ah… agora que eu esteja a pensar… não me veio mais nada a
cabeça. (E01)
(longa pausa) Não. (E05)
Não me lembrei de mais. (E07)
Pensei só no leite e no iogurte. (E09)
lembrei-me do leite, iogurte… da manteiga. (E11)
Não. (E12)
(…) o queijo e a manteiga. (E13)
Manteiga, queijo. (E14)
Não. (E16)
Não, foi só esses. (E18)
Não. (E22)
(pausa) Não. (E29)
Não, foi só mesmo o leite e o iogurte. (E32)
Foi só mesmo no leite e no iogurte. (E33)
Hum, não. (E34)
Outro problema a necessitar de reflexão é a incapacidade de indicarem exemplos de laticínios para além do leite e do iogurte que são referidos no próprio questionário, assim como a inclusão incorreta de manteiga (classificada como uma gordura, dentro do PAM) neste grupo de alimentos.
E nos produtos de confeitaria ou pastelaria? (Entrevistadora)
Quer dizer… eu aqui (a olhar para o questionário) respondi que sim, eu como pão. (E15)
Hum, bom… produtos de confeitaria provavelmente deve ser pão com manteiga, qualquer coisa assim… que mais? Bolos e pasteis de nata. (E25)
Hum, pão… é pão e bolos. (E27)
O pão, embora seja um alimento vendido em estabelecimentos como confeitarias e pastelarias, não é equivalente em termos nutricionais aos bolos, croissants, lanches e bolachas que são objeto de avaliação nesta questão. No entanto, como tal informação está omitida, é justificável que os/as participantes o possam incluir indevidamente na resposta à questão dos “produtos de confeitaria ou pastelaria”.
Proposta de Adaptação do Índice KIDMED
Para obter feedback sobre o instrumento em causa, incorporaram-se várias técnicas, entre as quais as entrevistas individuais a um pequeno grupo de participantes que represente a população-alvo e, posteriormente, como referido antes, a revisão por um painel de especialistas com conhecimentos sobre o conteúdo avaliado no próprio instrumento (28).
Perante toda a informação qualitativa recolhida e analisada procedeu-se à adaptação (acrescentar, excluir) de algumas questões do Índice KIDMED e à validação das mesmas com o objetivo de o adaptar melhor à população-alvo a que se destina, sem descurar o rigor técnico dos conceitos que caracterizam o PAM (Tabela 1).
CONCLUSÕES
O modo como os respondentes de um questionário interpretam os itens definidos por quem faz investigação é uma questão que merece particular atenção se se pretende produzir conhecimento rigoroso e fiável. Com o presente trabalho de investigação exploratória pretendeu-se analisar o modo como adolescentes dos 10 aos 19 anos interpretavam o que era inquirido no Índice KIDMED. Após as respostas, analisaram-se os resultados e os casos omissos, e organizaram-se momentos de investigação qualitativa sobre o modo como aquele grupo faz as suas próprias interpretações do que é perguntado e a partir daí se posiciona numa resposta. Assim, percebeu-se que os/as adolescentes, no geral, não compreendiam corretamente todas as questões inerentes ao Índice KIDMED. Deste modo, considera-se importante o rigor científico e técnico dos índices alimentares, nomeadamente a utilização de conceitos específicos que expressem aquilo que se pretende avaliar, ou seja, é imprescindível que o Índice KIDMED utilize termos como “produtos hortícolas”, “leguminosas”, “frutos secos oleaginosos”, “cereais ou derivados de cereais” entre outos exemplos, para que, assim, se tenha por base as características alimentares do PAM. É igualmente importante adequar a linguagem dos índices alimentares ao respetivo público-alvo, bem como introduzir nos instrumentos definições e/ou exemplos dos conceitos específicos e de difícil compreensão para que, dessa forma, seja possível o seu correto preenchimento.
Futuramente será necessário replicar as entrevistas semiestruturadas em adolescentes pertencentes a famílias de nível socioeconómico médio-elevado, porque os/as adolescentes entrevistados pertencem a famílias de nível socioeconómico médio-baixo e o capital sociocultural de cada adolescente é um fator determinante nos conhecimentos e saberes individuais (29). Por outro lado, os hábitos alimentares podem também ser distintos.
Como referido por Ribeiro (2010) um dos passos na construção de um instrumento “consiste na verificação se a população-alvo compreende os itens do modo que os especialistas esperam” (29). Este passo é idêntico ao que foi efetuado neste estudo, porque, apesar de se tratar de um índice já construído, a adaptação para outra língua é muitas vezes semelhante ao seu processo de construção, não devendo realizar-se apenas uma simples tradução devido às diferenças culturais e de linguagem (23).
Independentemente da limitação do tamanho da amostra, o desenvolvimento desta nova versão do Índice KIDMED, resultado de uma tradução e adaptação cultural, foi crucial para se proceder à validação desta ferramenta para a população portuguesa. O envolvimento dos próprios participantes na discussão do instrumento constitui ele próprio um momento pedagógico levando-nos a sugerir que este tipo de abordagem metodológica é em si mesmo relevante para o campo da Educação para a Saúde.
AGRADECIMENTOS
As autoras gostariam de agradecer ao corpo docente das escolas e aos alunos e alunas pela participação no presente estudo. Gostariam, também, de agradecer a colaboração dos elementos do painel de especialistas deste artigo.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
MR foi a investigadora principal e contribuiu para a conceção e desenho do estudo, recolha e análise dos dados, interpretação dos resultados e redação do manuscrito; SR contribuiu para a conceção e desenho do estudo, análise dos dados e revisão do manuscrito; SMS contribuiu para a conceção e desenho do estudo, análise dos dados, interpretação dos resultados e revisão do manuscrito. Todas as autoras leram e aprovaram a versão final do manuscrito.