INTRODUÇÃO
A pandemia por COVID-19 é um problema de saúde pública emergente (1) que apresenta impacto na saúde e bem-estar físico e psicológico da população a nível mundial (2). Com o intuito de diminuir a taxa de infeção pelo vírus SARS-COV-2, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu recomendações e medidas restritivas foram impostas pelos governos de diferentes países, incluindo o distanciamento físico e o confinamento (2, 3).
As restrições implementadas levaram a uma modificação do estilo de vida da população em geral (4), com implicações a diferentes níveis. Em relação às crianças e adolescentes, o confinamento e o encerramento das escolas acarretaram grandes desafios pela alteração das rotinas diárias (2), que levaram a alterações do comportamento alimentar e da prática de atividade física (AF) (5), podendo desencadear um aumento do peso corporal (4). De facto, estudos prévios mostraram um aumento do consumo alimentar (CA) (4) e da frequência do número de refeições diárias (6), assim como uma diminuição da prática de atividade física neste grupo (6).
A adoção de um estilo de vida saudável promotor de saúde torna-se essencial para o crescimento e desenvolvimento das crianças, sendo os hábitos alimentares (HA) adquiridos durante a infância determinantes dos comportamentos alimentares na idade adulta (7, 8). Assim, dado que comportamentos inadequados poderão ter consequências na saúde das crianças, é relevante avaliar o impacto do confinamento no estilo de vida deste grupo-alvo, de modo a desenvolver estratégias para melhorar o estado de saúde das crianças.
OBJETIVOS
O objetivo geral do presente trabalho consiste na avaliação das alterações do estilo de vida de estudantes do 3.º ano do ensino básico dos Agrupamentos de Escolas (AE) do concelho do Marco de Canaveses, durante o segundo confinamento (22 de janeiro a 12 de março) comparativamente ao período de aulas presenciais (a partir de 15 de março de 2021). Como objetivos específicos pretende-se: caraterizar os HA durante o confinamento; ii) comparar os HA e a prática de AF durante o confinamento, com o período de aulas presenciais; iii) avaliar possíveis alterações emocionais durante este período e a influência das emoções na ingestão alimentar (IA); e iv) avaliar a preocupação do encarregado de educação (EE) e a sua influência no estilo de vida da criança.
METODOLOGIA
População: Estudo observacional descritivo de desenho transversal conduzido numa amostra de conveniência de estudantes do 3.º ano do ensino básico dos quatro AE do concelho do Marco de Canaveses. Todos os 444 estudantes inscritos no 3.º ano foram convidados a participar no presente trabalho, de forma voluntária, através do autopreenchimento de um questionário online pelos EE. Foi enviado o link do questionário para os EE por e-mail pelos professores titulares do 3.º ano, tendo como intermediário os AE. Os questionários foram preenchidos entre o dia 29 de abril e o dia 18 de junho de 2021, e dos 444 convites realizados, obteve-se resposta de 210 crianças, o que representa uma participação de 47,3% da população em estudo.
Aprovação Ética: O trabalho foi conduzido com a aprovação da Comissão de Ética da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP) e da Direção-Geral da Educação (DGE).
Recolha de informação: O questionário era constituído por sete grupos:
questões sociodemográficas, como idade, sexo, AE do estudante, bem como grau de parentesco, habilitações literárias (HL) e situação atual face ao emprego do inquirido; 2) questões gerais sobre os HA, estado nutricional e AF; 3) preocupação do EE sobre o estilo de vida da criança; 4) alterações emocionais durante o período do confinamento;
5) frequência do CA no confinamento comparativamente com o período de aulas presenciais; 6) ocorrência de episódios de ingestão emocional (IE); 7) prática de AF.
No grupo 2, os EE eram questionados sobre o número de refeições diárias, a frequência do consumo do pequeno-almoço e o local da realização das refeições principais realizadas pelos educandos quer no período de confinamento quer no período de aulas presenciais. Os EE foram também questionados se durante o período de confinamento a quantidade de comida, o ato de petiscar, o peso da criança (autoreporte), o rendimento dos pais, a quantidade de alimentos em casa e a prática de atividade física pela criança se manteve, aumentou ou diminuiu. No grupo 5, foi avaliada a alteração da frequência do consumo de 14 grupos de alimentos, agrupados de acordo com as suas semelhanças nutricionais (9), nos períodos em análise.
Para avaliar a IE utilizou-se o questionário Child Eating Behaviour Questionnaire (CEBQ), que se encontra adaptado e validado para crianças e adolescentes portugueses dos 3 aos 13 anos de idade, nomeadamente as questões das dimensões da “Sobreingestão e Subingestão emocional” (10). No CEBQ, as respostas são assinaladas numa escala de Likert referentes à frequência do acontecimento descrito. No entanto, neste questionário foi utilizado como resposta as opções “Sim” e “Não”.
A prática de AF durante os períodos em análise foi avaliada com recurso ao questionário utilizado pelo Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (IAN-AF) para crianças dos 6 aos 9 anos de idade (11), incluindo apenas a secção das atividades diárias e a prática de exercício físico programado e regular.
Análise Estatística: A análise estatística dos dados foi realizada com recurso ao software IBM SPSS Statistics versão 26. Para a análise descritiva foram calculadas as frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas, e a média e desvio-padrão para a variável quantitativa. Na avaliação da normalidade da variável quantitativa foi avaliado o coeficiente de assimetria e de achatamento, tendo-se verificado que a variável seguia uma distribuição normal. O teste exato de Fisher foi usado para avaliar a dependência entre variáveis nominais. O grau de associação entre variáveis ordinais foi medido pelo Coeficiente de Correlação de Spearman. Para comparação das ordens médias de duas variáveis independentes foi utilizado o teste Mann-Whitney. A hipótese nula foi rejeitada quando o nível de significância era inferior a 0,05.
RESULTADOS
Dos 210 questionários respondidos pelos EE, 109 eram de estudantes do sexo feminino (51,9%) e 101 do sexo masculino (48,1%), com uma média de idades de 8 anos (dp=0,51) (Tabela1).
A maioria dos participantes (68,6%) referiu que o rendimento familiar se manteve durante o período de confinamento. Nesse período, 20% dos inquiridos referiram um aumento da quantidade de comida em casa e 6,7% uma diminuição, sendo que 8,1% referiram sentir dificuldades em ter alimentos suficientes para alimentar a criança (Tabela 2).
Relativamente ao padrão de refeições, a maioria dos EE referiu que o educando fazia 5 refeições diárias, quer no confinamento (52,9%) quer no período de aulas presenciais (58,1%). Contudo, 15,7% dos educandos aumentaram o número de refeições diárias, passando de 4,3 para 5,6 refeições, em média. Adicionalmente, a maioria dos EE reportaram que os educandos petiscavam mais alimentos ao longo do dia (56,2%) e 36,7% reportaram um aumento da ingestão alimentar dos educandos durante o confinamento (Tabela 2).
Os grupos alimentares para os quais houve uma maior percentagem de crianças com um aumento do consumo foram: frutos (24,8%), cereais (14,3%), doces (13,3%) e lácteos (12,4%); e uma maior percentagem que referiu a diminuição do consumo foram: fast-food (40,5%), café/ chá (26,7%), sumos (26,2%) e doces (25,2%) (Gráfico 1).
A maioria dos EE relataram uma diminuição da prática de AF dos educandos (58,6%) e apenas 7,2% da amostra praticava exercício físico regular e programado durante o confinamento. Relativamente às atividades diárias, verificou-se uma maior percentagem de EE a relatar um aumento das seguintes atividades: jogar/mexer no computador, na consola, no tablet ou no telemóvel (62,9%) e ver televisão (56,7%); e diminuição das brincadeiras ativas (35,7%) e estar sentado a falar ao telefone (22,4%) (Gráfico 2).
No que diz respeito à variação do peso, 32,4% dos EE reportaram um aumento de peso dos educandos, 1,4% reportou diminuição e os restantes reportaram que o peso se manteve durante o confinamento (66,2%) (Tabela 2).
Quanto à preocupação com o estilo de vida da criança, a maioria dos EE relataram sentir preocupação com a alimentação da criança (54,8%), terem cuidado com a sua alimentação quando esta se encontra presente (91,4%), terem capacidade de transmitir bons HA (98,6%) e incentivarem sempre a adoção a uma alimentação saudável (64,8%) e à prática de atividade física dos educandos (58,6%).
Na vertente emocional, a maioria dos EE relatou que os educandos se sentiram mais aborrecidos (64,8%), ansiosos (57,1%), preocupados (49,0%) e cansados (40,0%) no período do confinamento.
Quanto à sobreingestão emocial, 58,6% dos EE relataram que pelo menos um dos seguintes fatores: aborrecimento, ansiedade, preocupação e o facto de não ter nada para fazer, desencadeavam um maior CA pelos educandos. Na subingestão emocional, 67,1% dos EE referiram que o facto de o educando se sentir transtornado, zangado e/ou cansado provocava um menor CA e/ou, no entanto, o facto de se sentir feliz provocava um maior CA.
Segundo a variação de peso relatada pelos EE, verificou-se que os estudantes que aumentaram de peso apresentavam maior frequência de refeições diárias e do ato de petiscar, maior CA e menor prática de AF. Os estudantes que ingeriram uma maior quantidade de comida durante o confinamento foram aqueles que aumentaram o número de refeições diárias e petiscaram com mais frequência. Adicionalmente, verificou-se que os estudantes que petiscavam mais alimentos ao longo do dia foram os que aumentaram o consumo de produtos lácteos e cereais. Quanto à preocupação do EE com o estilo de vida do educando, verificou-se que os educandos cujos EE se preocupavam com a sua alimentação, foram os que aumentaram o CA, a frequência do ato de petiscar, e o consumo de arroz/massa/batata e doces. Os EE que incentivavam com maior frequência a adoção pelos educandos de uma alimentação saudável foram associados ao aumento do consumo de peixe e diminuição do consumo de frutos, arroz/massa/batata, sumos e doces.
Quanto à IE, verificou-se que quanto maior o valor da sobreingestão emocional, maior era o CA, a frequência do ato de petiscar e o aumento de peso durante o período de confinamento.
Adicionalmente, a sobreingestão apresentava uma correlação muito fraca (rs=0,188) e significativa com a subingestão emocional.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Relativamente aos HA, verificou-se que 17,5% da amostra aumentou o número de refeições diárias, o que vai de encontro com o estudo de Pietrobelli et al, no qual o número de refeições diárias aumentou 1,15 (6). Adicionalmente, o aumento do CA e da frequência do ato de petiscar foi também descrito noutros estudos (4, 12). No presente estudo, o número de refeições diárias estava associado positivamente ao consumo alimentar; contudo não se associou ao ato de petiscar, podendo isto advir do facto dos petiscos não serem contabilizados como uma refeição. Os estudantes que aumentaram a frequência do ato de petiscar, aumentaram o consumo de lácteos e cereais, provavelmente porque estes grupos alimentares são práticos e acessíveis.
Neste estudo verificou-se uma diminuição do consumo de alimentos de elevada densidade energética, como fast-food, doces e sumos no confinamento. A diminuição do consumo de fast-food foi observada noutro estudo (13), podendo ser devido ao facto das empresas de restauração terem fechado ou ter sido limitado o seu acesso durante o período em causa. No entanto, um estudo em Verona relatou um consumo diário superior no número de bebidas açucaradas consumidas durante o período de confinamento (0,90 versus 0,40) (4, 6).
Quanto ao peso, no presente estudo verificou-se que 32,4% dos EE relataram um aumento do peso dos educandos, estando associado com a diminuição da prática de AF e aumento do CA. Uma revisão sistemática apresentou resultados semelhantes(4). Contudo, num dos estudos dessa revisão, foi verificado que o aumento de peso acontecia principalmente em adolescentes que aumentaram o consumo de fritos, doces e bebidas açucaradas (14). No nosso estudo, tal não se verificou, provavelmente devido ao facto de uma maior percentagem de EE relatar uma diminuição do consumo desses grupos alimentares, podendo isto advir de uma menor disponibilidade destes alimentos em casa ou maior disponibilidade dos EE para a preparação e confeção de refeições e lanches saudáveis; também poderá relacionar-se com um viés de desejabilidade social.
Os educandos cujos pais sentem maior preocupação com a alimentação aumentaram o CA, a frequência do ato de petiscar e o consumo de arroz/massa/batata e doces; isto pode ser explicado pelo facto da preocupação dos EE advir de uma alimentação menos saudável dos educandos. Adicionalmente, os educandos, cujos EE incentivam a adoção de hábitos alimentares saudáveis, diminuíram o consumo de alimentos de elevada densidade energética ou baixo valor nutricional, destacando-se o papel dos EE como modeladores dos comportamentos alimentares dos educandos, em concordância com o relatado em estudos prévios (15, 16).
Relativamente à AF, verificou-se uma diminuição de brincadeiras ativas e um aumento de comportamentos sedentários, tendo vários estudos mostrado resultados semelhantes (6, 17 - 19). No presente estudo, também se verificou uma diminuição da prática de exercício físico regular e programado, devendo-se ao facto dessas atividades terem encerrado durante o período de confinamento.
Quanto à IE, constatou-se que a sobreingestão emocional estava associada com a subingestão, podendo isto significar que a mesma criança pode aumentar e diminuir a ingestão alimentar por influência das emoções, em linha com os resultados de estudos prévios (20, 20). Neste estudo destacam-se algumas limitações, nomeadamente o preenchimento pelos EE, incluindo dados antropométricos como a variação do peso. Desta forma, as respostas podem ter sido influenciadas pela desejabilidade social, ou seja, os EE podem ter sobre-reportado o consumo de alimentos mais saudáveis e sub- reportado o consumo de alimentos mais indesejáveis, levando a um viés nos resultados encontrados. Por outro lado, como o questionário foi auto-preenchido, os EE com menores habilitações literárias poderão ter apresentado maiores dificuldades no seu preenchimento. Embora não tenha sido possível comparar os participantes com os não participantes, é expectável que os não participantes apresentem habilitações literárias mais baixas e, portanto, o nosso estudo poderá apresentar uma representatividade limitada. Adicionalmente, na aplicação do CEBQ foi usado uma escala de resposta diferente que obrigaria a uma nova validação do questionário; e os resultados não poderão ser comparados com outros estudos.
Como pontos fortes, destaca-se a relevância deste tema, uma vez que existem poucos estudos sobre a influência do confinamento na alteração dos hábitos alimentares e da prática de atividade física nas crianças. Para além disso, a partir deste estudo, é possível realizar intervenções mais direcionadas às necessidades deste grupo, tendo por base o impacto do confinamento no seu estilo de vida.
CONCLUSÕES
Cerca de metade da amostra alterou negativamente o estilo de vida em termos de alimentação e atividade física durante o confinamento, com repercussões no peso corporal. Apesar da diminuição no consumo de alimentos de elevada densidade energética e menos saudáveis, cerca de um terço da amostra aumentou de peso, possivelmente devido ao aumento do consumo alimentar e da frequência do ato de petiscar e diminuição da prática de atividade física. Assim, torna-se importante que os EE e restantes familiares definam horários para a realização das refeições dos seus educandos e que disponibilizem alimentos mais saudáveis e ricos nutricionalmente, devendo a alimentação de ambos ser completa, equilibrada e variada. Para além disso, devem incentivar e praticar atividade física com as crianças, de modo a facilitar a adoção de estilos de vida saudáveis. Realça-se ainda a necessidade de realizar novos estudos, de modo a aprofundar o impacto do confinamento no estilo de vida da população, e, posteriormente, desenvolver e implementar intervenções neste âmbito.
CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR PARA O ARTIGO
IM participou em todas as etapas da elaboração do trabalho de investigação, incluindo recolha e análise de dados e escrita do artigo. FC foi responsável pela conceção do estudo, colaborou na recolha de dados e na revisão de todo o artigo. JA colaborou na conceção do estudo, na análise estatística dos dados e na revisão crítica do artigo