INTRODUÇÃO
A European Society for Clinical Nutrition and Metabolism (ESPEN) define desnutrição como um “estado resultante de uma insuficiente ingestão ou absorção de nutrientes que resulta numa alteração da composição corporal (perda de massa magra) e massa celular corporal que levam a uma diminuição das funções físicas e mentais e a um pior prognóstico da doença” (1). Embora a desnutrição associada à doença seja muito frequente em várias patologias consideradas paliativas, como é o caso da doença oncológica, raramente é despistada (2, 3). Aliás, estima-se que 10-20% dos doentes oncológicos morrem por consequência da desnutrição e não pelo tumor em si (3). A Organização Mundial da Saúde e a European Association for Palliative Care (EAPC) definem Cuidados Paliativos como cuidados ativos, coordenados e totais prestados a doentes em situação de sofrimento decorrente de doença incurável ou grave, em fase avançada e progressiva, bem como às suas famílias, tendo por base a identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual, auxiliando o doente a viver a sua doença o mais ativamente possível (4, 5). São assim cuidados interdisciplinares que envolvem o doente, a família e a comunidade nos objetivos, afirmando a vida e assumindo a morte como um processo natural, não a antecipando nem adiando intencionalmente (4, 5).
Sabe-se que a doença oncológica, pela sua natureza metabólica e as alterações fisiológicas decorrentes dos tratamentos anti-neoplásicos e da própria evolução da doença, tem uma influência significativa na capacidade física e no bem-estar psicológico e social dos doentes, com repercussões negativas no estado nutricional e na qualidade de vida (6, 7). Segundo Fearon et al (2013) (8), estes doentes experienciam um conjunto de sintomas que se reúnem numa síndrome complexa e interdependente chamada de síndrome da caquexia, que alteram não só a capacidade de se alimentar, mas também a capacidade de apreciar esses mesmos alimentos (8, 9). Em contexto paliativo oncológico, a desnutrição e a caquexia, devido ao hipermetabolismo caraterístico da doença e a um estado geral catabólico, levam a uma perda persistente de peso e declínio funcional, sendo importante avaliar regularmente a ingestão alimentar, perda de peso recente e índice de massa corporal, devendo ter-se em conta o ponto da trajetória em que o doente se encontra quando se seleciona o tipo de intervenção nutricional (3). Dados na literatura sugerem que a desnutrição aumenta ainda o risco de complicações, diminui a qualidade de vida e a capacidade funcional dos doentes, evidenciando a necessidade de aplicação do rastreio de desnutrição (2, 10). Pelo contrário, um estado nutricional adequado está associado a maior sobrevida, menor tempo de hospitalização e maior tolerância ao tratamento (10).
Posto isto, um plano de cuidados nutricionais deve ser gerido de forma integrada e continuada em cuidados paliativos oncológicos. O planeamento de rotinas de avaliação e identificação do risco nutricional precoce reveste-se de extrema importância ao permitir a atuação a nível alimentar e nutricional, não apenas na fase avançada da doença, mas sim desde o seu diagnóstico e em todas as fases do processo (10, 11). A ESPEN sugere a utilização do Nutritional Risk Screening 2002 (NRS 2002), uma ferramenta de identificação do risco nutricional validada em contexto hospitalar (12). No entanto, a Scored Patient-Generated Subjective Global Assessment (PG-SGA) apresenta maior sensibilidade e especificidade e é preconizado para doentes adultos oncológicos, tendo já sido traduzido e validado para a língua portuguesa (13, 14). É uma ferramenta de trabalho qualificada que permite realizar a avaliação quer do risco nutricional como do estado nutricional dos doentes, dando orientações relativamente à necessidade de intervenção (2, 3).
Assim, por forma a melhorar os resultados clínicos e a qualidade de vida dos doentes, a avaliação do risco e da situação nutricional são parâmetros importantes no cuidado holístico, destacando-se como uma prioridade no combate à desnutrição, visto que possibilita um diagnóstico precoce e um tratamento mais proativo e seguro (7, 11). No entanto, a transposição dos protocolos de rastreio e avaliação nutricional para o ambiente paliativo pode colocar algumas dificuldades dadas as caraterísticas específicas destes doentes.
Efetivamente não existem ferramentas de risco nutricional específicas para doentes oncológicos em cuidados paliativos, no entanto, é necessário perceber quais os possíveis benefícios com esta prática na melhoria da qualidade de vida do doente. Posto isto, é objetivo deste trabalho conhecer a realidade atual em cuidados paliativos oncológicos no que diz respeito ao rastreio e avaliação nutricional, para que se possam adotar novos protocolos de rastreio nutricional nesta população, de modo a proceder-se a uma avaliação nutricional atempada e mais personalizada.
METODOLOGIA
A pesquisa para a presente revisão iniciou-se tendo por base a questão de partida: De que forma a aplicação de uma ferramenta de rastreio nutricional vai influenciar o estado nutricional dos doentes oncológicos com necessidades paliativas? Após terem sido estabelecido os objetivos, definiu-se um conjunto de critérios para a seleção dos artigos, passíveis de integrarem a revisão descritos na Tabela 1.
A pesquisa foi realizada em 3 bases de dados: MEDLINE, Web of Knowledge, Scopus; através das palavras-chave “nutrition screening tools” AND “cancer” AND “palliative care” e reviu-se a literatura entre 2011 e 2021. A pesquisa decorreu no dia 31 de maio de 2021 e foram encontrados 37 artigos, sendo que 12 foram excluídos por repetição nas bases de dados. Seguindo uma adaptação do método PRISMA, da pesquisa inicial com base no título 6 foram excluídos e 19 foram selecionados para a fase seguinte. Após a leitura integral, foram excluídos 14, por não se enquadrarem nos critérios de inclusão descritos na Tabela 1, tendo 5 sido incluídos na revisão. As principais conclusões dos estudos incluídos na presente revisão encontram-se explanadas na Tabela 2.
RESULTADOS
Primeiramente, no estudo de Milana et al (2014) avaliou-se a sobrevida dos doentes com adenocarcinoma gástrico avançado com ou sem metástases, a realizar quimioterapia paliativa num hospital na República Checa, através do recurso a escalas de prognóstico ou ao registo de uma perda de peso recente (15). O estudo retrospetivo contou com 91 doentes, onde foram analisados os processos clínicos durante 2 anos e 9 meses, e as escalas de prognóstico escolhidas foram o Glasgow Prognostic Score (GPS), Onodera’s Prognostic Nutritional Index (OPNI), Cancer Cachexia Study Group (CCSG) e Nutritional Risk Indicator (NRI). No final, concluiu-se que as ferramentas utilizadas são úteis para avaliar o prognóstico do doente (15).
Já no estudo de coorte retrospetivo realizado por Carvalho et al (2017), foi possível constatar que a maior parte dos doentes se apresentavam desnutridos na primeira consulta e que, após a intervenção nutricional precoce, mediante o resultado obtido na ferramenta de rastreio, houve um impacto positivo na qualidade de vida bem como na sobrevida do doente (16). Este estudo contou com a participação de 104 doentes com cancro terminal cujos dados foram recolhidos durante 6 anos num centro destinado a cuidados paliativos no Rio de Janeiro. Os participantes foram classificados por grupos tendo em conta os resultados obtidos na ferramenta de rastreio nutricional PG-SGA (A: bem nutridos, B: suspeita de desnutrição ou levemente desnutridos, C: desnutrição grave. Paralelamente, os resultados demonstraram também que os doentes com desnutrição grave apresentaram um tempo de sobrevivência consideravelmente menor quando comparado com os doentes com bom estado nutricional (16).
De seguida, numa revisão retrospetiva conduzida por Flynn et al (2018) durante 4 meses, foram avaliados os registos das admissões de doentes oncológicos numa unidade de cuidados paliativos (15). Foram incluídos 140 participantes, sendo que a nenhum deles tinha sido realizado um rastreio nutricional. Segundo o mesmo autor, detetou-se uma avaliação nutricional inadequada nestes doentes, evidenciando a necessidade do planeamento de rotinas de avaliação e identificação do risco nutricional através de ferramentas de rastreio nutricional, bem como da verificação da sintomatologia de modo a identificar os casos de caquexia oncológica em centros de cuidados paliativos (17).
No estudo de Tsilika et al (2015), em que pretenderam determinar a confiabilidade e validade da ferramenta PG-SGA traduzida e validada para a população grega em doentes oncológicos numa unidade de cuidados paliativos, concluíram que é a ferramenta de rastreio nutricional mais apropriada para este tipo de população. Durante 2 anos foram incluídos 238 doentes com cancro avançado, dos quais 93 classificaram-se na escala A, 104 na B e 41 com resultado C. Os mesmos autores concluíram ainda que esta ferramenta para a população oncológica com necessidades paliativas apresenta elevada sensibilidade e especificidade (18).
Por último, as Guidelines da Sociedade Espanhola de Oncologia Médica (2019) referem que no momento do diagnóstico deve realizar-se um rastreio de risco nutricional a todos os doentes oncológicos pois este poderá determinar o outcome do doente em causa (17). A mesma entidade preconiza o uso do Malnutrition Universal Screening Tool (MUST) para doentes em ambulatório, o NRS-2002 para doentes internados, o Mini Nutritional Assessment (MNA-SF) para a população idosa e o Malnutrition Screening Tool (MST) para doentes em ambulatório ou internados (17). Recomenda ainda a utilização da PG-SGA para doentes internados ou em ambulatório, reforçando que é uma ferramenta que engloba dados qualitativos e semi-quantitativos (17). Para a população paliativa, também recomendam que seja igualmente aplicada uma ferramenta de rastreio nutricional (17). No entanto, salientam que o benefício da intervenção nutricional deve ser ponderado tendo em conta a expectativa de vida do doente e o respeito pela sua autonomia e vontade da sua família (19). Ademais, na fase terminal da doença, o doente dificilmente terá benefícios com o recurso a nutrição artificial (19).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
As vantagens de uma intervenção nutricional precoce em doentes oncológicos está amplamente estudada (9). Paralelamente, o recurso a ferramentas de rastreio nutricional nesta população também está comprovado para a deteção de casos de desnutrição ou risco de a vir a desenvolver (12, 14). Desta forma, apesar de os estudos acerca destes temas para a população oncológica em cuidados paliativos serem escassos, o impacto acaba por ser igualmente positivo, uma vez que é realizada uma intervenção a fim de melhorar a qualidade de vida do doente (19).
As ferramentas utilizadas para detetar risco nutricional são várias e, apesar de algumas avaliarem diferentes parâmetros, todas elas são fidedignas para chegar a um resultado que vai influenciar a intervenção nutricional que se segue. Efetivamente a literatura defende o uso da PG-SGA para a população oncológica, referindo-a como uma ferramenta com uma boa sensibilidade e especificidade, prática e que engloba diferentes tipos de dados. No entanto, reforça-se que o preenchimento de uma destas ferramentas, independentemente de qual for, irá realmente conduzir a uma intervenção nutricional atempada que poderá melhorar a qualidade de vida dos doentes (17 - 19).
Em suma, a presente revisão permite refletir acerca da importância da implementação de uma ferramenta de rasteio nutricional em doentes oncológicos em cuidados paliativos e da necessidade de acompanhar o doente ao longo de todo o processo. Isto é, não basta implementar a ferramenta e detetar o risco nutricional ou a possibilidade de o vir a desenvolver, mas sim clarificar o impacto que a intervenção nutricional pode ter no estado geral do doente. Reconhecendo o potencial de ação dos cuidados paliativos, quando implementados precocemente na trajetória da doença, a Organização Mundial da Saúde recomenda um modelo de intervenção em que as ações paliativas têm início no momento do diagnóstico (4, 20). E, tendo em conta a proposta de integração dos cuidados paliativos nas fases mais precoces da doença, a implementação de rotinas de avaliação com recurso a uma ferramenta de rastreio nutricional reveste-se de extrema importância, possibilitando uma atuação precoce, que está associada a uma melhoria da qualidade de vida através da possibilidade de uma intervenção alimentar e nutricional em todas as fases da doença (21). Por fim, apesar de serem conhecidos e comprovados os benefícios da realização do rastreio nutricional nos doentes oncológicos, quando se especifica para a população paliativa, ainda não existem dados na literatura que evidenciem e suportem esta prática clínica. Desta forma, salienta-se a importância de reforçar os estudos para fundamentar a necessidade da utilização de ferramentas de avaliação do risco nutricional em doentes oncológicos paliativos.
CONCLUSÕES
A presente revisão sintetiza a evidência relativamente ao impacto que a avaliação do risco e do estado nutricional tem no estado geral, qualidade de vida e prognóstico do doente oncológico com necessidades paliativas. Assim, a prática clínica deverá pautar-se pelo planeamento de rotinas de avaliação e identificação do risco nutricional precocemente, ainda que seja necessária mais investigação no contexto paliativo. No entanto, a transposição destes protocolos de avaliação do risco nutricional para os doentes com necessidades paliativas é, ainda, uma lacuna na literatura.